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INGUIANA COLIGADA A TECNICAS CORPORAIS ANOI-N°1-2001 |COTERAPIA DE ORIENTACAO JU! JUNG & CORPO Jung & Corpo ISSN 1676-0387 JUNG & CORPO “Se ainda estivermos imbutdos da antiga concepgiio de oposicao entre espirito e matéria, isto significa um estado de divisdo e de intoleravel contradigao. (...) 0 esptrito é vida do corpo, vista de dentro, e 0 corpo é a revelagdo exterior da vida do espirito (...)." (C.G. Jung, 1928, CW 10, par 195) r i Jung & Corpo NOTA EDITORIAL curso de especializagao em Psicoterapia de Orientagio Junguiana Coligada a Técnicas Corporais langa com esta publicasio o primeiro mimero da revista Jung & Corpo, fruto de uma jornada de mais de 20 anos. No decorrer deste tempo uma pessoa foi especialmente importante, Nés, professores, assim como muitos de aossos alunos, fomos profundamente influenciados em nossa formacio pelo Professor Pethé Sandor, para quem a conexio entre a Psicologia Analitica eo trabalho corporal era fundamental ¢ indispensivel. Frisando sempre que corpo € mente sio inseparaveis, enfocava em seu trabalho a totalidade do ser humano. Seu vasto conhecimento nas mais diversas reas — medicina, psicologia, cinesiologia, hist6ria, mitologia, religido, dentre outras -, somado & sua intensa experiéncia pessoal, 4 sua disposicdo de ensinar, 4 sua dedicagio (quantas horas nfo se dedicou a traduzir textos que, de outta forma, seriam quase inacessivels para a maioria de seus alunos!) e aos seus incentivos, nos lembrava sempre da responsabilidade que temos quando trabalhamos. com pessoas, seja como terapeutas, professores ou supervisores. Mas este nio foi o seu legado maior. O grande ensinamento que ele nos deixou foi 0 melhor dos ensinamentos: aquele que se faz. no pelas palavras, mas pelo exemplo, Sandor no nos ensinou somente teoria e técnica, Permeou sua vastfssima erudigio com sua sensibilidade, com sua disponibilidade para acolher ¢ sua imensa capacidade de sintonizar com o Ser. Os alicerces deixados por Sandor permanecem conosco e se fazem visiveis a cada nova transformagio por que passamos. Um marco importante em nossa caminhada foi a tealizacio, ‘em outubro de 2000, do Primeiro Re-Encontro de Alunos ¢ Ex-Alunos, Visavamos, com isto, crlar uma situagio que favorecesse 0 intercimbio ¢ a divulgacio dos trabalhos feitos por profissionais que tivessem realizado parte de sua formagio em nosso curso, Este re-~ encontro foi tio estimulante, os trabalhos apresentados mostraram-se de tal qualidade, que sua publicagao fez-se imperiosa. Jung & Corpo é, assim, produto de uma longa trajetéria. Se por um lado sabemos do esforgo que exige tal empreitada, por outro 2 publicacio que hoje iniciamos nada mais é do gue o resultado natural de um processo que teve inicio com o ensinamento de nossos mestres ¢ que culminou com a dedicagio de nossos alunos. Jung & Corpo SUMARIO UM POUCO DE HISTORIA Marcia T. Bittencourt SOBRE A QUESTAO MENTE: ‘Aurea Afonso M. Caetano CEREBRO. ‘TRABALHO CORPORAL COM VITIMAS DE VIOLENCIA Angela Maria Carcassoli Kato Francisca Suely Barcelos AADOGAOE O INCONSCIENTE: Uma abordagem simbélica da Psicologia Analitica Antonieta Maame Zimeo UMA EXPERIENCIA COM 0 TRABALHO CORPORAL NO ATENDIMENTO DE UMA PACIENTE COM ANOREXIA NERVOSA Sergio Carlos Stefano RELIGIOSIDADE E MEDICINA: Uma dialética da vida. Antonio Fernando Stanziani TERAPIA CORPORAL E AS PSICOSES Jasmin Barreto Rodrigues O APRENDIZ DE CORPO E OS TECNICOS DO ESPiRITO. Paulo Toledo Machado Filho ORELACIONAMENTO AMOROSO EM SUA POLARIDADE PRE, EMETAPESSOAL Maria Helena R. Mandacarii Guerra O RETRATO GENIAL DE VINCENT - Uma observagio analitica de alguns auto-retratos de Van Gogh Denise Maia Jung & Corpo UM POUCO DE HISTORIA... Marcia T. Bittencourt! Ao contar a histéria de nosso percurso, curso, desenvolvimento, do correr das aguas ¢ do tempo, os nomes de alguns personagens, nfo por proposital omissio, mas porque a meméria envolta por uma bruma os encobre, podem nao ser revelados neste momento. Mas convido a todos que conosco estiveram, mesmo antes desta que escreve, que participem da proxima edicio. Por volta dos anos 60, Dr. Haim Grunspun, médico psiquiatta parte do corpo docente da Faculdade de Filosofia Ciéncia e Letras Sedes Sapientiae, conhece Telma Reca na ‘Argentina, Ela o inteira do modelo francés da psicomotricidade da época. ‘A dificuldade de aprendizado escolar ligada A dificuldade motora, nesta época, era também ligada a lesio cerebral minima. Dra. Angela Paves Grossmann, médica, fazia os eletro: encefalogramas no Sedes Sapientiae. Para o tratamento destas criangas propunham-se exercicios em psicomotticidade que poderiam trazer uma melhora na atengio, concentracio etc... a0 invés do uso do recurso das aulas particulares. Uma ligéo padrio de psicomotricidade envolve exeteicios nas seguintes areas: Coordenagio global Equilibrio Exercicios grificos Exercicios de coordenagio motora fina Organizacio espacial e ritmica Relaxamento ovens * Colaboradores ~ Ceres A. Aragjo e Janos Geocze Jung & Corpo Ana Luiza Garcia foi a primeira professora de psicomotricidade da Faculdade de Filoso fia Cigncia e Letras Sedes Sapientiae. Ceres A. Aratjo ¢ Neide Bittencourt de Araijo foram nesta época suas assistentes. Em 1973 elas assumem 0 curso de Psicomotticidade. Marcia TT. Bittencourt foi aluna do curso nesta época e passa a participar como professora depois de finalizé-lo, Neste periodo a PUC se uniu a Faculdade de Filosofia Ciéncia ¢ Letras Sedes Sapientiae, unificando-se assim os cursos de Psicologia. Desta forma, o curso de Psicomotricidade com © titulo de Reeducagio Psicomotota passa a set ministrado na PUC. Com a fusio das Faculdades, Madre Cristina Sodré Déria decide criat 0 Instituto Sedes Sapientiae, que oferece cursos de especializagio para os alunos fotmados em psicologia A reeducagio psicomotora era uma campo de conhecimento ¢ atuacio profissional do psicdlogo. Baseada nas idéias francesas veiculadas na revista Therapie Pricomotrice, j& havia uma rclacio direta (sem passar necessatiamente pela disfungao cerebral minima) entre corpo © mente. Nosso programa entio passou a set chamado Terapia Psicomotora. Contava com um quadzo de profissionais que variou durante o tempo; alguns deles foram: José Salomio Schwartzman, médico neuto-pediatra; Marina Pereira Gomes, psicdloga; Vania Yasbek, psicéloga; Miriam Bove Fernandez, psicéloga; Norberto Rodrigues, médico neurologista. Com diferentes opgdes quanto as abordagens psicolégicas, 0 quadro de profissionais cindiu-sc ¢ assumiu uma Gnica orientagio: a junguiana. Neste momento nosso curso passa a contar, como professor convidado, com 0 Dr. Pethé