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Cornelius Castoriadis A INSTITUICAO IMAGINARIA DA SOCIEDADE 62 EDICAO 0.531 C354 6.ed. PAZE TERRA “A Instituigdo Imaginaria da Socie- dade” nao contém apenas a pro- posta de uma nova visio “tedrica” do social, como o titulo parece sugerir, A sociedade é de fato o objeto central da investigagdo e tal como ocorre, por exemplo, em Marx, trata-se de saber o que é cncialmente a sociedade, o que 6 que a constitui fundamentalmente. Mas esta tentativa de concepcio do | 6 inseparavel de uma postura critica, Toda a primeira parte do livro — “Marxismo e teoria revolu- cionaria” — é, com efeito, um ba- Jango critico minucioso e muitas veres impiedoso do marxismo. E esta critica, por sua vez, é insepa- ravel de uma contestagdo radical da nogio de “teoria” e da visio do saber que caracterizariam, segundo © autor, toda a tradigéo filoséfica ocidental. O| préprio titulo indica também, muito claramente, a origi- nalidade © a especificidade desta proposta: a sociedade, de acordo com © autor, seria o produto de una instituigio imagindria. Presenga no minimo insdlita do termo, Como assim? A imaginagao. colocada como principio fundador? Como deixarmos de nos espantar com esta ousada promogao de uma faculdade de mé-fama, muito mal vinta ao longo de toda a histéria da filosofia, ovelha-negra ou filha bas- tarda olhada quase universalmente como mé-companhia para as ou- tras fuculdades através de cujo exercicio perfar-se-ia 0 rigor cienti- feo? A vida social na complexidade dis suas instituigdes, do seu intrin- cado tecido de relagdes, com a muterialidade das suas técnicas e wraticay variadas, suas miltiplas formas culturais, ete... tudo isto vooultiria de uma fantasia arbitrd- ria? A vida é sonho,,. O homem cam CORNELIUS CASTORIADIS A INSTITUICAO IMAGINARIA DA SOCIEDADE Tradugfio de Guy Reynaud Revisdo técnica - Luis Roberto Salinas Fortes 5* EDIGAO PAZ E TERRA ©) Eaitions du Seuil, 1975 Traduzide do original em frencSs £Tnstitution imaginaire de da Sockets Capa Facob Levitineas CIP-Brasil, Catalogayo-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Castoriadis, Cornelis. cua ‘A Instituigao imagindria da sociedade / Cornelius Casto- Hiadis; traduelo de Guy Reynaud; revisiio teenies de Larix Ro- borto Salinas Fortes. - Rin de Janeiro: Paz e Terta. 1982. (Colegia Rumos da cultura moderna; ¥, 52) ‘Tradugdo de: L'imstituion imaginaire de la sociesé 1, Filosofia grega 1, Titulo I. Série CDD - 199.495 CDU - | Comelius, C. Diteltos adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA S/A. Rua do Triunfo, 177 01212 - Sdo Paula, SP ‘Tel, (O11) 223-6522 que se reserva 8 propriedade desta tradugiia. 2000 Impresso no Brasil/Printed In Brazit 2. A teoria marista da histéria 3. A Filosofia marx 4, Os dais elementos do marxismo ¢ seu destino SUMARIO Prefasio .. Il. MARXISMO E TEORIA REVOLUCIONARIA | - 0 MARXISMO: BALANCO PROVISORIO .. L. A situagdo histérica do marxismo ©°3 noche de ortedoxin Determinisme ecnndmico ¢ juta de classe Sujeito ¢ objeto do conhecimento histarico ‘Observagdes adicionais sebre a teoria marxists da histéria .. © tacionalismo objetivista O determinismo .- © encadeamento das significagdes ¢ a “astiela | da razio” .. +11 38 A dialética c o “materi istorico . * fundamento Mloséti da decadéncia = 4 I, TEORIA E PROJETO REVOLUCIONARIO: ........,,, 89 |. Praxis © projeto ,.., Saber e fazcr A Praxis © projeto . a Raizes do projeto revoluciondrio AS ralzes sociais da projeto revolucionirie Revolugiio © racionalizagha Revalugao ¢ totalidade social Raizes subjetivas do projeto rei Légica do projeto revolucionario ...., . Autonomia ¢ alienagio ......,,, Sentide da autonomia - Q individua . Dimensio social da autonomia ,.. A heteronom: fendmeno sacial © “comunismo” I, A INSTITUICAG E © IMAGINARIO. PRIMEIRA ABORDAGEM A instituigSo: a visio econdami A instituigio © 0 simbélico O simbélico © 0 imi vio. A alienagio © o imaginario As significagdes imaginarias 5 Papel das significagSes imagingrias © imaginario no mundo moderno . Imagindcio ¢ racional Il. O IMAGINARIO SOCIAL F A INSTITUIGAQ. MN IV. O SOCIAL-HISTORICO |, ‘Os tipes possivcis de respostas tradicionaig ... 4 sociedade cos esquemas da coexisténcia | A histéris © os esquemas da sucess A instituiedo Moséfica do tempo . Tempo e criagdo ,,.., A instituigao s Indistingio do social e do. histarico, bstrages da sincronia e da diacronia VA INSTITUICAO SOCIAL-HISTORICA: “LEGEIN” E“TEUKHEIN” A légica identitatia © os conjuntos A instituigda social dos conjuntos A sustentacio da saciedade na natureza O tegein © a linguagem como cédiga , Aspectos do fegetn . ay Legein, determinidade, entendimento Aspectos do tewkhein ,. Historicidade do legein e do teukhein VI. A INSTITUICAG SOCIAL-HISTORICA: OINDIVIDUO E 4 corsa . O modo de ser do inconsciente ...... A questéo da origem da tepresentagiio A reblidade psiquica 0.00000... O niicleo monadico do sujeita originaria | A rupture da ménada © a fase tridi A constituigio da realidade A sublimagdo ea 5 aclo da psiqué . Q contetda social-histéries da sublimagio Q individuo ¢ a apresentagdo em geral .., ‘© preconceito da percepefo e 0 privi Representagdo € pensamente .,. VIL AS SIGNIFICAGOES IMAGINARIAS SOCIAIS ..... - 38S Os magmas eee As significacdes na linguagem As significacées imagindrias saciais ea “reslidade™ vs ignificagdes imaginarias soviais ca instituiggo do mundo © modo de ser das signi sociai Pesisha kes nes Imagindrio radical, sociedade inst: : sociedade instituida Sonpgacrnreenac ll PREFACIO Este livro paderd parecer heterogéneo. De fato & num certo sentido, © algumas explicagSes sobre as circunstdncias de sua composicdo podem ser Utcis ao Icitor. ‘Sua primeira parte é formada pelo texto “Marxismo e teoria revolu- ciondria”, publicado em Sacialisme au Barbarie de abril de 1964 a junho de 1965 '. Este texto era.cm si mesmo a amplificagio intermindvel de uma “Nota sobrea filosofia ea teoria maraistas da historia”, que acompanha- va "O movimento revolucionario sob o capitalisme moderne” ¢ difundi- da aa mesma tempo que este no seto do grupe Socialisme ow Barbarie (primavera de 1959), Quando a publicagio de Socialisme ou Barbarie foi suspensa, a continuagao nao publicada e em grande parte jé redigida de “Marxismo ¢ teoria revoluciondria”, ficou entre meus papeis. Escrita sob pressio dos prazos impostos pela publicagio da revista, esta primeira parte jd ¢ em si no um trabalho feito mas um trabalho se facendo, Contrariando todas as regras de composicao, as paredes da construglo sao exibidas umas apds as outras 4 medida que vao sendo edi- Lo Ne 36 #40. Coma meus oulros textos de Soriatsore ou Murburir publicadas se cole 420 16/18, "Marxismo.e ieoria revalucioniria” é reprodurida aqui sem modifieacie. a nia eros ervos de impressdo, alguns fapaur calam/ ou obscuridades da expressto do atualizar ‘pie, quands necessirio, dag refertncins. Algans aditamentos estiie indicades por colchetes, ‘As chamadas das notas originals xm eom nameros. at das nolas owas com letras. i ficadas, cereadns pelo que resta deandaimes, de montes dearcia epedra, Ge pedagos de vigas ¢ de trolhas sujas, Assumo esta aprescntagio ditada no infeio por fatores “anteriores”, sem dissa fazer uma texe, Deverla oe uma banalidade por todos reconhecida, o fato de que no casa do traba- Iho de reflexio, retirar os andaimes limpar os arredores do edificioa, naa somente em nada contribui para o leitor, mas também Ihe sencial. Ao contrario da obra de arte, aqui no hd edificio terminada ¢ Por terminar; tanto e mais que os resultados, importa ¢ trabalho ds refie, Ado € talvez seja sobretuda isto que um autor pode ofrecer, sc é que cle Pode oferecer alguma coisa. A apresclacio do resultado como totalida- is slstemdtica © burilads, o que na verdade ele nunea €; ou mesmo ds Procéseo de construgio - como ¢ tia freqientemente o ¢asa, pedagdgica mas falociosamente, de tantas obras filoséficas - sob forma de pracesso \ogico ordenado ¢ controlada, a6 reforca na leitor # ilusee nefasta para a fonia, deve o leltor crid-ta em seus proprios auvidos Quando surgiu a possibilidade de uma publicagao do conjunto, pa- sceu-me fora de diivida que a continuagao inédita de “Marxtemo e ten, fig Tevaluciondria" deveria ser retomada e reelaborada. As idéins fd mia, nifestadas ¢ formuladas na parte de "Marxismo ¢ teoria revolucien deen fublicads em 1964-1965 — da histéria como criaglo ex allio, da socieds- ide instituime © da sociedade instituida, de imaginario social, da eon Gio da sociedade como sua prépria abra, do social-histdrico camo modo dec ser mall comhecido pelo pensamento herdada ~ nesse mec tempo se nas, da filosofia tradicional, refargaram em tim sta Gonvicgia do mesmo tempe em que mostravum que tudo, ne pene mente hercado, se ligava no seu conjunto ese mantinha ligada com © te pensamento, produtos de um esforgo de trés mil anos de tantos gtnios incompardveis, mas também — esta é uma das idéias centrais deste livro — aneira de ser, que alevaram a ocultar aquilo anf Wa Parece ser o essencial, [ssa ndioé vidvel em um livro e nem mesmo om vérios. Seria necessdrio, portant, eliminar ou referir alusivamente questées, a meu ver, tao importantes quanto aquelas discutidas na segun- 12 da parte desta obra: em especial, as que dizem respeito & instituig&o ¢ fun- Gionamento da sociedade institulda, & divisdo da sociedade, & universali. dade ¢ unidade da histdria, & prépria possibilidade de uma elucidacio do social-histérico como a que se tenta aqui, 4 pertingncia e As implicagdes politicas deste trabalho. Do mesmo moda, o- aspecto propriamente filo- séfica da questa do imagindrio © da imaginacto foi reservado para uma obra, © Elemento Imagindrio, que ser4 publicada dentra em breve. Neste sentido, também a segunda parte deste liveo nda é um edificio terminado. ‘Tentar substituir aquia discussio destas questdes por algumas frases ou pardgrafos seria risivel. Gostaria de chamar a atengdo do leitor para um Unico pento, a fim de evitar mal-entendidos, Aquilo que, = partir de 1964, denominei o imagindrio social - terma retomada depois c utilizada um pause 4 torte ea dircito = ¢, mais genericamente, o que denomine a imaginario, neds tem a ver com as representagdes que circulam corrente- mente sob este titulo. Em particular, isso nada tem a ver com oque algu- mas correntes psicanaliticas epresentam como “imagindrio"; o “especu- Jar”, que, evidenterente, & apenas imagem de e imagem refletida, ou seja, reflexa, ou, em outras palavras ainda, subproduto da ontologia platanica {eidoton), ainda que os que utilize o termo ignorem sua origem, O ima- Binario no éa partir da imagem no espelho ou no alhar do outro. O pra- prio “espelho”, ¢ sua possibilidade, e 9 outre como. espelho sfo antes ‘obras do imaginirio que é criagdo ex niftdo. Aqueles que falam de “ima. gindriot compresndendo por isso o “especular”, o reflexo ou o “fictt. cio", apenes repetem, © muito freqientemente sem o saberem, 2 afirma. S4o qué os prendeu para sempre 2 um subsolo qualquer da famasa cavers na: € necessiirio que (este mundo) seja imagem de alguma coisa. O imagi- nirio de que falo nao ¢ imagem de, £ criagdo incessante e cssencialmente indeterminada (social-histérica e psiquica) de figuras/formas imagens, a partir das quals somente & possivel falar-se de “‘alguma coisa". Aquilo que denominamos "realidade" © “racionalidade”” sao seus produtos. Esta mesma iddéia, de imagem de, & a que sempre sustentou a teoria como olhar inspeccionando aquilo que € O que tento fazer aqui nfo uma teoria da sociedade ¢ da histéria, no- herdado do terme teo- tia, E uma elucidagdo esta elucidago, ainda que apresente inevitavel mente uma aparéncia abstrata, ¢ indissocidvel de uma finalidade cde um Projecto politicos, Mais da que em qualquer outra dominio, a idéia de too. rin pura ¢ aqui flegte incocrente, Nao existem lugar e ponto de vista exe rior a histéna ed sociedade, ou “logicamente anterior" a estas, onde nos pudéssemos situar para fazer sua teoria — inspecciond-Ias, contempla-las, afirmar a necessidade determinada de seu ser-assim, “constitui-las", re. fesionar ou reficti-las em sua totalidade. Todo pensamenta da sociedade eda historia pertence em si mesmo a sociedade © A histéria, Todo pensa- mento, qualquer que seja cle ¢ qualquer que seja seu “objeto", apenas um modo ¢ uma forma do fazer social-histérico, Pode ignorarse como tal -¢€ 0 que Ihe acontece mais freqiientemente por necessidade. nr we. sim dizer, interna. E.o fato de conhecer-se como tal ndo o faz sain de seu modo de ser, some dimensia do fazer social-histérico. Mas pode permi- tir-the sex Iicido a respeito de si mesmo. O que denomine clusidagio 6a trabalho pelo qual os homens tentam pensar o que fazem e saber o que pensam. Também isso ¢ uma riage social-histdrica. A divisiio aristotéli- bs thearia, praxis. porésls ¢ derivada secundiria. A historia & esse meate potési, e ado poesia imitativa, mas criagdo ¢ génese ontologies no pelo fazer eo representar/dizer dos homens. Este fazer ¢ este represen tar/dizer se instituen também histaricamente, a partir de um momento, como fazer pensante ou pensamento sc fazende, Este fazer pensante é assim por exceléncia quando se trata do pensa- mento politico c da elucidagao do social-historico que ele implica. Du- tante muito tempo a tlusde da iheoria excobriu este fato. Mais um par- fisidio € ainda aqui inevitdvel, 0 mal comegou quando Herdelito ousou (ier: Escutando nao a mim, mas ao /ogas, acreditem que... Sem divids ‘que era preciso lutar tanto contra & autoridade pessoal, como contra a Cinples Opinii, o arbitririo incacrente, 2 recusa de dar aos outros justi- ficapies e cazdes para aquilo que se diz ~ logon didonaf. Mas nao déem ouvidos a Herdclito, Esta humildade ndo ¢ sendo 0 cimulo da arrogan- cia, NEo € nunca o Jogos que escutam; é sempre alguémi, tal como é, de 1d onde estd, que fala com seus riscos © perigos, mas também com os de vo- cém E nguilo que, na “‘tedrico pura” pode ser colacada come postulado heeessdrio de responsabilidade ¢ de controle de seu dizer, tornou-se, ne~ cessariamente, 10s pensadares politices, um encobrimento filosdfico par detras do qual eles falam ~ eles falam. Eles falam-em nome do ser e do ei- dos do homem eda cidade - como Platic; eles falam em nome das Ieis da histéria ou do proletariade = como Mars. Eles querem resguardar o que td a dizer — que pode ser, ¢ certamente o foi, infinitamente importante ~ como set, a natureza, & ta2ilo, a histéria, os interesses de uma classe “sm nome da qual” eles sc exprimiriam. Mas ninguém falou jamais em nome’ de ninguém — salvo quando expressamente constitulde como mandatd- Ho, Os outros podem, no maximo, reconhecer-se naquilo que ele diz— ainda isso nada “prova™, porque o que ¢ dita pode induzir, eas vezes in- dug, um “reconhecimento”” do qual nada permite afirmar que teria existi- do sem este discurso, nem que saja suficiente para validd-lo. MilhOes de slemies “se reconheceram” no discurso de Hitler; milhGes de “comunts- tas”, no de Stalin. 