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calegao S ciéncia e pesquisa em questao _. tiago ribeiro & rafael de souza © carmen sanches sampaio conversa como metodologia de pesquisa por que nao? ayvu Owe . 3 \_/ ciéncia e pesquisa em questao Vivemos, nos tempos atuais, 0 recrudescimen- to de toda sorte de totalitarismos: desejos de mesmi- dade, violéncias, preconceitos, fascismos, e tantas outras formas de doer e fazer doer o mundo, as exis- téncias e as relagées. Assistimos a golpes de Estado, intervencées estrangeiras em eleigGes e governos da nossa téo aviltada América Latina, além de toda uma pedagogia midiatica que busca plasmar um cenario de acolhida ao apetite voraz e desumano do “merca- do” e do sistema que o acompanha, silenciando expe- riéncia singulares, locais, mildas. Outra vez, nossas veias abertas; outra vez, a crueza de nos vermos labo- ratorio do capitalismo, agora em sua versao turbo, sua face financeira, que vé na aceleragaéo e no consumo as insignias do lucro. A ciéncia e a tecnologia, enquanto grande pro- messas de humanizagao do trabalho e das formas de produgao, inclusive do conhecimento, faliram. O de- senvolvimento das maquinas, dispositivos e técnicas no trouxe consigo mais tempo livre, mais tempo de encontro, de conversa, de vida, de pensamento. O que fizeram foi garantir mais produgéo em menos tempo, acelerando a possibilidade de consumo e, conseguin- temente, de lucro. Na esteira da aceleragéo, o humano foi feito objeto a servico de um fim, destituido de sua condi¢ao de produtor, de criador. Até que ponto esta mesma ldgica nao impera na “economia da pesquisa e da ciéncia’? Até que ponto nao sao os grandes campos e/ou paradigmas, isto é, os monopélios e cartéis da cientificidade, que dizem © que pode ou nao ser considerado como cientifico, como pesquisa, como teoria e/ou conhecimento? Ja vém prontas as cartilhas metodolégicas, o rol de pro- cedimentos e instrumentos possiveis, os passos mais ou menos esquematizados... Pouco ou nenhum espa- ¢o sobra para a experiéncia do viver 0 processo, a in- vengao, a criagao, a singularidade. Nesta esteira, a colegdo Ciéncia e Pesquisa em Questao tem o desejo de colocar as proprias ideias de pesquisa e de ciéncia em discussdo: 0 que compreen- demos quando falamos destes dois conceitos? Pes- quisa é um conjunto de procedimentos que visam ao esclarecimento de uma duvida ou a confirmagao de uma hipotese ou, isso sim, o movimento de inquieta- gao, de inconformismo e indagagao diante do mundo e das respostas que ele nos apresenta? Pesquisar é responder ou criar novas e inc6modas perguntas? E a ciéncia, o que é? Um conhecimento neutro e objeti- vo ou uma forma de conhecer e perguntar hist6rica e culturalmente produzida? Interessa-nos, portanto, pensar modos outros de produzir conhecimento, maneiras outras de se co- locar na pesquisa e no cientifico: conhecer como um desafio ético, estético e politico que tem a ver coma experiéncia da alteridade do outro, de sua existéncia como sujeito e nao objeto. Formas de viver a pesquisa, as relagdes educativas e formativas desde a atencao, do estar presente, da escuta, do olhar nao indiferente a singularidade, ao pequeno, ao irrepetivel. E possivel um conhecimento nao indiferente, implicado, tecido junto? Carmen Sanches Sampaio (UNIRIO) Marcela Arocena (UNSa, Argentina) Tiago Ribeiro (Cap/INES) i 15 21 Al 65 93 SUMARIO Elogia a conversa (em forma de convite a leitura) Carlos Skliar Prefacio: A conversa como caminho meto- dologico na pesquisa com os cotidianos Luciana Pacheco Marques Capitulo 1 Conversa como metodologia de pesquisa: uma metodologia menor? Carmen Sanches Sampaio Tiago Ribeiro Rafael de Souza Capitulo 2 Conversas em redes e pesquisas com os cotidianos: a forga das multiplicidades, acasos, encontros, experiéncias e amiza- des Carlos Eduardo Ferraco Nilda Alves Capitulo 3 Aprendizagens coletivas e ecologia de saberes: as rodas de conversa como auto- formagao continua Gracga Reis Inés Barbosa de Oliveira Capitulo 4 Conversas: possibilidades de pesquisa com 0 cotidiano Andréa Serpa 119 143 163 181 209 Capitulo 5 A conversa como principio metodolégi- co para pensar a pesquisa e a formagao docente Rafael Marques Gongalves Allan Rodrigues Alexandra Garcia Capitulo 6 Os ventos do norte nado movem moinhos... Maria Luiza Siissekind Raphael Pellegrini Capitulo 7 E possivel a conversa como metodologia de pesquisa? Tiago Ribeiro Rafael de Souza Carmen Sanches Sampaio Capitulo 8 O