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Capitulo Il A CIDADE FAZ TEATRO' “[..] © poeta é uma coisa ligeira, alada, sagrada; ele nao esta em disposicao de criar antes de ser inspirado por um deus. Nao é em virtude de uma arte que os poetas compdem... mas em virtude de um dom divino.” Platao, fon 534 c-d |. O teatro tragico: um drama histérico e universal Quando pensamos na Grécia Antiga, acreditamos que “olhamos para tras”, ena melhor das hipsteses fantasiamos sobre Homero, Os deuses e os herdis gregos, ou sobre a batalha de Troia. Quadros Costumam vir aos nossos olhos numa espécie de pintura atem- Poral e pouco nitida. Chegam-nos, também, diividas de como 1. Esse texto, apés algumas modificagées, foi originalmente publicado na revista Philosophica (PUC-Valparaiso, Chile). 125 Scanned with CamScanner seria a encenacio das tragédias, comédias, a vida dos fildsofos © que nomeamos os primeiros historiadores. O imagindrio nao se preocupa em datar o olhar, de modo que os herdis épicos, 08 tragicos, os comediantes, os fildsofos convivem num quadro tinico e, em geral, valoramos bem, temos respeito pela cultura grega. E respeitamos porque interpretamos como belos os versos dos poetas, e como profundo o pensamento dos filésofos. No entanto, essa Grécia quase idealizada numa so pintura é bem mais aquela do chamado periodo classico (a partir do século V a.C), e bem menos a do periodo arcaico, produtor da poesia épica, da lirica, dos primeiros textos trigicos e filoséficos. Trés séculos, pelo menos, separam o arcaico Homero do classico Tucidides, diferenga que em nada pesa no ir e vir das imagens. A Grécia nomeada arcaica, distanciada na cronologia daque- la democratica e do império ateniense, é objeto de intensa inves- tigacdo dos especialistas atuais, mas para nés, nao especialistas, € como nota Claude Mossé, ainda parece um periodo obscuro’. Ter essa Grécia obscura para nossa imaginacio reflexiva talvez seja um modo de dizer que a guardamos enquadrada com mais fixidez, porém com poucas cores e poucos perfis em relagio a de Péricles. Por qué? Sao interessantes os matizes do pensar historico-imaginativo. Se a Grécia classica nos movimenta mais que a arcaica, se nos diz algo mais de perto —e diz —, é porque +h nela alguma identifica¢io com nossos dias. Ora, as tragédias nao sao o melhor terreno para buscar essa aproximagao de identidades, como mostrarei. Mesmo assim, os poetas tragicos Permanecem fortes em nossa meméria, tanto quanto os textos daqueles a quem nomeamos historiadores ¢ filésofos. Estes, sim, Parecem falar 4 modernidade mais de perto. Nio sera dificil, embora trabalhoso, refletir sobre o porqué dea Grécia de Clistenes e Péricles estar mais presente em nossos 2. La Gréce archaique d’Homere a Eschyle, Paris, Ed. du Seuil, 1984. 26 | Tragédia, mito e filosofia Scanned with CamScanner dias do que a chamada Grécia mitico-arcaica, uma espécie de longinqua expresso cultural aparentada com poetas e guerrei- ros. Contrap6e-se, facilmente, mito e razdo nessa perspectiva; porém, falar em mito e em razio como contrapostos e demar- cadores dos periodos tardiamente nomeados arcaico e classico nao deixa de ser uma divisio no minimo estranha, apesar de assentada, se pensarmos que os textos nao miticos ficam sendo os filos6ficos ¢ histéricos. O homem grego, o cidadao grego, nunca deixou o mito e jamais abandonou seus deuses e seitas; nao se distanciou do sagrado e nao tragou linhas demarcatérias claras para sua propria racionalidade dentro do cosmos. E 0 que se depreende dos escritos que nos chegaram. Se a estrutura da polis classica, suas questdes de poder e fungdes, suas batalhas, suas leis tém maior ressonancia na modernidade do que os valores e conformagées das antigas fratrias e das primeiras péleis dos séculos VII e VI a.C,, isto se deve ao fato de recuperarmos o que parece ser mais inteligivel para nossas proprias formagées sociais atuais, mesmo a custa de transformar o sentido dos fatos passados, ao dirigi-los para a obtengio do que deles esperamos e precisamos. Essa costuma ser a postura diante das tragédias gregas e de seus heréis. Sendo escritos essencialmente mitico-religiosos e civicos, deveriam estar distantes de néds, que j4 nao vinculamos tais campos, e nao estao se deles retiramos partes que acreditamos de nosso interesse. Uma tragédia é civica na medida em que é uma institui¢ao criada pela propria cidade e, como toda manifestagao institu- cional, tem regras e objetivos a seguir. Ela é religiosa porque a cidade preserva os mitos e ritos e nio aparta o religioso do ético e politico em todas as suas manifestagées. Afinal, a pega tragica é uma celebracao a Dioniso: ocorre, entre outras celebra- Ses ao deus, nas Dionisias, durante a primavera. Ela é mitica porque narra acontecimentos entre homens comuns, herdis € deuses num sé universo imediatamente dado, confirmando a A cidade faz teatro | 27 Scanned with CamScanner meméria dos antepassados e da prépria raga. Qual é 0 motivo, entao, apesar de em nada se assemelharem a nossa prépria vi- véncia especifica quanto ao civico, ao religioso e ao mitico, de as tragédias seguirem enaltecidas