Sandor, médico hiingato (1916 a 1992) que viveu no Brasil desde 1949. Como professor docente da Faculdade de Filosofia Sio Bento, Dr. Sandor passow a ensinar na Faculdade de Psicologia da PUC o programa de psicologia profunda. Assim como tantos outros fui privilegiada por estar em sua sala de aula, € até o fim de sua vida estudei ¢ trabalhei junto a ele no Instituto, Em 1981, quando deixa a PUC, Dr. Sandor passa a integtar 0 quadro de professores contratados pelo Instituto e participa com a disciplina por ele criada e intitulada Cinesiologia Psicolégica. Foi um tremendo sucesso! Aliava trabalhos corporais ¢ teoria junguiana de uma maneira totalmente inovadora ¢ inusitada, Tanto que tal curso, devido 4 demanda, tornou-se também um programa independente. Desde a sua ctia¢ao, meu trabalho junto 20 Dr. Sandor foi o de proporcionar vivéncias em diferentes técnicas ¢ métodos corporais. Mais tarde 0 curso passa Jung & Corpo a se chamar Psicoterapia de Orientagio Junguiana Coligada a Técnicas Corporais Com 0 Dr. Sandor a dimensio do curso se amplion e formon varios profissionais, alguns dos quais fazem parte de nosso corpo docente. Sem 0 Dr. Sandor damos continuidade a seus ensinamentos, procurando transmitir aqueles que nos procuram conhecimento com qualidade, sensibilidade e aprimoramento teérico pritico. Jung & Corpo SOBRE A QUESTAO DA RELAGAO MENTE - CEREBRO Aurea Afonso M Caetano! Gostaria de, em primeizo lugar, agradecer 0 generoso convite de Maria Helena Guerra para apresentar meu trabalho neste encontro, Este convite trouxe a possibilidade de uma revisio de.minha trajetéria profissional; percebo hoje que a questio da “incorporagio” da mente esteve sempre presente, desde o curso de graduacio até os dias de hoje. ‘Vim 2o Sedes Sapientiae em 1983 fazer 0 curso que entio se chamava “Terapia Psicomotora”. Era a possibilidade que havia na época de trabalhar com a psicologia junguiana e a questo do corpo: a énfase naquele momento era aprender a trabalhar com a unidade mente-corpo utilizando a teoria de Jung como um embasamento tebrico. Trilhando ainda o mesmo caminho tentei, cada vez mais, aprofundar meu conhecimento; 0 trabalho com o corpo jé nfo fazia parte de minha atuagio como psicoterapeuta, nfo era um instrumento que eu manejasse trangiilamente. Continuci entio meus estudos fazendo a formagio na SBPA e apresentando como trabalho final a monografia sobre “Consciéncia e o Sitio da Mente”, uma tentativa de aproximar 0 fendmeno da consciéncia de seu substrato neurolégico. B sobre este trabalho, que continua me encantando, que vou falar hoje ‘Peicologe, especialsta em Terapia Psicomotora pelo Instituto Sedes Sapientiae, AnalistaJunguiana membro da SBPA Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, u Jung & Corpo Percebo claramente uma linha mestra que guia meu desenvolvimento como psicoterapeuta que & perpassada o tempo todo pela questio da dicotomia mente-corpo. Durante os tltimos anos tenho estudado algumas teorias das neutociéncias e tenho me surpreendido com as Possiveis analogias existentes entre a explicagio do funcionamento do aparato mental conceitos da teoria junguiana. Meu trabalho tem sido a tentativa de estabelecer cosselagSes entre esses dois campos do conhecimento, Ha um crescente questionamento acetca dos pressupostos cientificos que norteiam as ciéncias psicanaliticas em geral. A mega exposicio sobre Freud que hoje acontece no MASP foi adiada por quase dois anos. Nos EUA, pais com uma tradigio liberal, os ataques vieram tanto do campo dos “politicamente corretos” quanto dos te6ricos da mente. Os primeiros ctiticam a forma como Freud teria descrito a sexualidade feminina, a partir de uma vise Pattiarcal e falocéntrica segundo eles, ea visio do homossexualismo como uma enfermidade trazida, segundo eles, pela teotia psicanalitica. Muitos ataques, de forma surpreendente, tieram am carter mais teGrico, procurando desacreditar a validade cientifica da psicanilise sugerindo que as idéias de Freud nunca tiveram confirmacio cientfiea independente e que Portanto a psicandlise no podetia ter o valor de uma ciéncia. As mesmas criticas acontecem em relagio a Jung. Embora o alcance de suas idéias aio Scja tio amplo quanto o alcance das idéias de Freud, pelo menos um autor dedicou um livre inteiro a tentar desmascaré-lo. Richard Noll, escritor ameticano, foi em busca de dados da bist6ria pessoal de Jung, para escrever “O Culto de Jung”. Neste livro ele tenta provat que 4 teoria junguiana carece de qualquer fundamento cientifico, é um engodo, segundo ele a fsicologis Analitica de Jung suigiu a partic de pressupostos equivocados que acabaram por formar um falso arcabougo cientifico. Acredito que de maneira geral esse movimento vem acontecendo em relagio a todas as teorias que tentam dar conta do funcionamento psiquico. Num momento em que Positivismo cientifico toma conta de todas as éreas do conhecimento, 0 movimento nao seria diferente em telagio ao campo das teorias psicolégicas. Com o crescimento das assim chamadas neurociéncias nossa érea de atuacio esti sendo bombardeada a cada dia. Emborm & principio essas questées abalem profundamente os alicerces da teotia a partis da qual ttabalhamos, elas nos trazem também o desafio de atualizé-la, vendo-a sob a luz das novas descobertas cientificas. Acredito que uma das formas de escapar desse bombatdeamento é através da possibilidade da integracio das neurociéncias com Psicologia Analitica. Esse parece ser nosso grande desafio. Ja € hora de tentar definitivamente ultrapassat 2 tio antiga sepatacio corpo ¢ mente compreenclendo a forma através da qual nossa unidade somato-psfquica melhor se expressa, Em meu trabalho quero discutir o que é que faz com que o homem se conhega como tal Como se faz um homem? O que ha de imutivel no ser humano? Como se dé a consciéacia? — atributo que, afinal, nos diferencia dos outros animais. Qual seu lugar, quais suas possibilidades de transformagio? 12 Jung & Corpo Gostaria de comecar trazendo algumas definiges de consciéncia. No dicionario encontramos consciéncia como: auto-referentes. Conse: (do lat. Conscientia) aquilo que define 0 ser humano. def: 1- attibuto altamente desenvolvido na espécie humana e que se define por uma oposicio basica: é o atributo pelo qual © homem toma em relagio 20 mundo (¢, posteriormente em relacio 20s chamados estados intetiores, subjetivos) aquela distancia em que se cria a possibilidade de niveis mais altos de integragio 2- conhecimento desse atributo. 3- faculdade de estabelecer julgamentos morais dos atos realizados.4- conhecimento imediato de sua prépria atividade psiquica. 5- conhecimento, nogio, idéia. 