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O Ciclo dos Me os Cantores (1550-1552) — Musica e Aculturagao nos Primordios da Colénia RESUMO Ao chegarem no Brasil, os primeiros Jesuttas perceberam que a mera tradueo da mensagem cristd para o Tupi estava Tonge de garantir a conversdo dos natives. A catequese 86 se concretizaria na medida ‘em que as iniimeras diferencas culturais _fossem substituidas por cddigos comuns. E, ‘gracas convivéncia entre criancas bran- ‘cas ¢ indigenas, no Colégio fundado pelos padres da Companhia, ficou claro que a ‘miisica poderia ser 0 melhor meio de tocar © sentimento religioso do habitante do Novo Mundo. * Plinio Freire Gomes ABSTRACT The Boy Singers, 1550-1552: Music and Acculturation in Early Colonial Brazil Upon arriving in Brazil, the first Jesuits perceived that the mere translation of the Christian message to Tupi fell far short of guaranteeing the conversion of the natives. Conversion could be effective only once the countless cultural differences were overcome by common codes. Through the experience shared by white and Indian children in the Jesuit schools, music proved @ promising way of instilling a religious sentiment in the inhabitants of the New World. "(...) viu-se bem com quanta razdo dizia Nébrega, primeiro Missiondrio do Brasil, que com musica e harmonia de vozes se atrevia a trazer a si todos os gentios da América." Pe. Antonio Vieira, Relacdo de Missdo de Ibiapava Em margo de 1549 aportava no Brasil a armada do Governador Geral Tomé de Souza e nela vinha um pequeno grupo de religiosos da Companhia de Jesus, liderados pelo Pe. Manuel da Nobrega. Iniciou-se ali uma tarefa to insélita que em nada ficava a dever para as aventuras dos romances de cavalaria: contando com o apoio duvidoso de um punhado de portugueses * P6s-graduando do Departamento de Histéria/USP. mergulhados nos piores vicios, aqueles homens tinham como missio levar 0 Evangelho aos habitantes da selva — dos quais s6 se sabia que andavam nus € apreciavam muito a came humana. Enquanto os irmaos da Companhia enviados para a fndia estavam li- dando com um aparato institucional altamente centralizado ~ e, portanto, com um cenério politico ¢ religioso cuja dinamica tinha algo de bastante familiar ~, os jesuftas remetidos para cd deveriam fazer frente a mirfades de povos espalhados em vastos dominios que, sem trégua, guerreavam-se € comiam-se entre si. Ao invés de templos magnificentes, fétidas malocas; a0 invés de realezas protegidas por exércitos fabulosos, uma indiaria dispersa ¢ indémita, Nesse sentido, as condigdes peculiares do Brasil além de levarem a parabola da ovelha desgarrada ao paroxismo, sugeriam também a imagem de um mundo totalmente desprovido de lei ou deus. De fato, logo apés sua chegada, Nobrega comecou a degladiar-se com uma angustiante preocupagio, Além do abismo de natureza lingilistica, o gentio parecia desconhecer por completo os conceitos mais clementares da experiéncia religiosa ~ sobretudo no tocante a idéia de um ente superior. Na sua primeira carta ele ressalta a facilidade com que os indios aliados dos colonos entravam na igreja para imité-los. Mas, decepcionado, acrescenta: “HE gente que nenhum conhecimento tem de Deus, nem idolos, fazem tudo quanto Ihe dizem (...) Trabalhey por tirar em sua lingoa as oragdes e algumas praticas de N. Senhor, e nom posso achar lingoa que mo saiba dizer, porque sam elles tam brutos que nem vocdbulos tem” }, Porém, quando foi celebrada a Festa do Anjo Custédio (em 21 de ju- Iho), um fato curioso chamaria sua atengdo. Nesse dia, conta ele, fez-se missa cantada seguida de procisso "com grande musica, a que respondiao as trombetas". E diante disso a receptividade da assisténcia nativa nao seria das menores. 