em nosso imagindrio? Sabe-se que todas as pegas tragicas usam os heréis épicos como perso- nagens. Sabe-se, também, que pela primeira vez a poesia vem a ser dialégica, isto é, cria sentengas que imitam uma conversa Para contar 0 que se passa como se fosse presente. Exposta a obra poética ao ptiblico de um teatro, a céu aberto, so narradas no modo dialégico as sagas heroicas que todos os assistentes ja conhecem. Porém, ha pelo menos dois aspectos desconhecidos a esses assistentes, que ressalto: (a) esse didlogo sequencial, por vezes combativo entre os herdis e outros personagens e (b) a propria encenacio, o teatro. Antes de abordar mais de perto esses dois aspectos, é necessdrio apontar alguns referenciais his- téricos, poucos nos limites deste texto, que esto intimamente imbricados nessa criacdo poética especifica. 2. A organizagao juridica e as poesias tragicas As primeiras tragédias foram encenadas ao final do século VIa.C. (S30), como se sabe. Para compreender melhor esse século, apogeu do teatro tragico na cidade que faz teatro, voltemos ao século Vila.C. apenas para lembrar que, a época da formaco das poleis, apés a lenta desintegracao das antigas fratrias e 0 inicio dessas novas formagées politicas, a aristocracia antiga perde seus poderes, mas nem por isso desaparecem seus valores. Alguns historiadores notam que, no periodo inicial da formacao das cidades, os aristocratas enfraquecidos e os proprietarios de terras viram-se obrigados a formar pequenos exércitos — as falanges de hoplitas, documentadas em vasos de ceramica. Elas batalhavam 28 | Tragédia, mito e filosofia Scanned with CamScanner em grandes fileiras, escudo contra escudo, entrecruzando-se, avancando e recuando numa espécie de coreografia guerreira ao som da flauta que ritmava seus movimentos. E digna de nota a grande transformagio social sinalizada nos desenhos dessas ceramicas*: ndo mais os corajosos herdis personalizados na epopeia homérica, porém grupos de homens que garantiam os limites de uma cidade em formacio, ou uma extensao de terra que tem seu dono, ou o poder de um usurpador. Para formar esses grupos guerreiros, existiam concursos nessas primeiras formagées politicas, constitufdos por ricos in- teressados em protecio (aristocratas ou nao), e nesses concursos eram escolhidos os melhores hoplitas, As regras para decisio baseavam-se naquelas ditadas pela antiga aristocracia quanto 4 exceléncia (areté) guerreira. Em vez do memoravel heréi, cuja areté serviré como paradigma aos juizes desses concursos para decidi- rem sobre os novos melhores, tem-se, entao, o “hoplita coletivo” ea possivel exceléncia desse grupo. E previsivel uma espécie de laicizacdo da areté antiga sem a perda total do solo sagtado, pois, se o antigo heréi, pleno em sua exceléncia, assim 0 era por as- cendéncia divina, os hoplitas, sem qualquer fundamento familiar sagrado, tém, no entanto, semelhanga com o aristés originatio, © que significa dizer que também participam de algo divino, ou ao menos tém proximidade com ele. A presenca dos deuses é sempre preservada; sao eles os patronos de todos os concursos, de todas as leis e de todos os regramentos que ordenam as novas cidades, como se estivessem informando, em siléncio, sobre as boas decisdes e atuagdes dos homens que os reverenciam. Ora, nao é inviavel relacionar essa profunda experiéncia das primeiras pdleis quanto a sobrevivéncia — no caso especifico da formagio das falanges e seus concursos — com a passagem de 3. C, Mossé, op. cit,, p. 113; P. Vipat-Naguer, Le chasseur noir. Formes de pensée et formes de societés dans le monde grec, Paris, Maspero, 1981. A cidade faz teatro | 29 Scanned with CamScanner um pré-direito ao direito (expressio que tomo emprestada de Louis Gernet), quando serio institucionalizados os primeitos tribunais*, Isto porque um tribunal, com suas regras e fungses, nao deixa de apresentar um ritual semelhante ao dos concursos: alguns cidadaos, compenetrados em aplicar a justica, atentam para os acontecimentos que se passam sob seus olhos, ritualiza- dos, tendo de antemio certos paradigmas para decisio. Assim é estruturalmente. Mesmo quando se trata de arbitrar contendas particulares antes resolvidas pelo basileus e, agora, pelos proprie- tdrios de terras ou comerciantes abastados, investidos do poder de justica, transparece o modo como se formaliza a organizagao dos participantes, como sao divididos os poderes, os regramentos, as condutas impostas anteriormente e vivenciadas no momento eno local esperados e determinados. As regras técnicas para a escolha dos hoplitas, por exemplo — e no s6 elas —, guardam relacao com a propria concepcio das instituicées das péleis, necessitadas de medidas claramente expostas. O fato de as primeiras leis (no- moi) estarem sob a patronagem dos deuses s6 confirma o carater mitico, religioso e civico desses primeiros tempos das pdleis. Parece-me importante lembrar tais aspectos, pois, no que concerne as tragédias, também elas se acomodam ao complexo modo institucional firmado pelos cidadios, como foi recolhido pelos historiadores. Ha bons exemplos de textos tragicos alu- sivos a hist6ria da época, como é 0 caso da Oréstia, de Esquilo, poeta tragico nascido em 525 a.C.; so varios os helenistas que apontam essa tragédia, entre outras, como rica fonte sobre a juridicidade dos séculos VI e V a.C. Como ja é conhecido, a Oréstia é uma trilogia que narra a rede de crimes de sangue que envolve o rei Agamemnon, sassino de sua filha Ifigénia e morto, por sua vez, pela espost Clitemnestra e seu amante Egisto; estes morrerao pelas mios 4. L. Gener, Anthropologie de la Gréce antique, Paris, Maspero, 1968. 