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> AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 Primeira hora Indicagao da problemética geral: subjetividade e verdade. ~ Novo ponto de parti- da teérico: 0 cuidado de si. — As interpretagdes do preceito délfico “conhece-te a tf mesmo”. ~ Sécrates como o homem do cuidado: andilise de irés extratos da Apologia de Sécrates. - O cuidado de si como preceito da vida filosdfica e moral antiga. ~ O cuidado de si nos primeiros textos cristéos. - O cuidado de si como atitude geral, relagao consigo, conjunto de praticas. ~ Razdes da desqualificagao moderna do cuidado de si em proveito do conhecimento de si: a moral moderna: momento cartesiano. — A excegiio gnéstica. — Filosofia e espiritualidade. Propus-me neste ano experimentar o seguinte procedimento!: mi- nistrar duas horas de aula (de 9h1Smin a 11h1Smin), com um pequeno intervalo de poucos minutos apés uma hora, a fim de lhes permitir des- cansar ou ir embora se estiverem enfadados e para que também eu possa descansar um pouco. De todo modo e na medida do possivel, procurarei ainda diversificar um pouco as duas horas de aula, isto é, apresentar, de preferéncia na primeira hora ou em todo caso numa das duas horas, uma exposigdo um pouco mais, digamos, tedrica e geral; e depois, na outra hora, algo que, preferencialmente, se aproxime de uma explicagio de tex- to, contando, é claro, com todos os obsticulos e inconvenientes que es- tao ligados as circunstdncias da nossa instalagdo: ao fato de que nao se Pode distribuir-Ihes os textos, de que nao se sabe quantos vocés serao, etc. Enfim, vamos tentar. Se nao der certo, procuraremos encontrar para © préximo ano ou talvez para este ano mesmo um outro procedimento. E muito incémodo chegarem, de modo geral, as 9hlSmin? Nao? Tudo bem? Entdo vocés so mais favorecidos que eu. No ano passado tentei entabular uma reflexao histérica sobre 0 tema das relagdes entre subjetividade e verdade. Para 0 estudo desse proble- ™a, escolhi como exemplo privilegiado ou, se quisermos, como superfi- Cle de refragiio, a questo do regime de comportamentos e prazeres se- Ahermenéutica do sujeito 4 ic, o regime dos aphrodisia, voces se lembram, tal como xuais na Antigua ido nos dois primeiros séculos de nossa era), p aparecera ¢ fora definido Det tr porta, entre Outras, 2 scguinte ¢, gime que, ao que me parecia, comportava, | te eguinte di. mensio de interesse: era realmente oe oe ee a de modo algum na moral chamada crista ou, plor aind es nama a jud laico-cris i que se encontrava 0 arcabougo fundamental 2 moral sexual curopeig moderna’. No presente ano, gostarta de me deren an pouco d exemplo preciso, bem como desse material particular concernente aos aphrodisia © a0 regime dos comportamentos SexUs ©, desse exemplo preciso, extrair os termos mais gerais do problema “sujcito ¢ verdade” Mais exatamente: no pretendo, em caso algum, eliminar ou anular a di- mensio histérica na qual tentei situar o problema das relagdes subjetivi- dade/verdade, mas, ainda assim, gostaria de fazé-lo aparecer sob uma forma bem mais geral. A questdo que apreciaria abordar neste ano é a seguinte: em que forma de historia foram tramadas, no Ocidente, as re- lagdes, que nao estdo suscitadas pela pratica ou pela anilise historica habitual, entre estes dois elementos, 0 “sujeito” ¢ a “verdade”. Gostaria entio de tomar como ponto de partida uma nogio sobre a qual creio ja Ihes ter dito algumas palavras no ano passado®. Trata-se da nogio de “cuidado de si mesmo”. Com esse termo tento traduzir, bem ‘ou mal, uma nogio grega bastante complexa ¢ rica, muito frequente tam- bém, ¢ que perdurou longamente em toda a cultura grega: a de epiméleia heautoti, que os latinos traduziram, com toda aquela insipidez, ¢ claro, tantas vezes denunciada ou pelo menos apontada®, por algo assim como cura sui’. Epiméleia heautoti é 0 cuidado de si mesmo, o fato de ocu- par-se consigo, de preocupar-se consigo, etc, Pode-se objetar que, para } estudar as relacdes entre sujeito e verdade, é sem dtivida um tanto para- doxal € passavelmente sofisticado escolher a nogiio de epiméleia heau- j fou para a qual a historiografia da filosofia, até o presente, nao conce- deu maior importincia, E um tanto paradoxal e sofisticado escolher ess ma pt ce ons os eptins © ds jeito, do conhetinenia a do sujeito (questi do conhecimento do st e Sujeito por cle mesmo) foi originariamente colocada em uma formula totalmente difer e to total mente outro: a famosa prescrigdo délfica dn vein nnn eee sofia — mais piensa 10 tudo, hos indica que na historia da eD gndthi seautén &, sem divida, a ta historia do pensamento eerie Bes entre sujeito e verdad a formula fundadora da questo des a im nto arin qu aang eae esa nogoaparenteme ‘amente percorre o pensamento grego, 4 as Aula de 6 de janeiro de 1982 5 qual parece nao ter sido atribuido nenhum status particular, a de cuidado de si mesmo, de epiméleia heautoi? Gostaria pois, durante esta primeira hora, de deter-me um pouco na questio das relagdes entre a epiméleia heautoti (0 cuidado de si) e 0 gndthi seautén (0 “conhece-te a ti mesmo”). A propésito do “‘conhece-te a ti mesmo”, pretendo fazer uma pri- meira e muito simples observagao, referindo-me a estudos realizados por historiadores e arqueélogos. De todo modo, é preciso reter 0 seguin- te: sem ditvida, tal como foi formulado, de maneira tao ilustre e notéria, gravado na pedra do templo, 0 gndthi seauton nao tinha, na origem, 0 valor que posteriormente Ihe conferimos. Conhecemos (e voltaremos a isso) 0 famoso texto em que Epicteto diz que o preceito “gndthi seau- 16n” foi inscrito no centro da comunidade humana’. De fato, ele foi ins- crito, sem