0 polltico eo pensador polities proferem um discurso sob sua pré- prin responsabilidade, Tss0 nfo signifies que este discurso seja incontra- fivel - cle invoca o controle de todos; nem significa que seja simplesmen- ie "arbitrario” — seo for, ninguém o escutar’. Mas 0 politico ndo pode propor, preferir, projetar invocando uma “teoria” pretensamente rigoto- ia -nemse apresentando como porta-voz de uma categoria determinada 14 Nio existe teoria rigorosamente rigorosa em matemdtica: como poderia ‘existir em politica? E ninguém ¢ jamais o verdadeiro porta-vor de uma categoria determinada a ndo ser conjunturalmente —¢ ainda due 9 Fosse seri preciso demonstrar que o panto de vista desta categoria vale para todos. 0 que reconduz ao problema precedente. Nao se deve escutir ON politico que fala emi nome de...2 2 partir do moment@ cm que pronunciot cstas palavras, cle cngana ou se engana, pauco importa. Mais do que qualquer cutro, o politico ¢ a pensidar polftico falam em sm propria nome e sob sua propria responsabilidade, O que 6, evidentemente, 2 Su- prema modéstia. 0 discurte do politico ¢ seu projeto, sto publicamente cantroliveis através de uma infinidade de aspectos, E facil imaginar, © mesm exibir, cxemplos histdricos, de pseudogrojetos incoerentes. Mas nfo éemseu cree central, se este nicleo vale alguma coisa ~ como também nic of p morimento dos homens com o qual cle deve se encontrar sob pena de fade ser. Parque um e outro e sua juncdo colocam, criam, instituem "o- vas formas, nfo somente de inteligibilidade, mas do fazer, do representar, Yo valer social-histOrico - formas que ndo se deixam simplesmente disc tr ¢ ovallara partir de critérios anteriores da razdo instituida. Um ¢ ov tro ¢ aula juncdo so apenas camo momentos ¢ formas do fazer instituin- te, da aulocriagdo da soctedade, Dezembro 1974 1s 4 SRBAABBRARARE ERA Rea PRIMERA PARTE MARXISMO E TEORTA REVOLUCIONARIA I. O MARXISMO: BALANGO PROVISORIO: 1. A SITUACAO HISTORICA DO MARXISMO: EA NOCAO DE ORTODONIA O encontro com o marxismo ¢ imediato ¢ inevitével para quem 5¢ preocupa com 2 questda da saciedade. Até mesmo falar de encontro nes- te caco ¢ abusiva, na medida em que esta palavra indica um acontecimen- to contingente c exterior, Deixando de ser uma teoria particular ou um programa politico professado por alguns, o marxisina impregnow a guagem, as idéas ¢ a realidade ao ponto de ter-se tornado parte da mosfers que respiramas vinda ac mundo social, da paisagem histrics que fixa os limites de nossa idas © vindas, ‘Mas, exatamente por esta razao, falar do marxismo tornou-se um dos mais diffcels empreendimentos. Em primeiro lugar, estamos implica- dos de mil manciras naquilo que esta em questio. E este marxismo, 20 8 “realizar”, tornow-se incompresnsivel. Na verdade, de qual marxismo dever-s falar? Do de Khrowchichev, de Mao Tsé-tung, de Togliatti. de Thorez? Do de Castro, dos iugoslaves, dos revisionistas poloneses? Ou. ‘entio dos trotskistas (e ainda aqui a geografia retoma seus direitos: trots kistas franceses e ingleses, dos Estados Unidos ¢ da América Latina sedi laceram ¢ se dhnwiciain reciprocamente), dos bordiguietas, de tal ow qual grupo de extrema esquerda que acusa todos os outros de trair o esplrito do “verdadeiro” marxismo que sé ele possuiria? Nao existe somente 0 abisma que separa og marxismos oliciuis ¢ os marxismos de opasi¢ao. Ha ia ainda a enorme multiplicidade de variantes, cada uma das quais a cola. car-s¢ Como excluinde todas as outras. _Nenhum critério simples permite reduzir esta complexidade loga de infelo. Evidentemente no ha nenhuma Prova dos fatos que fale por si mesma, jd Que tanto o governante quanto o reso politico encontram-se om situagées sociais particulares, que como tais nao confererm echoes Brivilégio a suas percenedes ¢, ao contrario, tornam indispensdvel uma is para nds da que 2 auréola da oposicdo irtedutivel, eé 0 que nos prolbe de esquecer a suspeita que pesa tanta sobre os paderes instituios, como sobre as oposigdes que permenecem, indefinidamente 4 margem do teal histérico. A solueda nao pode tumpouco ser um puro e simples “‘retarna a Marx”. que pretenderia ver na evolugdo bistérica das idéias © das priti- ‘cas nos itimos oitenta anas samente uma camada de esedrias dissimu- lando ¢ ¢orpo resplandecente de uma doutrina intacta. Nao se [rata ape- nas de que a prépria doutrina de Marx, como sabermos e como tentare- mos ainds mostrar, esteja longe de possuir a simplicidade sistemalica ¢ soerEnci: que alguns querem atribuir-the. Nem que um tal retorne pos- sua forgosamente um cardter académico —j4 que s6 poderia, na melhor hipdtese, restabelecer corretamente o contéldo tedrico de uma doutrina do passada, coma poderia ser feito om relagda 4 Descartes ou aS Tomas de Aquino, ¢ deixaria intciramente nas sombras.o problema mais funda. mental. a saber a importinela ¢ a significacko do marxismo para nds & Para a histOrla contemporanea. O retarno a Marx é impossivel porque, sob pretexto de fidelidude a Marx ¢ para realizar esta fidelidade, cle co. meca violando os principios essenclais colocades pela préprio Marx. Em verdade, Marx foi o primeiro a mostrar que @ significagio de Hina teorin ndo pode ser compreendida independentemente da pritica histérica © social 4 qual ela corresponde, na qual ela se prolanga pu que serve para encabrir, Quem ousaria pretender hoje em dia que o verdadel, to # iinico sentido do eristianismo ¢ aquele que restitui uma leituca dep: tada dos Evangelhos, ¢ que a reilidade social e a prética histériea done vezes milenar das [grejas e da cristandade nada podem nos ensinar de es sencial a seu respeito? Nia menos risivel 6 a “fidelidade a Marx" que co. loca cntre paréntesis o destino histérico do marxisma, Ela é até pior, por- Que para um ctistao a revelacto do Evangelho tem um fundamento trans Sendente © uma verdade intemperal, que nenhuina teoria poderia possuiy aos olbos de um marxista. Querer encontrar o sentide do marxismo ex. clusivamente mo que Mars cscreveu, ignorando aquilo que se lornou 4 doutrina na histéria, é pretender, em contradigdo direta com as idéjas sentrais desta doutrina, que a histéria real no importa, que a verdade de uma teorla estejs sempre ¢ exclusivamente “no além”. e, finalmente, substituir a revolucda pela revelagda ea reflexza sobre o7 fatos pela exe- Bese dos textos, 20 56 isso ja seria suficientemente grave. Mas ainda hi mais, porque a exigéncia da confrontagdo com a realidade histérica ' est explicitamente inserita na obra de Mars c ligada a seu sentido mais profundo. O marxis- mo de Marx ndo queria ¢ nem podin ser uma teoria como as outras, ne- gligenciando seu enraizamento e sua ressondncia historica, NAo se tyate, va mais de “interpretar, mas de transformar.o mundo" ?, ¢ 0 leno senti- do da teoria é segundo 4 prépria teoria o que transparece na pratica que nela se inspira, Os que dizem, acreditando em dltima instincia, “descul Par" 4 teoria marzista: menhuma das prdticas histéricas que invocam o marxismo se inspira “verdadeiramente” nele —os mesmos que dizem isso “condenam” 0 marrismo. coma “simples teoria” e formulam sobre ele pin Julgamento itrevogavel, Seria mesmo literalmente 0 juiza final — pois Marx assumia inteiramente a grande idéja de Hegel: Weligeschichie ist Weltgericht *, e De fato, se a pritica inspirada no marxismo foi efetivamente revolu- sionaria, durante certas fases da histéria moderna, ela também fo! exata- meale @ contraria durante outros periodos, E se esses dois fendmenos ne- cesgitam interpretagio (n4s voltaremos a isto), subsiste que eles indicam, indubitavel, a ambigtidade essencial que era a do marxisma. Subsiste tambem, ¢ isto & ainda mais importante, que tanto