6- cuidado com que se executa um trabalho. 7- honrader, retidio, probidade? Jung define a consciéncia da seguinte forma: Por consciéncia eu entendo a telagio dos contetidos psiquicos com 0 ego, na medida em que esta relagio é percebida como tal pelo ego. Relagdes com o ego que nao sto percebidas como tal sio inconscientes, Consciéncia € a fungao ou atividade que mantém a telagio dos contetidos psiquicos a0 ego. Consciéncia nao é idéntica A psique, porque a psique representa a totalidade de todos os contetidos psiquicos e estes nao esto necessariamente diretamente conectados 20 ego, ic. relacionados de tal forma que tenham a qualidade de consciéncia. Existem muitos complexos psiquicos que no estio necessariamente conectados 20 ego.’ Outros autores sugerem os seguintes conceitos: A consciéncia é causada por processos neuronais de nivel inferior no cérebro € é, por si s6, uma propriedade do cérebro, Por ser uma ptoptiedade que surge através de cettas atividades dos neurdnios, podetnos vé-la como uma “proptiedade emergente” do cérebro. Uma propriedade emergente de um sistema é aquela que é causalmente explicada pelo comportamento dos elementos do sistema; mas, nio € uma propriedade de quaisquer elementos individuais ¢ nao pode set explicado simplesmente como uma soma das propriedades desses elementos‘ Como vemos, hé varias definigdes possiveis para o fenémeno da consciéncia, todas cia € a condi¢io que possibilita qualquer coisa ter alguma * FERREIRA, A. BH. (1 5). New Diconério da Lngua Portygusa Sio Paulo: Nova Fronteira JUNG, CG. (1971) Poebalegia! pes. CW 6. New York: Princeton University Press. pa. 700. “SEARLE, J.R. (1998). O Mista da Contibuaia. Sio Paulo: Paz e Ter. p. 44. Jung & Corpo importincia para alguém. E um paradoxo, porque €a questio central para nossa compreensao como seres humanos: O paradoxo é que a consciéncia & a condigio que possibilita qualquer coisa ter alguma importincia para alguém. Apenas para os agentes conscientes existe a possibilidade de algo ter algum significado ou importinci No ha definigio de Eu, ndo hé lugar no mundo onde a nogio de consciéncia nao esteja presente. um conceito imprescindivel para falar de algo sendo em algum lugar. Para que a vida exista é preciso que haja alguém que esteja consciente dessa vida. Alguém que saiba dela, alguém que a perceba. As idéias de conhecimento € consciéncia estio entrelagadas de tal forma que uma pressupde a outta, Jung traz essa idéia: Agora o apreendia (o mito), constatando, por outro lado, que o homem é indispensivel & perfeicio da criagio € que, ainda mais, € 0 segundo criador do mundo; é 0 homem que di 20 mundo, pela primeira vez, a capacidade de ser objetivo - sem poder ser ouvido, devorando silenciosamente, gerando, morrendo, abanando a cabega através de centenas de milhdes de anos, 0 mundo se desenrolaria na noite mais profunda do nio-ser, para atingir um fim indeterminado, A consciéneia humana foi a primeira criadora da existéncia objetiva ¢ do significado: foi assim que o homem encontrou seu lugar indispensével no grande processo do set! Meu objetivo nio é explicar postulados da teoria junguiana a partir do substrato do fancionamento cerebral mas, antes, estabelecer patalelos entre conceitos das neurociéncias, estruturados cientificamente, ¢ algumas das principais idéias de Jung, E interessante pensar que estamos 0 tempo todo tentando “juntar” algo que nunca deveria ter sido dividido. Ja dizia Hipécrates que os homens devem saber que € do cérebro que vem alegria ¢ prazer, tiso ¢ divertimento, tristeza e desgosto, desinimo ¢ lamentagées. ‘Tememos, no entanto, que essas idéias levem a um reducionismo biolégico ¢ que no haja mais espaco para o mistétio, o sagtado, a individualidade. Se 0 cérebro dé origem a tudo 0 que pode ser chamado de mental e & um 6rgio fisico, conhecido, comum a toda humanidade — entio nio ha mistério algum. Nada poder nos diferenciar dos outros seres humanos. Afinal, qual é a nossa especificidade? Onde estaré a alma imortal que perdura apés a morte? Onde permanece 0 sopro divino que nos humanizou € nos tornou, ao mesmo tempo, iguais ao criador? A alma individual seria o correlato desse lugar do mental — uma alma imortal criada por Deus ¢ soprada SSEARLE,}.R. op. p26. “JUNG, CG, Memrias,Sonbas¢ Reflects, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 19 Pe, 226, “4 Jung & Corpo dentro de nosso corpo tornando-nos tnicos e diferentes de todo o resto da humanidade. ‘Alma que nos garantitia tanto 2 imortalidade quanto a permanéncia, Na verdade, 0 que nos move € 0 desejo de ser inicos, inigualéveis ¢ acima de tudo imortais. Discutimos 0 tempo todo 2 questio da dicotomia mente-corpo, cometendo n0 entanto 0 equivoco de falar de uma mente no-incorporada, de uma mente que existe apesat do corpo e além dele. Como € isso? Nestes tiltimos anos houve um aumento considerivel nas publicagdes cientificas que falam do funcionamento cerebral. Uma simples consulta 4 Internet a partir da palavra consciéncia (em inglés) revela centenas de sites relacionados, milhares de paginas e artigos publicados. Em patte isso acontece porque a titima década do milénio foi chamada, pelo governo americano, de “A Década do Cércbro”. A mente humana parece ser a fronteira final a ciéncia, Muitos recursos tém sido investidos no que chamamos de estudo das bases neurofisiolégicas do proceso mental. ‘A estrutura cerebral nfo é totalmente especificada. Muitas das especificidades estruturais sio determinadas geneticamente enquanto outras sio determinadas pela atividade do proprio otganismo. Sistemas e circuitos cerebrais dependem do padrio de conexio entre neurénios e do poder das sinapses entre essas conexdes. O genoma ajuda a estabelecer a estrutura dos sistemas e circuitos importante nos setores evolutivamente mais antigos do cérebro humano, por exemplo aqueles que regulam mecanismos homeostiticos. No entanto, a mente é incorporada, isto é, desenvolvida passo a passo através do trabalho da estrutura genética com a insergio social deste set humano corporal Existem, no ser humano, cerca de um quatrilhio de sinapses — esas conexdes sio combinadas de varias maneiras para formar circuitos neurais; o nsimero final de possibilidades é praticamente infinito. Trata-se de um sistema auto-organizado — as conexGes nio estio pré-definidas: conjuntos idénticos de genes resultam em sistemas netvosos distintos tanto anatémica como fisiologicamente. Mecanismos de desenvolvimento do sistema nervoso levam, necessatiamente, Dois organismos no podem ser iguais pelo simples fato de ocuparem posigdes diferentes no espaco. Suas hist6rias de interacio com o ambiente serio diferentes, 0 que resultard em sistemas necvosos diferentes. Bsses fatores, crticos pata o processo de adaptacio a0 ambiente, conferem individualidade cognitiva ¢ afetiva. Portanto, mestno concebendo a mente como um fenémeno biolégico, cada individuo é singular em sua esséncia, por ser \inico em seu patriménio genético ¢ mais ainda em seu patrimdnio histérico. ‘A consciéncia € feuto do funcionamento integtado dos diferentes médulos, através dos quais esta organizado o Sistema Nervoso. As representagdes mentais seriam integradas em 7 Aqui autilizacio, por um neurologista, de um termo to precioso para a psicologia junguiana. 