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Tercio Sampaio Ferraz Junior ote Introdugao ao Estudo do Direito Técnica, Deciséo, Dominacéio 4* Edicado Revista e ampliada SAO PAULO EDITORA ATLAS S.A. - 2003 © 1987 by EDITORA ATLAS S.A. 1. ed. 1988; 2. ed. 1994; 3. ed. 2001; 4. ed. 2003; 2* tiragem Foto da capa: Agéncia Keystone Composigio: Lino-Jato Editoragao Grdfica Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacéo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ferraz Junior, Tercio Sampaio, Introdugiio ao estudo do direito : técnica, deciséo, dominagao / Ter- cio Sampaio Ferraz Junior. - 4. ed. - Sao Paulo : Atlas, 2003. Bibliografia, ISBN 85-224-3484-0 1. Direito 2. Direito - Estudo e ensino I. Titulo. 93-3637 CDU-340,11 indice para catdlogo sistematico: 1. Direito : Introdugao 340.11 TODOS OS DIREITOS RESERVADOS - E proibida a reprodugao total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. A violago dos direitos de autor (Lei n* 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Cédigo Penal. Depésito legal na Biblioteca Nacional conforme Decreto n* 1.825, de 20 de dezembro de 1907. Impresso no Brasil/Printed in Brazil OBRAS DO AUTOR Die Zweidimensionalitaet des Rechts. Meinsenheim/Glan : Anton Hain, 1970. Direito, retdrica e comunicagdo. Sao Paulo : Saraiva, 1973. Conceito de sistema no direito. Sao Paulo : Revista dos Tribunais, 1976. A ciéncia do direito. Sao Paulo : Atlas, 2. ed. 1980. Teoria da norma juridica. Rio de Janeiro : Forense, 2. ed. 1986. Fungdo social da dogmédtica juridica. So Paulo : Revista dos Tribunais, 1978. Constituinte: assembléia, processo, poder. S4o Paulo : Revista dos Tribunais, 2. ed. 1986. Constituicdo de 1988: legitimidade, vigéncia e eficdcia, supremacia. Em colabo- ragao. Sao Paulo : Atlas, 1989. Interpretagdo e estudos da Constituigao de 1988. Sdo Paulo : Atlas, 1990. Estudos de filosofia do direito. S40 Paulo : Atlas, 2002. Sumario Agradecimentos, 13 Prefiicio, 15 Introdugdo, 21 1 A UNIVERSALIDADE DO FENOMENO JURIDICO, 31 11 1.2 Direito: origem, significados e fungées, 31 Busca de uma compreensio universal: concepcées de lingua e de- finigdo de direito, 34 Problema dos diferentes enfoques tedricos: zetético e dogmatico, 39 Zetética juridica, 44 Dogmatica juridica, 47 O DIREITO COMO OBJETO DE CONHECIMENTO: PERFIL HISTORICO, 52 2.1 2.2 2.3 2.4 25 Direito e conhecimento do direito: origens, 52 Jurisprudéncia romana: o direito como diretivo para a agdo, 55 Dogmaticidade na Idade Média: o direito como dogma, 61 Teoria juridica na Era Moderna: o direito como ordenac&o racio- nal, 65 Positivago do direito a partir do século XIX: 0 direito como norma posta, 72 8 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO 2.6 Ciéncia dogmatica do direito na atualidade: o direito como instru- mento decisério, 81 3 CIENCIA DOGMATICA DO DIREITO E SEU ESTATUTO TEORICO, 83 Dogmitica e tecnologia, 83 3.2 Decidibilidade de conflitos como problema central da ciéncia dog- matica do direito, 88 3.3 Modelos da ciéncia dogmatica do direito, 91 3.1 4 DOGMATICA ANALITICA OU A CIENCIA DO DIREITO COMO TEORIA DA NORMA, 93 Identificacdo do direito como norma, 93 41 4.2 4.1.1 4.1.2 4.1.3 4.14 Conceito de norma: uma abordagem preliminar, 98 Concepedio dos fenémenos sociais como situagées norma- das, expectativas cognitivas e normativas, 102 Cardter juridico das normas: instituigdes e nticleos signifi- cativos, 105 Norma juridica: um fenémeno complexo, 113 Teoria dos contetidos normativos ou dogmatica das relagées juri- dicas, 116 4.2.6 Conceito dogmatico de norma juridica, 116 Tipos de normas juridicas, 123 Sistema estdtico das normas: as grandes dicotomias, 132 Direito ptiblico e direito privado: origens, 133 4.2.4.1 Concepcio dogmatica de direito ptiblico e de di- reito privado: princfpios tedricos, 137 4.2.4.2 Ramos dogmaticos, 140 Direito objetivo e direito subjetivo: origens da dicotomia, 145 4.2.5.1 Concepgao dogmatica de direito objetivo e subje- tivo: fundamentos, 147 4.2.5.2 Uso dogmatico da expressio direito subjetivo: si- tuagées tfpicas e at{picas, direitos reais e pessoais, estrutura do direito subjetivo e outras classifica- ces, 149 4.2.5.3. Sujeito de direito, pessoa fisica e pessoa juridica, 154 4.2.5.4 Capacidade e competéncia, 157 4.2.5.5 Dever e responsabilidade, 160 4.2.5.6 Relagées juridicas, 164 Direito positivo e natural: uma dicotomia enfraquecida, 170 SUMARIO 4.3 Teoria do ordenamento ou dogmatica das fontes de direito, 174 4.3.1 Norma e ordenamento, 175 4.3.2 4.3.4 