diivida, no lugar que constituiu um dos centros da vida grega e depois! um centro da comunidade humana, mas com uma significa cao que certamente nao era aquela do “conhece-te a ti mesmo” no senti- do filos6fico do termo. O que estava prescrito nessa formula nao era 0 conhecimento de si, nem como fundamento da moral, nem como princi- pio de uma relagdo com os deuses. Algumas interpretagdes foram pro- postas. Ha a velha interpretagiio de Roscher, de 1901, em um artigo do Philologus'', no qual lembra que, afinal, todos os preceitos délficos en- deregavam-se aos que vinham consultar 0 deus e deviam ser lidos como espécies de regras, recomendagées rituais em relagio ao proprio ato da consulta. Conhecemos os trés preceitos. O medén dgan (“nada em de- masia”), de modo algum, segundo Roscher, pretendia designar ou for- mular um principio geral de ética e de medida para a conduta humana. Medén gan (“nada em demasia”) quer dizer: tu que vens consultar nao coloques questdes demais, no coloques sendo questées tteis, reduzi ao necessario as questées que queres colocar. O segundo preceito, sobre os engye (as caugdes)!2, significa exatamente o seguinte: quando vens con- sultar os deuses, nao fagas promessas, niio te comprometas com coisas ou compromissos que nao poderis honrar. Quanto ao gndthi seautén, sempre segundo Roscher, significa: no momento em que vens colocar questdes ao ordculo, examina bem em ti mesmo as questdes que tens a colocar, que queres colocar; e, posto que deves reduzir ao maximo o nt- mero delas ¢ nao as colocar em demasia, cuida de ver em ti mesmo o que tens precisiio de saber. Interpretagdo bem mais recente que esta é a de Defradas, de 1954, em um livro sobre Os temas da propaganda délfi- ca'3, Defradas propée outra interpretagao, mas que, também ela, mostra, Sugere que 0 gnothi seautén de modo algum é um principio de conhes mento de si, Segundo Defradas, estes trés preceitos délficos seriam im- | Aula de 6 de janeiro de 1982 7 que passo a descrever. E ele censurado Por estar atualmente em uma si- tuagiio tal que dela “deveria ter vergonha”. A acusagiio, se quisermos, consiste em dizer: nao sei muito bem o que tu fizeste de mal, mas con- fessa que, de todo modo, é vergonhoso ter levado uma vida tal que ago- ra te encontres diante dos tribunais, que agora estejas sob o golpe de uma acusagao, que agora corras o risco de seres condenado e, até mes- mo talvez, condenado a morte. Para alguém que Jevou um certo modo de vida, que ndo se sabe bem qual foi, mas tal que se arrisca a ser assim condenado a morte apés um julgamento como esse, afinal, ndo ha nisto alguma coisa de vergonhoso? Ao que Sécrates responde que, ao contri- tio, esté muito orgulhoso de ter levado essa vida e que, se alguma vez Ihe pedissem que levasse outra, recusaria. Diz ele: estou tio orgulhoso de ter levado a vida que levei que mesmo que me propusessem indulto nao a mudaria. Eis a passagem, eis 0 que diz Sécrates: “Atenienses, eu vos sou reconhecido e vos amo; mas obedecerei antes ao deus que a vos; enquanto tiver alento e puder fazé-lo, estejais seguros de que ja- mais deixarei de filosofar, de vos [exortar], de ministrar ensinamentos aquele dentre vés que eu encontrar.”'* E qual seria 0 ensinamento que ele daria se nao fosse condenado, uma vez que ja o havia dado antes da acusagio? Pois bem, ele diria entdo, como costumava fazé-lo, aos que en- contrasse: “Meu caro, tu, um ateniense, da cidade mais importante e mais. reputada por sua cultura ¢ poderio, nao te envergonhas de cuidares (epi- meleisthai) de adquirit 0 maximo de riquezas, fama ¢ honrarias, € no te importares nem cogitares (epimelé, phrontizeis) da razio, da verdade e de melhorar quanto mais a tua alma?” Sécrates evoca, pois, 0 que sem- pre disse e que esta decidido a continuar dizendo a quem vier a encontrar ‘a fortuna, com © a interpelar: ocupai-vos com tantas coisas, com vossa fo Vossa reputacao, néio vos ocupais com vos mesmos. E continua: “E, se algum de vés contestar, afirmando que tem cuidados [com sua alma, com a verdade, com a razio; M.F.], ndo me irei embora imediatamente, deixando-o; vou interrog-lo, examiné-lo, discutir a fundo'”. E assim que agirei com quem eu encontrar, mogo ou velho, forasteiro ou idadio, Principalmente aos cidadios, porque me estais mals Proximos ies san- gue. E essa, estejais certos, a ordem do deus; € penso que cidade mais aconteceu nada melhor do que meu zelo em executar ordem: Esta, portanto, é a “ordem” pela qual os deuses confiaram a Saas larefa de interpelar as pessoas, jovens velhos, sidadios ou fare S dizer: ocupai-vos com vos mesmos. Esta, a tarefa ee Bs i gunda passage, ele retorna ao tema do cuidado de sie diz aue, aoe nienses cfetivamente o condenassem a morte, pois bem, cle, Socrates, A hermenéutica do sujeito no perderia tanto. Os atenienses, em Sear oe Com sua morte uma perda muito pesada e several”. Pois, iz ele, n&o terao nin. guém mais para incité-los a se ocuparem consigo mesmos e com sua propria virtude. A menos que Os deuses tenham Para com os préprios atenienses um cuidado tao grande que lhes envie um substituto de S6- crates, alguém que os lembrara incessantemente de que devem cuidar de si mesmos®°, Enfim, uma terceira passagem: em 36b, a propésito da pena cabivel. Segundo as formas juridicas tradicionais?!, Socrates pro- poe para si mesmo a pena a qual, se condenado, aceitaria submeter-se. Eis 0 texto: “Que tratamento, que multa merego eu por ter acreditado que deveria renunciar a uma vida tranquila, negligenciar o que a maioria dos homens estima, fortuna, interesse privado, postos militares, sucesso na tribuna, magistraturas, coalizées, faccdes politicas? Por ter me con- vencido de que com meus