15 Jung & Corpo funcio de suas atividades sincrdnicas mediadas pela extensa interconexio paralela entre os varios médulos de processamento, io ha por que temer 0 completo desvendar dos fendmenos mentais. Poderemos quando muito compteender o funcionamento dos circuitos neuronais ¢ estabelecer padrdes de fancionamento. No entanto, as vivéncias individuais ¢ que vio preencher ou direcionar conexdes, enfatizando algumas € deixando outras de lado ou as enfraquecendo. A vivéncia individual ¢ as modificacdes pessoais vio alterar completamente 0 funcionamento do sistema como um todo e vio fazer com que cada circuito em cada ser humano seja diferente do outro. Em 1936, em um ensaio sobre fatores determinantes de comportamento, Jung disse: A alma humana vive unida ao corpo, numa unidade indissohivel, por isso s6 artificialmente é que se pode separar a psicologia dos pressupostos bisicos da biologia, e como esses pressupostos biolégicos sio vilidos no s6 pata o homem mas também para todo o mundo dos seres vivos, eles conferem aos fandamentos da Ciéncia uma seguranga que supera os do julgamento psicolégico que s6 tém valor na esfera da consciéncia. Por isso nao deve causar surpresa que os psicélogos se sintam inclinados a retornar & seguranca do ponto de vista biol6gico e utilizem a teoria dos instintos € da fisiologia. Também nio é de espantar a existéncia de uma opinio largamente difundida que considera a psicologia meramente como um capitulo da fisiologia. Embora a psicologia reclame, € com razo, a autonomia de seu préprio campo de pesquisa, ela deve reconhecer uma extensa correspondéncia de seus fatos com os dados da biologia.” * Seria espantoso pensar na psique como 0 tinico fendmeno biolégico a nio mostrar vestigios claros de sua hist6ria evolutiva. E interessante observar a convergéncia de alguns conceitos das neurociéncias e as idéias de Jung, Antonio Damésio ao falar sobre convengSes e regras que regulariam as sociedades humanas, diz: Muito embora essas convengdes ¢ regras tenham de ser transmitidas apenas por meio da educagio € da socializacao, de geragio em geracio, suspeito que as tepresentagdes neurais da sabedotia que incorporam e dos meios para implementar essa sabedoria se encontram ligadas, de forma inextric4vel, & representagio neural dos processos biolégicos inatos de regulagio. Vejo uma “tilha” ligando 0 cérebro que representa uma 20 “JUNG, CG. (1969). Pahoa fcr determining bowonbeavion. I The Stace and Dynami of the Poe (CW 8, New York: Peinceton University ret, pa. 232 16 Jung & Corpo cérebro que representa a outea, Naturalmente que essa trilha é constitufda por conexdes entre neurdnios? Jung, por sua vez, diz: ‘A natureza humana é caractetizada por uma instintividade inflexivel, bem como pelo fato de estar totalmente & mercé de seus instintos. A carga hereditéria oposta a esta situacio é constituida pelos sedimentos mneménicos de todas as experiéncias legadas pelos ancestrais. As pessoas muitas vezes se sentem inclinadas a encarar tais hipéteses com ceticismo, pensando que se trata de “idéias herdadas”. Evidentemente ni é disto que estamos falando, Trata-se, 20 contritio, de possibilidades herdadas de idéias, de “pistas” que foram tracadas gradualmente pelas experiéncias acumuladas pelos ancestrais. Negat que estas pistas foram herdadas cequivaleria a negar a hereditariedade do cérebro."” Como vemos as palavras “trilhas” em Damésio e “pistas” em Jung falam do mesmo motivo que seria 2 construgio a0 longo do desenvolvimento da humanidade de possibilidades de representagio de alguma forma herdadas pelo homem. Estio ambos falando da idéia de arquétipo, Damésio utilizando um referencial neurolégico ¢ Jung utilizando um referencial psicolégico. No entanto, como diz Jung, o fisico € 0 psfquico sio dois lados da mesma moeda, nfo podemos falar de um sem, 20 mesmo tempo, falar do outro. A visio nenrolégica € a visio psicol6gica sio apenas duas das possiveis formas de ver a questio. Ao dizer que essas “‘trilhas” ou “pistas” estio fundamentadas nas conexdes entre os neurdnios, Damasio esta fomnecendo um possivel substrato neurolégico para um dos mais importantes conceitos junguianos. Steven Pinker, psicélogo americano, fala sobre um aparato mental selecionado durante milhdes de anos, sem apresentando agora com a forma definida que conhecemos. Diz que 0 desejo iiltimo do ser humano seria a propagagio da espécie, a continuidade da vida e que para isso cada um de nossos comportamentos é adaptativo. Ele cita Darwin, que diz: “A sele¢io natutal nunca vai produzir em um ser nenhuma estrutura mais maléfica do que benéfica para aquele ser, porque selecio natural atua somente por e para o bem de cada om" Jung com seu conceito de individuagao diz mais ou menos o mesmo: Individuagio € um processo de diferenciagio, tendo como objetivo o desenvolvimento da personalidade individual. (..) somente uma sociedade que pode preservar uma coesio interna e valores * DAMASIO, A. oat, p.153. ® JUNG, CG. (1969). On Prychic Emogy. tn The Structure and the Dynamics of the Poche. CIV 8. New York: Princeton University Press par. 99 "PINKER, S. p. at, p. 397, Jung & Corpo coletivos ¢ 20 mesmo tempo garantit a maior liberdade possivel 20 individuo, tem possibilidade de uma duradoura vitalidade. Seré que podemos falar em individuacio como um proceso de selecio natural? Se pensarmos que cada um de nés é produto de uma linhagem e a melhor expressio de um desenvolvimento que vem acontecendo através de milhares de anos, estamos dizendo que somos a melhor expressio da espécie, o individuo “‘iltimo tipo”. Jung diz que “cada vida individual é em ultima instancia ao mesmo tempo a vida eterna da espécie.” Pensando em termos evolutivos, devemos, portanto, levar adiante essa tatefa afinando nosso desenvolvimento individual, contribuindo assim para 0 aprimoramento da espécie. A questio continua: como € que nos percebemos conscientes de algo? Susan Greenfield, professora de Farmacologia da Universidade de Oxford, tem também se interessado pela questio do problema da consciéncia. Ela sugere que essa experiéncia nao é qualitativa, no sentido da especificidade das conexdes neuronais envolvidas, mas quantitativa no sentido do nimero de neurénios engajados. B para que varios neurdnios estejam em comunicagio durante um determinado periodo de tempo é necessatio o trabalho dos neuromoduladores ou neurotransmissores, substincias quimicas facilitadoras das conexdes neuronais, “Quando esses neuromoduladores estio presentes, a resposta de um neurénio a uma determinada estimulagéo é muito maior do que quando essa estimulagio ocorre sozinha.