4.3.1.1 4.3.1.2 4.3.1.3 4.3.1.4 Ordenamento como sistema dindmico, 177 Idéia de sistema normativo e aparecimento do Estado moderno, 179 Teorias zetéticas da validade, 181 Norma fundamental ou norma origem, unidade ‘ou coeséo do ordenamento, 187 Conceptualizagéo dogmatica do ordenamento: validade, vigéncia, eficdcia e forca, 197 4.3.2.1 4.3.2.2 4.3.2.3 Dinamica do sistema: norma de revogagio, cadu- cidade, costume negativo e desuso, 203 Consisténcia do sistema, 206 4.3.2.2.1 Antinomia juridica, 206 4.3,2.2.2 Nulidade, anulabilidade e inexisténcia de normas, 215 Completude do sistema: lacunas, 218 Fontes do direito: uma teoria a servigo da racionalizagaéo do estado liberal, 223 4.3.3.1 4.3.3.2 4.3.3.3 4.3.3.4 Legislacio, 228 4,3.3.1.1 Constituigéo, 229 Leis, 232 Hierarquia das fontes legais: leis, de- cretos, regulamentos, portarias, 235 Cédigos, consolidagdes e compilagées, 238 4.3.3.1.5 Tratados e convengées internacionais, 239 Costume e jurisprudéncia, 241 Fontes negociais, razdo juridica (doutrina, princf- pios gerais de direito, eqitidade), 246 Estrutura e repertério do sistema e teoria das fon- tes, 249 Doutrina da irretroatividade das leis: direito adquirido, ato juridico perfeito, coisa julgada, 249 4.4 Dogmiatica analitica e sua fungio social, 253 DOGMATICA HERMENEUTICA OU A CIENCIA DO DIREITO COMO TEORIA DA INTERPRETAGAO, 255 5.1 Problema da interpretacao: uma investigacao zetética, 255 5.1.1 Fungo simbdlica da lingua, 257 10 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO 5.2 5.3 5.4 5.1.2 Desafio kelseniano: interpretacéo auténtica e doutrinaria, 261 5.1.3 Voluntas legis ou voluntas legislatoris?, 264 5.1.4 Interpretagdo e traducio: uma analogia esclarecedora, 268 5.1.5 Interpretagdo juridica e poder de violéncia simbélica, 272 5.1.5.1 Nog&o de uso competente da lingua, 274 5.1.5.2 Lingua hermenéutica e legislador racional, 278 5.1.5.3 Interpretacao e pardfrase, 281 5.1.5.4 Interpretacéio verdadeira e interpretagao diver- gente: cédigos fortes e cédigos fracos, 283 5.1.6 Fungio racionalizadora da hermenéutica, 284 Métodos e tipos dogmaticos de interpretagio, 286 5.2.1 Métodos hermenéuticos, 286 5.2.1.1 _Interpretacdio gramatical, légica e sistematica, 286 5.2.1.2 Interpretaciio histérica, sociolégica e evolutiva, 289 5.2.1.3 Interpretacdo teleoldégica e axiolégica, 292 5.2.2 Tipos de interpretagdo, 294 5.2.2.1 Interpretagdo especificadora, 294 5.2.2.2 Interpretacao restritiva, 296 5.2.2.3 Interpretacao extensiva, 297 Interpretagdo e integracdo do direito, 298 5.3.1 Modos de integracdo do direito, 299 5.3.1.1 Instrumentos quase-légicos: analogia, inducéo amplificadora, interpretagdo extensiva, 301 5.3.1.2 Instrumentos institucionais: costumes, princ{pios gerais de direito, eqiiidade, 304 5.3.2 Limites A integracdo, 305 Fungdo social da hermenéutica, 308 6 DOGMATICA DA DECISAO OU TEORIA DOGMATICA DA ARGUMENTA- GAO JURIDICA, 310 61 6.2 Teoria da decisdo juridica como sistema de controle do comporta- mento, 310 6.1.1 Decisdo e processo de aprendizagem, 311 6.1.2 Deciso juridica e conflito, 313 6.1.3 Decisdo e poder de controle, 314 Teoria dogmatica da aplicagao do direito, 316 6.2.1 Aplicaciio e subsunciio, 316 6.2.2 Prova juridica, 319 suménio 11 6.2.3 Programacdo da decisdo e responsabilidade do decididor, 321 6.3 Teoria da argumentagao, 322 6.3.4.1 6.3.4.2 6.3.4.3 6.3.4.4 6.3.4.5 6.3.4.6 6.3.4.7 6.3.4.8 6.3.4.9 Demonstragdo e argumentacao, 323 Argumentagao e tépica, 327 Procedimento argumentativo dogmatico, 331 Argumentos juridicos, 335 Argumento ab absurdo ou reductio ad absurdum, 336 Argumento ab auctoritate, 337 Argumento a contrario sensu, 338 Argumento ad hominem, 340 Argumento ad rem, 340 Argumento a fortiori, 341 Argumento a maiori ad minus, 341 Argumento a minori ad maius, 342 Argumento a pari ou a simile, 342 6.3.4.10 Argumento a posteriori, 342 6.3.4.11 Argumento a priori, 343 6.3.4.12 Argumento silogistico ou entimema, 343 6.3.4.13 Argumento exemplar ou exempla, 344 6.4 Funcdo social da dogmética da decisao: direito, poder e violéncia, 344 7 AMORALIDADE DO DIREITO, 348 7.1 Direito e fundamento, 348 7.2 Direito e justica, 351 7.3. Direito e moral, 356 Bibliografia, 361 Agradecimentos Este livro veio sendo pensado desde 1980. Sua redago, porém, sé se consumou gracas 4 oportunidade que me foi oferecida pela Faculdade de Di- reito da Universidade de Lisboa, de nela lecionar Filosofia do Direito no se- mestre de inverno de 1986/1987. Na quietude e na paz de minha mesa de trabalho, pude entdo