1 Naturalmente, 0 Pe. se referia & auséncia de vocdbulos religiosos, Este trecho foi retirado da publicagio de documentos da Companhia de Jesus, organizada por Serafim Leite, Cartas dos Primeiros Jesuttas do Brasil (que ebrevio a panir de agora como CJ), vol. I, pp. 111-112. 188 “Ficarao, os indios spantados de tal maneira, que depois pediio ao Pe, Navarro que lhes cantasse asi como na precissio fazia” 2, Na verdade, se apreendéssemos de forma literal os enunciados do mis- siondrio poderfamos ser levados a supor que tais manifestag6es de surpresa fossem um tanto comum. Pouco tempo antes, por exemplo, ele utilizaria palavras quase idénticas as do trecho citado acima para retratar 0 compor- tamento do indigena numa dada ceriménia - “estado estes Negros muy es- pantados de nossos officios divinos" 3, Evidentemente na insisténcia com a qual essa f6rmula discursiva é evocada existe algo mais do que a mera des- crig&o dos acontecimentos. Porque, ao pontuar cada feito do colonizador com o assombro dos au- téctones, Nobrega nao estava espelhando fielmente as conseqiiéncias do choque entre duas culturas distintas, mas sim reproduzindo através de sua escrita certos tragos do imagindrio da época sobre o Brasil. Sem dtivida, 0 procedimento narrativo elaborado por ele obedecia & interpretagao do Novo Mundo enquanto um hemisfério espiritualmente virgem 4. Nessa gramatica européia do contato inter-étnico o espanto do outro constitui assim um im- portante signo, pois tem a fung%o de indicar que a luz. da civilidade ja co- megava a ser percebida pelo olhar barbaro dos selvagens. Entretanto, aquela referéncia ao dia do Anjo merece ser colocada & Parte. Pois, ainda que adulterada pela cores fortes da retorica, a reagdo posi- tiva dos indios ali mencionada teria sido concreta o suficiente para ajudar 0 lider jesuita a perceber as enormes potencialidades contidas na musica. Gragas a ela talvez fosse possivel sair da dificil situagdo na qual se enredara a catequese, Se a palavra falada vinha mostrando-se pouco eficaz porque ndo recorrer ao canto? Mas esta indagacao implicava numa pergunta muito mais delicada: até que ponto seria correto substituir os meios convencionais de difusiio da Fé por métodos inteiramente novos? 265, vol 1p. 129. CJ, vol. I, p. 117, Vale lembrar que este tema apareceu sistematicamente em varios cronistas das mais diversas origens ¢ credos, como Jean de Léry, Gandavo, Femao Cardim, Claudio de Abbeville, André Thevet, Ivo d'Evreux, entre outros, Cf, Luis da Camara Cascudo, Geografia dos Mitos Brasileiros. Sio Paulo-Belo Horizonte, Editora Itatisia e EDUSP, 1983, p. 45 e passim. 189 Ao que parece, no entanto, Nébrega e seus seguidores tinham plena consciéncia de estar vivendo uma experiéncia sem precedentes. Sabiam perfeitamente bem que sua obra poderia ser comprometida caso ficassem de mos atadas pela rigidez da ortodoxia. E por isso nunca hesitaram em ado- tar maneiras originais de transmitir a mensagem crista, desde que a esséncia da mesma fosse preservada. Contudo, além de demandar tempo, este traba- Iho de adaptago era apenas um dos encargos que pesava sobre eles. Afinal também foi preciso dar orientagao religiosa & indisciplinada comunidade dos colonos, educar seus filhos e, especialmente, resistir aos que ansiavam pela escravizacao indiscriminada do gentio. Assim, seria preciso esperar até 1550 — quando veio a segunda misao jesuitica ~ para por em prética o maior sonho de Nébrega: penetrar nas flo- restas e ir recolhendo almas de aldeia em aldeia. Mas, ao contrario do que se possa imaginar, os principais protagonistas deste perigoso intento nao » foram os recém-chegados sacerdotes. Pois junto com eles desembarcaram sete criangas que desempenhariam um papel muito mais decisivo nas pri- meiras batalhas da