na historia como na politica, o presente pesa infinitamente mais do que o passado. ‘Ora, este “presente”, ¢ que hd quarenta anos, o marxismo tornou-se uma ideologia no proprio sentido que Marx davaa este termo: um conjunta de idéias que se refere a ura redlidadc, nd0 para esclarecé-la e transformi- la, mas para encobri-la ¢ justificd-la no imagindrio, que permite as pes soas dizerem uma coisa ¢ fazerem outra, apresentarem que nao slo. O marxismo tornou-se primeira ideologia, enquanto dogma oficial: dos poderes instituldes nos palses ditos por antifrase “‘socialistas". Invo- sado por governos que visivelmente no encarnam o poder do proletaria. do ¢ ndo sdo também mais “controlados” por este da que qualquer go- verno burgués; representado por chefes geniais cujos sucessores, igu: mente geniais, chamam de loutos criminosos sem qualquer autra explica- sdo; fundamentando tanto a’politica de Tito como a dos albaneses, a de Khrouchtchev como a de Mao. o markismo tamou-se 0 “complemento solene de justificagio" do qual jd falava Marx, que permite; ao mesmo tempo ensinar obrigatoriamente aos cstudantes L'Ftat et fa Révolution ¢ manter o ‘sparetho de Estado mais opressivo c mais rigido de que se tem 4, Por reulitiade histdrica no eniepdemos avidentemente aconteclisentos.e [ato particar lanes « separados do rexia, mas sim as tendéncias dominantes da evplucia apis todes so ie, terpretagdes necessArias. 2. Mara, décima-primeira tese sobre Feuerbach. 3. "A Blatoria universal ¢ o juizo final" Apesar de sua rersontecia teoldpica, csta & 0 {dis mais radicalmente attis de Heget: no existe transcend2ecis, nda existe recurso contra gue acontere aqui, nGs comas definitivamente aquilo.em que nos tormaros. ayia ere que had tarnaremos, ase esconder por tris di “propriedade noticia *, que ajuda a buroer: coletiva” dos melos de produgi ‘0 marxismo tornou-se ideologia também enquanto doutrina das rias seitas que a degenereseéncia do movimento maraista oficial fez proli- ferar, Para nds e palavra seita nao € um qualificativo, tom um sentide so- clolgico e historico preciso. Um grupo pouco numeroso ndo é necessa- fiamente uma seita; Marx ¢ Engels nfo formavam uma seita mesmo nos momentos em que estiveram mais isolados. Uma seita ¢ um agrupamento que erige em absoluto um s6 Indo, aspecto ou fase do movimento do qual é proveniente, deles faz a verdade da dowtrina ea verdade pura e simples, Sebording-lhes todo © resto e, para manter sua “fidelidade” a este aspecto, separa-se radicalmente da mundo, vivende doravante em “seu" mundo & parte, A invocagdo do marxisme pelas svitas permilte-Ihes pensar-se © apresentar-se como algo distinto do que elas realmente ada, isto @, como bp futuro partido revoluciondrio deste proletariada no qual elas nfo con seguem se enraizar. ‘© marxismo, finalmente, também se transformou em ideologia, em outro sentido bem diferente: que hd decénios nao ¢ mais, mesmo como simples teoria, uma teoria viva e que procuraremos em vao na literatura das Gitimos quarente anos aplicagdes fecundas da teoria, ainda menos tentativas de extensio ¢ aprofundamento. Pode ser que o que dizemos aqui escandalize aqueles que, professan- do “defender Marx”, enierram cada dia um pouco mais seu cadaver sab ‘as eapessas camadas de suas mentitas ou de sua imbecilidade. Ndo nos importamas com isso, E claro que, analisando 0 destino histérico do marxismo, nao “imputamos™ num sentido moral qualquer, a responsabi- lidade a Marx. £ © proprio marxisme, no melhor de seu espirita, na sua dentincia implacivel de frases vazias ¢ de idcologias, na sua exigéncia de autocritica permanente, que nos obriga a examinar scu destino real. E, finalmente, a questdo ultrapassa de muito.o marxismo. Porque assim como-a degenerescéncia da revolugda,russa colaca © problema: ¢ 0 destino de toda revolugio sacialista que ¢ indicado por essa degeneres- céncin, do mesmo modo & necessdrio perguntar: ¢ 0 destino de fada teoria revolucionéria que & indicado pelo destino do marsismo? E esta 2 per- gunta que nos reteri Jongamente na fim deste texto *. Wao € pois possivel tentar manter ou encontrar uma “ortadoxia™ ‘qualquer - nem sob a forma rislvel ¢ ristvelmente conjugada qua Ihe dao a0 mesmo tempo dos pontifices stalinistas ¢ os eremitas sectarios, de wnia doutrina pretensamente intacta © “corrigida”, “melhorada” ou zada” por uns ¢ outros, segunda sua conveniéncia ¢ em relagio a deter- minado ponto especifico, nem sob a forma dramética ultimatista que * Sabemos que a tese central de L’ fiat et fa Revolution & w necessidade de destruir toda aparetho de Estada separado das massad desde © primeira dia da, revolug Ver inva, cap. HE 22 the dava Trotsky em 1940, dizendo mais ou menos: sabemos que © Mar jdamo € uma tearia Imperfeita, ligada a uma determinada époce hisiérica ¢ quea elaboragio tebrica deveria continuar, mas, estado a revaluge nv ordem do dig, ess empreitada pode e deve esperar. Accitivel no dis de insurreigao armada, onde é alids indtl, esse argumento, depois de um quarto de século, serve somente para encobrir a inéccla ¢ a esterilidade que efetivamente caraclerizaram 9 movimento Lrotskista apes & morte de seu fundador. E impossivel, também, tentar manter umit ortodoxia, como fazia Lukacs em 1919, limitando-a a um mésodo marxista, o qual seria separd- vel do conteddo e, por assim dizer, indiferente quanto a este’. Ainda que jf marcando um progress relalivamente as diversas vatiedlades de creti- nism “ortodoxo', esta posigdo é insustentivel, par um motive que Lu- Kass, embora empanturrado de dialética, esqueci#: € que, a nfo ser ton jaando 0 termo em sua scepedo mais superficial, @ método nfo pede ser assim separado do conteddo, ¢ especialmente quando sc trata de uma teorin histdrica ¢ social. O métoda, no sentido filoséfico, & apenas 0 con- junto operante das categorias, Uma dis! ingo rigida entre conteddo & mé- tada somente pode cristir nas formas mais ingénuas do idealismo trans ‘cedeatal ou criticismo que, em seuig ptimeiros pasos, separa e ope uma matéria ou um contedide infinite ¢ Indefinida © categorias que © eterno fluxe do material ndo pode afctar, que so a forma sem a qual este m: rial nao poderia ser captada. Mas esta distingdo rigida ja esta tray da nas fasea mais avangadas, mais dialetizadas do pensamento criticista. Porque imediatamente aparece o problemi: como saber qual categoria corresponds a tal material? Seo material traz em si mesmo o “sine! jintiva” que permite colocd-lo sob tal categoria, nfo ¢ ento simples ma- terial informe; e caso scja verdadciramente informe, a aplicagdo desta ou daquela categoria torna-se indiferente, © @ distinglo entre verdadciro © false desmorona-se. E precisarente esta antinomia que, me historia da fi losofia, em varias ocasides propiciow a passagem de um pensamenta cf cists a um pensamente de tipo dialético *- Scamon 'A questo assim se colocs no nivel lOgica. E a alvel histérico- genética, Isto &, quando se considera 0 procesto do desenvolvimento do conhecimento tal como ele se desenvolye como Aistéria, mais freqiente- mente foi o “desdobramento do material” que levou a uma revisiio ou a uma ruptura das categorias. A revalugio, propriamente filosdficn, pro- 4, Em fn Dafense of Marsism. “Que to markisma ertodoxe™"T em Histoire et comeieace de clasre, tid. K. Axelose J. Oe Alin, Para 1080, p. 18. C. Welyht Mills pareeis lambtre adotar exe ponte d: ‘a, Ver The Marxists, Laurel ed. 1962, p. 98 © 12 Eo cave clisico desta pattagem 2, evidentemenie, o de Kant 1 Hegel, par intermédia de Fichte e Schelling. Mas 2 problemitica ¢ 2 mesma