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Quando as identidades aprisionam' When identities imprison Paulo Roberto Ceccarelli Resumo O texto traz reflexdes sobre um tema recorrente na atualidade: o politicamente correto, Segun- do o autor, a atualidade tem sido marcada por guetos identitérios que, a partir do narcisismo das pequenas diferengas, nao levam em conta as particularidades identificatérias de cada um e tendem a excluir as que nao pertencem ao grupo. Isso produz um aprisionamento identitario que gera preconceito e segregacao. A origem do preconceito, segundo o autor, é identitéria e nao estrutural, o que abre possibilidades de entendimento do preconceito do ponto de vista psicanalitico. Palavras-chave: Identificagao, Preconceito, Exclusdo, Narcisismo das pequenas diferencas. Introducdo. Gostaria de compartilhar com vocés minhas reflexes sobre um fenémeno que tenho ob. servado cada vez mais na atualidade social, assim como na pritica clinica, Trata-se de uma segmentacio da subjetividade que faz com que os sujeitos se organizem em gru- pos “unidos pelas identificagses” chegando, as vezes, a negar qualquer possibilidade de alteridade. Esse aprisionamento identité rio faz com que qualquer outra construgio subjetiva, com suas particularidades identi- ficatérias, seja motivo de exclusio e/ou se- gregacio. ‘Comeso com uma pequena digressio so. bre um t6pico que pesquiso hé muitos anos Ty Trabalho apreventado no Gireulo Pic ccussio apés a apresentagio do texto foram acrescentadas Nada, no estado atual da ciéncia, permite afirmar a superioridade ou a inferioridade intelectual de uma raga em relagao a outra Lévr-Srrauss, 1952 que é, por assim dizer, atemporal, por evocar diferengas, sobretudo narcisicas, que acom- panham o ser humano desde sua origem: as dinimicas identificatérias presentes nas identidades Identidade, mesmo nao sendo um con- ceito psicanalitico, é frequentemente usado na clinica: fala-se de conflitos de identidade, sentimento de identidade, perda de identida- de... Em psicanilise, o significante identidade s6 pode ser pensado de maneira dinamica, por ser dependente dos processos identifica~ ‘t6rios: por falta de identidade, somos conde- nados as identificagées. Eis 0 nosso “desti- no pulsional” que marca, simultaneamente, nossa “liberdade” e nossos limites. alice do Rio Grande do Sul (CPRS). Algumas observagSes que surgiram na dis Estudos de Psicandlise | Rio de faneiro-RJ | n. $8 | p. 95-104 | dezembro 2022, 96 Quando as identidades aprisionam Uma expressio corriqueira como “cartei- ra de identidade” recobre, ao mesmo tempo, © particular (aquilo que define 0 sujeito na sua diferenca absoluta) e o geral (o que mar- caaassemelha a um outro, gragas a certo nii- mero de tragos em comum). ‘Ao se referir ao conjunto dos seres, a todos 0s “eus’, a identidade é uma repeticao, pois, designa a identidade dos termos; mas é tam- bém um significante quando se refere ao con junto de tracos que caracterizam um sujeito. No que diz respeito & identidade sexu- al, uma construgio atrelada aos movimen- tos identificatérios ¢ ao lugar que a crianga ocupa no desejo do Outro, sé podemos falar de sentimento, e jamais de certeza (Cecca- RELLI, 2022), Enfim, o significante “identidade” reagru- pa diferentes ideias, as vezes paradoxais: a permanéncia, a imutabilidade, 0 sentimen- to de continuar 0 mesmo com o passar do tempo; a garantia de um estado separado, de uma unidade, de uma coesio que pode levar 4 distingdo. Mas também uma relagio que marca a semelhanca entre dois elementos; semelhanga tio grande que os faz idénticos (Ceccarextt, 2017), Guerras étnicas ocorrem para preservar a identidade de um povo: aquilo que é proprio a uma nacio e somente a ela; aquilo que faz sua particularidade, que constitui sua identi- dade, O insuportavel da diferenca pode ser to ameacador que o sujeito prefere morrer a perder sua identidade. ‘A ‘perda da identidade’ pode ocorrer quando as identificacées nao mais