escripulos eu me perderia se entrasse por esta via? Por nao ter querido me comprometer com o que nao tem ne- nhum proveito nem para vos nem para mim? Por ter preferido oferecer, a cada um de vos em particular, aquilo que declaro ser o maior dos ser- vigos, buscando persuadi-lo a preocupar-se (epimeletheie) menos com 0 que lhe pertence do que com sua propria pessoa, a fim de se tornar téo excelente, to sensato quanto possivel, de pensar menos nas coisas da cidade do que na propria cidade, em suma, de aplicar a tudo esses mes- mos principios? Que mereci eu, pergunto, por me ter assim conduzido [e por vos ter incitado a vos ocupar com vos mesmos? Nenhuma puni- sao, certamente, nenhum castigo, mas; M.F] um bom tratamento, ate- nienses, se quisermos ser justos.”22 eres Par a instante. Queria simplesmente Ihes assi- Seema ae i ‘crates se apresenta essencialmente con gue observemos apenas trés ou qa ntem consigo mesmos, proponde atividade que consist em incitar os outing en eae®: Prime? mos & a de Socrates, mas the ing es 4 S Ccuparem consigo mes . id » mas lhe foi confiada pelos d Realizando-a, Sécrates nao faz seniio cumprir fam anor, uma ordem, exercer uma fungdo, ocupat atenienses qu eventualmente Ihes enviariam rem consigo mesmos, Em segundo lugar, també sagem que acabei de ler, ao temente, nao se ocupa consi '¢ os deuses hes enviaram Sécrates © qualquer outro para incitd-los a se ocupa ™ vemos, e esta muito claro na tiltima pas~ Scupar-se com os outros, Sécrates, eviden- 180 Mesmo ou, em todo caso, negligenci» Aula de 6 de janeiro de 1982 9 com essa atividade, uma série de outras atividades tidas em geral como interessadas, proveitosas, propicias. Sécrates negligenciou sua fortuna, assim como certas vantagens civicas, renunciou a toda carreira politica, nao pleiteou nenhum cargo nem magistratura, para poder ocupar-se com os outros. O problema que entio se estabelecia era o da relagdo entre o “ocupar-se consigo mesmo” a que o fildsofo incita e o que, para o fild- sofo, deve representar 0 fato de ocupar-se consigo mesmo ou eventual- mente de sacrificar a si mesmo: posig&io do mestre, pois, na questo de “ocupar-se consigo mesmo”. Em terceiro lugar — e sobre isso, ainda que eu nao tenha sido bastante longo na passagem que citei hd pouco, é irre- levante, pois vocés poderdo remeter-se a ela —, Sécrates diz que, na ati- vidade que consiste em incitar os outros a se ocuparem consigo mes- mos, ele desempenha, relativamente a seus concidadios, 0 papel daque- le que desperta®*. O cuidado de si vai ser considerado, portanto, como 0 momento do primeiro despertar. Situa-se exatamente no momento em que os olhos se abrem, em que se sai do sono e se aleanga a luz primei- Ta: este, 0 terceiro ponto interessante na questo do “ocupar-se consigo mesmo”. E finalmente o término de uma passagem que também nio li: a célebre comparagao entre Socrates € 0 tavdo, esse inseto que persegue Os animais, pica-os e os faz correr e agitar-se?5. O cuidado de si é uma espécie de aguilhdio que deve ser implantado na carne dos homens, cra- vado na sua existéncia, e constitui um principio de agitacao, um princi- pio de movimento, um principio de permanente inquietude no curso da existéncia, Creio, pois, que esta questio da epiméleia heautoti deve ser um tanto distinguida do gnéthi seautén, cujo prestigio fez recuar um pouco sua importancia. Em um texto que logo adiante tentarei explicar com mais precisio (0 famoso texto do Alcibiades em sua ultima parte), veremos como a epiméleia heautoti (o cuidado de si) é realmente 0 qua- dro, 0 solo, o fundamento a partir do qual se justifica o imperativo do “conhece-te a ti mesmo”. Portanto, importincia da nogdo de epiméleia heautoii no personagem de Sécrates, ao qual, entretanto, ordinariamente associa-se, de maneira seniio exclusiva pelo menos privilegiada, o gnd- thi seautén. Socrates 6 0 homem do cuidado de si e assim permanecera. E, como veremos, em uma série de textos tardios (nos estoicos, nos ci- nicos, em Epicteto principalmente?*) Sdcrates ¢ sempre, essencial e fun. damentalmente, aquele que interpelava os jovens na rua ¢ thes dizi Preciso que cuideis de vos mesmos.” Terceiro ponto concernente a essa nogio de epiméleia heautoti e suas Telagdes com o ghéthi seautdn: parece-me que a nogiio de epiméleia heau- ‘oti acompanhou, enquadrou, fundou a necessidade de conhecer-se a si ae ‘A hermenéutica do sijeito 10 mento de seu surgimento no pensamento, na de Socrates. Parece-me que epiméleia heay. a que Ihe era associada) nao cessou de cons. tituir um principio fundamental para caracterizar a atitude ae ao Tong de quase toda acta grep, elensicne romana. Nogio im portante, sem divida, em Platio. Importante aera AS, UMA vez. que em Epicuro encontramos a fermula que sera to frequentemente re- petida: todo homem, noite e dia, ¢ ao longo de toda a sua vida, deve ocupar-se com a propria alma?’