redigi-lo. Ficam aqui registrados meus agradecimentos a essa Universidade, aos professores e assistentes, aos alunos, permitindo-me a mencio especial ao Prof. José de Oliveira Ascencdo, que, por seu empenho, propiciou-me o referido convite. N§o posso, no entanto, esquecer-me dos colegas, meus assistentes da Faculdade de Direito da USP e da PUC de Sao Paulo, bem como das geracées de estudantes que acompanham meus cursos, estimulando-me e obrigan- do-me ao estudo. Permito-me, no entanto, também registrar a lembranga de amigos diletos que em todo momento me assistiram com sua lealdade e ami- zade, especialmente este amigo fraterno que é Celso Lafer. Mas foi sem dtivida na melhor tradic&o da Faculdade de Direito do Largo So Francisco que aprendi a estudar e amar o Direito. Foi Goffredo Sil- va Telles Jr. meu primeiro mestre, aquele que me formou e se constituiu no meu grande estimulo que depois encontrou em Miguel Reale uma seqiiéncia notdvel. A ambos agradeco pelo que sou hoje. Por fim, uma palavra sobre minha famflia: sem seu apoio, a meu lado ou a distancia, nenhuma obra seria produzida. E aqui também fica o registro do amor, capaz de nos mover e comover a realizagao de coisas sem nos dei- xar dominar por elas: 4 Sonia, minha mulher, agradeco por tudo. Tercio Sampaio Ferraz Junior Prefacio Introdugdo ao estudo do direito : técnica, deciséo, dominagao é um livro de maturidade. Nele Tercio Sampaio Ferraz Jr. retoma, aprofundando e inte- grando, os grandes temas identificadores de sua trajetéria intelectual, inicia- da com a sua tese de doutorado sobre o jusfilésofo Emil Lask, defendida na Universidade de Mainz, na Alemanha, e publicada naquele pais em 1970. O estudo do Direito, como um fendmeno decisério, vinculado ao po- der e a ciéncia jurfdica como uma tecnologia, caracteriza a abordagem deste livro de Tercio Sampaio Ferraz Jr., que nesta empreitada analitica vale-se da dicotomia dogmatica x zetética, concebida por Theodor Viehweg, seu mestre na Universidade de Mainz. ‘A dogmatica — do grego dokéin, ensinar, doutrinar — cumpre uma fun- cao informativa combinada com uma funcio diretiva, ao acentuar o aspecto resposta de uma investigacao. A zetética - do grego zetéin, procurar, inquirir — cumpre uma funcdo informativo-especulativa ao acentuar o aspecto pergun- ta de uma investigagao mantendo, dessa maneira, abertos a dtivida as pre- missas e os principios que ensejam respostas. Essa dicotomia, neste livro, é empregada obedecendo a uma dialética de implicacao e polaridade, como diria Miguel Reale - 0 mestre do Autor na Faculdade de Direito da USP -, gracas a qual se estabelece uma tensio conti- nua entre as respostas do ensinar e as especulagdes do perguntar. E por obra 16 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO do emprego dialético da dicotomia de Viehweg que o Autor consegue algo raro na bibliografia juridica: associa uma informacao operacionalmente util a uma investigacio critica. Neste sentido, esta Introdugdo é modelar porque lida simultaneamen- te com 0 Direito, tanto pelo seu Angulo interno — que é o da praxis juridica — quanto pelo seu Angulo externo - que é o das modalidades por meio das quais 0 Direito se insere na vida social, politica e econémica. Fornece, dessa manei- ra, ao seu leitor ideal - o aluno do primeiro ano do curso juridico -, seja 0 sentido da direcao que Ihe permitiré preparar-se para a vida profissional, seja a informagao especulativa, necessdria para situar-se criticamente diante do seu futuro fazer. Il 0 livro se abre com uma discussdo, no Capitulo 1, sobre a universali- dade do fenémeno juridico, seguido de um estudo sobre as suas transforma- ces histéricas. Neste estudo, o Autor retoma o seu interesse pelo perfil histé- rico do Direito como objeto de conhecimento, num arco que vai do Direito Primitivo ao Positivismo Juridico, passando pela Jurisprudéncia Romana, os glosadores medievais e o Jusnaturalismo. Esta sucinta arqueologia do saber juridico, j4 esbocada em outros trabalhos do Autor (cf. Conceito de sistema no direito. S40 Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, cap. I; A ciéncia do direito. Sao Paulo: Atlas, 1977, cap. Il; Fungdo social da dogmdtica juridica. Sao Pau- lo: Revista dos Tribunais, 1980, cap. I), desemboca no capitulo 3. Ai, o Autor estabelece o seu ponto de partida: é a decidibilidade dos conflitos o proble- ma central da ciéncia do Direito contemporaneo, enquanto uma ciéncia pré- tica. Esta ciéncia pratica é dogmatica porque se baseia no principio da