sustentam as construcdes subjetivas. Esse tema foi tra- balhado pelo psicanalista Caio Romano em seu livro Psicandlise, cinema ¢ amor. Um dos contos do livro, baseado no filme Newness que 0 autor traduz por Sensagdo de novo, re trata o tédio nas relagdes amorosas, a partir dos personagens Gabi e Martin, que buscam incessantemente sensagbes novas para fugir desse tédio. Para sustentar seus argumentos, Romano se baseia no conto de Machado de Assis, O espelho - esbogo de uma nova teoria da alma humana, O texto apresenta a historia de um rapaz. que se torna alferes. Em certa altura do conto, o jovem é invadido por um profundo sentimento de angtistia ao se deparar com a solidéo a que o espelho o remete, quando a imagem que ele vé é “esfumada, sombra de sombra’, Para sair dessa abissal sensagio de nao ter lugar no Outro, de nao se reconhecer na imagem refletiva, o jovem veste a farda de alferes e recupera a normalidade da imagem do espelho, pasando a existir novamente. Ora, o que o protagonista do conto perde, sio as referéncias identificatorias que a farda lhe propiciava, fazendo com que a identidade, es- vaziada de seus significantes, revele sua verda- deira e mortifera face: “um vazio que implica em uma inexisténcia” (RoMANo, 2021, p. 76). Raga e universalismo Em 1952, a pedido da Unesco, Claude Lévi- Strauss redigiu um texto que marcou data: Raga ¢ histéria, Nele, apresentou uma notavel reflexao sobre a nogao de raga. Nao se tratava apenas de lutar conta o preconceito, mas, so- bretudo, de denunciar as barbaridades perpe- tradas pelas nagoes europeias sobre o pretex- to de uma desigualdade entre as racas. Lévi Strauss denunciava, nos anos que seguiram a Segunda Guerra Mundial, nao s6 0 nazismo, mas igualmente o colonialismo, que susten- tava a ideologia discursiva presente na ideia da inferioridade dos povos nio ocidentais. Para Lévi-Strauss, o que caracteriza as so- ciedades é a passagem da natureza a cultura: a proibicéo do incesto, a adocio de alimentos cozidos e as diferentes expressdes religiosas € artisticas etc,, atributos desconhecidos en- tue os animais e discutidos por Freud ({1913] 1974) em Totem e tabu. As ragas, segundo o autor, nao existem e as diferengas s4o culturais ¢ nao “naturais’, Lévi-Strauss considera a chamada “inferio- ridade cultural” uma construgao universal, presente em toda organizacio social: se, por tum lado, os humanos tendem a formar gru- pos ou comunidades, por outro lado, rejei- Estudos de Psicandlise | Rio de Janeiro-RJ|n.58 |p. 95-104 | dezembro 2022 tam, ao mesmo tempo, a alteridade em nome de uma pretensa superioridade cultural Nessa perspectiva, s6 0 relativismo cultu- ral (o respeito A diferenca) pode exprimir 0 universalismo do género humano. Se todo o mundo se parece, a humanidade dissolve-se no nada; se cada um deixa de res- peitar a alteridade do outro afirmando sua diferenga identitéria, a humanidade mergu- Iha no ddio perpétuo a0 outro (RoupINESCO, 2022, p. 69). As sociedades devem, pois, estar atentas para nao se dissolverem em um modelo tini- co (a globalizacio), tampouco se fecharem em um nacionalismo narcisico que encerra em si uma intoleréncia ao diferente. Seja como for, a pergunta é a de saber por que a alteridade € vivida como ameaga? A alteridade remete, invariavelmente, & dife- renga, a castragao. Porém, nao apenas & di ferenga sexual, tio dificil para a crianga acei- tar (FREUD, [1925] 2011), mas, sobretudo, & existéncia de um outro que indica 4 crianga que a mie, ou quem a acolhe no mundo dan- do-Ihe aquilo que chamo de “berco psiqui- co”, tem outra mirada, além de sua progeni- tura (Ceccarett1, 2002), Narcisismo x alteridade ‘Tanto a constatagao da existéncia de um ou- tro, quanto a percepgao da diferenca sexual, ow qualquer ameaga ao Eu, provoca um aba- lo psiquico, pois reconhecer a diferenca uma afronta direta ao narcisismo; ¢ para re conhecé-la deve ocorrer uma mudanga psi- quica, pois “nunca hi um acesso & alteridade que nao passe