. Para “ocupar-se”, emprega ele thera- petiein8, que é um verbo de miiltiplos valores: therapetiein refere-se aos cuidados médicos (uma espécie de terapia da alma de conhecida impor- tdncia para os epicuristas?”), mas theraperiein é também o servigo que um servidor presta ao seu mestre; e, como sabemos, 0 verbo therapetiein re- porta-se ainda ao servico do culto, culto que se presta estatutaria e regu- larmente a uma divindade ou a um poder divino. Entre os cinicos a im- portincia do cuidado de si é capital. Remeto-os, por exemplo, ao texto citado por Séneca, nos primeiros pardgrafos do livro VII do De benefi- ciis, em que Demetrius, 0 cinico, explica, segundo alguns principios - aos quais voltaremos porque importantes —, quao inutil é ocupar-se em especular sobre certos fendmenos naturais (como, por exemplo: a ori- gem dos tremores de terra, as causas das tempestades, as razbes pelas imediatas que es ee antes, dirigir o olhar para coisas podemos nos conduzir e on Pa este nt lar 0 que fazemos*”, Entre os estoicos, inutil dizer a importancia dessa hocao de epiméleia heautoti: em Séneca, junto com a de cura sui, ela é central: extensio dos Didlogos. Teremo mais longamente, Todavia, nao meéleia heautot mesmo nao apenas no mo! existéncia, no personagem toil (o cuidado de si ¢ a regri em Epicteto, ela percorre toda a $ ocasiao de falar sobre tudo isso bem ae Somente entre os filésofos a nogiio de epi- ‘al. Nao é meramente como condigio de aces- do termo, que é preciso Aula de 6 de janeiro de 1982 i consigo mesmo) constituiu, um tempo, um fenémeno cultural de con- junto, proprio da sociedade helenistica e romana (de sua elite, pelo me- nos), mas. também um acontecimento no pensamento®, Parece-me que a aposta, 0 desafio que toda historia do pensamento deve suscitar, esta precisamente em apreender 0 momento em que um fenémeno cultural, de dimensao determinada, pode efetivamente constituir, na historia do pensamento, um momento decisivo no qual se acha comprometido até mesmo nosso modo de ser de sujeito moderno. Ainda uma palavra, para complementar. Se a nogdo de cuidado de si, que vemos assim surgir de modo muito explicito e claro desde o per- sonagem de Sécrates, percorreu, seguiu, o decurso de toda a filosofia antiga até o limiar do cristianismo, também reencontraremos a nogiio de epiméleia (de cuidado) no cristianismo, ou ainda, no que constituiu, até certo ponto, seu entorno e sua preparagao: a espiritualidade alexandrina. De todo modo, em Filon (ver 0 texto Sobre a vida contemplativa®), en- contraremos a nogiio de epiméleia em um sentido particular. Ns a encon- tramos em Plotino, na Enéada 14, Também e sobretudo, a encontramos, no ascetismo cristdo: em Método de Olimpo%s, em Basilio de Cesareia?*. E em Gregorio de Nissa: em A vida de Moisés*’, no texto sobre O canti- co dos canticos*8, no Tratado das beatitudes®”. Encontraremos a nogio de cuidado de si principalmente no Tratado da virgindade*, que inclui o livro XIII cujo titulo é precisamente: “Que os cuidados de si comegam com a liberagdo do matriménio.”*! Dado que, para Gregorio de Ni: a liberagao do matriménio (0 celibato) ¢ a forma primeira, flexao inicial da vida ascética, essa assimilagao da primeira forma dos cuidados de si com a liberaco do matriménio mostra-nos entio a maneira como o cui- dado de si tornou-se uma espécie de matriz do ascetismo cristiio. Desde © personagem de Sécrates interpelando os jovens para Ihes dizer que se ocupem consigo até 0 ascetismo cristio que da inicio 4 vida ascética com 0 cuidado de si, vemos uma longa historia da nogio de epiméleia heautoti (cuidado de si mesmo). : : E claro que, no curso dessa histéria, a nogao ampliou-se, multiplica- Tam-se suas significagées, deslocaram-se também. Posto que 0 objeto do curso deste ano sera precisamente a elucidagdo dessa temitica (o que agora Ihes apresento nao passa de puro esquema, simples sobrevoo antecipador), Vejamos o que, da nogio de epiméleia heautoti, por ora devemos reter. * Primeiramente, o tema de uma atitude geral, um certo modo de en- carar as coisas, de estar no mundo, de praticar agoes, de ter relagdes com © outro. A epiméleia heauton é uma atitude — para consigo, para com os Outros, para com o mundo. nn eee A hermenéutica do sujeito 12 + Em segundo lugar, a epiméleia heautot também uma certa fo, A Cuidar de si mesmo implica que se Convert; ma de atengao, de olhar. i ia dizer “o interior: gor olhar, que se 0 conduza do exterior para... eu > Interior”; deixe. mos de lado essa palavra (que, como sabemos, ate Problemas) e digamos simplesmente que é preciso ov ereae olhar, do Exterior, dos outros, do mundo, etc. para “si mesmo”. O cuidado de si implica uma certa maneira de estar atento a que se pensa e a que se passa no pen. samento. Ha um parentesco da palavra epiméleia com meléte, que quer dizer, ao mesmo tempo, exercicio e meditagdo*?, assunto que também trataremos de elucidar. + Em terceiro lugar, a nogiio de epiméleia nao designa simplesmen- te esta atitude geral ou essa forma de atengio voltada para si. Também designa sempre algumas agoes, aces que so exercidas de si para consigo, agdes pelas quais nos assumimos, nos modificamos, nos purificamos, Nos transformamos e nos transfiguramos. Dai, uma série de praticas que sao, na sua maioria, exercicios, cujo destino (na histéria da cultura, da Filosofia, da moral, da espiritualidade ocidentais) sera bem longo. Sao, Por exemplo, as técnicas de meditagdo%; as de memorizagao do passa- do; as de exame de consciéncia*; as de Verificagio das representacées na medida em que elas se apresentam ao espirito4s, etc, Temos pois, com o tema do cuidado de si, uma formulagio filoséfica > due aparece claramente desde o século V a.C. idade. De todo modo, é a partir da nogiio de epimé- eae tong a a titulo de hipétese de trabalho, pode-se re- : 4 evolucdo mi es c a cvolucdo milenar que as ilenar (século V a.C., — século V 4.C)} a iziu das pea : a celine $8 8¥6 surgi en formas primeiras da atitude filos lama i Aula de 6 de janeiro de 1982 13 wo (cuidado de si) foi desconsiderada no modo como 0 pensamento, a ilosofia ocidental, refez sua propria historia? se tenha privilegiado tao fortement panne roe e tanta intensidade ao “conhece-ti oe s ten cat wane a iaistotenerenteee e-te a a mesmo” e se tenha deixado de Rae sie ssa nogio de cuidado de si que, de fato, , qua eriguamos os documentos e os textos, parece od antes enquadrado 0 principio do “conhece-te a ti mesmo” e consti- tuido 0 ‘suporte de todo um conjunto que é, afinal