acei- taco sem discussdo dos pontos de partida. A proibicio da negacao dos pon- tos de partida (o dogma) obedece a uma razao técnica: a de permitir a deci- sdo com base no Direito, que nao pode ser posto em questo sob pena de nao se alcancar, numa sociedade, a decidibilidade juridica dos conflitos. E por esse motivo que no ensino do Direito é de fundamental importancia o estudo da dogmdtica juridica, cuja fungao o Autor examinou na grande tese com a qual alcangou a titularidade na Faculdade de Direito da USP, cujos pontos principais so aqui retomados. A ciéncia dogmatica do Direito, embora dependa do principio da ine- gabilidade dos pontos de partida — 0 Direito Positivo posto e positivado pelo poder -, nao se reduz a este principio, pois néo trabalha com certezas, mas sim com as incertezas dos conflitos na vida social. E para lidar com estas in- certezas que, no Ambito da ciéncia do Direito, enquanto ciéncia pratica, fo- ram elaborados trés grandes tipos de dogmatica: a dogmdtica analitica, a dog- PREFACIO mdtica hermenéutica, a dogmdtica da decisdo. Estas trés dogmaticas, 0 Autor j4 havia indicativamente caracterizado em A fungdo social da dogmdtica juri- dica (cap. III), e muito especialmente em A ciéncia do direito (caps. IV, Ve VD, mas a elas da, neste livro, um tratamento exaustivo e original. E, na ver- dade, ao estudo operacional e critico dessas trés dogmaticas que Tercio Sam- paio Ferraz Jr. dedica a maior parte desta Introdugdo. Til A dogmatica analitica tem como tarefa basica a imprescindfvel identi- ficaco do que é Direito face A continua mudanga das normas nos sistemas juridicos contempordneos. De fato é esta identificagio que estabelece o ponto de partida para a decidibilidade dos conflitos por meio da técnica do Direito. A dogmatica analitica encarna a ciéncia do Direito vista na perspectiva da norma e de sua insercdo no ordenamento, tendo na validade a sua grande ca- tegoria. © Autor examina a dogmatica analitica com muito rigor, valendo-se da teoria da linguagem - em cujo emprego no estudo do Direito é ele, entre nés, um dos mais destacados expoentes. E assim que estuda com muita origi- nalidade os diversos tipos de normas juridicas e a sua sistematizagao, numa perspectiva estatica, pela dogmatica analitica estrutural, iluminando 0 alcan- ce e os limites de grandes dicotomias da epistemologia juridica, como Direito Objetivo/Direito Subjetivo; Direito Publico/Direito Privado; Direitos Pes- soais/Direitos Reais. A seguir, o Autor examina o Direito como um sistema dinamico, em permanente mudanga nas sociedades contempordneas, tratando dos proble- mas da insercéio das normas dentro do ordenamento. E dessa maneira que cuida da revogacao, da caducidade das normas, da consisténcia das normas num ordenamento (antinomias, nulidade, anulabilidade), da inteireza do or- denamento (lacunas), das fontes do Direito e de sua hierarquia (Constitui- Go, leis, regulamentos, cédigos, tratados, costumes, jurisprudéncia, negécio juridico). A identificagao do que é Direito, e como este se diferencia do nao-Di- reito, pela dogmatica analitica, que neste processo isola o juridico num siste- ma fechado, deixa em aberto o problema de como 0 Direito identificado sera entendido. E por essa razdo que na seqiiéncia dessa Introdugao o Autor se de- dica ao estudo da dogmdtica hermenéutica. Esta tem como objeto a tarefa de entender o Direito identificado, para assim poder decidir, cumprindo o prin- cfpio da proibigao do non liquet, isto é, o cardter compulsério da decisio que a dogmatica jur{dica impée ao juiz. A dogmatica hermenéutica é a ciéncia do Direito encarada na perspectiva da teoria da interpretacao. 17 18 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO A interpretacao pede a decodificagao e esta requer o conhecimento das regras sintdticas, que controlam as combinatérias possiveis das normas entre si; das regras semdnticas de conotagao e denotaciio das normas em rela- co ao objeto normado e das regras pragmdticas das normas em relagdo as suas funcGes. E, portanto, também com base na teoria da linguagem que o Autor retoma um dos grandes problemas da interpretagao do Direito, que é 0 de buscar o entendimento do Direito ou no subjetivismo da vontade do legis- lador (como proposto pela “jurisprudéncia dos conceitos” na Alemanha ou na Escola da Exegese na Franca) ou no objetivismo da vontade da lei (como pro- posto pela “jurisprudéncia dos interesses”). Nao existe um critério unfvoco da boa e correta interpretacdo, assim como