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A DANÇA DO SOL

Frithjof Schuon

Tradução: San
Revisão: San
Diagramação: San

A grandiosa Dança Sacrificial dos índios nômades norte-america-


nos, dedicada ao Poder Solar, anteriormente englobava ritos secundários
que variavam consideravelmente entre as tribos: diversos elementos mitoló-
gicos eram incorporados à sua composição, em certos casos, a ponto de rele-
gar o papel do sol para segundo plano. No entanto, essa complexidade, co-
mum em um mundo fragmentado e em constante mudança como o dos
índios vermelhos, não tem o poder de invalidar o conteúdo fundamental do
ciclo ritual em questão. Esse conteúdo, de fato, resistiu a todas as tribulações
políticas e religiosas que os índios tiveram que enfrentar ao longo de mais de
um século.
Em sua essência, a Dança do Sol possui dois significados, um ex-
terno e outro interno: o primeiro é variado, enquanto o segundo é cons-
tante. A intenção mais ou menos evidente da Dança pode ser um voto
pessoal ou a busca pela prosperidade da tribo. De maneira mais profun-
da, como no caso dos Cheyennes, por exemplo, existe o desejo de regene-
rar toda a criação. A intenção interna e imutável é conectar-se ao Poder
Solar, estabelecer um vínculo entre o Sol e o coração, concretizar um raio
que ligue a Terra ao Céu, ou reatualizar esse raio que é preexistente, mas
perdido. Essa operação estritamente “pontifical” (pontifex) baseia-se na
equação “coração-Sol”: o Sol é o Coração do Macrocosmo, enquanto o
coração humano é o sol do microcosmo que representamos. O sol visível
é apenas a marca do Sol Divino, mas essa marca, sendo real, é eficaz e
permite a operação de uma espécie de “magia analógica”, por assim di-
zer.

1
O elemento central do ritual é a árvore, representando o eixo
cósmico que conecta a Terra ao Céu; a árvore é a presença — obrigato-
riamente vertical — da Altura Celestial sobre o plano terrestre; é o que
possibilita o contato, tanto sacrificial quanto contemplativo, com o Po-
der Solar. Era a essa árvore, escolhida, derrubada e erigida ritualmente, 1
que os dançarinos costumavam ser amarrados por tiras conectadas aos
seus peitos; nos dias de hoje, o único elemento do sacrifício que persis-
te é o jejum, mantido de forma ininterrupta durante a duração — cerca
de três ou quatro dias — da Dança, o que simbólica e qualitativamente
é suficiente, considerando que os dançarinos devem se abster de beber
sob um calor abrasador, enquanto executam os movimentos prescritos
por horas a fio.2
Este movimento é uma ida e volta entre a árvore central, despoja-
da e sem galhos, e o abrigo circular, coberto de galhos; a dança pode ser
comparada às fases da respiração ou aos batimentos cardíacos; a cabana
sagrada inteira, com a árvore no centro, assemelha-se a um grande cora-
ção, cujas fases vitais são representadas pelo fluxo e refluxo da dança. Es-
se simbolismo é intensificado pelo batimento do tambor e pelo canto,
que recorda, por suas alternâncias monótonas, as ondas do oceano. É no
centro que os dançarinos extraem sua força: sua retirada corresponde à
fase expansiva — à assimilação ou à radiação — da influência espiritual
presente na árvore.
Pode-se questionar como esse desejo de realização espiritual se
alinha com um estilo de vida aventureiro e guerreiro, e com a rusticidade
das maneiras que dele resultam. É preciso compreender que, para o indí-
gena, a vida “é o que é”, o que significa que é uma trama de coisas e even-
tos, de formas e destinos, na qual o homem exterior participa, execu-
1 Ver The Sacred Pipe, registrado e editado por Joseph Epes Brown (University of Oklahoma
Press, 1953), no capítulo dedicado à The Sun Dance. Compare também The Arapaho Sun
Dance (Chicago, 1903) e The Ponca Sun Dance (Chicago, 1905) de George A. Dorsey. Esses es-
tudos oferecem, ao menos, uma compreensão das complexas possibilidades da dança, destacan-
do as variações de mitologia e ritual de acordo com a tradição de cada tribo.
2 Ainda acontece, no entanto, que os indígenas praticam secretamente o rito de maneira antiga.
Inversamente, algumas celebrações dele carecem de seriedade e são combinadas com feiras tri-
bais; no entanto, mesmo aqui, alguns ainda praticam secretamente o autêntico rito.
2
tando-os e experimentando-os de acordo com as Leis da Natureza. Con-
tudo, o homem interior é independente dessa trama, transcendendo-a e
dominando-a de certa maneira. Essa é uma combinação frutífera da ve-
neração pela Natureza impessoal e da afirmação da personalidade sacer-
dotal e heroica, sendo esta a base do estoicismo indígena, que representa
a expressão moral dessa aparente antinomia.3
Ao se aproximar e se afastar por pequenos passos da árvore cen-
tral sem nunca virar as costas para ela, o dançarino sagrado agita uma pe-
na de águia em cada mão enquanto sopra, no mesmo ritmo, um apito
feito de osso de águia segurado na boca; o som ligeiramente estridente e
plangente assim produzido equivale a uma prece ou invocação; lembra o
grito da águia que plana na imensa solidão do espaço em direção ao sol.
Toda a dança é acompanhada pelo canto de um grupo de homens senta-
dos ao redor de um enorme tambor, que eles batem com veemência em
um ritmo acelerado, enfatizando assim o caráter viril do motivo princi-
pal de seu canto — uma canção de vitória e, ao mesmo tempo, nostalgia;
vitória sobre a terra e nostalgia pelo Céu. Ao nascer do sol, um ritual es-
pecífico ocorre: os dançarinos olham e saúdam o sol nascente, cantando
com os braços estendidos em direção a ele para se impregnarem com o
“Poder Solar”.
Ao longo da Dança, a árvore central se impregna de bênçãos; os
indígenas a tocam, esfregam seus rostos, corpos e membros, ou rezam ao
Grande Espírito enquanto interagem com a árvore. Por vezes, ocorrem
curas, as preces são atendidas e proteções são concedidas. Fenômenos ex-
traordinários de diversas naturezas têm sido testemunhados, incluindo
visões e, sobretudo, uma sensação de frescor na proximidade da árvore
central, indicando a presença de poderes benéficos.
A concepção de “poder” é fundamental para os indígenas: o
Universo é uma trama de poderes todos emanando de uma única e mes-
ma Força, que é subjacente e onipresente, simultaneamente impessoal e
pessoal. Para os indígenas, o homem espiritual está entrelaçado ao Uni-