30 | Tragédia, mito e filosofia Scanned with CamScanner do filho de Agamemnon e Clitemnestra, Orestes, insuflado pela irma, Electra; perseguido pelas Erineas, é julgado em tribunal divino cujas fungées, divisées dos poderes, relagdes entre o réue seus defensores e acusadores tém muito a dizer-nos. As leis que estruturam a cidade, o modo como se define 0 comando nos primeiros tribunais, os valores em jogo e as divisées de fun¢des esto expostos nesse drama de Esquilo’. Trata-se, sobretudo, de uma maneira de explicitar, em versos, a procurada medida para a boa convivéncia de todos, sob a égide da sagrada Dike, da Justiga. Trata-se de explorar os limites impostos a cada um. ao todo, de modo que a singularidade nao ultrapasse a gene- ralidade, nogées insistentemente veiculadas nos versos tragicos que serao amplamente refletidas nos textos filoséficos. Ja se pode inferir que, se retitarmos o texto trigico do seu habitat, do éthos que lhe diz respeito, muito dele estara perdido. Creio que é exatamente 0 que costumamos fazer. Ha, de fato, algo a-histérico numa tragédia que fala ao homem sobre seus mais profundos impulsos, sentimentos e decisdes. Nisto, a tragédia é universal. No entanto, sendo uma institui¢ao civica, teve nascimento, tem genitores: sio eles a cidade e 0 passado da raga grega. Resguardar essas raizes é fundamental para o cidadao, assim como lembrar seus heréis, preservar seus valo- res, ter paradigmas, afinal. No entanto, a propria cidade sabe que novos valores so necessirios para os novos acontecimen- tos que experimenta. Como manté-los sem quebrar os antigos, sem que a memoria da raca, sempre cuidadosamente preservada nos discursos ptiblicos, venha a perecer? Serao melhores os antigos ou os novos valores? Em outras palavras, a tragédia recolhe esses conflitos vividos pelos cidadaos dos séculos VI e V a.C., coloca-os 5. Esse assunto foi objeto de investigagio exaustiva de Louis Gernet, J-P. Vernant e P. Vidal-Naquet, em varios artigos constantes em suas obras (cf. bibliografia ao final). A cidade faz teatro | 31 Scanned with CamScanner a céu aberto para contemplacio de todos, move-os em seu éthos, em seus argumentos, em suas emogées, divide as opinides dos assistentes, repassa os aprendizados obtidos e os que esto em ebulicao, ainda contraditérios e experimentados no dia a dia. Ea tragédia uma espécie de tribunal coletivo, um silencio- so tribunal que aprende sobre si mesmo no ritual pedagdgico que é a encenacio de uma saga heroica. Essa tribuna nao éa instancia legitima para julgar, mas é o lugar onde se movem potencialmente as leis e auxilia a formar o que, hoje, chama- riamos de “consciéncia” do cidadao. A tragédia é teatro’; assim sendo, tudo toca, primariamente, pela imagem e pelo sentimento que serio acompanhados de argumentos. Uma vez estabeleci- do que 0 terreno de uma pega tragica seja histérico e a-histérico, é possivel tentar resgatar, para nés, o novo que ainda vive nessa expresso cultural. Nao aprendemos somente pela semelhanga, mas também pela diferenca. Por esta quem sabe aprendamos com maior profundidade. 3. A imitagao tragica Em seus imprescindiveis estudos sobre tragédia, J.-P. Vernant diz que seu dominio préprio “situa-se nessa zona fronteiriga em que os atos humanos se articulam com as poténcias divinas””. Assim como a tragédia nasceu, também morrera, e haverd o tempo em que o tragico sera quebrado, continua ele, pois é expressio de um momento especifico da cultura grega. Quando de sua quebra, o homem de teatro “pode bem continuar a escrever peas, inventando ele mesmo a trama segundo um modelo que 6. A palavra “teatro” tem derivagio dos verbos theatridzo (expor para todos verem, dai expor em cena) ¢ thedomai (contemplar). O substantivo theatés significa o que é visivel, digno de ser contemplado. 7. Mythe et magédie, Paris, Maspero, 1982, p. 16-17. 32 | Tragédia, mito e filosofia Scanned with CamScanner cré conforme as obras de seus grandes predecessores”, mas nao havera mais o especificamente tragico apés essa época. No século II a.C., Aristoteles, na Poética, texto cuja intencao é expor a esséncia da tragédia, vai defini-la® como uma arte (téchne) entre muitas outras, e, sendo a arte imitacdo (m*mesis), diz: A tragédia é imitacao de uma acao nobre e completa (préxeos spondatas kai teleias) tendo certa grandeza (mégethos). A imitagao de uma ago é mito (mythos). Nomeio mito (mythos) a sintese de ages (syinthesin tn pragmdton); nomeio cardter (éthe) as agdes que permitem que qualifiquemos aqueles que agem; e afinal digo que pensamento (didnoian) 0 que nas palavras ditas traz um exposto ou exprime um conhecimento (gnémen). Ao enquadrar a arte, e a tragédia em particular, no légos defi- nitério, algo dela evidentemente se perde, pois argumentar sobre aarte é bem distante de fazé-la e amplo o modo de recebé-la. A proposta de Aristételes é, todavia, esta: distanciar-se da coisa a ser pensada para melhor compreendé-la, definindo-a, o que é um modo de apossar-se dela pela via do Jégos como 0 filésofo o entende. Contudo, é preciso cuidado ao estudar a esséncia da tragédia no quadro de uma reflexdo sobre o campo da Téchne, de um género que tem suas espécies, como faz Aristoteles. Ele focaliza o estatuto de todas as técnicas (ou artes) escolhendo a poiétiké como técnica em sentido estrito, uma vez que fazer sapatos, pies, navios ou poemas e discursos sio também agées produtivas, “poiéticas”, pertinentes ao campo do aprender e saber técnico. Argumentar sobre a encenagao tragica como técnica poética imitativa da acao nobre, vale dizer, refletir sobre o mito como imitagéo deverd tra- zer seu sentido ético-politico, pois se trata de imitar nobremente para os cidadaos e por cidadaos. Este sentido nao é a proposta 8. Cap. VI, 1450 a ss. A cidade faz teatro | 33 Scanned with CamScanner anunciada por Aristételes na Po¢tica, que, como o proprio nome diz, pretende refletir sobre 0 campo do poiein, do fazer como fa- bricagao, produgao. Temos de tentar pensar a tragédia em sentido mais amplo, porém devemos observar 0 que significa “imitar’, mesmo dentro dos estreitos limites desta exposi¢io. Se trilharmos o facil caminho que diz ser 0 mito uma fabu- la, uma lenda — como em geral fazem os tradutores da palavra mythos —, e que a encenagio é uma falsidade, pois encenar é construir um aparato para que se veja a imitagao de algo que por ser imitagao tera seu modelo, restara 4 encenagao imitativa o estatuto do falso, de um belo falso na melhor das hipoteses: sempre redobra o que é, nao sendo © que redobra. Ora, nio iremos muito longe nesse caminho. E interessante aprofundaro sentido do verbo “encenar” pertinente 4 imita¢ao. Sao imitacées (miméseis) os atos-rituais religiosos, bem como os ritos guerteitos nas batalhas dos hoplitas ou em seus concursos, e nem por isso sio “meros” ou “falsos” atos, encenagées no sentido de mentiras, também o drama (a acao) exposto nos tribunais nao deixa de ser uma encenagio com seus ritos imitativos; e as discussdes na assembleia, com seus ritos predeterminados, so parcialmente encenacoes. O que, afinal, nao é encenacio? O teatro tragico, sabemos, é um drama com ritos, como o mito é narragao ritual ¢ sagrada. Guardemo-nos, por ora, de entender o teatro tragico como encena¢ao que, porque imita, nao é verdadeira, fato que desvaloriza o ser imitativo enquanto tal. Vejamos um Angulo ao menos dessa dificil e ampla questio’. Dioniso é o deus das mascaras. Ele pode ter todos os rostos enenhum. Em sua homenagem, 0 espetaculo tragico também se mascara; porém, o valor da imitagao, o significado do teatro, nao 9. Platéo aprofunda tal questo em alguns didlogos, principalmente No Sofista. JP. Vennant, na obra Mortals and Immortals (New Jersey, Princeton University Press), retoma questées platonicas sobre o assunto ser/imagem do Angulo da nomeada psicologia hist6rica, sua linha interpretativa. 34 | Tragédia, mito e filosofia Scanned with CamScanner é aquele a que estamos acostumados. Damos um valor menor 4 c6pia por imitar um modelo e imputamos 0 valor forte ao modelo a ser imitado por ser ele origindrio. Devemos isso aos sofistas ea Platao. No entanto, a reflexao deste fildsofo neste assunto foi assentada por nés de modo um tanto superficial, e em nada Platao é superficial. Ao refletir sobre a verdade e a falsidade dos juizos que construimos sobre as coisas, diz ele que imitar é assemelhar-se ao modelo, de modo que uma cépia guarda alguma verdade em relago ao seu modelo neste tipo de relacao especifica, e apesar de ela nao ser a propria coisa tem participa¢ao com ela. Ha uma verdade na cépia, sim, porém seu valor é menor que odo modelo, o que é bastante claro nessa perspectiva. Um retrato nao é o ser retratado, mas nao deixa de sé-lo em certo aspecto. E claro que o ser ele mesmo é “mais” que seu retrato, considerada tal relagio. Ja 0 falso, diz Plato, é o que se faz passar algo que ndo é como sendo”. Se o valor do retrato com relagao ao retratado é claramente dependente deste, nem por isso 0 retrato é falso. Ora, se eu disser que o retrato de Sécrates ¢ Tucidides estarei falseando. Trata-se, portanto, do dizer sobre os seres, como se vé. Afastando-nos da perspectiva do par de valores verdadeiro- falso relativos ao pensar-dizer-conhecer, a relacao assim valorada entre modelo e cépia deixa de ter 0 mesmo sentido. Vejamos a questio relativamente ao teatro trgico. Sendo ele uma encenagio, assemelha-se a Dioniso na exata medida em que seu modelo, © deus, é imitado pelos atores e suas mascaras, assim como os herdis sio imitagdes de modelos-imagens, sio seres expostos num local construido para ser visivel a todos, ou seja, sao pos- tos “em cena” ao modo dos rituais religiosos. Da perspectiva da verdade do conhecer, algo de verdadeiro ai esta exposto, pois nao se