nas Gjiimas obras de Plato au nos neo-kantiancs, dc Rickert a Lask. 23 duzida na fisics moderna pela relatividade e 0s quanta é disso &penas um exemplo notével entre outros *. Mas a impossibilidade de estabelecer uma distingSo rigida catre mé- toda ¢ contelido, entre categoria € material, aparece ainda mais clara- conhecimento da histéria. Porque neste caso, nfo existe simplesmente o fato de que uta exploragito mais uprofundada de material aparigio de um novo material possa conduzit a uma modificagd da oct tegorias, ou seja, do método. Existe sobreludo, e muito male profunda- Pele arene outro fato precisamente colocado em evidécla por Marx ¢ pelo Bréprio Lukacs "\ as eategorias am fungdo das quais penteruae chic téria s8o por um lado essencial Produtos reais do desenvolvimento hist. rico, Estas categorias so se podem transformar, clara © eficazmente, em formas de conbecimenco da historia uma ver encarnadas oa realizadas nas formas de wide social efetiva. Para citar apenas um exemplo dos mais simples: se na antighidade as Sategorias dominantes sob as quais se compreendem as relagdes sociais ¢ a histér Sategorias cesencialmente politinas (o poder na cidade. as Felacdes entre cidades, a relagio entre a farga 0 0 direko ttc.) seo aspec- te-Seondmica s0 recebs uma atenglo marginal, no € porque a inteligén- Gia ou a reflexdo eram menos “desenvolvidas” nem porgue o material Scondmico estava ausente ouera ignorado, E que, na realidade do mun. 90 antigo, 2 economia nao sc tinka constituido como momento separado, (mutdnoma”, coma dizia Marx, “para si", da atividude burrece Uma sirdndeira sndlise da economia em si ¢ de sua importincia pars’ sock dade 6 pdde ocorrer a partir do seculo XVII, ¢ sebroteh ee XVIIL, ou Scie, com o nascimenta de capitatisme que, na verdade, erigia a eccme, mis em momento dominante da vida social. E a importancia central atri- buida por Marx e pelos marxistas ao ator econdraice trdue igualmente esta realidade histérica, E claro portant que no poderia haver em historia “meétodo' que mantives i iste Pbitlo. iste 2, o mada de ser da histéria, sendo 0 obintn de sonhecimento histérico, Um ‘objeto significante Por si mesma, ou constituide Por signifi. 1 Nilo se deve, evidecitemente, simplemente inverter as poslgiea As categorias fiaicad jase, fem Iékica nem hiscoricameate, um slmyales resultado (ameree-ainas ot, “reflexa"} do material, Vie rewoh lomisi das eategarias pode possibilitar a cuptagio de um " me ocorreu com Galileu). Mais ainda a progresso na expe- go. waste pode “forcar’* um novo materia) a sparscet. Finalmente, exhte sent dscee ee, O80. Mad ado h, certamente, Independencia dar categorins rclalfcamente oo cect 8. “Le-ehangement de Foncilon di mattriaiamne histories 1 ¢ to perce P. 266 ‘ 24 sages, @ desenvolvimento do mundo histérice & ipse facto o desdobras mento de um mundo de significagses. No pade, porianta, haver rupted entre material © categoria, entre fain ¢ sentido, E, sendo este mundo de Bignifieaces aquele no qual vive o “sujelta™ do conhecimento historien, ckeé também aquele em fune$o do qual necessariamente ele capta, parn comegar, 6 conjunte de material histdrico. Por certa, esias constatagdes também devem ser relativisadtas, Blas nao podem implicar que a taco instante, toda categoria « todo método serum questionados, ultrapassados ou destruidas pela evalugho da histarie real no momenta mesma em que pensamos, Em outras palavras, saber se a (ransformagdo histérics atingiu o Ponto cm que as antizas calegorias e oentizo método devem ser rceonsiderados, € em cada ocasifo uns ques- tio concreta. Mas torna-se entdo evidente que isso nfo pode ser fea ins dependentemente de uma discussio sobre a contetido, no é mesma nada mais do que uma discussio sobre o comteado que, quande for 0 ¢as0, ull, lizando, pata camegar, 0 antigo méiodo, mostra no contacta com o ma- terial, © necessidade de ultrapassé-lo. Dizer: ser marzista é ser fiel ac método de Marx que permaneve vers, dadeiro, € dizer: nada, no conteido da Ristéria dos Gltimos duzentos anos, autariza ou leva a questionar as categorias de Mark. tudo pode ser compreendida por seu método, £ pois tomar Posiggo sobre o canteido, ler uma tcoria definida a esse respeito, ©, a0 mesmo tempo, recusar-se a dizé-lo. Na verdade, ¢ precisamente a elaboragio do contedde que not obri 88 a reconsiderar 0 método e, portanto, o sistema marxista. Se famos le- vados @ colocar, gradualmente © para terminar brutalmente, 2 questa do marsisme, ¢ que fomos obrigados a constatar, nio somente © aie tam ta, que tal teoria particular de Marx, tal idéia precisa do marxismo tradicio- nal eram “falsas", mas que a histéria que vivemos no podia mais ser compreendida com a ajuda das categorias marxistas t, is quais oy “corri- gids", “ampliadas" etc, Pareceu-nos que esta histéria nfo pode ser nem compreendida, nem transfarmada com este método. © rearame que em preendemos do marxisttio nda ocorre no vazio, nile falames situando-nos em qualquer lugar e em nenhum Partindo do marxisma revolucios Navin, chegamds ao ponte em que era preciso escolher entre Permanecer markistas © permanecer revoluciondrios: cntre a fidelidade a ema doutri- na que hd muito tempo jd nfo estimula nem uma reflexZo nem uma acho, e4 fidelidade ao projeto de uma transformagdo radical da sociedade, que cige primeiro que se compreenda o que se deseja transformar, « que se identifique aquile que, na Sociedade, realmente contesta esta sociedade e figem luta com sua forma presente, O método nia 6 separivel do com, teddo, ¢ sus unidade, isto é, a teoria, por sua vez nao é separavel das exi- géncias de uma ago revaluciondria que, a exemplo dos seandes partidos bern como das scitas o mostra, nig. pode ser iluminada e guiada Pelos es- quemas tradicionais, SA TEORIA MARXISTA DA HISTORIAN Podemos porianie, allie devemos: comenat nosso exame conside- anda 9 queaucedeu com o contedide mais conciete da tearia marsisia. Taber, com a analise econdmica do capitalismo. Longe de represent ima aplicagdo empirica, contingents ¢ acidental, a um Tendmena histé co particular, esta ani ‘conatitui a cume onde s¢ deve concentrar toda se ebstdncia da teoria, onde a (eoria mostra enfim que ¢ capi7 nfio de produvir alguraas idéias werais, mas de fazer coincidir sua propria dialéti- censont a dialética do real histérico, «, finalmente, de fazer galt deste mo- Gaento do proprio real, xe mesmo teipo os fundamentos da ago revo- Juciondria ¢ sua orientagia. Nao foi sem motivo qué Marx consagrau 6 Geroncial de sua vida a esta andlise (nem que o movimento marxista a se quir atribuiu sempre uma mportincia capitel 2 econort a). ¢ 08 “marxis: sein qofisticados de hoje queso querem ouvir falar dos manuscritos de ju- ventude de Mara, demonstram nao somente superficialidade, mas sobre- judo ume arropincia exorbitante, porque sua aptitude consiste em dizer: 2 partir de trinta anos, Mart nao sabia mais @ que Fazia. Snbemos que para Marx a economia capilalista estd sujeits @ contra- digdes insuperaveis, que se manifestarn tanta nas crises periddicas de sii- perprodugdo, camo nas teadéncias # longo prazo, cujo trabalho abala o disieria, cada vex mais profundamente: o aumento da taxa de eaplotagdo (portanto a miséria aumentada, absoluta ou relative, do proletariado): a Uevagdo da composigao orginica do capital (portanto a crescimento do parque industrial de reserva, © que significa desemprego permanente); & queda da taxa de lucro (portanto a diminuigiio da acumulagio ¢ da expan- io da produgdo), Tudo isso exprime, em Uhima andlise, a cantradiciio do eapitalismo tal como Mara a vé: a incompali jade entre o desenvol- vimento das forgas produtivas ¢ as “relagées de produglo” ou “formas de propriedade" capitalista ".. A experiéncia dos dltimos vinte anos, no stanley faz pensar que as crises periddicas de superpraducHo no tém nada de inevitavel no capita- jisma moderno (excete sob a forma extremamente alenuada de “reces- Ses" menores ¢ passageiras). E a experiéncia dos Gltimos cem anos nado mostra, nos paises capitalisins desenvolvidos, nem pauperizacdo (absolu- [nou relativa) do proletariada, nem aumento secular do desemprego, ‘hem queda da taxa de lucros, menos ainda uma diminuigko do desenval- Vimento das forgas produtivas cujo ritmo, ao contraria, acelerau-se em proporgies anteriormente inimaginiveis. 