™ (pg. 220), Entio, quanto maiot a quantidade dessas substincias em circulagio, maior a conectividade ncuronal pode set. Podemos entio de alguma forma tera experiencia subjetiva de consciéncia, A autora diz. que o aumento das conexdes neuronais vai se dando ao longo do tempo, a partir do desenvolvimento infantil, desde a concepsio. Ao longo da vida a consciéncia esta sempre vatiando, Nao hi um ingrediente mégico no cérebro que torne a consciéncia possivel. O fator critico pode ser o mimero de neurénios correlacionados em um determinado momento, é a extensio dessas assembléias neuronais que vai detetminar isso que chamamos de consciéncia, Ha um aumento do ntimeto de conexdes acontecendo 20 longo do desenvolvimento humano, o que € compativel com a idéia de um progressive desenvolvimento da consciéncia. Diz © senso comum que quando dormimos nao estamos conscientes. No entanto, enquanto sonhamos 0 EEG se totna idéntico 20 do estado completamente acordado, Greenfield diz portanto que 0 sonho é uma forma de consciéncia, podendo talvez servir como exemplo do lado mais fraco de seu continuun. Durante o sonho ha uma espécie de passeio pelo cézebro onde, porque nio ha estimulos que vém de fora garantindo uma ® JUNG, CG. op. ait, CW”, par. 758, » JUNG,C.G. Peholegy and Religion in Prcbolgy and Religion: Wert and Each. op. ot, CW 17. pat. 146, GREENFIELD, S. (1998) . How Might she Brain Generate Consiousmes? In From Brain t Contonsss. Bd Stoves Row. Princeton University Press. Princeton. 18 Jung & Corpo continuidade, existem apenas frigeis momentos de consciéncia. Isto poderia explicar por que 0 sonho parece ao mesmo tempo tio teal ¢ tio absurdo, com mudangas de estado que no fazem sentido, Essa constatagio parece referendar a maneira como Jung propunha ‘que os sonhos fossem vistos: como um continuum em relagio 4 consciéncia, nessa medida um processo complementar, como uma continuagio de algo que se da durante o periodo de vigilia Este me parece um ponto muito importante do pensamento junguiano, Ele diz que: Para mim, os sonhos sio natureza, € nio encerram a menor intengio de enganar; dizem o que podem dizer e tio bem quanto 0 podem como faz uma planta que nasce ou um animal que procura pasto. Os olhos também nao procuram nos enganar; talvez sejamos nds que nos enganemos, porque nossos olhos sio miopes!"* Na introdugio de Stmbolos de Transformagao Jung diz: A psique nio é de hoje; sua linhagem remonta a alguns milhdes de anos. A consciéncia individual € apenas a flor e o fruto de uma estacio, brotam do rizoma perene sob a tetta; e estatia mais de acordo com a verdade se levasse em conta a existéncia do rizoma. Porque 2 matéria raiz 6a mie de todas as coisas . Gerald Edelman, ptemio Nobel de medicina, que tem trabalhado com a questio da explicagao da consciéncia, diz algo muito parecido: (..) cada consciéncia depende de suas histéria e incorporacio tinicas. E dado que um self humano consciente é construido, talvez paradoxalmente, por interacdes sociais, e no entanto tenha sido selecionado, durante a evolucio a perceber principalmente os objetivos satisfagoes de cada individuo biolégico, talvez nao seja suxpresa que como individuos nés queiramos explicagdes que a ciéncia nio pode dar. Talvez nao seja surpresa que desejemos imortalidade (..) 0 mistério esté em imaginar como uma mente particular surge em relacao 4 sua propria historia pessoal.!” A questio que esses autores, tio diferentes ¢ no entanto tio proximos, abordam é 0 desafio de compreender como uma mente particular vai surgir. Falam sobre a historia pessoal de cada um, inserida num contexto cultural, moldando por sua vez desde o nascimento a BJUNG, CG, Meni, Sobor e Reflexes, Rio de Jacizo, Nova Frontira, 1975, pg. 226, “JUNG, € Gop. at, CWS, p.xxin "EDELMAN, G, op. . 139. 9 Jung & Corpo mente de cada ser humano individual. Cada um de nds € um ser tinico e portanto esté. no mundo € 0 vé a partir de sua propria equagio pessoal. Jung diz. que “A limitagio inevitivel que acompanha qualquer observacio psicolégica é a de que ela, para set vélida, pressupde 4 equacio pessoal do observador”. * Gerald Edelman diz. quase 0 mesmo: “Um individuo pode relatar sua experiéncia a um observador , mas este relato sempre seri parcial e relativo 1 seu proprio contexto pessoal”. Cada um de nés explica o mundo e suas vivéncias através de metéforas individuais. Cada um de nés tenta compreender a realidade a partir de seu ‘olho interno”, sua equacio pessoal ‘Temos aparatos mentais diferentes, reagimos ao mundo de forma diferente.Talvez no possamos jamais explicar 0 porqué de nos comovermos com um pér-do-sol ou com uma sinfonia de Mozart. Essa talvez seja tarefa para os artistas, que, nfo comprometidos com teorias cientificas, permanecem livres para expressar de forma ctiativa suas mais profundas emogaes, A nés analistas, talvez seja apenas possivel acompanhar nossos clientes em suas emogdes € em seus encantamentos. Com sua aquiescéncia, entrar em seus labirintos mentais, suas hist6rias individuais, suas mentes incorporadas ¢ auxilié-los nas batalhas contra seus monstros. Tal como Ariadne, ajudi-los, com o fio de nosso conhecimento, a encontrar 0 caminho que leva 4 verdadeira liberdade. E. que esse fio possa ser 20 mesmo tempo flexivel e forte, resplandecendo & luz de nossos conhecimentos tedricos nos labirintos da mente humana. JUNG, CG, pat, CWS, par. 213. EDELMAN ,G, pat, p. 140, 20 Jung & Corpo TRABALHO CORPORAL COM VITIMAS DE VIOLENCIA Angela Maria Carcassoli Kato Francisca Suely Barcelos* Introdugao Exte trabalho foi idealizado por um geupo de psicslogos do curso de especializagio em Psicoterapia Juguiana Coligada a Técnicas Corporais, ¢ foi realizado dentro dre dependéncias do Instituto Sedes Sapientiae, nos anos de 1998 ¢ 1999, em parcetia vom o Nicles de Referéncia as Vitimas de Violéncia — NRVV (atual CRVV). Embora apresentacio, no 1" Re-Encontro de Alunos ¢ Ex-Alunos do curso, tenha sido feta pelas profisionaie acima, é qubortante mencionarmos que houve neste trabalho a patticipacio de Antonio Fernando Stanziani, Ana Laura Rabelo