nAo existe um critério univoco da boa e correta tradugéo, como mostra o Autor ao estabelecer uma brilhante analogia entre a interpretagao e a tra- duco. O critério da boa e correta interpretagao, assim como o da boa e cor- reta tradugdo, repousa na aceitacdo do enfoque do intérprete ou do tradutor. No caso do Direito, a uniformizacio do sentido do juridico, pela interpreta- cdo, tem a ver com o poder da violéncia simbélica, que, se apoiando na auto- ridade, na lideranca e na reputacio, privilegia um enfoque, entre muitos en- foques possiveis, que passa a ser 0 uso competentemente consagrado de uma escolha socialmente prevalecente. A interpretagao juridica pode ser especificadora, restritiva e extensiva. A elas se chega através dos métodos hermenéuticos da interpretagdo grama- tical, légica e sistemética; da histérica, socioldgica e evolutiva; e da teleoldgi- ca e axiolégica. Estes consagrados métodos da dogmatica hermenéutica cons- tituem um repertério de regras técnicas para encaminhar os problemas de ordem sintdtica, semantica e pragmatica da interpretagao das normas. A pre- valéncia de um enfoque e o alcance maior ou menor da interpretacdo repre- sentam uma escolha que visa encaminhar a decisao, “domesticando” as nor- mas. Daf, como observa o Autor, a astticia da razao dogmatica, que nao elimina as contradicdes da vida social, mas torna os conflitos delas resultan- tes passiveis de deciséo em termos jurfdicos. A identificagao do Direito pela dogmatica analitica e os modos pelos quais 0 Direito identificado pode vir a ser entendido, por obra da dogmatica hermenéutica, criam as condicées para a decisao. Ambas, no entanto, nao tém como objeto privilegiado a prépria decisio — uma tarefa importante, pois, diante das sempre possiveis interpretac6es divergentes da norma identi- ficada como juridica, é preciso investigar como se obtém a decisao prevale- cente. Dai, na seqiiéncia desta Introdugdo, 0 estudo pelo Autor da dogmdtica da deciséo ou teoria dogmatica da argumentagao juridica. saber juridico explicitamente articulado é mais rico em matéria de dogmatica analitica e dogmdtica hermenéutica do que em matéria de dogma- tica da deciséo. Esta tem merecido, no entanto, nos tiltimos anos, atengao PREFACIO te6rica. E 0 caso da reflexao de Viehweg, de Perelman e, no campo do Direi- to Internacional Puiblico, da de Myres McDougal. A ela Tercio Sampaio Fer- raz Jr. dedicou a sua pioneira tese de livre-docéncia: Direito, retérica e comu- nicagdo, S40 Paulo: Saraiva, 1973, e o seu instigante livro: Teoria da norma juridica, Rio de Janeiro: Forense, 1978. A decisao estd ligada aos processos deliberativos que levam a aplica- cdo do Direito. A aplicagao exige o poder para decidir um conflito, isto é, a capacidade de lhes por um fim, nao no sentido de elimind-los, mas no de im- pedir a sua continuagao. Este poder, na acepgao de dominacio, no estudo do Direito, vé-se “domesticado” pela justificagdo da decisio, por meio da argu- mentacio jurfdica. Dela cuida o Autor, privilegiando a dimensao pragmatica do discurso juridico, que é o que tem como objeto a preocupa¢ao com o com- portamento e convencimento dos destinatdrios do discurso juridico, uma vez que a regra suprema do discurso decisdrio juridico, no Direito contempora- neo, é a de responder por aquilo que se fala ou afirma. IV Hannah Arendt, cuja reflexio também permeia esta Introdugdo, subli- nha a importancia epistemoldgica da distingo kantiana entre o “pensar da razao” (Vernunft) e o “conhecer do intelecto” (Verstand). Este edifica o siste- ma dos conhecimentos que, por meio da técnica, transforma a sociedade e cria o meio no qual o homem vive. Aquele critica e abrange o saber do co- nhecer, pensando o global e buscando o seu significado. Esta Introdugdo — cuja estrutura e linhas principais foram sucintamen- te sumariadas — é uma importante contribuicao, tanto operacional quanto critica, do conhecimento juridico. Cumpre, assim, 0 seu objetivo explicito, que é 0 do exame da ciéncia juridica como uma tecnologia. Ao escrevé-la, no entanto, o Autor sentiu a necessidade de pensar o significado deste conheci- mento e das conclusées a que chegou. E por esse motivo que arremata o seu livro tratando da moralidade do Direito e apontando — kantianamente, diga-se de passagem — que a justica é 0 principio regulativo do Direito. Também pelo mesmo motivo, inseriu como pértico de seu trabalho uma importante introdugio, que é um esforgo de pensar o seu conhecer. Nela, inspirado pela ligéo e pelo