9 Umne citsgdo entre mit) © munuysitio do enpital torna-te ain endraue para @ moda de prodygho que com ole sob anu auspcios, ereseeue prosgerou. & avcinlizogho do trabatha aaeeeniralengao de seus recursos materiais Chegam a um ponko gM) que nde podem risit €1- eee fuera capitiisis, Bele involusre se despedacs, Soot a hora da prapricdade capitalisia, Os expropriadores 380. por sa Yer, expropriadas, be Capital, dd. Costes, Tomo 1¥, p, 274; bd. de Lar Pitinde. 1. p, 1235, 26 Claro esti que esta experiéneia no “demonstra” nada por si sb. Mas cla obriga a nos voltarmos para a teoria econdmica de Marx, pare ver se a contradigdo entre a teoria os fatas é simplesmente a te OU passageira, se uma modificagdo adequada da teoria nao permitiria uma Apreciagio dos fatos scm abandonar o essencini ow se, finalmente, ¢ a propria substancia da tearia que esié em jogo. Se efetuamos esse retorne, somos levados a constatar que a teoria eco- jdmica de Marx nio é sustentiivel nem em suas premissas, nem em seu método, nem em sua estrutura '°, Em resumo, a teoria coma ‘tal “ignera” a ago das classes sociais. Ela “ignora” o efeito das lutas operdrias sobre ‘a repartigdo do produto social ~¢, com isso, necessarinmente, sobre & ta- talidade de aspectos do funcienamento da cconomia, em especial sobre 3 ampliagio constante do mercado de beas de consumo, Ela “ignora” o efeito da organizagio gradual da classe capitalista, precisamente com ‘objetivo de dominar as tendéncias” ‘gpontaneas™ da economia. [sso deri- va de sua premissa fundamental: que na economia capitalista os homens, proletaries ou capitalistas, so cletiva e integralmente transformados em foisas, reifleados, que so nela submetidos & acio de leis econémicas que em nada diferem das leis naturals”, exceto em que utilizamt as ages “conscientes” dos hamens como o Instrumento inconsciente de sua reall- zagao. = + Esta premissa é, porém, uma abstragdo que $6 corresponds, por as- sim dizer, a uma metade da realidade ¢ como tal é finalmente falsa. Ten jéncia essencial de capit ‘i amo, reificagdio nia pode jamais realizar-se tegralmante. Se o pudesse, se o sistema conseguisse efetivaments trans formar o homens em coisas movidus unicaments pelas ‘‘fargas"* econd- micas, ¢le desmoronaria nfo a longo prazo, mas jnstantaneamente, A [uta dos homens contra a reificagae, tanto quanto & tendéncia a reifica- 40, £4 condigio do funcionamente do capitalism. Uma fabrica na qual Os operdrios fossem, efetiva ¢ integralmente, simples pecas de maquinas executarida cegamente as ordens da direedo, pararia em quinze minutos. © capitalismo 56 pode funcionar com a contribuicdo constante da ativi- dade propriamente Aura de seus subjugados que, a0 mesmo tempo, tonta reduzir e desumanizar o mais possivel. Ele s6 pode funcionar na medida cm que sua tendéncia profunda, que € efetivamente a reificagio, nao se realiza, na medida cm que suas formas sdo conttantemente com- hatidagem sua aplicaco. A andlise mostra queé ai que reside a contradi- * Clos prdprior termos de Marx que assim definara teu “ponto devista a deseavet- -rimenta de Yornacde ecandmrien da sociedade é axsimildvel d evahepdo da marurezo e ai saa his~ Joe Le Capetat, £4. Casten, bons 1p. EXIM 68. de Le Pidtade. Tp $901 Sublihadde no texts. 10 Sobre a critica dt teoria econdnilca de Mara. ver “Le mouvement révolutionnsire sous lecapltalisme moderst", mo 1 31 de S. ow B., dezernbro de 1960, p. 68 a 1,/ Mer Let abnarigue aa eapitahime, éd. 10/18, Paris, 1975. 27 eo final do cupitalismo ”, endo na mecinieas, que apresentiaria a gravitag manias no sistema. Estus incompatibilidades, na medida em que ult rapes 4am fendmenas particulures ¢ localizados, sao finalmente ilusdrias, Desta teconsideragdo decorre uma série de cunclusses, dae quais apenas us mals importantes nos reterdo aqui, Em primeiro luger, nia se pode mais manter a importancie central alribuida por Mars (e por toda o movimento # tal. O termo economi i que The confere o prépric contedde do Capital: 0 sistema de relagies abs- Iratas © quantifieaveis que, n partir de um deter) ada tipo de apropr Gao de recursos produtivas (quer seja esta apropriacaa juridicament, ga “somo proptiedade, quer traduza simplesmente um poder de dis. posigde de farto) determina x formacao, a troca © a reparti¢So de valores. Estas relacoes nfo padem ser erigidas em sistema aut nome cuja Funcio- Sainenta Serie regido por leis prdprias, independents das outras relacdes socials, Isso nao é possivel no caso do capitalismo - e, visto que foi preci. sxrrente sob o capitalismo que a economia mais tendeu a “autonomicar. se” como esfera de atividade sai al, suspeitamos que ¢ sinda menos Possivel no caso das sociedades anteriores. Mesmo sob o cupitalismo, a economia permanece uma abstracdo: a sociedade ‘Nido se transformou em sociedade ¢condémica a tal POnta que se possam encarar as outeas rel; der sociais coma secundérias, Em seguida, s¢ a categoria da reificagto deve ser reconsiderada, isso significa que toda a filosofia da histéria subjacente 4 andlise do Capital deve ser reconsiderada, Abordaremos esta questo mais adiante. Enfim, torna-se claro que a concepedia que fazia Marx da dindynica social ¢ histdrica mais geral & questionada na prdprio terreno en que foi tlaborada mais concretamente, Se a Capital assume tal importincia na obra de Marx, ena idcologia dos marxistas, & porque ele deve demon: trar no caso preciso que interessa primordialmente, o da sociedade capi taliste, a verdade teOriea e pratica de umm concepedo geral da dindica da historia, saber que ‘um certo estdgio de seu desenvolvimento as forgas produtivas da saciedade entram em contradicaa com as relagdes ae produgio cxistentes, ou'9 que é apenas sua exprescae juridica, com as relagdes de propriedade no interior das Qquais elas se haviom movido até entéio” ”, Na verdade, 0 Capital & percorride do prinelpia aa flin Por esta in- tuiggo essencial: que nada pode daqui em diante deter o desen valvimento da téeniea ¢ concomitante desenvolvimento da pradutividade do traba- Heo tace,, Mouvement révolutionnaire sous fe eapi.alisane moderae', ny O32 de Sau Ebr (96 )/ Tambésa “Sur le coniene: du saclalttne. I" in fExperidnes yee oan ournies, 2: Profétariat et organisation, &d. 10/18 p, 9 « seguintes, coat itt Contribution d to critique de Féeanrate pollqes Preficio tedd., Laura Lex Fareue, él, Giasd, Paris, 1928, p. 3 28 tho; que as relagSes de producio capitalistas, que eram no inicio a expres- so mais adoquada co instrumento mais eficaz do desenvolvitienta das forcas produtivas, tornam-se, “num certo estigio”, o freio deste desen. yolvimento ¢ dever por esse fato despedacar-se, Assim como Os kings dedicados & burguesia, em sua fase progressis- ta, glorificam o desenvolvimento das forgas produtivas das quais ela foi o instrumento