de Araijo ¢ da docente e supervisora Neuss Matia Lopes Sauaia, Nestes dois anos foram atendidos pacientes com idades entre 6 ¢ 14 anos, agrupados por faixa etiria, e grupos de acompanhantes dos pacientes (pais ou responsiveis). Dentro do planejado, o ingresso dos pacientes no grupo coincidiu com o término do arendimento realizado pelo NRVV. Isto teve como objetivo nos eolocarmos num moments de transicio para os pacientes, no qual a problemitica da violencia ja tivesse eda Tazoavelmente teabalhada ¢ 0 préximo passo a ser dado fosse a retomada dos rumos de suas Vida, auxiliando-os a libertarem-se do estigma de “vitimas de violéncias”, pois a vida pode ¢ deve ser mais abrangente. Nao se trata de esquecer ou negar 0 ocottido, reac sim de poder Continuar seus caminhos, sem paralisar nesta dificlima situagio na qual as circunstincias o¢ colocaram. {Picélogn especialstaem PsicoterapiaJunguiana Colignd a Técnicas Coepotis plo Inst Sees Sapientie *Pscbloge espeilsta cn PicoeraiaJunguian Colgnda a Técnicas Corpor plo Institute Sees Sapienia. at Jung & Compo Por que realizar trabalho corporal para vitimas de violéncia? © corpo fornece o ambiente onde tudo se processa tanto a nivel biolégico quanto siquico. Nio se pode falas em mente e cospo separadamente, um nio existe sein o outtore que acontece com um traré reflexos a0 outro, Nas palavras de Jung: “A alma humana vive unida peicolene, ans unidade indissolivel, por isto s6 artficalmente & que se pode separar a Psicologia dos pressupostos bisicos da biologia” (C. G. Jung — CW8, pat-232) Embora Jung nio tenba se utilizado de técaicas corporais em seus atendimentos clinicos, obteve, da observacio de alterasSes nas reagdes fisioldgicas frente a determinadoe estimulos, 2 base para alguns de seus principais conceitos, entre eles o de complexo. Acrediteva cle que ‘io era somente a psique que sofia, nem somente o corpo, mas o individuo como win toe AA prOpria formacio do ego, centro da consciéncia, é posterior a formagio do que se denomina ego corporal. H através do diélogo corporal com sua mie que a crianca delimita Seu corpo no mundo e do mundo dos objetos. E exclusivamente em termos corporais que o bebé vive seus primeitos meses de vida. Quando sente fome, fio ou dor, ocoree a vivennss do desprazer que, em termos corporis, se txaduz por contragdes musculares, Bim contrspartids, vivencia prazet ¢ satisfagio quando alimentado e aquecido, 0 que se tradus Por descontracio ¢ relaxamento muscular. Portanto, ji se consideram aqui qualidades Fp Opals acopladas as sensagéesfisicas, que se roxnam registro de uma meméria corporal Fatos, muitas vezes, arquivados em nossa psique, mas nilo conscientes,estio, com certeza, registrados em nossos corpos. Nao somente os olhos sio o espelho da alma mas, de forma ‘mais abrangente, 0 corpo é também o espelho da alia De acordo com nossa formasio teérica Junguiana, entendemos que o trabalho corporal com um enfoque simbélico torna-se um caminho importante de ampliacio de consciénea ¢ de fortalecimento egdico. F ele que funciona como esteio da personalidad, etimnlo + ponte entre a vivencia do corpo ea construgio de um arcabougo psiquico. As crianas/adoleseentes Por ns atendidos traziam esta demanda, pois carregavam em seus cozpos memorias de StruagOes vividas ou presenciadas com muita dor e softimento, Este ttabalho se propos a Propiciar uma oportunidade de fazer flit a cnergia represada, reorientando-a no sentido de sedimentat registros corporais mais positivos, que pudessem semear novamente 0 prazer de Wivek Estas ctiancas/adolescentes certamente beneficiacam-se de um trabalho que pretendew auxilié-ls a se reorganizar para que tenham vidas mais construtivas e felizes, A literatura sobre o tema da violéncia descreve duas vertentes etiolégicas basicas: a violéncia de origem psicolégica © a de origem fisica. Nesta titima categoria destacam.ec 6 abuso sexual ¢ 0s maus tratos fisicos com altos indices percentuais. No entanto, surpreende © fato de que os trabalhos propostos para essa populacZo, em sua maiotia, nto englobar nalquer tipo de abordagem corporal. Estarfamos, entio, diante de algum tipo de tabu? 4h idéia de tabu necessariamente permeia 0 ponto que tangencia o sagrado e 0 profano ‘Trabalhar com eriangas que jé tiveram a expetiéncia de verem seus corpos profanados pela 22 Jung & Corpo violéncia, ousar tocar estes corpos, coloca o psicoterapeuta frente 2 alguns riscos. Primeiramente surge o medo de retraumatizar a crianga, pois qualquer toque ou intesvengio mais firme pode ser interpretado como uma nova violéncia ou agressfo. A crianga freqiientemente apresenta uma aversio 20 toque, uma defesa frente a uma aproximagao, congelando seu corpo, bloqueando seu contato com outtas criancas € com o psicoterapeuta, Desenvolve também uma agressividade reativa e pouco transformadora, muitas vezes tornando-se, ela propria, uma agressora. Para o psicoterapeuta, 0 contato com a ferida da crianga certamente o remeteré & sua propria ctianga ferida que, se por um lado pode ser de grande utilidade para dimensionar 0 grau de sofrimento do outro, por outro pode amedrontar e bloqueat sua atuacao terapéutica, As freqiientes situagdes de falta de limites, de desrespeito as regras, normas sociais € morais, trazidas por estas criangas podem levar a um outro perigo. E natural ¢, racionalmente compreensivel, que elas tepitam padrdes de comportamento aos quais foram submetidas, porém tal compreensio pode nfo evitar que o terapeuta seja instigado a agir com seu lado agressivo para por “ordem na casa” e se surpreenda agindo com seu lado mais sombrio ¢ desconhecido. Todas estas idéias devem, portanto, set cuidadosamente consideradas no atendimento a esse tipo de populagio, pois sabemos que é do veneno que fabricamos o antidoto ¢ é s6 tocando esses corpos feridos que se alcancari a possibilidade de fazer renascet um corpo saudavel e criativo, Os objetivos deste trabalho ~ Facilitar a reaptoximacio da crianga/adolescente com o préprio corpo, alvo da violéncia em muitos casos; - Promover a socializacio através do trabalho em grupo; - Possibilitar a re-significagio do ptdprio corpo e da figura do adulto; - Ter como proposta uma leitura simbélica do corpo, que possibilite uma compreensio do softimento expresso em linguagem corporal; - Promover vivencias de bem-estar fisiopsiquico através do lidico com o corpo; ~ Incentivar uma forma de comunicacio que nio parta da violencia, mas do respeito; - Reforgar a auto-estima, evidenciando seus recursos préprios, valorizando-a com 0 intuito de um fortalecimento da estrutura egéica; - Facilitar a construgio ou reconstrugio de sua identidade. 