por alteragdes no psiquismo” (Rexx; Envo, 2011, p. 18). Paulo Roberto Ceccarellt © conflito entre narcisismo ¢ alteridade, entre manter a iluséo de uma unio impertur- bavel, ou reconhecer e ser reconhecido pelo outro, é um tema inesgotivel na psicanilise. Tais reflexdes nos remetem & conhecida pa- ribola de Schopenhauer sobre os porcos-es- pinhos, citada por Freud em Psicologia das massas ¢ andlise do Eu, Freud ([1921] 2016, P. 92). De forma resumida, a citamos: num. gelado dia de inverno, os membros de uma sociedade de porcos-espinhos, para se abri- gar do frio, devem manter uma distancia ideal que lhes permita se aquecer sem, contudo, se espetar com os espinhos uns dos outros, Frio e espinho sao inconcilidveis: o frio tra- duz a impossibilidade de se sobreviver sozi- nho, o que leva 4 aproximacio uns dos outros para nfo se morrer de frio; o espinho indica a necessidade de separacdo para que os por- cos-espinhos nao se furem, Restam-lhes, pois, duas possibilidades de dificil conciliacao: per- manecer sozinhos, ¢ com frio, 0 que levaria & norte; ou ficar com os outros e seus espinhos. O ser humano ou permanece sozinho fe chando-se em um narcisismo mortifero, ou mantém uma aproximacio comedida, para que o convivio em sociedade seja possivel, sem que ocorra uma ameaga narcisica signi- ficativa (0 inferno é o outro). Devemos ado: tar uma solucio instavel e proviséria, a “meio caminho: nem muito perto, nem muito lon- ge. Temos que viver juntos, mas... separados.? Se, como indica Freud, o “cardter do E € um precipitado dos investimentos objetais abandonados que contém a histéria dessas escolhas de objeto” (Freup, [1923] 2012, p. 26), cabe perguntarmos, porque, em alguns casos, as identificacées excluem; porque, num primeiro momento, as identificagSes que constituem o Eu sio “bem-vindas” e, 3, Nas Grandes Antihas, alguns anos apés « dercoberia da ‘América, enquanto os espanhéis enviavam comissder de pesquisa para investiga se os indigenas possuiam ow mio uma alma, estes tkimos dedicavam-se a afogar os brancos prisioneros para verificay, através de uma observacio pro- Tongada, se seus cadiveresestavam ou nio sujitos a putre- facio (Lévt-Staavss, [1952] 1976, p.237) 3.0 wolamento social provocado pela epidemia da co- vid-19 eseancarou essa maxima de Schopenhauer. Viver 24 horas por dia, todos os dias da semana, sob 0 mesmo teto com alguém exigiu, em muitos casos, modificagées pslqui cas insuportiveis para alguns. O aumento do sofrimento psiguico durante a pandemia,e sobretudo as manifestacbes palcossomilica foi marcante Estudos de Psicandlise | Rio de fanciro-R) | n. $8 | p. 95-104 | dezembro 2022, 98 Quando as identidades aprisionam mais tarde, elas se transformam em prisdes identitérias, is vezes camufladas pela elegan- te expressio ‘politicamente correto”? ‘A nogao do narcisismo das pequenas dife- rengas nos oferece recursos importantes para compreendermos essa configuracio pulsio- nal. O narcisismo das pequenas diferencas apa rece pela primeira vez no texto O tabu da virgindade (Freup, [1918] 2018). O tema é retomado mais tarde em: Psicologia das mas- sas e andlise do Eu ({1921] 2011) e em O mal estar na cultura ([1930] 2010). Em 1918, Freud ({1918] 2018, p. 164) diz que 0 narcisismo das pequenas diferengas separa individuos que se assemelhem em ‘outros aspectos. Ali devemos procurar “a hostilidade que em todos os vinculos huma- nos vemos batalhar com éxito contra os sen- timentos solidarios e degolar o mandamento de amar o préximo”. A partir do narcisismo das pequenas diferengas, compreendemos a constante hostilidade inerente as relagoes humanas, exceto na relagdo mae-filho, a ni caiisenta de aversio e hostilidade Contudo, nos fenémenos de massa, e eu acrescentaria nos grupos unidos pelas iden- tificagdes, essa miitua aversio entre os ho- mens, a hostilidade priméria, é suspensa: [..] toda essa intolerincia desaparece, tem porariamente ou de maneira duradoura, por meio da formagao da massa e dentro