histérico ", em Marx bem como nos marxistas ulteriores, a condenagdo da burguesia apdia-se na idéia de que esse desenvolvimento & doravante impedida pelo modo capitalista de produgdo. “As forgas poderosas de producia, este fator decisive do movimento histdrico, sufa- cavam dentro de superestruturas sociais antiquadas (propriedade priva- da, Estado nacional), em que s evolucdo anterior as prendera, Aumenta- das pela capitalismo, as forgas de producdo chocavam-se contra todas as muralhas do Estado nacional © burgués, exigindo sua emancipagio atra- vés da organizacio universal da economia socialista’, escrevia Trotsky em 1919" em 1936 fundamentava seu Programa iransitéria com a se- guinte constatagio: “As forgas pradutivas da humanidade cessaram dese desenvalver..."" = porgue, nesse meio-ternpo as relagdes capitalistas nham-se transformada, de freio relative, em frei provisoriamente abso- lute para seu desenvolvimento. . . Sabemos hoje que tal mio ocorreu e que nos iltimos vinte ¢ cinco anos, a8 forgas pradutivas conheceram um desenvolvimento que ultea- passa de longe tudo o que se poderia imaginar anteriormente, “Este de- senvolvimento foi certamente condicionado par modificagdcs na orga i zaciio do capitalismo © provocou autras - mas nio pos cm queso a substincia das relagoes espitalistas de produgao.””O que, para Mars e os markistas, parecia uma “contradicéa" que deveria fazer explodir 0 siste- ma, foi “resalvido no interior do sistema. Em primeiro lugar, ndo se tratau jamais de uma consradigdo, Falar de “contradigio" entre as forgas produtivas ¢ as relagdes de produgdo, ior que um abuso de linguagem, ¢ uma feaseologia que dé uma aparén- cia dialética ag que € apenas um modelo de pensamento mecanico, Quan- do um gds aquecide num recipiente exerce sobre as paredes uma Préssia erescente que pode, finalmente, fazé-las explodir, nic tem sentida dizer 5€ que ha “contradigdo” entre a pressdo do gsc a rigider das paredes da mesma mangira que nio kd “contradicio" entre duas forcas antagoni- e88 que se aplicam sobre um mesmo ponto. Assim também, no caco da Sociedade, paderiamos, no mdximo, falar de uma tensfo, de uma oposi- 1) Net por exemple. primeira parte ("Bourgeois et probétaires™) io Maniferte Comune fe. Id L. Teatsky, Terrorisme et Cammuntime. éd. 10-18, Paris 1963, p. 41. E preciso moe. Ausoer que até recentements, stalinistes, trotskistas.e “ltra-coquerdas” das mais putts or. favam praticumente de aeordo em camullar, aegar ou minimizar, sob todos os pietertos & ‘soninwacio da desenvavimeate ds produgdo a partir de /945, Aisa agora, aresporta oe tural de um “marsista” & “AN, mus ¢ por causa da peadugio de armamenton go ou de um conflito entre as foress produtivas (2 produgiio efetiva ou a capacidade de producio da saciedade), cujo desenvolvimento exige, em cada etapa, um tipo determinade de organizagao das relagdes sociats, © tipos de organizagio que, cedo ou tarde, “'sio ultrapassados™ pelas for gus pradutivase deixam de ser-Ihes adequadas. Quando a tensao se torna ‘iuite forte, o confito muito agudo, uma revolugdo destrdi a antiga or- ganizagdo social ¢ abre o caminho para uma nova etapa de desenvelvi- mento das forgas produtiva: Mas este esquema mecanico nfo pode ser mantido mesma no nivel empirico mais simples. Ele representa uma extrapolagda abusiva para o conjunto da historia de um processo que sé se realizou durante ume tni- va fase desta historia, a fase da revolugdo burguesa. Ele desereve, mais ‘ou menos fielmente, 0 que ocorreu quando da passagem da sociedade feudal a sociedade capitalista, mais exatamente: das sociedades bastardas da Europa Ocidental de 160 a 1850 (quando uma burguesia jé bem de- scnvolvida € economicamente dominante opunha-se £ monarquia abso- luta 2 aos residuos Feudais na propricdade agrdria e mas estruturas juridi- case polltics:), & sociedade capitalista. Mas ele nda correspande acm ao desmoronamento da sociedade antiga ¢ ulterior surgimento do mundo feudal, nem ao nescimento da burguesia que emerge, precisamente, fora das relagdes feudais ¢ & margem destas, nem 4 constituigdo da burocracia come camada dominante atualmente nos paises atrasados que se indus- trializam, nem, por fim, 4 evolugdic histdrica das poves ndo-europeus. Em nenhum destes casos pode-se falar de um desenvolvimento de forcas produtivas encarnado por uma classe social em crescimento, no sistema social dado, desenvolvimento que “em determinado cstagio” tornar-se-ia incompativel com a manutengdo deste sistema, conduzinds assim a uma revolugdo dando o poder A classe “em ascensio”. ‘Aquiainda, ¢ sobre a significacdo da teoria, sabre seu contetida mais profunde, sobre as categorias que sfio as suas co tipo de relagde que ela visa estabelecer com a realidade, que devernos refletir, situanco-nos mais além da “confirmagdo" ou do “desmentido” trazido pelos fatos & tearla. Uma coisa é reconhecer a importincia fundamental do ensino de Mara, no que concerne 4 relagiio profunda que une a produgao © 0 resto da wida de uma sociedade, Ninguém. depois de Marx, pode pensar a his- téria “esquecenda" que toda sociedade deve assegurar a produgio das ondigdss materiais de sus vida, ¢ que todos as aspectos da vida social es- profundamente figados so trabelho, a0 mode de organizago desta produgio ¢ a divisilo social que lhe correspande. ‘Outra coisa € reduzir a produgio, a atividade humana mediatizada por instrumentos ¢ objetos, o trabalho, as “forgas produtivas” ou seja, nalmente, a técnica ", atribuir Ihe um desenvelvimento “em tiltima anal 15%. Bimportante disinguit sempre etre a perturbacda matesal das condicBes de pradupla econfimicas » que devavnos canstauar fielmente com hie das eigncias fiteas @ natu 30 se! auténomo e construir uma mecinica dos sistemas sociais, baseada numa oposicdo eterna, eeternarmente a mesma, entre uma tEenies ou For- cas produtivas que possuiriam uma atividade prépria, € resto das rel qdes sociais ¢ da vida humana, a "superestrutura’”, dotada arbitrariamen- te de uma passividade e de uma inéreia essencial. Na verdade, nao existe autonomia da técnica, nem tendéncia ima- nente da técnica para um desenvolvimento autanomo. Durante 99,5% de sua existéncia - isto é, durante sua tatalidade exceto as cinco ltimos sé culos - 4 histéria conhecida, ou presumida, da humanidade desenvolveu- fe sobre a base daquilo que nos aparece, hoje, como uma estagnaco ¢ que era vivido pelos homens da época come uma estabilidade evidente da iéeniea: civilizaedes e impérios durante milénias fundaram-se e desmora- naram-se sobre as mesmas “infra-estruturas™ técnicas ‘Durante a antiptidade grega, o fata de ter a téenics aplicada 4 pro- dugdo permaneside certamente aquém das possibilidades que oferccia o desenvolvimento cientifica jd aleangado, no pode ser separado das com- dicdes culturais ¢ sociais do mundo grego, ¢, pravavelmente, de uma al tude dos greges em relacdo a natureza, ao trabalho, aa saber. Como, in- versamente, no se pode separat o enorme desenvolvimento técnica dos tempos modernos de uma mudanea radical ~ ainda que se tenha produz- do gradualmente — nestas atitudes. A idéia de que & natureza ¢ somente um dominio a ser explorsdo pelos homens, por exempio, € tudo o que quisermos excetg evidente do ponto de vista de toda s humanidade ante- Hore, ainda hoje, des pavos nda industrializados. Fazer do saber cient fico essencialmente um mcio de desenvalvimento téenico, dar-Ihe um ca- rier predominantemente instrumental, corresponde também s ums ati- tude nova, A apariclo destas atitudes & inseparavel do nascimento da burguesia — que, ne inicio, s realiza sobre a base das antipas tecnicas.So- mente a partir do pleno desabrochar da burguesia ¢ que se pade, aparen- vemente observar uma espécie de dindmica auténoma da evolugdo tecno- fea, Mas somente cm aparéneia. Porque nid somente esta cvolugdo do desenvolvimento [ilosdfico.