cristianizagio 5. Em principio pretendia-se utiliz4-las, acima de tudo, para cobrir uma grave lacuna das solenidades improvisadas naquela civilizacfo ainda em- briondria: 0 acompanhamento musical, componente imprescindivel & cele- bragdo de toda ¢ qualquer missa. O mesmo motivo, alids, j4 tinha feito com que alguns meninos fossem remetidos para a India. Mas aqui eles passaram a ter estreita convivéncia com as criangas mesticas ¢ indigenas cuja tutela recafa sobre os padres, Agrupadas numa precdria casa de pau-a-pique ©, pu- deram partilhar entre si os estudos, as refeigdes ¢ as brincadeiras. Com isso, 5 Havendo sido escolhides entre os alunos do Colégio dos Meninos éf¥os de Lisbos, onde além da escrita e do catecismo eram instrufdas na arte do canto, teriam causado profunda ‘comogio ao deixar o reino, Como era bem proprio da época, aproveitou-se a oportunidade para excitar ao méximo o sentimento religioso da populagao. Antes de partirem, os meninos seguiram em cortejo alé o cais, entoando hinos ¢ exibindo sua coragem diante dos perigos sepresentados no 36 pela longa travessia maritima, como também pelo apetite antropofégico com o qual ~ acreditava-se — seriam recebidas nas novas terras. Segundo um relato, "todas as ruas ¢ janelas estavéo cheas de gente huns choravio, outros alevantavio as mios aos ceos dando louvores ao Senhor, outros os benzifo (...) outros corriam pera os ver chamando-Ihes bem aventurados". E ficou especialmente gravada na meméria da testemunha a atitude de uma das ditas criangas, « qual "andava tam fervente que parecia daqueles que vio a receber martyrio”. C.,, vol. pp. 172-173. ‘A qual ficou conhecida com o nome de Colégio dos Meninos Jesus na Baia. Baseio-me nas informagdes fomecidas por Serafim Leite em Suma Histérica da Companhia de Jesus no Brasil; q.v., sobretudo, 190 é claro, estavam também partilhando inconscientemente costumes, valores ¢ crengas. Nao temos como saber se as vantagens desse sutil intercambio foram percebidas de imediato pelos seus preceptores. Porém o fato de que em Ppouco tempo tanto os meninos nativos quanto os reindis j4 haviam domi- nado o tupi ¢ o portugués pareceu-lhes bastante evidente. Sendo assim, a tarefa de sonorizar os ritos catélicos comegariam a ser acompanhada por outras incumbéncias. Pelo menos o que sugere uma carta datada de 1551, na qual esto relacionadas as seguintes atividades: “Cantan todos una missa cada dia, y oclipanse en otras cosas semejantes. Agora se ordenan cantares en esta lengua (ou seja, em tupi), los quales cantan:los mamelucos por las aldeas con los otros” ’. Fica claro, portanto, que os meninos foram desde logo levados a par- ticipar ativamente na catequese. Por circularem com grande desenvoltura entre os dois universos culturais ento colocados em contato, eles puderam melhor que ninguém contribuir para que fosse transposto o maior obstéculo A meta de devassar os sertées — como se fazer entender pelos indios? Mesmo porque os missiondrios s6 conseguiriam sobreviver ao tempera- mento guerreiro de seus interlocutores caso soubessem demonstrar que nao estavam sendo movidos por interesses hostis. Além disso era preciso induzi- los a perceber o verdadeiro motivo de sua peregrinagdo. Era preciso tornar inequivoco 0 fato de que nao se encontravam 14 para sujeita-los a escraviddo, ou para render homenagens aos seus chefes tribais, ou ainda para obter cocares de penas coloridas em troca de anz6is de ferro; mas sim, tinica e exclusivamente, para salvar almas. Nesse sentido, agir apenas com vistas a provocar surpresa, tal como se fizera num primeiro momento, representava agora algo muito pouco eficaz. A derrota do paganismo exigia uma compreensio efetiva da mensagem crista. E assim, seguindo as intuigdes de Nobrega, decidiu-se adotar os cantos elaborados no Colégio como a principal linguagem através da qual se daria a iniciag4o dos povos gentilicos nos mistérios da espiritualidade, 1 C., vol. I, p. 258. 