da mas- sa, Enquanto perdura a formagio de massa, ou até onde se estende, os individuos se con- duzem como se fossem homogéneos, supor- tam a especificidade do outro, igualam-se a ele ¢ nao sentem repulsa por ele (Fru, {1921} 2011, p. 58), Num primeiro momento, 0 narcisismo das pequenas diferengas mostrava-se hostil & formacdo de massa por restringir as liga ‘Ges libidinais entre seus membros (FREUD, [1921] 2011). Contudo, em um segundo mo- mento, ele fica suspenso no interior da mas- sa (grupos, gangues, partidos politicos etc.) Seus membros sio transformados em irmios ea hostilidade, oriunda da constatagio da al- teridade, isso 6, dos processos identitérios, & projetada no exterior: o narcisismo, que ga- rantia a unidade do Bu, passa a ser o guar- digo da coesao da massa, criando “uma hete- rogeneidade intergrupal e, ao mesmo tempo, uma homogeneidade intragrupal” (Ret Eno, 2011, p. 25). Para além dos fenémenos de massa, 0 narcisismo das pequenas diferencas pode ser temporariamente suspenso quando a satisfa- io pulsional est em jogo: Faga-se passat fome, por igual, a um grupo composto por individuos mais diversos entre si, A medida que cresce a imperiosa neces- sidade de alimentar-se, se apagaro todas as diferengas individuais e emergiré, em seu lu. gat, as uniformes exteriorizagdes dessa tinica e nao saciada pulsio (Frevp, [1912] 2011, p. 181). Em O mal-estar na cultura, ao falar do narcisismo das pequenas diferensas, Freud diz que é “sempre é possivel ligar um gran- de mimero de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agres- sividade” (Freup, [1930] 2010, p. 366). Esse fato é facilmente observavel, por exemplo, quando um grupo se forma para linchar al- guém; para “fazer justica” com as préprias miaos. Na Idade Média a agressividade era exteriorizada nas bruxas que, para o regozijo das multidées, eram queimadas em foguei ras nas pragas puiblicas. Na atualidade, nio faltam exemplos de pessoas, que ao sustenta- rem uma diferenga que pode ser uma atitu- de, um comportamento particular, induzem a uma revolta generalizada, se transforman- do em alvo de uma agressividade coletiva. Contudo, passado 0 momento de jibilo que neutralizou do narcisismo das pequenas di ferencas, a massa se desfaz. A unidade s6 é possivel quando ha um outro para dirigirmos a destruicao: “coesio e satisfagdo da destrutividade acabam por Estudos de Psicandlise | Rio de Janeio-RJ|n.58 |p. 95-104 | dezembro 2022 formar os dois polos dessa nogéo” (Reino; Enpo, 2011, p. 24). E quando as referéncias identificatérias de um grupo sao vistas com ameacadoras, como algo excéntrico por ou- tros grupos, cria-se uma cegueira que tendea estereotipar a alteridade. Tais consideracies sugerem que a pulsdo de morte esta implicita no narcisismo das pequenas diferencas. A miséria psicolégica do narcisismo das pequenas diferencas, pode traduzir-se por uma miséria perceptiva, como sustenta Calligaris (2011, p. 50): Cada etnia costuma ser pouco sensivel as di- ferengas de fisionomia das outras - tanto indi- viduais quanto coletivas. Em Sao Paulo, onde vive uma grande comunidade de imigrantes japoneses, qualquer oriental, chinés ou core- ano, é um “japa’, Em Nova York, quando um branco tenta descrever um rosto de um ne- gro, em geral nao consegue dizer nada além dos tragos que valem para a imensa maioria dos negros (pele escura, nariz largo, lébios es- pesos). E como se, na outra etnia, nao hou- vesse diferengas. Nao sei se acontece a mesma coisa com os negros quando eles olham para os brancos, mas é provavel que sim, Aprisionamentos identitarios © que se depreende das posigdes citadas é que o insuportivel da alteridade tem sua ori- gem nas pequenas diferengas narcfsicas en- tre os sujeitos que, sob outros aspectos, sio idénticos (FREvp, [1923] 2011). Observamos regularmente no nosso cotidiano, a presenga do narcisismo das pequenas diferencas. A “cultura do édio’, que traduz um movimento identificatario de massa, desfaz o trabalho de