trata de passar 0 que nao é como sendo, definicao do falso, como foi dito; nenhum ator seré 0 proprio Edipo ao encenar a 10. Sofista, 240 a-b. A cidade faz teatro | 35 Scanned with CamScanner tragédia sobre ele, com o intuito de enganar os assistentes, mas quer passar-se por Edipo “como se fosse” e “sabendo-se nao ser’; e nem 0s assistentes assim 0 considerarao. Escondido atras da mascara, 0 ator pronuncia palavras que exprimem os impulsos, sentimentos e decisdes do heréi; elas sustentarao a semelhanca, elas sero cépias deslocadas em outro espaco e tempo, e enquanto tal participarao do modelo (que é o deus Dioniso em primeiro lugar, que sao os herdis em segundo lugar, 0 poeta-escritor em terceiro lugar, o ator em quarto lugar). As palavras expressarao Edipo, o heréi memoravel? Nio. Elas podem e devem criar uma imagem de Edipo que se colara a obscura imagem de Edipo fabricada pela meméria helénica. Essa nova imagem tragica no teatro é uma espécie de receptaculo (chéra)"', como éa outra, um lugar ocupado por algo re-produzido, a mascara, se quisermos, expressdo de valores em conflito que Os presentes conhecem e experimentam no cotidiano. Que peso tero os argumentos de Edipo encenado no teatro quanto a serem verdadeiros ou falsos? Nenhum, pois no é disso que se trata, mas da “bela-verdade” por semelhanga dentro do campo estético-imaginativo e nao argumentativo. Os valores em jogo sio, em parte, universais, pois dizem respeito ao humano nos seus mobiles, e em parte historicamente determinados, pois dizem tespeito a vivéncia especifica da cultura grega daquele século. Assim sendo, a verdade da imitac4o encenada esta no sa- grado mimetismo exposto aos cidadaos para que, também eles, vivenciem as mascaras ou os lugares ocupados por Dioniso, lugares que o deus escolheu Para mostrar-se, ao menos no 11. Sobre china, receptéculo ou lugar ocupado, ha uma clara relagdo entre 0 Poeta trégico que foi Platio eo fildsofo Platao do didlogo cosmoldgico Time, ao tratar do terceiro principio césmico, nomeado chéra, assunto dificil que avancei parcialmente em outros estudos (Platdo, 0 cosmos, o homem e a cidade: um estudo sobre a alma, Petrépolis, Vozes, 1994; Sobre as duas almas em Plato, Hypnos, n. 7, Sao Paulo, Educ/Triom/Palas Athena, 2001). 36 | Tragédia, mito e filosofia Scanned with CamScanner pensar mitico. Note-se que a palavra skéne (cena) tem a raiz sk, do verbo skenéo, que significa construir tenda. Essa raiz relacio- na as palavras que indicam sombra, fazer sombra; dai skia, que significa sombra, e skiddeion, sombrinha para resguardar-se do sol. E digno de nota que a psyché homérica aproxime-se dessa significacao: ela é uma skia, uma sombra, além de ser uma forma semelhante (eidolon) ao contorno do corpo (sma), um duplo. Na Iliada, nao 6 a sombra de Pétroclo morto — sua psyché — 0 proprio Patroclo, mas algo a ele referente, seu duplo. Voltando ao teatro, a palavra proskénion, por exemplo, é 0 lugar especifico onde os atores desenvolvem as agées. Ora, a encenaco é uma construgdo que marca os limites da agao imi- tativa, onde os atores representam. Se nos lembrarmos da palavra sképtron, cetro, instrumento que representa 0 poder do rei, seu apoio e sinal de seu poder, nao estaremos muito longe do sentido de “representacdo”. Representar é colocar uma presenga de outro modo que nao ela mesma; uma das formas de assim fazer é pela imagem. Lembrar algo que ja vimos, sendo isto a evocacio de uma presenca ausente, nao deixa de ser representar, ou, como mais comumente dizemos, re-lembrar. A imagem como a repre- sentacio de algo que nao é ele mesmo, mas uma espécie de presenga dele, é uma re-presenga. Agora, trazer as palavras de Edipo para a visio de todos, colocd-lo desse modo em cena, ou trazer as palavras de Medeia denotativas de seus impulsos, softimentos e titubeios de julga- mentos, é re-a-presentar Edipo e Medeia em novas imagens ou miscaras, é buscé-los como auséncias presentes. E exatamente esse movimento da cépia ao modelo que nomeamos, pela via da reflexao platénica, mimesis, imitacdo, pertinente ao campo da téchne, agao relacionada ao poder animico nomeado por Plato Phantasia (imaginacio, reapresentacio)"®, Aquele ator que 12. Sofista, 260 a s. A cidade faz teatro | 37 Scanned with CamScanner esta mascarado e age diante de todos ao apresentar as falas de Medeia mimetiza uma presenga como verdade fraca em compa. tagdo com a prépria Medeia, se podemos dizer; uma presenca participativa, ou seja, entre luminosa e sombreada, porque sé a prépria presenga seria luminosa. Diz-se em grego que aquilo que se expde de modo evidente é luminoso, claro, é alétheia, palavra que traduzimos por verdade. O “a” inicial pode ser lido como privativo, ao modo heideggeriano™. Léthe é a deusa do esquecimento, o que leva Heidegger a interpretar a alétheia como 0 contrario do que subjaz oculto, do que nao é claramente ex- posto, porque latente. Tanto a imaginagao (ou representacio, ou phantasia) quanto a imitagao sao, em referéncia 4 prdpria coisa que imitam, nubladas e subjacentes claridades, se comparadas & claridade da coisa mesma. Sutil e ambigua fronteira, sem divida, entre