23 Jung & Corpo O desenvolvimento do trabalho © taabalho foi planejado levando-se em conta a necessidade de utilizagio de técnicas que trouxesscm uma amplia¢io da consciéncia do corpo dentro de uma proposta hidica. Houve certa dificuldade inicial, pois trabalho corporal era para eles uma experiéncia totalmente nova. Com decotret do trabalho, surpreendiam-se com as descobertas de novas sensagdes que estavam adormecidas ¢ afastadas da consciéncia. ‘A conscientizacio do proprio corpo fez emergit memérias corporais através de técnicas de auto-percepgio relaxamento. Seus comentitios apontavam beneficios em suas vidas ¢ em suas relagdes com o mundo. Bibliografia Alexander, G. (1991), Eutonia — um caminbo para a pereepeao corporal. Sio Paulo. Martins Fontes, Bittencourt, M.T: (1990). Novos camrinhos no processo educacional para alunos de graduagio em pricologia: 0 método Feldenkrais. Dissettacao de mestrado. PUC-SP. Feldenkrais, M. (1977). Contciéncia pelo movimento. S20 Paulo. Summus. Furniss, T. (1993). Abuso sexual da evianya — 1ma abordagem multidseiplinar. Porto Alegre. Axtes Médicas, Jung, C.G. (1984). A Naturega da Psigue, V8, Sio Paulo: Vozes. Jung, CG, (1993). Pricolagia em Transigéo, VO, Sio Paulo: Vozes. Wallon, H. (1995). As Onigens do Caniter na Crianga, Sao Paulo: Nova Alexandria. Westbury, E. e Tutty, LM. (1999). The efficacy of group treatment for survivors of childhood abuse, In: Child Abuse and Neglect, Vol.23, p.31-44. 24 Jung & Corpo A ADOCAO EO INCONSCIENTE: UMA ABORDAGEM SIMBOLICA DA PSICOLOGIA ANALITICA Antonieta Maame Zimeo! “Entre a raiz e a flor hd 0 tempo” (Carlos Drummond de Andrade) Falar sobre a adogio é sempre uma vivencia catregada de muita emocio para mim, por eu estar envolvida com esse tema até a minha prépria alma. E é com a linguagem da alma que exponho a presente elaboracio. Este é um trabalho de pesquisa te6rico-pritico que se iniciou acerca de onze anos atris, € que ainda continua, sendo que, entre tantos outros aspectos analisados, neste momento serio abordados, de maneira sintética, apenas trés t6picos, a saber: 1. Expressées simbélicas 2. Mitos e deuses 3. Ciimplices do destino No decorter da minha pritica psicoterépica observei que muitos casos atendidos eram tema citcundaram a minha vida profissional, o que me levou a indagar 0 “porqué” eo “para que” desse tipo especifico de paciente, tendo assim iniciada esta jornada de busca. de adotados, ¢ que uma série de acontecimentos “coincidentes” Faz-se mister esclarecer q 08 casos a serem citados se teferem & adosio mal sucedida, que denomino “pseudoado¢a0”, uma adogio parcial frente & qual o adotivo vé a si proprio parcialmente, dicotomizido e cindido a nivel psico-emocional. Enttetanto, nao intento levar ‘Pscoterpeut xpeiaisa em Prcotapa de OrientaioJanguana Colgadat Técnicas Conponis plo lasiuto Sedes Sapientiae. Membro da Fundacin C G Jung de Psicologia Analtea (Buenos Aires Argenton) 25 Jung & Corpo a0 deserédito 2 adocio enquanto alternativa mais vélida Para as criangas sem familia ou inrutucionalizadas, uma vez que sio incontiveis os casos de adoces bern sucedidas, € que, talvez pot isso, nio chegaram ao consultério, 1. Expresses simbélicas A explanacio do material clinico a seguir no tem pot base uma Postura interpretativa, mas sim, um olhar simbélico, uma vez que os aspectos sutis a serem citados sio em ultima instincia manifestasoes do inconsciente, podendo see considerados com, “entrelinhas” do Processo de adocio, sendo aqui em especifico focalizados os casos de no conhecimento consciente da adocio por parte do adotivo, Esclatego que pessoas nio adotadas podem também apresentar expressdes similares a OAs, Uma vex que 08 temas abandono ¢ rejcicio sio universais, ou scja, sio arquétipos, Parto do principio de que toda a relagio humana € organizada, ‘mediada, tanto por fatores ‘econhecimento e conscientizagio promovem a sade psiquica A experiéncia tem me mostrado que quando 0 adotivo néo sabe conscientemente que 0 & sabe porém inconscientemente, e quando nio se torna consciente da sua condicio, 0 seu Proceso de individua io pode ser obstruido desde a infincia, © abandono ¢ uma condigio que geralmente antecede a adocio, ¢ sendo o abandono ¢ eligao arquétipos, o inconsciente sabe da condigio da adogio mesmo que a consciéneia nfo saiba. O inconsciente vai estar incessantemente fornecendo “avisos? da algo oculto ara consciéacia, através dos simbolos manifestos em sonhos, fantasias, est6rias, desenhos, ete. O simbolo é uma espécie de instincia mediadora entre a incompatibilidade do inconsciente € do consciente, entte 0 oculto ¢ o revelado} éportanto, exatamente através ele que ocorre © conhecimento inconsciente da diade abandono-adogio, porém nesses casos can, poder atuar conscientemente. ue além deles eu era a nica pessoa que entio pascava a saber sobre adogio, dado que nem o proprio pediatra, parentes ¢ amigos sabiam, (ApS: a confirmacio da esterilidade materna, 0 casal decidiu adotar uma crianga, porém ‘udo foi planejado para que ninguém soubesse, Mudaram para otra cidade, retornando 26 A Jung & Corpo para a cidade anterior quase dois anos depois, com uma menina que pata todos era filha biolégica deles. Na fase do psicodiagnéstico, a mae me telefonou em desespero contando 0 sonho que a menina lhe relatara: “cu ontem sonkei que vocé nao podia ter nené e foi pegar um numa casa que tinha um monte para escolher e vocé escolheu eu”. Nesse mesmo dia, na sessio, a crianca espontaneamente me contou esse sonho ¢ lhe solicitei que o desenhasse, e na seqiténcia Ihe perguntei o que achava do mesmo, ¢ ela me tespondeu: “ah! foi s6 um sonho, nao é de verdade, é s6 bobagem da minha cabega”, A maneira como 0 consciente da crianga adotiva (que nfo sabe que o é) reage & seme- Ihante ao de qualquer outta ctianga, nao adotiva, que se depara com situacdes nao informa- das acerca de sua pessoa, ocasionando um conflito, um estado de softimento psfquico. Segundo a Psicologia Analitica, as tentativas da consciéncia de entrar em contato com os complexos sio inicialmente do tipo mégico-apotropiico, isto é, tentativas de exorcizé-los, considerando-os como nio existentes, chamando-os de “imaginagdes”, constituindo assim uma forma de assimilagio, ou seja, uma forma de negacio, pois aquilo a que se nega a existéncia nfo existe. Entretanto, com o decorrer do tempo, essas manobras vém a falir e entio insurge um estado de descompensacio deslocamento. A consciéncia nfo esté mais em condicao de negar € lentamente € 0 complexo que se apropria da consciéncia, assimilando-a. Sem o conhecimento consciente, a energia psiquica que se direciona para o inconsciente nao consegue se ttansformar