cultura (Kulturarbeit] que sustenta nossa ci- vilizagao (FRevp, [1908] 1976), aumentando exponencialmente a violéncia ¢, por exten- sio, a destrutividad.e e ativando, senio in centivando, aquilo que o ser humano tem de pior: 0 primitivo do homem (FREUD, [1915] 1996), isto é, “o homem é o lobo do homem” (Freup, [1930] 2010). Observa- intolerincia politica e nos interesses econd- isso na Paulo Roberto Ceccarellt micos mundiais que, muitas vezes, procuram globalizar os paises substituindo a particula- ridade de cada em um padrao ‘inico no qual a alteridade do outro é caricaturada, e onde nao existe espago para as diferencas. Na clinica, o narcisismo das pequenas diferengas se faz cada vex mais presente nas intimeras vers6es do politicamente correto, Sustentados pela expressio coringa “lugar de fala’* assistimos cada vez mais a grupos que se organizam em “cernes identitarios’, nos quais aqueles(as) que a eles néo per- tencem, nao podem participar ou, pior ain- da, nio teriam nada a dizer, pois nio fazem parte daquele nticleo unido pelas identifica- ges: reunides dos professores, pais e alunos que ocorrem divididos por etnias; psicana- listas que néo podem atender negros, por nao serem negros; mulheres que dizem que “s6 mulheres podem analisar mulheres"; s6 pessoas que sofreram assédio, em suas dife- rentes verses, podem entender, e atender, quem passou por situagdes semelhantes, ¢ assim por diante. Nesses casos, 0s proces: sos secundarios ganham todo o psiquismo, anulando as particularidades e os modos de funcionamento do primério ~ a atemporali- dade do inconsciente, a inexisténcia de ne- gacdo, a diferenca sexual ¢ outros tantos ou. tros, Em outras palavras, as fantasias passam a ter existéncia concreta, ¢ as identificagdes se transformam em verdade, anulando o pul- sional. Podemos pensar também nos aprisiona- ‘mentos identitdrios nos(as) excluidos(as) por racismo, orientacio sexual, identidade de género, posi¢ao politica, e outras tantas. Tais exclusies foram intensificadas com a pande- mia: alguns por se sentirem s6s, outros que se sentiram sem ter a quem recorrer, caso {T Tragar de fala: conceito introdurido pala fldsofs, fm lsta negra excritora Djamila Ribsir, Remete& realidade social, financeira, pessoal, histrica ete, do enunciador, © ‘que o qualifcaria para melhor proferir um discurso sobre determinado tera. Tsso no significa que quem aio perten ‘ce Aquele grupo nio possa expressar sua opinio, Contudo, ‘ideal é abrir espaco para aprender, entender e respeitar 0 {que aquele grupo esti tentande dizer Estudos de Psicandlise | Rio de fanciro-Rj | n. $8 | p. 95-104 | dezembro 2022 99 100 Quando as identidades aprisionam precisassem de alguma ajuda, Outros ainda se sentiram incapazes de lidar com as novas configuracdes do pathos, no sentido da psi- copatologia fundamental, ¢ intensificaram um sofrimento psiquico que estava em esta~ do latente (BERLINCK, 1998). Hé igualmente os horrores de dupla ex- dlusio, como vem acontecendo na atualida- de, com crise dos refugiados na Europa ¢, mais recentemente, com o absurdo da guer- ra na Ucrania. Em muitos casos, foge-se por nao se sentir accito; por se sentir rejeitado, excluido sendo, novamente, excluido nos lo- cais de “acolhimento’ © medo do contigio e do desconhecido decorrente da epidemia da covid-19 tomou, em alguns casos, proporgoes paranoicas. Al- gumas pessoas, e este foi um ponto que me chamou a atengio, temiam a “alteridade in- terma” que se traduzia por uma angiistia, ou medo, por nao estarem se reconhecendo nas situagdes vivenciadas e nas novas configura ‘goes da angistia, o que os impedia de apren- der com o sofrimento, isto é com as suas préprias configuracées do pathos, As consequéncias destrutivas ¢ negacio- nistas do narcisismo das pequenas diferen- ‘gas ndo passaram despercebidas a Freud, Em O mal-estar na cultura (FREvp, [1929/1930] 2010, quando faz observacées sobre a revo- lugao russa, ele escreve: [..] a tentativa de estabelecer uma