o representar, o imitar, 0 verdadeiro e 0 falso, 0 claro eo escuro e as faces outras do mesmo. A imitagao é uma agio fabricadora, é uma técnica ou arte que implica o trabalho com cépias de modelos. Por isso, a imi- taco, 4 margem do mito e dentro da racionalidade filos6fica —voltada a alétheia —, sera pouco valorizada da perspectiva do conhecimento argumentativo. Tal desvalorizaco acompanhaa encenacio teatral, que ganha, com o tempo, 0 sabor de falsida- de. Mas nao é necessariamente assim. Nada mais enganoso que tais conclusdes superficiais, mesmo porque uma encenacio se sabe encenacao e nao pretende usar de argumentos para dizer que nao o é, Avancemos um pouco mais, Tentemos adentrar no mito © penserhos no cacador tribal que imita sua caca antes de apanhé-la, num ritual especifico para trazer-lhe a vitéria. Esse drama, esse rito, essa acio imitativa, se quisermos, nao é falsa, mas é a reprodugdo dos movimentos da agao da caca na forma 13, M, Heteccer, Essais, Alétheia, Paris, Gallimard, 1958. 38 | Tragédia, mito e filosofia Scanned with CamScanner ritual. Um cagador, ao fazer os gestos necessarios para cagar certo animal, enquanto um companheiro faz uma coreografia de avangos e recuos da propria caca, ambos estado buscando e adquirindo, de fato, as qualidades necessdrias para o abate do animal pretendido numa espécie de futuro presentificado pelo mimetismo ritualistico. E 0 modo mitico de tornar o ausente presente, mais ainda, de viver uma temporalidade mitica: sem passado, sem futuro. Nao é nosso modo de compreender, nés, homens cronolégicos. Lemos no ritual sagrado a “mera” imitagao da ca¢a que, estando a quilémetros de distancia do cagador ritualistico, indicaria quanto de ingenuidade existe no pensamento primitivo tribal. Talvez a ingenuidade esteja em querermos ler a distancia da caca e do cacador, a partir de uma medida espacial e temporal diversa, que é a nossa. Ora, uma encenagio tragica, 0 teatro tragico, é o préprio ritual mimético de e para Dioniso nas figuras dos herdis me- mordveis e dos atores que os sustentam. Apresenta-se o deus travestido em mdscaras que o apresentam aos proprios assis- tentes; mescla-se o deus das mascaras aos valores da pélis. E 0 éthos da pélis recolhido em versos, penetrando em cada um pela criag&o poética e sob a mascara, os gestos e as palavras do ator; este, protegido quanto a identidade civica, participa do deus e das musas que roubam, parcialmente, seu lugar enquanto ator, assim como roubaram o cidadao-poeta na versificacao inspirada. E preciso, entio, afirmar o mito na tragédia, do contrario iremos compreendé-la com olhos atuais, o que pode ser interessante, mas nao nos é novo. Trazer Antigona ou Fedra para o teatro é vitalizar seus mitos, mesmo que ambiguamente, na busca do novo, e sé 0 poeta é 0 ser primeiro que, ao crié-los pela inspiracao, torna-os imitaveis; é ele quem propicia, impelido pela prépria divindade que o habita, a exposi¢ao de Dioniso, no caso. E essa.a profunda criacao do poeta tragico, e Platao sabia bem disso, poeta tragico que foi antes de A cidade faz teatro | 39 Scanned with CamScanner conhecer Sécrates", Nao é sem razio que ele dira sobre o poeta, no didlogo fon (534 ¢, d), 0 que avancamos na epigrafe. O poeta necesita, sim, dos deuses e dos herdis para sua arte, mas dos deuses ele tem a presen¢a na propria criagao; quanto aos herdis, retira de suas proprias imagens a forca transformadora para reconstrui-los. Claro esta que os herdis nao dialogaram como dizem os versos: eles existem no teatro da maneira como © poeta tragico os fez nascer, em fungio de sua sensibilidade civica e de sua técnica participativa do divino. A tragédia tem sua tipicidade, o que é irrecuperavel na historia. E uma exposigao de contetido conhecido de todos, transformada de modo que parece desconhecida pela imitaco inspirada do poeta em sua sutil técnica com as palavras. Encenar, imitar, assemelhar sio verbos que cabem tanto no mito quanto no que se consignou chamar teoria da mimesis, de Plato, na primeira reflexao que o Ocidente teve sobre 0 que veio a ser conhecido como Estética. A mimesis pertence, também, ao campo da nomeada teoria do conhecimento, quando refletida como parte da téchne e quanto ao seu valor de verdade. No entanto, é, ainda, afeita ao campo do mito e do rito, e nesses campos a incidéncia da “Verdade” nao tem peso, como ja foi apontado. O Belo, sim, tem peso. Nao dizemos que um sapato é verdadeiro, nem que o drama tragico o seja, mas que é ou niio Belo e benfeito. Nao se pode perder de vista tais perspectivas. Agora, j4 podemos afirmar que o teatro tragico é um dra- ma que, posto em cena, contém um “tipo de verdade’” fora dos paradigmas exigidos pela verdade légica: a verdade da imitagao- Esta é, fundamentalmente, uma criagdo assentada no Belo, & para um grego o que é belo é bom. Logo, toda técnica esté __ 14, Hd uma interessante passagem na doxografia de Didgenes Laércio (liveo 111 de Vidas e doutrinas dos fildsofos ilustres) que conta esse encontro: Plato teria conversado com Sécrates tendo nas maos o texto de uma tragédia. ApOs essa conversa, jogou-o ¢ voltou para casa. UO | Tragédia, mito e filosofia Scanned with CamScanner imbricada no ético-politico. Valorar a Grécia antiga com nossas categorias mentais atuais faz de nds astutos utilitaristas, nao muito mais que isto, e podemos ser mais, Para que a encenagao viesse a adquirir as cores do adjetivo “teatral” carregado do valor “falso”, foi preciso que o mitico- teligioso se separasse do politico, e este do artistico (técnico). Foi preciso que os canones daquele campo tardio denominado Belas-Artes entrassem em cena e os homens escondessem, sob a prépria racionalidade, uma parte dela mesma que nao mais reconheceram como prépria: 0 mito. E 0 mito é racional, ea razao tem seu modo de mover-se mitico. A Grécia antiga, aquela das tragédias, nao é medieval, nao € cartesiana, é profunda e racionalmente mitica e claramente mergulhada no ético-politico. Desse angulo, apresenta grande sabedoria Nietzsche, em sua habitual agudeza, quando diz sobre 0 teatro tragico: © tinico Dioniso verdadeiramente real aparece em uma plurali- dade de figuras, sob a mascara de um heréi combatente e como que emaranhado na rede da vontade individual; ¢ assim que o deus, ao aparecer, fala e age, ele se assemelha a um individuo que erra, se escorga e sofre'’, Compreende-se a uniao do civico, do mitico e do religioso na tragédia grega, que, é preciso dizer, no é um género literario como determina a divisio tardia e escolar de nossa racionalidade atual ao separar muitos saberes em géneros, espécies e funco. Essa separacio pressupée o sujeito que conhece e os objetos a ser Por ele conhecidos construidos em campos cercados pelo poder da prépria racionalidade humana, quase alheia ao peso das pré- Prias coisas. Sepultou-se facilmente o mito. Foram os filésofos 15. Nascimento da tragédia, § 10. A cidade faz teatro | U1 Scanned with CamScanner gregos que propiciaram tal construgao tardia? Certamente, mas poderia nao ter sido trilhada essa nossa via e sim alguma outra entre as muitas que eles expuseram. Nao ha nenhum valor de bem e mal nessa constatac4o, é apenas uma constatacao. 4. A ética do herdi tragico Pensando na conclusao: se a cidade do século V a.C. passou por uma crise entre os valores antigos e os novos, e o drama tragi- co apanhou essa problematica através dos herdis memoraveis, trata-se de buscar nos poemas o conflito conforme o teceu 0 poeta-cidadao. Sabemos sobre a trama de valores da famosa peca de S6focles, Antigona: ha os valores de Creonte, tirano da cidade, que na exposigao de suas razées cumpre as regras civicas impedindo que se enterrem os inimigos de uma recém-batalha, entre os quais esta seu sobrinho, irmao de Antigona, Polinices, um inimigo de Tebas; ha os valores de Antigona confrontando Creonte, quando enterra o irm&o em nome de leis mais antigas que determinam honras fiinebres aos familiares. Neste exemplo, como decidiriam os assistentes? Mais que o embate entre o antigo e o novo, presente em todas as tragédias, ha a hybris, a desmedida nas ages dos heréis, permeando seus impulsos, desejos e decisdes. Eles poderiam ter agido de modo mais equilibrado, refletindo sobre os préprios impulsos e valores? Poderiam ter ouvido as insistentes palavras de cautela do coro, do corifeu ou de qualquer outro persona- gem? Sim, mas nio o fizeram, nao concerne aos herdis fazé-lo. Entre as possiveis decisdes de um herdi e a determinagao do seu destino, da parte que cabe a cada um conforme os designios de Moira, nao ha ponderagio: cumpre-se o destino. Os cidadaos também estao determinados por Moira, mas nao se sabe qual € 0 lote a que somos destinados; portanto, em situagdes de U2 | Tragédla, mito e filosofia Scanned with CamScanner conflito o melhor é acalmar 0 Animo (thymos) e refletir sobre a pratica (phronein). Essa é a grande pedagogia da tragédia que é inécua para o herdi. Nosso éthos nao é heroico. E exatamente esse limite que abre espaco para a reflexao filoséfica sobre as agdes humanas, quer na interioridade de cada um, quer no conjunto das relagées sociais. Os campos da ética e da politica como saberes que acompanham o agir dos homens delineiam-se na sofistica, nos cinicos, em Plato, em Aristételes. Este, mais lido e mais préximo, em certos aspectos, da teologia medieval e de parte da nossa racionalidade moderna, nomearé como ética o saber sobre as coisas relativas ao éthos, aos costumes, e como politica o saber sobre a mais ele- vada de todas as formas de comunidade, a pélis. A medida que, ao longo dos séculos, se firma a crenga na abertura que temos para nosso poder de deliberar, quando a interioridade de cada um sinaliza a possibilidade de autarquia — de principio pré- prios —, o heréi tragico decresce em forca e com ele o mito e os rituais miméticos. O éthos heroico, seu pathos, apesar de nos dizer respeito quanto aos nossos deslimites, nao pode ser preservado quanto As nossas poténcias e aos nossos limites. Em sua interioridade bem tragada, com a potencialidade para decisdes bem pensadas, o homem moderno seré o paradig- ma para as novas constru¢ées racionais de sua prépria histori- cidade. Virao as filosofias que tratam desse homem autarquico, uma espécie de novo heréi afirmativo