potencial democratico da pesquisa-agao participativa (PAR): resistindo ao neolibe- ralismo e a Nova Gestao Publica em esco- las e universidades Gary Anderson Posfacio Carlos Skliar ayvu elogio a conversa’ (em forma de convite a leitura) carlos skliar Uma conversa comega quando pode, a qualquer momento, e nunca termina enquanto a memoria ten- de, fragilmente, a recompé6-la ou reconstrui-la em pe- dacos que nunca sero transparentes com o dito. Uma conversa nao é 0 mesmo que um experi- mento de didlogo, segundo o qualas partes se revezam, esperam, perguntam e respondem com uma alternan- cia serena. Uma conversa é a unidade minima de uma comunidade de amizades, cuja sintese é a afei¢ao, o tumulto, a sobreposi¢ao, o transbordamento. Uma conversa nao tem tema especifico. Se de verdade se conversa, em seguida o tema deriva para a deriva, e seu resultado é sempre a perplexidade ao perguntar-nos: sobre o que estavamos conversando? Uma conversa é um conglomerado de rostos, gestos, vozes e siléncios. E 0 corpo quem conversa, 2 Traducao de Tiago Ribeiro, professor do Colégio de Aplicacao do Instituto Nacional de Educagao de Surdos. i tiago ribeiro, rafael de souza e carmen sanches sampaio (orgs.) nao o conhecimento prévio. Uma pergunta arca 0 cor- po e uma possivel resposta inclina-o para a frente. As palavras inesperadas sacodem, despertam, acendem, ofendem, desesperam, revolvem. Uma conversa é 0 contrario do “porque eu digo”. O eu nao tem qualquer transcendéncia na conversa porque se dilui na poténcia do “nés”. Uma conversa tem como limite a indiferenga, o abandono, 0 tirar o corpo fora, 0 ir-se. Uma conversa nao busca acordos ou desacordos, sendo tensdes entre duas biografias que se apresen- tam na hora do encontro. Uma conversa reune, pelos menos, duas fragili- dades. S6 a confissao da mutua fragilidade (que dizer, do que nao sabemos, do que nao podemos) instala uma rela¢ao conversacional. Uma conversa é uma atmosfera irrecuperavel da qual sobrevive, apenas, a lembranga de um texto. Uma conversa é, essencialmente, um gesto peda- gégico, 4 medida que educar pode ser compreendido como o modo de conversarz a propésito do que faremos com o mundo e com a vida, o que fards de melhor com o mundo e como te tornaras responsavel por tua vida. Como um gesto pedagdgico, conversar se dirige nao tanto aquilo que as coisas sao, mas aquilo que ha nas coisas. Conversa-se nao tanto sobre um texto, mas sobre seus efeitos sobre alguém, conversa-se nao tanto sobre um saber, mas sobre suas ressonancias em nos, conversa-se nao para saber, mas para manter tensas as dtividas essenciais: 0 amor, a morte, o destino, o tempo. Uma conversa, enfim, abre uma brecha no tempo, perfura-o, detem-no, cria uma pausa necessaria. E a unica matéria da qual é feita a possibilidade de au- sentar-se da urgéncia e da pressa. 12 conversa como metodologia de pesquisa: por que nao? Uma conversa néo resolve a solidao originaria com a qual vimos e nos despedimos do mundo. Mas é sua aliada incondicional. A solidao e a conversa nao sé no sAo contraditérias, como se nutrem mutuamente: conversa-se com os demais e consigo mesmo. Uma conversa nao tem a ver com o as vezes indigno “colocar-se no lugar do outro”. Esse é o lugar do outro. O que a conversa habilita é a tentar narrar esse lugar, tornd-lo mais profundo, qui¢a mais trans- parente. E seguira sendo, sempre, “o lugar do outro”. A educacao, como dito, é o enclave da conversa. Por mais que fagamos das escolas lugares tecnifica- dos e de mero lucro, o que sustenta a comunidade é a poténcia da conversa. Este livro é um elogio 4 conversa. Conversa-se desde 0 inicio até 0 final. Suas paginas estao povoadas de vozes distintas, modos de ver diferentes, pontos de partida e pontos de vista, as vezes, intensamente opostos. Mas quem dé lugar a conversa sao os autores, aqueles que se propdem a convidar, invitar determi- nados corpos a dizer, desdizer e voltar a dizer. Uma conversa nao é apenas uma tomada de po- sigdo; é, sobretudo, uma forma de exposigdo: me ex- ponho a intempérie da incompreensao, da intraduzi- bilidade, do que nao sou capaz de dizer, da impoténcia. E me exponho, também, ao que vira e nao se pode saber de antem4o, me exponho a outra exposi¢ao, E assim, penso. Afinal, aprendemos da igualdade ou na igualda- de? Curiosa diferenga de foco. Porque isto é uma conversa: 0 instante em que o mundo parece e 6 muito mais belo que de costume. 133

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