civiliza s40 nova ¢ comunista na Rissia encontra 0 seu apoio psicolégico na perseguicdo aos burgueses, Nao se pode senao imaginar, com Preocupagio, sobre 0 que farao os sovieticos depois que tiverem eliminado seus burgueses. Consideragées finais O narcisismo das pequenas diferengas, e seus desdobramentos, fazem parte da constitui- 40 do sujeito: exclui-se o diferente, 0 que nao pensa igual; o que tem outra origem, en- fim, aquele que expie a fragilidade de nossa “verdade’, de nossa visio de mundo, mos- trando que cla nio é a tinica leitura do Real. Com isso, exclui-se igualmente aquilo que 0 outro encarna e que nos apavora sem trégua, pois, jé 0 dissemos, 0 acesso a alteridade leva necessariamente a alteracées psiquicas, 0 que é insuportavel para alguns. A dor dos excluidos envolve, além do medo angustiante de ser perseguidos no caso de imigragio irregular, a perda do local de residéncia e, muitas vezes perda de vinculos familiares e afetivos. Juntam-se a isso as in certezas quanto ao novo lar, a aprendizagem de uma nova lingua e novas referéncias sim- bélicas, e a tentativa de integrar-se em uma sociedade que nao se escolheu, € que, nio raro, exclui os excluidos. Muitas vezes, aqueles e aquelas aprisio- nados nas identificagses, se sentem exclui- dos pelas referéncias identificatérias que os constituiram, levando-os ao que poderia- mos chamar de autoexclusao. Essa posigio subjetiva pode ser observada, por exemplo, no racismo dentro dos movimentos negros; na homofobia presente em sujeitos LGBT- QUAP= (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queer, intersexuais, assexuais, pansexuais ¢ outros grupos e variacées de sexualidade ¢ género); na misoginia, nos movimentos feministas ¢ assim por diante. 0 preconceito expressa uma mogio pulsional que o outro desperta no sujeito que o sen- te, a qual deve, a todo custo, ser aniquilada. Ou ainda quando o referencial de valores do outro difere do sujeito que exclui, evocando mogées recalcadas ligadas aos ideais sociais (Ceccarexz1, 2000). Embora o fantasma da exclusio nos as. sombre constantemente, corroboramos para que o “descarte” dos inaptos: aqueles(as) que nao respondem As exigéncias da sociedade de consumo. Essa forma de exclusio é fa mente observavel quando certas pessoas, jul gadas incapazes de consumir, so impedidas de entrar nos grandes templos do consumo: os shopping centers. Com isso, a exclusao tor- na-se algo corriqueiro, aumentando drasti- camente 0 medo de ser excluidos e, conco- mitantemente, aprimorando os mecanismos Estudos de Psicandlise | Rio de Janeiro-RJ|n.58 |p. 95-104 | dezembro 2022 que nos protejam da exclusdo para que nossa vex nio chegue: uma expressio do narcisis- mo e da pulsio de morte. Muitas vezes, 0 fantasma de ser excluido origina, paradoxal- mente, atitudes que excluem o sujeito. ‘Uma forma de exclusio cada vex mais presente na atualidade é a exclusio dos idosos, ou a dos “adultos maduros" na feliz, expressdo de Adriana Mendonga ¢ Denise Souza (MENDONGA; Souza, 2020). Em um texto vigoroso sobre a exclusio dos adultos maduros, Adriana Mendonga insiste que os psicanalistas nao podem ficar alheios a essa faixa etéria: “nfo podemos continuar com a visto desatualizada e preconceituosa de um falso empobrecimento psiquico dos adul- tos maduros” (MeNDoNGA, 2022, p. 51). Os adultos maduros se sentem excluidos, pois, com o envelhecimento, [J enfrentam a perda social, econémica, af tiva e familiar, alfm de perdas fisicas; os ido- sos, naquela experiéncia de privagio, deixam seu 6dio transparecer no meio ambiente e se mobilizam para destrui-lo magicamente [..] co velho como a crianga quer se sentir amada, mas ambos séo impotentes para alcangé-lo € devem obter apoio externo para serem dignos de amor (MeNDongA, 2022, p. $3-54). Ironicamente, por mais terrivel que seja, a espécie humana continua excluindo, e até mesmo matando pessoas, seja por sua posi- Ao politica, sua crenga religiosa, cor da pele, orientacao sexual, género, mitos