191 Para sabermas como isto foi feito dispomos de um notdvel documento assinado pelos préprios meninos 6rfaos 8. Escrito no perfodo em que essa experiéncia doutrindria estava em pleno auge, contem uma narrativa tio rica em detalhes, que quase podemos vé-los no cotidiano de sua arriscadissima missao. Segundo consta ali, quando adentravam no territério inimigo, os peregrinos passavam a caminhar em forma de procissio. E eram os evangelistas mirins que iam & frente; marchando aos pares ou em grupos de tés, carregavam cruzes € cantavam em tupi, "a grandes vozes”, a gléria do Criador. Ao chegarem no terreiro da aldeia, procuravam logo a palhoga do Principal para cumprir os rituais de boas vindas. Em seguida, sem abandonar a cruz, visitavam casa por casa convidando todos a ouvir a , Predicagao dos padres 9. Este texto revela ainda que o treinamento musical dos meninos no se resumia & simples traduco de cantos sacros para o tupi. Seus instrutores ti- veram a aguda perspicdcia de admitir que os alunos mestigos ensinassem aos demais como dangar e tocar 4 maneira nativa. Assim, os jesuitas elabo- rariam um repertério muito util de composig6es em estilo indigena cujas le- tras falavam do Deus cristao. Municiados com tantos recursos, eles estavam em condigdes de exer- cer uma atragdo irresistivel sobre os catectimenos, Em determinada aldeia, por exemplo, “avo muchas fiestas donde los nifios cantaron y holgaron mu- cho, y de noche se levantaron al modo de ellos y cantaron y tafleron con tacuaras (...) y con maracés (...) ¥ luego (os in- dios) se levantavam de sus redes e andavan espantados en pos de nosotros”!0, * scansa dos Meninos érftos ao Pe, Pedro Domenech’; Bahia, de agosto de 1552 ~ eujo original em portugués se perdeu. Na verdade, o autor da missiva foi o Pe. Francisco Pires, que era mestre no Colégio. CJ., vol. I, pp. 375-390. ‘Mas nem sempre eram bem recebidos. As vezes os indios ~ provavelmente jé escaldados por alguns encontros infelizes com os colonos ~ escondiam seus filhos ou queimavam pimenta para afugemté-los. C.J., vol. I, pp. 378-379 p. 385. CL., vol I, p. 383. 192 Em outro povoado conseguiriam a faganha de mobilizar uma das pes- soas de maior relevo na sociedade local: “bailamos y cantamos a su modo y los cantares en su lengua, y Ja muger del Principal se lenvant6 a bailar con nosotros” !1. Certa vez, porém, o espetéculo sonoro dos meninos foi precedido pela descrigdo das terriveis penas do inferno, onde os impuros arderiam para todo o sempre. Ao que pairece, nessa oportunidade a cantoria provocou uma reagdo extremamente marcante: “algunos havian miedo, porque pensavan que nuestro cantar les daria la muerte, otros por el contrarion holgava mucho y ‘venian a nuestro tafier a cantar y baylar “12, Diante de resultados 140 promissores, o autor da carta manifesta com muita clareza sua convic¢aio na importancia desse artificio didatico. Alias, essa convicgao era suficientemente firme para que ele chegasse a fazer um pedido algo megalomaniaco, se se considera a parcim@nia dos recursos en- t4o destinados ao Brasil. “Parézeme, segiin ellos son amigos de cosas misicas, que nosotros tafiendo y cantando entre ellos los ganariamos, pues differencia ay de lo que ellos hazen a lo que nosotros hazemos y hariamos si V. Ra. nos hiziesse proveer de algunos ins- trumentos para que ac4 tefiamos (imbiando algunos nifios que sepan tafler, como son flautas, y gaitas, y nésperas (...) y un par de panderos y sonojas, Si viniesse algun tamborilero y gaitero 763, vol. Lp. 389. C1, vol. I, p. 287. 