de contas, extrema- mente rico e denso de nogées, praticas, maneiras de ser, formas de exis- téncia, etc.? Por que esse privilégio, para nds, do gndthi seauton as ex- pensas do cuidado de si? Enfim, 0 que delinearei a respeito nao passa de hipoteses, com muitos pontos de interrogagio e reticéncias. Numa primeira aproximagio e de maneira totalmente superficial, acho que poderiamos dizer algo que, embora sem muita profundidade, talvez devamos reter: parece claro haver, para nés, alguma coisa um tan- to perturbadora no principio do cuidado de si. Com efeito, vemos que, ao longo dos textos de diferentes formas de filosofia, de diferentes for- mas de exercicios, praticas filos6ficas ou espirituais, o principio do cui- dado de si foi formulado, convertido em uma série de formulas como “ocupar-se consigo mesmo”, “ter cuidados consigo”, “retirar-se em si mesmo”, “recolher-se em si”, “sentir prazer em si mesmo”, “buscar de- leite somente em si”, “permanecer em companhia de si mesmo”, “ser amigo de si mesmo”, “estar em si como numa fortaleza”, “cuidar-se” ou “prestar culto a si mesmo”, “respeitar-se”, etc. Ora, nos bem sabemos, existe uma certa tradicao (ou talvez varias) que nos dissuade (a nds, agora, hoje) de conceder a todas essas formulagdes, a todos esses pre- ceitos regras, um valor positivo ¢ sobretudo, de deles fazer o funda- mento de uma moral. Como soam aos 1ossos ouvidos essas injuncdes a exaltar-se, a prestar culto a st mesmo, voltar-se sobre si,a prestar ser- vio a si mesmo? Soam como uma especie de desafio e de pavate uma vontade de ruptura ética, uma espécie de dandismo mont Ee irmagao- “desafio de um estadio estético ¢ individual intranspon'y® Ou entio, soam aos nossos ouvidos como a expresso um pouco eae e tris- te de uma volta do individuo sobre si, ineapar de Sai ares ios, por ele proprio, uma mors a (a da cida no ane els Fr dsm nr th nada mais entiio teria sendio ocupar-se consigo”. Isso sig! vi . 5 ancias primeiras que, de ime- sermos, que essas conotagOes e858 TET adem-os de pensar esses diato, todas essas formulas tém para aay > pensamento antigo de que preceitos com valor positivo. Ora, em todo 0 P { hermendutica do sujetto 4 Socrates, seja em Gregorio de Nissa, “ocupar-se con. a em Socrates, Se) gorio de Nissa, “ociy ie um sentido positive, jamais negativo. Age. f a injungdo de “ocupar-se — paradoxo suplementar ssa injune pars or constituiram as mais austeras, as mais rigor. que o Ocidente conheceu, as sigo mesmo” tem sempre & a partir des: mai consigo mesmo” que Se : i s, sem divida, restritivas morais, s I dcidente sentido que [hes ministret 0 curso do ano pas. tianismo, porém 4 moral dos pri- se quais, repito (¢ foi ne: ee si io devem ser atribuidas 2 ; Se nossa era ¢ do comego dela (moral estoica, mo- ral cinica e, até certo ponto, tambem moral epicurista). Temos pois © pa radoxo de um preceito do cuidado de si que, para nos, mais Significa egoismo ou volta sobre sie que, durante tantos séculos, foi, ao contri- ‘vo, principio positivo matricial relativamente a rio, um principio pos ativamente morais extremamente rigorosas. Outro paradoxo que também é preciso evocar a fim de explicar a maneira como essa nogdo de cuidado de si de certo modo perdeu-se um pouco na sombra esta em que essa moral tio i advinda do principio “ocupa-te contigo mesmo”, essas regras austeras foram por nds retomadas e efetivamente aparecerio ou reapare- cero, quer na moral cristi, quer na moral moderna no crista. Porém, em um clima inteiramente diferente. Essas regras austeras, cuja estrutu- ra de codigo permaneceu idéntica, foram por nos reaclimatadas, trans- postas, transferidas para o interior de um contexto que é o de uma ética geral do no egoismo, seja sob a forma eristi de uma obrigacdo de re- nunciar a si, seja sob a forma “moderna” de uma obrigagdo para com os outros — quer o outro, quer a coletividade, quer a classe, quer a patria, etc. Portanto, todos esses temas, todos esses cédigos do rigor moral, nas- cidos que foram no interior daquela paisagem tio fortemente marcada pela obrigagio de ocupar-se Consigo mesmo, vieram a ser assentados os cristianismo € pelo mundo moderne numa moral do nio egoismo. poco et nh hth es bando por desaparecer da preocu aa tanto desconsiderado, aca- Acredito porém haver tia an historiadores. radoxos da historia da moral, © que concn ets essencial que esses Par da historia da verdade. A raze! nals wage’ 20 Problema da verdade ¢ preceito do Cuidado de si foi esquecido, séria, Parece-me, pela qual ee ad piteoia durante quase um miléwio na se tea © Muga oeupae? gado, pois bem, eu a chamaria _ com ma cultura antiga foi sendo aps- Tuim, aparecendo aqui a titulo pun numa expressiio que reconhego set ras no: Patece-me que o “momento ea ne tional = de “momento muias aSp8s, atuou de duas maneiray, cS 20» Mais uma vez com 'MIS, Seja requalificando filosofics- Aula de 6 de janeiro de 1982 15 mente 0 gndthi seautén (conhece-te a ti mesmo), seja desqualificando, em contrapartida, a epiméleia heautoti (cuidado de si). Primeiro, o momento cartesiano requalificou filosoficamente 0 gnd- thi seautén (conhece-te a ti mesmo). Com efeito, € nisso as coisas sio muito simples, 0 procedimento cartesiano, que muito explicitamente se 1é nas Meditagées"®, instaurou a evidéncia na origem, no ponto de parti- da do procedimento filos6fico — a evidéncia tal como aparece, isto é, tal como se da, tal como efetivamente se da 4 consciéncia, sem nenhuma divida possivel [*]. [E, portanto, ao] conhecimento de si, ao menos como forma de consciéncia, que se refere 0 procedimento cartesiano. Além disso, colocando a evidéncia da existéncia propria do sujeito no principio do acesso ao ser, era esse