chamamento de Goffredo Silva Telles Jr. - seu outro mestre na Faculdade de Direito da USP, a quem teve a honra de suceder na condicao de professor titular de Introdu- Gao ao Estudo do Direito -, indaga sobre o mistério do Direito enquanto prin- cfpio e fim da sociabilidade humana. A Introdugdo de Tercio Sampaio Ferraz Jr. ao seu livro Introdugdo ao estudo do direito esboga, na linha das categorias arendtianas, a conversao do 19 20 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO Direito no mundo contemporaneo em objeto de consumo, enquanto um re- sultado do labor que se desgasta no metabolismo da vida. Deixa inquieto ao nosso Autor a instrumentalizagao crescente do Di- reito, que assegura ao juridico, enquanto objeto de consumo, uma enorme disponibilidade de contetidos. De fato, a contrapartida desta plasticidade operacional, que ele examina com superior criatividade no corpo de seu tra- balho, é a caréncia tanto da clara virtude do justo, imanente a agdo, quanto da durabilidade da construgao, que caracteriza o trabalho do homo faber. Ora, Tercio Sampaio Ferraz Jr. sabe que, sem um interesse profundo pelo dominio técnico do Direito, a reflex4o juridica se perde numa fantasia inconseqiiente. Por isso, nos brindou com este grande livro, que é, como dis- se, uma obra de maturidade. Mas ele também tem a nftida consciéncia de que sem a paix4o e o amor pelo Direito — como ensina Goffredo Telles Jr. — 0 seu estudo perde o sentido legitimador de uma pratica virtuosa. Dizia Guimaraes Rosa que “Vivendo, se aprende; mas 0 que se apren- de, mais, é s6 a fazer outras maiores perguntas”. Creio assim que este livro, pela sua introducdo e pelo seu ultimo capitulo, representa igualmente na tra- jetoria do Autor o inicio de uma nova etapa: a etapa das “maiores perguntas” que a sua prépria maturidade intelectual est4-lhe colocando. Seja-me permitido concluir com uma nota pessoal. A amizade, como ensina Aristételes, 6 uma relacdo privilegiada entre duas pessoas, baseada na confianca e na igualdade de estima reciproca. A amizade que me liga a Ter- cio Sampaio Ferraz Jr. teve inicio quando nos conhecemos, em 1960, no pri- meiro ano da Faculdade de Direito do Largo Sao Francisco. Desde aquela época, o mistério do Direito foi um dos temas bdsicos do nosso ininterrupto didlogo. E, portanto, com especial prazer que dou neste prefacio, como seu amigo e interlocutor de tantos anos, o testemunho publico da importancia, da originalidade e da relevancia de sua Introdugdo ao estudo do direito. Sao Paulo, dezembro de 1987. Celso Lafer Introducao O direito é um dos fenémenos mais notaveis na vida humana. Com- preendé-lo é compreender uma parte de nés mesmos. E saber em parte por que obedecemos, por que mandamos, por que nos indignamos, por que aspi- ramos a mudar em nome de ideais, por que em nome de ideais conservamos as coisas como esto. Ser livre ¢ estar no direito e, no entanto, o direito tam- bém nos oprime e tira-nos a liberdade. Por isso, compreender o direito nao é um empreendimento que se reduz facilmente a conceituacées ldgicas e racio- nalmente sistematizadas. O encontro com o direito é diversificado, as vezes conflitivo e incoerente, As vezes linear e conseqiiente. Estudar o direito é, as- sim, uma atividade dificil, que exige no s6 acuidade, inteligéncia, preparo, mas também encantamento, intuicao, espontaneidade. Para compreendé-lo, é preciso, pois, saber e amar. S6 0 homem que sabe pode ter-lhe o dominio. Mas sé quem o ama é capaz de dominé-lo, rendendo-se a ele. Por tudo isso, o direito é um mistério, o mistério do principio e do Tir da sociabilidade humana. Suas raizes est4o enterradas nesta forga oculta que nos move a sentir remorso quando agimos indignamente e que se apodera de nés quando vemos alguém sofrer uma injustica. Introduzir-se no estudo do direito 6, pois, entronizar-se num mundo fantdstico de piedade e impiedade, de sublimacao e de perversao, pois o direito pode ser sentido como uma pra- tica virtuosa que serve ao bom julgamento, mas também usado como instru- mento para propésitos ocultos ou inconfessdveis. Estudd-lo sem paixdo é como sorver um vinho precioso apenas para saciar a sede. Mas estudd4-lo sem interesse por seu dominio técnico, seus conceitos, seus principios é inebriar-se 22 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO numa fantasia inconseqiiente. Isto exige, pois, preciso e rigor cientifico, mas também abertura para o humano, para a histéria, para o social, numa forma combinada que a sabedoria