0 grifo meu. acd, parézeme que no havria Principal que no diesse sus hijos para que los ensefiassen” 13, Evidentemente, houve quem discordasse dessa familiaridade com que os missionérios transitavam no mundo indigena. Logo que chegou no Brasil, o bispo D. Pedro Fernandes ficou profundamente indignado ao en- contrar os soldados de Cristo e seus alunos misturados aquela canalha. Até mesmo 0 corte de cabelo “al modo gentilico" dos meninos o deixou enfure- cido. Mas o pior de tudo era vé-los cantando e dangando ao estrépito de miisicas to malsoantes que s6 poderiam ser inspiradas pelo principe das trevas. E o detalhe mais odioso é que um dos sacerdotes chegava ao ciimulo de dangar com eles. Em suma, a barafunda era tamanha que ficava dificil saber quem verdadeiramente estava sendo catequizado — os brasis ou os je- suitas? Devido a isto, j4 no seu primeiro sermao, o bispo ex: diante que dali em “ningéin hombre blanco uzasse de las costumbres gentilicas, porque, ultra que elas son provocativas a mal, son tan disso- nantes de la raz6n, que no sé qudles las orejas que pueden oyt tales sonos y ristico tafier” 14, E interessante observar como ele funde a dissondncia musical aos cos- tumes da terra, encarando ambos como uma mesma expressao do mal. Com efeito, o seu comportamento em relago aos aborigenes nunca foi dos mais '3 Cr, vol. I, pp: 283-284, Mas este trecho demonstra também que, embora os padres tivessem feito a opgio — por assim dizer — pluralista de operar com dois cédigos sonoros completamente distintos, jamais os colocaram em pé de igualdade. A constatagao de que exisiem diferengas entre "lo que ellos hazen a lo que nosotros hazemos" tem 0 propésito de reiterar a primazia do parimetro cultural europeu. Aliés, tal parimetro chega a ser associado aqui a um poder quase hipnético pois os gentios, pelo simples fato de ouvirem os instrumentos ¢ a harmonia musical dos “civilizados", j4 seriam persuadidos a entregar seus proprios filhos. 14 C.L,, vol. I,p. 358. O sacerdote a0 qual ele se referia — acusando seu habito de dangar com ‘0s meninos ~ era o jovem padre Salvador Rodrigues. Cf. Serafim Leite, Suma Histérica (...), p. 65. 194 acucarados: pouco depois de pisar em solo ultramarino, o bispo imploraria para retornar ao reino a fim de morrer entre gente crista 15, De qualquer forma, o dado mais importante a ser sublinhado & que esta proibi¢ao feria gravemente o trabalho doutrinal desenvolvido sob a re- géncia do Pe. Nobrega. Uma vez rompida a possibilidade de manipular os uusos nativos s6 restava a aridez de ladainhas e de cultos incompreensiveis Para a maioria. Isto até podia ter algum peso na administragdo da vida espi- ritual dos colonos, mas tornava quase invidvel a esperanca de converter ou- tras almas. E como era de se supor, a insatisfacdo foi grande. A partir desse instante, seguem-se varias cartas nas quais os membros da Companhia pro- curam defender seu ponto de vista. Continua a se falar muito nos meninos, porém a pratica de utiliz4-los nas expedicdes enviadas a selva tinha que ser definitivamente abandonada. N6brega, no entanto, ndo estava nada disposto a acatar as admoesta- es do bispo. Assim, sem poder reagir & sua autoridade, decidiu ausentar- se da Bahia em fins de 1552 com destino aos estabelecimentos missiondrios do sul da colénia. Embora a documentacao seja reticente nesse ponto, so- mos informados de que alguns alunos do Colégio acabariam por acompa- nhé-lo. Justificando-se com a intengao de fundar novas escolas, ele os levou para o Espirito Santo e, depois, para um remoto vilarejo denominado Sao Paulo de Piratininga — onde € bem provavel que pelo menos parte das anti- gas experiéncias fossem reprisadas na clandestinidade. O certo, contudo, é que o Colégio da Bahia ainda manteve por muito tempo o cuidado com a instrugo musical. Mas agora seus alunos tinham fung6es bem mais domésticas: cantar nos templos ¢ nas procisses. Numa carta de 1557, por exemplo, podemos encontré-los no ato litirgico pela fundagao de certa igreja !