conhecimento de si mesmo (nao mais sob a forma da prova da evidéncia mas sob a forma da indubitabi- lidade de minha existéncia como sujeito) que fazia do “conhece-te a ti mesmo” um acesso fundamental 4 verdade. Certamente, entre 0 gndthi seautén socratico € o procedimento cartesiano, a distancia é imensa. Com- preende-se porém por que, a partir desse procedimento, o principio do gnéthi seautén como fundador do procedimento filoséfico péde ser aceito, desde o século XVII portanto, em certas praticas ou procedimen- tos filoséficos. Mas, se, pois, 0 procedimento cartesiano, por razdes bas- tante simples de compreender, requalificou o gnéthi seautén, ao mesmo tempo muito contribuiu, e sobre isso gostaria de insistir, para desquali- ficar o principio do cuidado de si, desqualificd-lo e exclui-lo do campo do pensamento filos6fico moderno, Tomemos alguma distancia. Chamemos de “filosofia’”, se quisermos, essa forma de pensamento que se interroga, nao certamente sobre o que & verdadeiro e sobre o que € falso, mas sobre 0 que faz com que haja e pos- sa haver verdadeiro e falso, sobre o que nos torna possivel ou nao separar 0 verdadeiro do falso. Chamemos “filosofia” a forma de pensamento que se interroga sobre o que permite ao sujeito ter acesso A verdade, forma de pensamento que tenta determinar as condigées e os limites do acesso do sujeito 4 verdade. Pois bem, se a isso chamarmos “filosofia”, creio que poderiamos chamar de “espiritualidade” 0 conjunto de buscas, priticas e experiéncias tais como as purificagGes, as asceses, as remtincias, as con- versdes do olhar, as modificagées de existéncia, etc., que constituem, nao para o conhecimento, mas para 0 sujeito, para 0 ser mesmo do sujeito, © preco a pagar para ter acesso A verdade. Digamos que a espiritualidade, pelo menos como aparece no Ocidente, tem trés caracteres. * Ouve-se apenas: “qualquer que seja 0 esforco...”. A hermenéutica do sujeito 16 A espiritualidade postula que a verdade jamais é dada de pleno gj. iritualidade postula que o sujeito enquanto tal nay tem direito, nao possui capacidade de ter acesso & verdade. Postula que a verdade jamais é dada ao sujeito por um simples ato de Conhecimento, ato que seria fundamentado e legitimado por ser ele 0 sujeito e por ter tal ¢ qual estrutura de sujeito. Postula a necessidade de que 0 sujeito se modifique, se transforme, se desloque, torne-se, em certa medida e até certo ponto, outro que nao ele mesmo, para ter direito a [0] acesso 4 verdade. A verdade sé é dada ao sujeito a um prego que poe em jogo o ser mesmo do sujeito. Pois, tal como ele é, nao é capaz de verdade. Acho quee fSrmula mais simples porém mais fundamental para definir a espiritualidade. Isso acarreta, como consequéncia, que desse ponto de vista no pode haver verdade sem uma conversio ou sem uma transfor- magi do sujeito. Essa conversio, essa transformagao — ¢ ai estaria o se- gundo grande aspecto da espiritualidade — pode fazer-se sob diferentes formas. Digamos muito grosseiramente (trata-se aqui também de um sobrevoo muito esquematico) que essa conversao pode ser feita sob a forma de um movimento que arranca o sujeito de seu status e de sua condigao atual (movimento de ascensio do préprio sujeito; movimento pelo qual, a0 contrario, a verdade vem até ele e 0 ilumina). Chamemos esse movimento, também muito convencionalmente, em qualquer que seja seu sentido, de movimento do éros (amor). Além dessa, outra gran- de forma pela qual o sujeito pode e deve transformar-se para ter acesso a verdade é um trabalho. Trabalho de si para consigo, elaboragao de si Para consigo, transformacao progressiva de si para consigo em que se é © proprio responsavel por um longo labor que é o da ascese (dskesis). Eres ¢ dskesis so, creio, as duas grandes formas com que, na espiritualidade ocidental, concebemos as modalidade: segundo as quais o sujeito deve ser transformado para, finalmente, tornar-se sujeito capaz de verdade. E esse 0 segundo carter da espiritualidade, ace ey iin leranrd Postula que, quando efetivamente aber ® procedimento ont ee ae ae a tempo so outra coisa e bem pee ee ee es Oe oe da verdade sobre o sujeito, Pang eet HO8 Aue chamarei “de retorn? © mente 0 que 6 dado ao ca “ espiritualidade, a verdade nao ¢ ane pelo ato de conhecimento ¢ ‘ a fim de recompensivio, de eee tO. A verdadle & 0 que eae ae de preencher esse ato de Oe i verdade é 0 que the i tranguilidade Tenn ee oe Oe oe Oe 0 acesso a verdade, hé alguma eoics, de alma, Em suma, na verdade ¢ # coisa que completa o proprio sujeito, reito ao sujcilo. A es 0 incase 17 Aula de 6 de janeiro de 1982 completa o ser mesmo do sujeito ¢ que o transfigura. Resumindo, acho que podemos dizer o seguinte: para a espiritualidade, um ato de conhe- cimento, em si mesmo e por si mesmo, jamais conseguiria dar acesso a verdade se nio fosse preparado, acompanhado, duplicado, consumado por certa transformagio do sujeito, nio do individuo, mas do préprio sujeito no seu ser de sujeito. Ha, sem ditvida, em relagio a tudo 0 que acabo de dizer, uma enor- me objeciio, uma enorme excegio, sobre a qual sera preciso voltar, que é a gnose*’. Mas a gnose, e todo o movimento gnostico, é precisamente um movimento que sobrecarrega 0 ato de conhecimento, a0 [qual], com efeito, atribui-se a soberania no acesso a verdade. Sobrecarrega-se 0 ato de conhecimento com todas as condigées, toda a estrutura de um ato es- piritual. A gnose é, em suma, o que tende sempre a transferir, a transpor- tar para o préprio ato de conhecimento as condig6es, formas e efeitos da experiéncia espiritual. Digamos esquematicamente: durante todo esse periodo que chamamos de Antiguidade segundo modalidades que fo- ram bem diferentes, a questao