ocidental, desde os romanos, vem esculpindo como uma obra sempre por acabar. Pode-se perceber, destarte, que um livro de Introdugio ao Estudo do Direito é uma obra complexa, que exige, ao mesmo tempo, o conhecimento técnico do instrumental conceitual do direito, a experiéncia da vida juridica, a intuigdo de suas raizes psiquicas, sociais, econdmicas, culturais, religiosas, a meméria de seus eventos histéricos, tudo trazido numa forma concertante, didaticamente acessivel e pedagogicamente formativa. Corre-se, por isso, sempre, o risco da superficialidade e da incompreensao, pois é preciso ensi- nar a estudar 0 direito, transmitindo um saber obviamente ainda desconheci- do sobre um objeto ainda informe. Ou seja, ha de se ir dizendo as coisas do direito sem poder pressupor que elas j4 sejam conhecidas. Simultaneamente, porém, é impossivel falar sobre 0 direito sem usar os termos que, tecnica- mente, 0 constituem. O estudante deve, assim, ter paciéncia, nao pretender encontrar num livro sé tudo o que necessita. Lembrar-se de que uma Intro- dugéo é apenas uma abertura, que deve levar-nos a ampliar nosso universo e nunca a reduzi-lo a esquemas simplificados. Um livro de Introdugio é, pois, somente um roteiro, nunca uma obra acabada. Como o direito é um fenédmeno multifario, os livros de Introdugao costumam apresentar alguma peculiaridade: embora os temas que neles séo tratados sejam mais ou menos constantes, as formas de abordagem sao dife- rentes. H4 quem enfatize alguns aspectos filos6ficos, insistindo sobre a inser- cdo do direito no universo da justica. H4 quem cuide mais das premissas téc- nicas, dos conceitos bdsicos, das divisées e classificagdes fundamentais da ciéncia juridica. Nosso trabalho procurou enfocar o estudo do direito com base na se- guinte premissa: destinando-se este livro a estudantes de Direito, pareceu- nos oportuno explicar o que ele e como 0 conhece o profissional juridico. Por outro lado, sem perder suas mitiltiplas dimensées histéricas, procuramos focalizar o direto tal como ele se manifesta hoje, no mundo burocratizado das sociedades ocidentais. A percepgdo dessa circunstancia histérica - 0 di- reito nem sempre est4 numa mesma circunstdncia — fez-nos escolher uma forma de abordagem capaz de mostrar uma peculiaridade de nossa época e de fazer-lhe a devida critica: 0 direito como um fenémeno decisério, um ins- trumento de poder, e a ciéncia jurfdica como uma tecnologia. Embora este tema venha a ser abordado diversas vezes em nossa ex- posicao, talvez seja importante, desde j4, esclarecer como o direito adquiriu culturalmente, em nossa civilizagdo, essa caracteristica. Para explicar isso, valemo-nos de algumas consideragées de Hannah Arendt, cuja obra A condi- INTRODUGAO 0 humana, embora nao tenha por tema o direito, permite-nos fecundas in- curs6es sobre a questao. A Antigiiidade distinguia entre a polis e a oikia. Dizia-se que, enquan- to a oikia ou a casa reconhecia o governo de um sé, a polis era composta de muitos governantes. Por isso, Aristételes dizia que todo cidadao pertence a duas ordens de existéncia, pois a polis dé a cada individuo, além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, sua bios-politicds. Era a distingao en- tre a esfera privada e a esfera publica. Essa distingdo sofreu durante os sécu- los modificagées importantes. Sua separacdo que caracteriza a cultura na Antigiiidade fazia com que a esfera privada se referisse ao reino da necessi- dade e a uma atividade cujo objetivo era atender as exigéncias da condicao animal do homem: alimentar-se, repousar, procriar etc. A necessidade, di- zia-se, coagia o homem e obrigava-o a exercer um tipo de atividade para so- breviver; essa atividade, para usar a terminologia de Hannah Arendt cuja obra estamos expondo e interpretando numa forma livre, chamava-se labor ou labuta. O labor distinguia-se do trabalho. O labor tinha relagao com o pro- cesso ininterrupto de producao de bens de consumo, o alimento, por exem- plo, isto é, aqueles bens que eram integrados no corpo apés sua produgao e que nao tinham permanéncia no mundo. Eram bens que pereciam. A produ- Gio desses bens exigia instrumentos que se confundiam com o préprio corpo: os bracos, as méos ou suas extensées, a faca, o cutelo, o arado. Nesse senti- do, o homem que labuta, o operdrio, podia ser chamado de animal laborans. O lugar do labor era a casa (oikia ou domus) e a disciplina que lhe correspon- dia era a economia (de oiko nomos). A casa era a sede da familia e as rela- des