°, Em outra, afirma-se que 0 Governador Geral Mem de Sa gostava de ouvi-los nos oficios dominicais 17, E mesmo nas ce- lebragdes de maior porte, eles passariam & cumprir um papel bastante se- cundario. De fato, na gigantesca festa de ExaltagSo da Santa Cruz realizada 15 C3, vol. I, p. 365. Mas, ironicamente, D, Pedro Femandes acabaria seus dias assado com ‘muito tempero no moquém dos caetés. 1° 4 miasafoy tbo bem cantada com a ayuda de nosotros devotos¢ dos meninos 6rféos; a ella se achario prescntes muitos gentios que nilo pouco se maravilhavao desta novidade". Como se ‘vé, 08 meninos aqui cantam com os devotos, enquanto os indios ficaram na condigao de meros espectadores. C.J, vol. Il, p. 351. 7 "Ct, Secatim Leite. Suna Histbrica (Jp. 65. 195 em 1561 — quando atingiu-se a cifra de 530 batismos e 79 casamentos em apenas dois dias ~ os pequenos cantores quase nem so mencionados 18, As ag6es repletas de aventura em matas fechadas ¢ cheias de feras ja eram, para eles, coisa do passado. Apesar de sua brevidade, 0 ciclo dos meninos cantores foi um exerci- cio catequético muito representativo do perfodo em que a civilizagao euro- péia comegava a ser transplantada para o Brasil. Nele podemos observar os primeiros esforgos de homens empenhados em introduzir a palavra divina no mais longinquo horizonte j4 incorporado a cristandade. Homens que ha- viam atravessado o Oceano com o firme propésito de obrigar os habitantes daquelas terras a se curvarem diante da majestade do Deus tinico. Mas para conseguir isto era indispensdvel que as barreiras do miituo entendimento fossem superadas. Desde cedo, no entanto, ficaria claro que restringir a faina doutrindria & mera exposigao verbal das idéias do Velho Mundo — mesmo se devida- mente traduzidas para o tupi — era algo completamente inécuo. E € ébvio que a causa dessa dificuldade no residia na suposta inexisténcia de senti- mento religioso por parte do indigena. Na realidade, o que europeus ¢ ame- rindios entendiam por “religido” equivalia a coisas tio distintas que, pelo menos de imediato, seria impossivel encontrar um campo conceitual co- mum, ou um termo de comparago valido e inteligivel para ambos. Vale acrescentar ainda que os missiondrios foram recebidos pelo pi- blico com o qual desejavam dialogar como uma enigmdtica aparigdo. E de supor-se, com efeito, que quando irrompiam das matas ¢ caminhavam na direg3o das aldeias, eles eram vistos como um espetdculo onde tudo — roupas, gestos, objetos sacros — devia causar incégnita. A despeito de suas palavras serem familiares, 0 contetido das mesmas tendia a se perder em meio a esse aglomerado de signos incompreensiveis (e, portanto, abertos a infinitas possibilidades de interpretagdo): dat o desapontamento de Nobrega que, como vimos, dizia "nom posso achar lingoa que mo saiba dizer". Em *8 © autor do relato fala vagamente no som de "motetes em canto d'6rgio e psalmos bem acompanhados de vozes". Mas acrescenta um trecho que nfo deixa de ser sugestivo: "acabada ‘a missa, se fez huma procissao (...) ¢ porque & festa ndo parecesse somente nossa ¢ dos novos cristios, muytos dos gentios, cheos de fervor e ataviados & sua gisa com pena muyto lougi e seus maracds nas mios tangendo, ordenaro sua folia com que descorriio polla procissio". ‘Nese caso, os indios participam ativamente do evento, mas o autor os distingue claramente dos cristéos: apenas "parecia” que a festa também fosse deles. C.J., vol. Il, p. 447. 