filosdfica do “como ter acesso a verda- de” e a pratica de espiritualidade (as transformagdes necessarias no ser mesmo do sujeito que permitirao 0 acesso 4 verdade) saio duas questées, dois temas que jamais estiveram separados. Nao estiveram separados para os pitagéricos, é claro. Nao estiveram separados também para Sécra- tes ¢ Plato: a epiméleia heautot (cuidado de si) designa precisamente 0 conjunto das condigdes de espiritualidade, 0 conjunto das transforma- gdes de si que constituem a condigao necessaria para que se possa ter acesso a verdade. Portanto, durante toda a Antiguidade (para os pitagéri- cos, para Platdo, para os estoicos, os cinicos, os epicuristas, os neoplaténi cos, etc.), o tema da filosofia (como ter acesso 4 verdade?) ¢ a questo da espiritualidade (quais sio as transformagdes no ser mesmo do sujeito necessarias para ter acesso a verdade?) so duas questdes que jamais es- tiveram separadas. Existe, bem entendido, excegio. A excegao maior e fundamental é a daquele que, precisamente, chamamos “0” filésofo®, por- que ele foi, sem diivida, na Antiguidade, 0 unico filésofo; aquele dentre 0s filésofos para quem a questo da espiritualidade foi a menos impor- tante; aquele em quem reconhecemos o proprio fundador da filosofia no sentido moderno do termo, que é Aristételes. Contudo, como sabe- mos todos, Aristételes nao ¢ o apice da Antiguidade, mas sua excecao. Pois bem, se fizermos agora um salto de muitos séculos, poderemos dizer que entramos na Idade Moderna (quero dizer, a historia da verda- de entrou no seu periodo moderno) no dia em que admitimos que o que da acesso a verdade, as condigdes segundo as quais 0 sujeito pode ter ‘Ahermenéutica do sujeito 18 4 verdade, ¢ 0 conhecimento © to somente o conhecimento, Bai acesso a ve m 5 que chamei de “momento cartesiano” encontra say i te ele o inventor, 0 primeiro a realizar tudo isso. Crejg que foi exatament Te Lr que a idade moderna da historia da verdade co = nto em que ‘0 que permite aceder a0 verdadeiro € 0 proprio con! hecimento © somente ele, Isto é, no momento em que o fildsofo (ou 0 sdbio, ou simplesmente aquele que busca a verdade), sem que mals nada Ihe seja solicitado, sem que seu ser de sujeito deva ser modificado ou alterado, € capaz, em si mesmo e unicamente por seus atos de conhecimento, de reconhecer a verdade e a ela ter acesso. O que nao significa, 6 claro, que a verdade seja obtida sem condi¢do. Contudo, essas condigées sio agora de duas ordens ¢ nenhuma delas concerne a espiritualidade. Por um lado, ha con- digdes internas do ato de conhecimento e regras a serem por ele segui- das para ter acesso a verdade: condigdes formais, condigdes objetivas, regras formais do método, estrutura do objeto a conhecer®'. De todo modo, porém, é do interior do conhecimento que so definidas as condigdes de acesso do sujeito 4 verdade. As outras condigdes so extrinsecas. Con- digdes tais como: “nao se pode conhecer a verdade quando se é louco” (importancia desse momento em Descartes*2). Condigdes culturais tam- bém: para ter acesso a verdade é preciso ter realizado estudos, ter uma formagio, inscrever-se em algum consenso cientifico. E condigdes mo- rais: para conhecer a verdade, é bem preciso esforgar-se, no tentar en ganar seus pares, é preciso que os interesses financeiros, de carreira ol de status ajustem-se de modo inteiramente aceitavel com as normas da ng ae etc. Como vemos, dentre todas essas at meas conhecimenta nes oo conhecimento, outras bem extn concernem 20 inividuo ma sua exe ee e et i sujeito enquanto tal, A Petites existéncia concreta, no a estrulurs t se pode dizer: “de todlo mod srt Saeed win sob as duasreservas quanta for cate & 9 suicito & eapaz de vere anto a condigdes intrinsecas ao conheciment® a condigées extrir nsecas ao i iduo* : Sidade de ter acesso a vei a sae estea posto on s, 0 outro lade. A consequéne! ™ ‘9 some! ia disso ou, se quisermo: S80 a verdade, cuja condigio doravante € ti * O manus: scrito (term ‘eault para mir 1 Com que de ministrar este eu ‘Signamos as notas escri fram d HS0 no College 1olas escritas que serviram Je lege de Franc 'SEC8s, isto 6, individuais "e) permite assim compreender ¢s! a for suporte 3 FO se iiltimo PO Aula de 6 de janeiro de 1982 19 te 0 conheci is 5 ee Aquele ponto de iluminagao . cen 10 noe do conhecimento. mento da transfiguragio do suet ° ace it ee een miele Ronkese abe a ee pelo efeito de retorno” da verdade ates eer ‘ os ne e que transita, atravessa, transfigura ee enue - stir. Nao se pode mais pensar que, Sees P sa, € NO sujeito que 0 acesso a verdade beries rabalho ou 0 sacrificio, 0 prego pago para alcangé-la. O 0 mento se abrini simplesmente para a dimensio indefinida de um PIOgTesso Cujo fim nao se conhece e cujo beneficio sé sera convertido, no curso da hi ‘oria, em actimulo instituido de conhecimentos ou em beneficios psicolégicos ou sociais que, no fim das contas, é tudo o que se comsegue da verdade, quando foi tio dificil busca-la. Tal como dora- vante ela &, a verdade no sera capaz de salvar 0 sujeito. Se definirmos 2 espiritualidade como o género de priticas que postulam que 0 sujeito, tal como ele & no é capaz de verdade, mas que 2 verdade, tal como ela &. capaz de transfigurar e salvar o sujeito, diremos entdo que a idade moderna das relagdes entre sujeito e verdade comega no dia em que pos- rulamos que o sujeito, tal como ele é, € capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, nao é capaz de salvar o sujeito. Bem, se quisermos. um pequeno repouso de cinco minutos e reco- megaremos em seguida. NOTAS 2, Foucault, que até ento conduzia 20 mesmo tempo, no Col- 1. A partir do ano de 198 decide abandonar o semindrio ¢ 6 ministrar um 1 ge de France, um seminario € um curso, co curso de duas horas. 