familiares eram baseadas na diferenga: relagéo de comando e de obe- diéncia, donde a idéia do pater familias, do pai, senhor de sua mulher, seus filhos e seus escravos. Isto constitufa a esfera privada. A palavra privado ti- nha aqui o sentido de privus, de ser privado de, daquele ambito em que o ho- mem, submetido as necessidades da natureza, buscava sua utilidade no senti- do de meios de sobrevivéncia. Nesse espago, nao havia liberdade, da qual se estava privado, em termos de participacéo num autogoverno comum, pois to- dos, inclusive o senhor, estavam sob a coacao da necessidade. Liberar-se des- sa condigao era privilégio de alguns, os cidadaos ou cives. O cidad&o exercia sua atividade prépria em outro 4mbito, a polis ou civitas, que constitufa a esfera publica. Ai ele encontrava-se entre seus iguais, e era livre sua atividade. Esta se chamava acao. A acao compartilhava de uma das caracterfsticas do labor, sua fugacidade e futilidade, posto que era um continuo sem finalidade preconcebida. Todavia, a diferenca do labor, a ago significava a dignificagdo do homem. Igual entre iguais, 0 homem ao agir exercitava sua atividade em conjunto com os outros homens, igualmente cidaddos. Seu terreno era o do encontro dos homens livres que se governam. Daf a idéia de aco politica, dominada pela palavra, pelo discurso, pela busca 23 24 INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO dos critérios do bem governar. O homem que age é 0 politikon zoon, o animal politico. A acio caracterizava-se em primeiro lugar por sua ilimitaco. Como se tratava de atividade espontanea, como toda aco era concebida como cria- cdo de um fluxo de relagées politicas, nfo havia como prever a ago. Agir, di- zia-se, é iniciar continuamente relagées. Por isso, além da ilimitag&o, a acao era imprevisivel, nao podendo suas conseqiiéncias ser determinadas logica- mente de antemio. Isto explicava a inerente instabilidade dos negécios hu- manos, das coisas da politica de modo geral, cuja tinica estabilidade possivel era aquela que decorria da propria agao, de uma espécie de virtude, como, por exemplo, o equilibrio e a moderacdo prépria da prudéncia. Dai a necessi- dade da ars e da techné, Para que essa estabilidade pudesse ser alcangada, porém, eram necessérias certas condi¢ées: as fronteiras territoriais para a ci- dade, as leis para 0 comportamento, a cerca para a propriedade, que eram consideradas limites a acéio, embora sua estabilidade nao decorresse desses limites. Em outras palavras, a polis ndo era propriamente um limite fisico e normativo, mas um conjunto fugaz de acdes. Contudo, para que a polis, en- quanto teia de relacdes, surgisse, era nao sé necessdria a delimitacdo fisica da cidade, que era trabalho do arquiteto, mas também a legislagao, que era trabalho do legislador, considerado uma espécie de construtor da estrutura da cidade. Ora, o trabalho, ao contrdrio do labor e da acio, era uma ativida- de humana considerada como nfo futil, sendo dominada pela relagéo meio/fim. O trabalho era uma atividade com termo previsivel: 0 produto ou o bem de uso. O produto, ao contrdrio do resultado do labor, 0 objeto de consumo, nao se confunde com o produtor, pois dele se destaca, adquirindo permanéncia no mundo. O trabalho tem em si, portanto, a nota da violéncia, pois é uma atividade que transforma a natureza, ao domind-la: da drvore que se corta faz-se a mesa. Assim, na Antigiiidade, pode-se dizer: a legislacio enquanto trabalho do legislador nao se confundia com o direito enquanto resultado da acao. Em outras palavras, havia diferenga entre lex e jus na proporc’o da diferenga en- tre trabalho e agdo. Desse modo, o que condicionava o jus era a lex, mas 0 que conferia estabilidade ao jus era algo imanente a aco: a virtude do justo, a justica. A partir da Era Moderna, assistimos A ocorréncia de progressiva per- da do sentido antigo de agio, que cada vez mais se confunde com o de traba- Iho; ou seja, a velha noc4o de acdo vinculada a virtude passa a identificar-se com a moderna nogdo de acao como atividade finalista, portanto préxima ao que a Antigiiidade chamava de trabalho. Desse modo, a acdo tornada um fa- zer, portanto entendida como um processo que parte de meios para atingir fins, assistiré a uma correspondente redugao progressiva do jus a lex, do di- reito 4 norma. O fabricar dos antigos, isto é, o trabalho, era, porém, um do- minio sobre coisas, nao sobre homens. Transportado o fabricar para o mundo

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