3 O Shintōismo apresenta a mesma complementaridade entre Natureza-Objeto e Herói-Sujeito,


sendo que cada um dos dois polos evoca os mistérios da Transcendência e Imanência.
3
verso ou ao Grande Espírito por meio dos poderes cósmicos que o atra-
vessam, purificam, transformam e protegem. Ele é, ao mesmo tempo,
pontífice, herói e mago; esses poderes são atraídos para manifestarem-se
ao seu redor por meio de espíritos, animais e fenômenos naturais.
A Dança do Sol evolui para um estado interno permanente: um
contato decisivo é estabelecido com o Luminar Sacramental, deixando
uma marca indelével no coração. A separação profana entre a consciência
cotidiana e o Sol Imanente é dissipada, e a pessoa passa a viver doravante
sob outro signo e em outra dimensão.
A Dança do Sol ocorre anualmente durante o verão, mas seu eco
ou extensão se manifesta nos rituais do Cachimbo Sagrado, praticados
em homenagem à dança a cada lua cheia. Essas sessões incluem, além do
uso de apitos de osso de águia, preces dirigidas às quatro Direções do es-
paço e ao Grande Espírito, que abrange e projeta essa quaternidade. O
símbolo dessa metafísica, como nos foi explicado, é a cruz inscrita no cír-
culo: a cruz terrestre, com seus eixos Norte-Sul e Leste-Oeste, e o círculo
celestial. Nas extremidades, a cruz horizontal toca o Céu; seu centro
também se conecta ao Céu por meio dos eixos Terra-Zênite, exatamente
como representa a árvore da Dança do Sol.
Essa simbologia evoca outra imagem sacra: a do Sol Empenado, 4
presente em peles de búfalo usadas como mantos e ocasionalmente co-
mo pano de fundo para cerimônias. O sol é formado por círculos con-
cêntricos compostos por penas estilizadas de águia, criando uma impres-
são que sugere, de maneira simultânea, centro, radiação, poder e majesta-
de. A simbiose entre o sol e a águia, também presente no famoso cocar
de penas que, no passado, adornava chefes e grandes guerreiros, remete-
nos ao simbolismo da Dança do Sol: aqui, o homem passa por uma
transformação espiritual, tornando-se uma águia que ascende em dire-
ção ao Céu e se identifica com os raios do Luminar Divino.

4 Confira a imagem: Sol Empenado.


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