2. Cf, Resumo do curso do ano I ts, 1954-1988, ed. por D. Defert ol. (mais adiante: referencia a esta edi 3, Para a primeira elaboracao deste tema, ¢ 1980-1981 no Collége de France, in M. Foucault, Dits & F. Ewald, colab. J. Lagrange, Paris, Gallimard, iga0}; ef. TV, n. 303, pp. 213. £ aula de 28 de janeiro de 1981, mas, sobre~ sudo, L "Usage des plaisirs (Paris, Gallimard, 1984, pp. 47-62), [Trad. ras de Maria Thereza rr O uso dos ipraceres, Rio de Jansiro, Graal, 1984, pp. 38-50. (N. dos TJ] Pode-se dizer que por aphrodi- ore Foonzult entende uma experiéncia, e uma experiéncia historica: & experiéneia grega dos prazeres,distinta da experiencia cristf da carne ¢ daduela ‘modema, da sexualidade. Os aphro- nia edo designados como a “substincia ética” da moral antiga, / E 1981 (*Subjectivité et Vérité", aula de 7 de janeiro) 4. E na primeira aula do ano de d we realmente estara em jogo nas pesquisas empreendi- 12 Foucault anuncia que 2 quest#o qu! : cbdigo moral, em seu rigor e pudor, nao tera sido elaborado @ des é 2 de compreender se n05s0 elon > nec nem en i donning, anes Sea nein aes etme Seen reearrer rey econ srcienina ees scnmenaco Sister icone me Somer espmcce bananas Sh sain Se cn pn Tiare ae ang bea ee Si gedgminenn ee eee ee era a penne ES Tp, a So Pais Les les Lees 1 nos abe lta obi p Caan se mesmo eo msl 29 ‘jem spots ‘i tavs pps ilo cm rsd mls amphi eis sxnlt tr inln mena sfc por Zar srr ‘pom cen or aloe cn ign re ee? ‘satotmi ACen socom eae NEO ace, hg JE ao nD nd espns Mb ps insta rep a Cade Pes“ ‘Spiga cnmsnte jensen cro ee setulen dno cise mre ines mn ae acs gm ns enc ls ene peer " te emer dg stl ee ‘hrm Ran Pas bv es, 9h Shelia : deine. 18-8, ‘Sia i “ le rts miata atc ea em Dao ‘oe Ceneeea ee—Eeemam ga 0 ‘ceernunc ges neat fusion oes = Stiechomcan np et rai Sh xn aetna ep in sees das el = ee liga hE EPS em aad search ea en ee isto Fest i oan team eas a ‘sige = “fae ew gm ne ne 7 a dated 982 ed ng inant. ner 4 Scr ane ae oma sere ance serene dn ge de Sma, 298 Po, are com Sets ta 890 6 ra aa cms tm fas Me ai enor aimee 8 ESP Serato semen IST. A ecm psn | “Seen 78 sea, se a pare <9 we ha alt 2 ca as pn ache moe coe ane Le Temes ee te Sipe peanasher acne eran fess igen mesetemee ie ieon em ncham Secteur frp acres A anon essai ern ic quem se oe ong im os ae) 55 po Eo esc co as oe cis natitaende mcs ccmanscae ee HSS emma acre emis cc nen us errno} Dea a emf Sou fan so: ices ss pose ‘ec Camas manne esa nos kp. (sr (aad, Dads de Kk ae Mata Weve de Ce A tera de hab Angus hathon Absurd ha rat toe 1A Na veda tab rege ws "han parte Logurann Tle arpa cig nr nrg, scpanain om ws gtmants te doe sg nh sen senha shade Pa Cees SS vp a yan eh nk te ee sana Steet et Cae RR None a tn ro La ent apres Sane eve A hermenéutica do sujeito m4 ‘ N-dos T.). Para ele, rata-se, primeiramente, de contestar a tese _ ef. também, pp. 47-9. Bio da cidade nas monarguias helensticas (pp. 101-3; aq, b esfacelamento do quadro pottico i ie mestar (assunto n que ele terbém se daaies = pp. 88-90, N. dos T.) ¢, em ap trpenalmente oe define mais como umn rnodh a ae sete curso) ae 0 vd daist ("0 euidado des [..] aparece entdo como une” como um rei : " a eagt da clades sciais” p. 69. (Trad, bras. pp. 589. N- dos TP. Hat ee que la philosophie antique?, Paris, Gallimard, 1955, ae vol ? i a preconecito de um apagamento da cidade grega a uma obra de G. Murray de (Four Stages of Greek Rel. gion, Nova York, Columbia University Press). : . . 48. Deseartes, Meditations sur la philosophie premiére (1641), in Oeuvres, Paris, Galli- mard/ “Bibliotheque de la Pléiade”, 1952, 49, O gnosticismo representa uma corrente filoséfico-religiosa esotérica que se desen- Volveu nos primeiros séculos da era cristd. Essa corrente, extremamente difundida, dificil de emarcar ¢ de defini, foi rejetada a0 mesmo tempo pelos Padres da Igreja ¢ pela filosofia de “Jo platonica. A “gnose” (do grego gndsis: conhecimento) designa um conhecimento apaz de oferecer a salvagio a quem a ele tem acesso € representa, para o iniciado, © saber de sua origem e de sua destinagao, assim como os segredos e mistérios do mundo su- Penor (trazendo com eles a prome de uma viagem celeste), alcangados a partir de tradi- ‘tas. No sentido desse saber salvador, inicidtico e simbélico, a “gnose” recobre um vasto conjunto de especulagées judaico-cristas a partir da Biblia. O movimento “gnostico” promete pois, pela revelagio de um conhecimento sobrenatural, a liberagao da alma e a vitéria sobre um poder eésmico maléfico. Para uma evocagdio em um contexto lite- Firto, ef Dits et Ecrits, Ln. 21, p. 326, Pode-se pensar, como me sugeriu A. I. Davidson, que Foucault conhecia bem os estudos de H.-Ch, Puech sobre 0 assunto (cf. Sur le manichéisme t auires essais, Paris, Flammarion, 1979). ” 2 Seis g asim que Santo Tomiis designa Aristételes nos seus comentérios. inaugural no Collge de Fron ae Procedimentos de limitagdo dos discursos” na aula ‘e rance rdre du discours, Paris, Gallimard, 1971), Todavia, en quanto em 1970 0 element Aqui tudo se estrutuna eone UNdamental era o discurso como superficie anénima e branca, 52. Recon f0M di articulagao do “sujeito” e da “verdade”™ 2. Reconhecemos a " : de la fic, consagra a aa “om em eco, a famosa andilise que Foucault, no seu Histoire Greco nate Ontrando a vertigem da loucura no exercicio da div irs tre ac iia, Descartes a teria a priori excluido, teria reeusado prestars® whee st 8 Ute de fs Pa ee A sono a lover & exe p> tester sepuida esa tee ct is Pats, Gallimard “Tel, 1972, p_ 87), Dera difference, Patis, Ed. dy Seal, 67 ne

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