¢ clent! fica provorado (ou accicra- do) pela Renascenca, cujos vinculos profundas com toda a colturae a so- ciedade burguesa 20 incontestaveis; mas ela é, também, cada vee mais jafluenciada pela constituigdo do proletariade © a luta de classes no scio craiy —e as forrmas juridiess, poliicas..”” K, Marx, prelicio de Coniribution dda ertique de Fadsonamie potlrigue, 4, p.G(sublinkude por nds). / Tarsbéme “Darwin chamou a otenia thaet 0 historia da feencdogia nowra!, sia &, para a farmacko dos Grylos das plansns © dos Fnimait considerados como sicio’ de produgie para a sist vida. Nao seria digna de pestisi- tar semelhantes n histbria dos argos produtivos do homcm social, base matstlal de toda Srpaniagie social? E este empreenidlmento- mie seria mais facil de exeeular. A que, como de yiea, w hintéria do homem aistingue-se du bistdvis dw vatuzcen pata fato de termes nis Teito uquela e nio este? A tecnologia poe mu.o modo de ayso.da homam frente & patureza, 5 proceso de praduthio de aun vida material, ¢, conseq leitemente, # origem das reinases Seciaive das idtias ou concepdes intclectuaia que dal dezorrem "Le Capitol, Lee T, Hp 9 ad. Costes, Pliade, |p. 915. 31 ——— ee do capitalismo, que conduz:a uma selecdo' dus técnicas aplicadas na pro. duedo entre todas as técnicas possiveis ". Finalmente, na fase atual do oa. Pitelismo a pesquisa tecnolégica & planificada, orientada e explicitamente dirigida para a3 objetives que se Propiem as camacias dominantes da g0- Giedade. Que sentido tem falar-se da evolugdo auténoma da técnica uanco © governa dos Estados Unidos decide destinar um bilhda de di lares 4 pesquisa de carburantes de foguete © um milhao de ddlares & pes quisa das causas do cdncer? A idéia de Uma relative autonomia da téenica pode conservar um sentido quando diz respeito a fases encerradas da historia, quanda os ho- mens deseobriam algum invento ou métado, por assim dizer, casualmens te, ¢ quando « base da produgdo (como a da guerra ou de outras ativida- des sociais), era uma espécie de pendiria tecnoldgica —ainda que seja [also quecsta técnica tenha sido "determinante”, num sentido exclusivo, da es- truture ¢ da evolugao du sociedade, come prova a imensa variedade do calturas, arcaicas ¢ histéricas (asidticas, por exempla) eonstruidas “eobre @ mesma base técnica”. Mesmo para estas fases, 0 problema da relagdo ‘entre o tipo da téenica eo tipa da sociedade ¢ da cultura permanece. Mas nas sociedades contempordness, a ampliagdo continua da gama de possi- bilidades técnicas € a agdo permanente da sociedade sobre seus métodas de trabalho, de comunicagao, de guerra, etc. refuta definitivamente a idéia da. autonomia do fator técnico e torna absolutamente explicita a re- lacdo reeiprosa, o retorno circular ininterrupto dos neétodos de produgao fi organizacio social ¢ a0 conteddo total da cultura *, © que acabamos de dizer mostra que nao ha, ¢ que nunca houve, inéreia em si do resto da vida social, nem privilégio de passividade das nem mais tem menos “reais”, nem mais nem menos-“inertes” do que as outras ~ tio “condicionadas” pela infra-estrutura come esta por clas, sé que a palavra “condicionar™ pode ser utilizada para designar o modo de coexisttncia dos diversos momentos ou aspectos das atividades s0ciais, A famosa frase sobre “o atraso da consciéncia em ftelagdoa vida", & somente uma frase. Ela apresenta uma constatacdo empirica valida para a metade da direita dos fendmenos, ¢ false para sua metade da esquerda. Na boca e no inconsciente das marxistas tormou-s¢ uma frase teoldgica, ¢ somo ta! nda tem menhum sentido. Nao existe nem vida, nem realidade social sem cansciéneia, e dizer que a conscigncia estd atrajada em relagia a realidade é.0 mesmo que dizer que a cabega de um homem que caminha esté constantemente atrasada ein relagda a esse homem, Mesma se to- 14, Met “Sur le contenu ¢u socialisme” no rt 2? de $. ou @.. Gulho 1957), p. 14 = 21, 3. Mer também ines artigo “Techinique” de £°Enevclapardia Univernalts, vol. 18, p, 803. 803, Paris, 1973, a2 as". As superestruturas sdo apenas rede de relucdes so-. onsciéncia" num sentide cstrito (de conseiéncia explicita de “pensamento de” da teorizecdo do dado} a frase permancce ainda io freqlentemente falss quanto verdadeira, pois pode haver tanto um “alra- so” da consciéncia em relagdo a realidade como um “alrasa” da tealida- deem relage a conscléncia ~ visto que, em outras paiavras, Ki tanto correspondéncis. quanto distncia entre 0 que os homens fazem ou vi. ver ¢ 0 que os homens pensam. Eo que cles pensam nfo ésomente a dificil claboragao do que jd existe ¢ marcha afegante atras de suas pega- das. E também relativizacde da que é dado, colocacdo a di tancia, proje- Gao. A histéria € tanta erlagao consciente como repeticga inconsciente.O que Marx chariou de superestrutura também nilo foi m: i voc retardado de uma “‘materialidade"' social (alids indefinivel), do que sho a petcepgao e o conhecimenta humanes, “reflexos imprecigas e con- fusos de um mundo exterior perfeitamente formado, colorido codorifero em si mesma, £ certo que a conscitncia humana, como agente transformador & criador na histéria, ¢ essencialmente uma consGiéncia prditica, uma razdo operante ~ ativa, muito mais do que uma reflexio tedtica, a qual a priti- ca seria anexada como 0 coroldrio de um raciocinio e ds qual ela somente materielizaria as conseqiéncias. Mas essa pratica nia é exclusivamente uma modificagao do mundo material, cla é também, ainda mais, modifi- cagio das condutas dos homens ¢ de suas relagdes. O Sermo da inonta- nha, @ Mantfesto comunista pertencem pratica histérica, tanta quanto um javerito tgenico, ¢ pesam, quanto a seus reais efeitos sobre a historia, com um peso infinitamente maior A atual confusiio ideoldgica ¢ o esquecimento de verdades clementa- res Ho tals, que o que aqui dizemos poderd sem diivida parecer para mui- tos “marxistas’’ como um idealismo. Mas a ideslismo, ¢ em sua espécie mais ceua © mais ingénua, se encontra de fato nesta tentativa de reduzit o Conjunto da realidade histérica aos efeitos da agio de um so fator, que é, hecessariamente, abstrafda do Lode e, portanto, ahstrato pure @ simplcs- mente —e que, finalmente, ¢da ordem de uma idéia. De fato so que fazem com que a hisibria avance na concepeao dita “materi torica"’ — sd que em vez de serem idéias MlosGficas, politicas, rel 828 ee,, sito idéins técnicas, E bem verdade que, para sc tarnarem operantes, essas idéias devem "‘encarnar-se" em instrumentos ¢ métodos de traba~ tho, Mas esta encarnacho & por elas determinada; um novo instrumento 86 ¢ nove enquanto realiza uma nova maneira de conceber as relagies dz atividade produtiva com seus meios:€ seu objeto. As idéias técni¢as per- Manecem, por conseauinte, ums especie de primeito mator, ¢, enifia, de duas uma: ou ficamos ai ¢ esta concepgio “cies "aparece como ay. sentando toda a histéria sobre um mtistéria, o mistério da evolugdo auth. noms ¢ inexplicavel de uma categoria particular de idéias, Ou mergulha- mos novamente a técnica no todo social, sendo imposstvel privilegid-la ¢ Priori ou mesmo a posteriori. A tentative de Engels de air desse dilema explicando que as superestruturas reagem cerlamente sobre as infra: marmos

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