da prépria forca que se transformaré, aos poucos, no “individuo responsével”, uma nogao fundamental para nés, hoje. As leis individuais estao distantes das leis heroicas. Sendo estas provenientes em parte dos deuses, em parte das antigas aliangas que a Grécia teve de fazer entre as fratrias, no periodo arcaico, nao sio escritas e perseveram por toda a vida. Dois exemplos: Aquiles participa da guerra de Troia junto com Agamemnon, Ulisses e outros heréis, a favor de Menelau, A cidade faz teatro | 43 Scanned with CamScanner de quem 0 troiano Paris roubou a esposa, Helena. Sio regras de reciprocidade entre as fratrias que assim determinam as aliangas: unir varios reinos contra Troia. Mas Aquiles poderia sair da luta se regras comuns fossem quebradas, eo herdi ameaga rompé-las quando Agamemnon rouba sua parceira, Briseida, e rompe a ética de reciprocidade'’; Medeia, estrangeira em Corinto, tem direitos de hospedagem que sao quebrados quando Jasio, por desejo de poder, casa-se com a filha do rei. Jasio marginaliza a familia construida com Medeia e a ela propria, retirada de sua patria, a Célquida, e presa na rede amorosa que Afrodite armou para os dois. Tanto Jasio quanto Medeia tém suas regras, seu éthos, e ela sabe de seus direitos de esposa, mae e estrangeira, ¢ ele sabe de seus direitos de herdi. Como decidir entre valores tao fortes?” A cada herdi exposto no teatro, os porqués que os impulsio- nam parecem justos, porém uma escolha dependerd da perspectiva a ser assumida pelos assistentes: a dos deuses e de seus estranhos Jogos? a da fratria de origem? a da reciprocidade nos contratos? ou a perspectiva dos que, vivendo nas péleis, tém de aprender a deliberar para construir seu prdprio futuro?. Este é 0 jogo ético. Este € 0 conflito politico, juridico, psicolégico, no sentido amplo das tragédias. Se elas expandiram as possibilidades para o homem Penetrar em seus proprios mébiles, empurraram-no rambém a adivinhar o enorme poder da parte logistica da alma, aquela que pode pensar, argumentar, escolher agir pela reflexdo, como dira Plato, e por isso mesmo transformar-se. Talveza tragédia anuncie © primeiro esboco de um novo homem, esbogo que a cidade ea Filosofia cuidardo de bem desenhar. E que se note — tema nao tratado nesta ocasiaio — que a escritura alfabética grega nascente, "16, Guu, Personality in Greck Epic, Tragedy, and Philoropy, Oxfor, Clarendon Press, 1996. ‘pic, Tragedy, ilosophy, 17. Veja-se adiante Segunda Parte (Para nao ler ingenuamente uma tra- gédia grega). 4 | Tragédia, mito e filosofia Scanned with CamScanner reformulada a partir da fenicia, remodelou o espirito humano, seu modo de pensar e dizer sobre tudo o que é, de produzir discursos, de ensinar, aprender, conhecer, decidir'*. O teatro — ou, diga-se como os antigos gregos, a Mousiké”” — parece ter sido 0 veiculo propicio para indicar, sem os argumen- tos bem encadeados da filosofia, essa transformagao. E que o teatro guarda, sempre, algo de sagrado, como os poetas, quer se creia quer nao, quer se saiba disso, quer nao. Esse espaco ptiblico para viver a imitagio como verdade e como beleza preserva, sem dtivida, as emogées mais primarias dos homens ao reviver, de algum modo, os rituais sagrados. Hoje, mesmo laico, 0 teatro é, potencialmente, o espaco onde a cidade po- deria fazer sua katharsis, essa acao purificatoria de expor o que deve ser separado de uma mistura para melhor compreendé-lo e ajuizar a respeito. Porém, dificilmente o faz, porque a encenacio teatral, apesar de fundamentalmente cfvica, incorporou bem mais 0 sentido estrito de divertimento e adequou-se aos cano- nes das belas-artes, numa exterioriza¢do que costuma obrigar a separacao do ético e do politico, no rigor dos termos. Se o teatro consegue atingir essa unidade preservando seu aspecto mitico-imitativo, o que é ainda possivel, melhor, mas dificil- mente ele tem plena consciéncia de seu poder em nossos dias excessivamente técnicos. Aauséncia de profundidade quanto ao ético-politico em nos- sas cidades e em nossos teatros parece caminhar ombro a ombro com a caréncia de for¢a da arte como producio participativa em Pequeno grau da verdade, mas imediatamente relacionada ao Belo. Porém, como foi dito antes, se o Belo é Bom, Beleza e Bondade 18, Entre varios estudiosos do assunto, é conhecida a obra de E. Have- Lock, The Literate Revolution in Greece and its cultural consequences, New Jersey, Princeton University Press, 1982. 19. Monsiké concerne as Musas, inspiradoras de todas as artes, quer da propria masica, quer da literatura. A cidade faz teatro | YS Scanned with CamScanner deveriam ser o solo para as sementes de todas as artes. Ao menos para os gregos antigos, assentados no sagtado e no civico, assim era. E pata os filésofos, preocupados com os fins tiltimos do homem, também. Resta refletir o que significa o teatro trilhara via esvaziada do par ético-politico. Mesmo quando se imagina um instrumento de conscientizagao de valores — 0 que de fato &—, nem sempre consegue ultrapassar a técnica ret6rica. U6 | Tragédla, mito e filosofia Scanned with CamScanner

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