fundadores, seja por outras tantas formas de “limpeza” etnografica do “impuro’, ou do ameacador, para que uma sociedade “normal’, sem am- bivaléncias, seja estabelecida. Excluimos e segregamos nao por sermos cruéis ¢ insen- siveis, embora haja aqueles(as) que o fazem por prazer, Excluimos, pois o narcisismo das pequenas diferencas esta presente em todo ser humano, Quando refletimos sobre as formas de exclusio, penso que deveria ser repensada a afirmagio tio presente no nosso cotidiano Paulo Roberto Ceccarellt segundo a qual o racismo e outras formas de exclusdo seriam estruturais. Tenho por hipé- tese que toda forma de exclusao, o que inclui a alteridade interna, traduz, no fundo, uma grande dificuldade, seno impossibilidade, de aceitar que o outro teve um trajeto iden- lificatério diferente do(a) que exclui, Acre- dito que 0 racismo seja identificatério e nao estrutural. Insisto neste ponto, a partir das premissas da psicandlise. Podemos, claro, falar de racismo estrutural na sociologia, na antropologia ¢ em tantas outras disciplinas. ‘Mas a psicanilise trabalha com o conceito de identificagio, E, dentro desse referencial tedrico-clinico, a nogao de estrutural nao é aplicavel. Quando as identificagdes constitutivas do sujeito sio tomadas como a tinica possibili- dade de subjetividade, 0 sujeito, e 0 grupo a0 qual ele se afilia, se veem aprisionados na identidade, produzindo um continuo contli- to com o diferente. Abstract The text brings some reflections on a recurring theme today: the politically correct. According to the author, actuality has been marked by identity ghettos which, supported by the nar- cissism of small differences, do not consider the identifying particularities of other groups and exclude those that do not belong to the group. This produces an identity imprisonment that generates prejudice and segregation. ‘The ori- ‘gin of prejudice, according to the author, is identification and not structural, which opens possibilities for understanding prejudice from the psychoanalytic point of view. Keywords: Identification, Prejudice, Exclu- sion, Narcissism of small differences. Estudos de Psicandlise | Rio de faneiro-RJ | n. $8 | p. 95-104 | dezembro 2022, 101 102 Quando as identidadesaprisonam Referéncias BERLINCK, M. que é psicopatologia fundamen- tal. Rev. latinoam. psicopatol. fundam 1 (1), jan./mar, 1988. CALLIGARIS, C. A mulher de vermelho e branco. S30 Paulo: Companhia das Letras, 2011 CECCARELL, P. R. 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Sécio do Circulo Psicanalitico de Minas Gerais (CPMG) Sécio fundador do Circulo Psicanaltico do Paré (CPPA). Ambos fliados ao Citculo Brasileiro de Psicanalise (CBP) International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS), Membro do Corpo Docente do Contemporineo: Instituto de Psicanélise e Transdisciplinaridade - POA, RS. Professor na pés-graduagio em psicanélise do Hospital Santa Catarina, Blumenau (SC). Pesquisador Associado do Laboratério Interdisciplinar de Pesquisa ¢ Intervensio Social (LIPIS) da PUC Rio. Membro da Associacéo Universtivia de Pesquisa cm Psicopatologia Fundamental. Professor e orientador de pesquisas na pés-graduacio em psicologia na Universidade Federal do Paré (UFPA). Professor e orientador de pesquisas do mestrado em Promogio de Satide e Prevengio da ViolénciayMP. da Faculdade de Medicina da UFMG, ‘Coordenador e professor da pés-graduasio em sexualidade humana da Faculdade Santa Casa, Belo Horizonte (MG). ‘Membro do Programa Antértico Brasileiro, Diretor cientifico da Clinica Ampliads de Satide Mental (CASM), Fundador e Coordenador do Instituto Mineiro dde Sexualidade (IMSEX), E-mail: pavlorcbh@mac.com Homepage: www.ceccarclli pscbr Wikipedia: https:/(pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Roberto_Ceccarelli Paulo Roberto Ceccarellt Estudos de Psicandlise | Rio de fanciro-R) | n. $8 | p. 95-104 | dezembro 2022 103

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