196 suma, antes de conduzir qualquer discurso ao nivel abstrato dos assuntos da f€ urgia que se realizasse um amplo processo de decodificagao. ‘A importincia disso foi apreendida com facilidade pelos jesuitas. E embora se mantivessem permanentemente atentos a problematica do cédigo verbal, eles nio demorariam a freqiientar outros meios de significacao, tais como a misica. Porém o impulso decisivo nesse sentido seria dado pelo convivio entre meninos portugueses ¢ brasis no Colégio da Bahia. Ali, medida em que as diferencas se dissolviam, seus mestres tinham oportuni- dade de aprimorar cada vez mais as estratégias a serem utilizadas nos futu- ros combates pela evangelizacao. O préprio fato de que cabia a essas criancas o dever de encabegar as expedigSes em territérios dominado pelo paganismo ja é por si s6 algo pro- fundamente revelador: eram elas que mediavam 0 mundo dos europeus e dos nativos. Ao reproduzirem suas dangas, sua musica e seus costumes no contexto da pregacao crist4, os meninos cantores estavam procurando dar Nexo a um conjunto de padrdes culturais ainda inteiramente desconhecidos para os indios, Em outras palavras, aqueles pequenos fiéis foram a pega fundamental no jogo de correspondéncias semanticas que os missiondrios precisavam estabelecer com o gentio antes de poderem converté-lo. A leitura dos documentos deixados pelos jesuitas, contudo, sugere que em 1552 0 otimismo suscitado por esta engenhosa forma de aculturaco te- ria reflufdo rapidamente. Pois, ao que parece as azedas proibigdes-de D, Pedro Fernandes nao foram um caso isolado de intolerancia: o bispo por muito tempo continuaria a encontrar eco na crescente desconfianga dos co- Jonos !9. Diante disso, os membros da Companhia seriam forgados a refrear sua grande propensdo ao sincretismo para assumir uma postura bem mais sObria e ponderada. Foi assim que o talento musical dos meninos passou a destinar-se apenas as necessidades espirituais da populagao branca; e, até mesmo, nas festas religiosas, eles jamais voltariam a aparecer misturados aos indfgenas como outrora. ' para ficermos apenas com um exemplo dos intimeros textos onde isto aparece, ctrel a carta enderegada por Nobrega a Tomé de Souza em 1559. Ali ele aludia aos que murmuravam contra os padres ¢ sua atuagio em favor dos indios: "porque nés, posto que por huma parte os apremiamos a bem viver, por outra lhes amostramos entranhas de amor, pugnando por eles em tudo ¢ defendendo-os de tyranias ¢ servindo-os e curando-os de suas ynfirmidades com muyto amor’; jf 0s colonos, "se algum yndio lhes prejudica em sua fazenda, querem logo que seja crucificado”. C.J., vol. IIT. pp. 90-91 197 E verdade que ao longo dos séculos XVII ¢ XVIII os jesuitas espa- nhéis empregariam em larga escala as inovagdes concebidas por Nobrega e seus seguidores 20, Boa parte do sucesso obtido na tentativa de frazer os guaranis para as‘ redug6es cristfis se deveu a um 4rduo trabalho de aproxi- magao cultural cujo modelo foi catequese desenvolvida no Brasil durante aquele curto perfodo. Mas, sem dtivida, a ousadia com que nossos mission4- rios souberam incorporar os costumes aborigenes — assimilando-os até nos minimos detalhes — em nenhum momento seria igualada. BIBLIOGRAFIA LEITE, Serafim (org.). Cartas dos Primeiros Jesuitas do Brasil, Sio Paulo, Comissio do TV Centenério da Cidade de S. Paulo, 1954, vols. I-III. LEITE, Serafim. Suma Histérica da Companhia de Jesus no Brasil, Lisboa, Junta de Investigagdes do Ultramar, 1965. CASCUDO, Luis da Camara. Geografia dos Mitos Brasileiros, Sao Paulo-Belo Horizonte, Editora Itatiaia e EDUSP, 1983. HUBERT, Maxime. Indios ¢ jesuitas no Tempo das Missoes., Trad., Sio Paulo, Companhia das Letras, 1990. 20 Cf. Maxime Haubert. /ndios ¢ Jesuitas no Tempo das Misses. Trad., Sao, Paulo, Companhia das Letras, 1990, pp. 50-51. 198

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