saudavelmente, reaparecendo como sintomas muitas vezes neurdticos, resultantes das informacdes antagénicas entre o consciente € 0 inconsciente. Geralmente, como no caso acima exemplificado, 0 encaminhamento ao psicélogo é feito devido aos sintomas-distirbios, e nfo pela adocio mal sucedida em si. “Na sua maioria, essas criancas pareciam tet um enorme “buraco” afetivo emocional interno incapaz de scr suprido, estando sempre muito insatisfeitas”. (Zimeo, A. M. Nas entrelinbas da adogdo. p.2) Este “buraco” era simbolizado nos desenhos de diferentes maneiras. Nos testes projetivos como o HTP, era comum a Arvore set desenhada com um buraco no tronco, ¢ as estorias versavam sobre 0 tema do abandono. Caso n° 2: Uma menina de 9 anos de idade, encaminhada pela escola por apresentar comportamento deptessivo, manifesto pelo isolar-se socialmente. Apés fazet 0 desenho da 4rvore com um buraco no tronco, ela conta: “esta é uma estéria triste, muito triste, porque ‘2 mamie passatinho abandonou o ninko, porque quando foi levar comida para o filhote, 0 ninho estava vazio ¢ ela foi embora... ela nfo viu que 0 ovo com o filhote tinha caido no chio... e uma cobra vai comer ele”. 27 Jung & Corpo A firvore, de um modo geral, simboliza a evolugio, 0 crescimento, o desenvolvimento de ‘uma pessoa; portanto, o buraco nela inscrito reptesenta simbolicamente um “furo” psiquico nesse desenvolvimento, pela inexisténcia ou deficiéncia afetiva da relagéo parental Sobre isso, Edinger diz: [..] nos casos de perda de uma figura parental cm tenta idade em que nfio houve uma substituigio adequada, mantém-se uma espécie de furo na psique: uma importante imagem arquetipica no softeu personalizacio, retendo por conseguinte, um poder primordial ¢ ilimitado que ameaca inundar 0 ego caso este dele se aproxime (Anatomia da Prigue. p. 114). Essa imagem arquetipica que nfo sofreu personalizagio € a mie arquetipica que nio pode ser constelada na mie ou no pai adotantes, quando estes inconscientemente negam que a crianca € adotiva, negando em iltima instincia que é um filho, um filho adotivo, Caso n°3: Um menino de 8 anos de idade, encaminhado pela escola por comportamento social agressivo e distdirbios de aprendizagem. No desenho da figura humana, ao desenhar a si proprio ele diz: “esse sou eu e aqui tem um buraco... é um coragio”. Por detris disso, nas “entrelinhas”, existem lacunas, “buracos” afetivos nao elaborados concernentes pessoa de cada um dos pais adotantes, e que sio inconscientemente repassados para a crianca através da relacio com esta Na fala ¢ na escrita cra comum a ctianga nfo utilizar 0 pronome possessive, ou entio usar vocdbulos gerais para as relacdes familiares, como por exemplo: “o homem/o pai” a0 invés de “meu pai”; “a mulher/a mie” ao invés de “minha mic”; invés de “minha avo”, etc ‘a mae da mulher” a0 Correspondentemente, na fala dos pais 0 distanciamento afetivo era 0 mesmo quando se referiam 4 ctianga, dizendo por exemplo: “o menino/a menina” ao invés de “meu filho/ minha filha” “Tanto a palavea falada quanto a escrita retratam imagens que sio configuragées, tanto de tum processo simbélico intrapsiquico, quanto da dindmica interpessoal pais-filhos adotivos, que correspondem a atributos constitutivos da emocao presente, que nos exemplos supracitados sio frutos da defesa, da reciproca negacio inconsciente do vinculo filial-parental Em criangas acima de 9 anos de idade, observou-se freqiiente e acentuada dificuldade em desenhar a familia, pois a nocio de familia nfo foi internalizada, pot nao ter sido de fato vivenciada afetivamente, Muitas dessas criangas, quando solicitadas, me perguntavam: “Familia, como assim desenhar uma familia? Nao sei como é!”; e quando chegavam a desenha- la, ow a ctianga nao se inclufa no desenho, ou se desenhava numa folha & parte, ou se localizava na mesma folha, porém, distante dos outros membros. 28 Jung & Corpo Ou ainda, quando raramente se incluia, era comum desenhar a si e aos pais com rostos sem face. Dessa forma, a no identidade familiar também € expressa simbolicamente nos desenhos através de rostos sem olhos, boca, nariz, manifestando a auséncia, 0 vazio, do “eu-pai/ eu-mie/ eu-filho”, 0 vazio do eu. © adotivo, por nao saber de suas origens, se torna um ser alienado de si mesmo. Face a isso, como poderd esse set, alienado de si proprio, processat a sua individuagio se a sua identidade foi negada ou distorcida? Se para ocorrer 0 processo de individuac: ria a integracio dos contetidos inconscientes a consciéncia, ¢ se o adotivo nfo sabe conscientemente que o é, esse processo jé no perfodo da infincia tem um obstéculo intransponivel, e o destino de “ser quem é” no se cumpre. io se faz preliminarmente necess De acordo com Jung: © termo “individuagio” pode [..] indicar somente um proceso psico- légico que tealiza destinos individuais dados, ou seja, que faz do homem aquele set singular que é (CW. 8/2, § 174) [-] A individualidade psicol6gica existe inconscientemente & prioti, conscientemente ao invés somente na medida na qual subsiste 0 conhecimento de um peculiar modo de ser (CW. 6, § 465) © proceso de individuacio, como conota Jung, é a tomada de consciéncia da propria individualidade, 0 fazer-se individuo psicolégico. “Ninguém pode viver de outra coisa, se- io daquilo que se &” (CIF. 14/1, § 304) 2. Mitos e deuses As fronteiras do proceso de individuagao da pessoa adotiva se expandem na mitologia, mais precisamente no “mito do hetdi”, Sabe-se que muitos herdis foram abandonados ¢ adotados, ¢ a claboracio desta tragédia constelada concretamente em suas vidas requer 0 esforco psiquico para 0 percurso simbélico do “nascimento-morte-renascimento”. A jornada do her6i (ow da individuacio) é uma jornada mitica-humana, ou seja , um peteurso arquetipico ¢ portanto, constitutivo de todo e qualquer ser humano a nivel simbé- lico. Na mitologia grega, so iniimeros os petsonagens miticos que viveram essa jornada, como por exemplo: Zeus, Apolo, Dioniso, Asclépio, Paris ¢ tantos outros. Sera comentado 0 mito de Dioniso, por nele residirem aspectos simbélicos capitais similares 4 jornada herdica da pessoa adotiva, como os temas: duplo-nascimento, dupla- 29 Jung & Corpo mie, exposi¢io, abandono, nostalgia. Contando um pouco sobre 0 mito: Dioniso, também chamado de o deus nascido duas veges, era filho de Zeus, sei dos deuses, € de Sémele, princesa de Tebas, porém mortal. A esposa imortal de Zeus, a deusa Hera, enfurecida com a infidelidade do marido, disfarcou-se em ama-seca ¢ foi a0 encontro de Sémele, ainda grivida, ¢ a persuadiu a pedir que o marido se mostrasse em todo o seu esplendot ¢ gloria divina. Zeus satisfez a vontade de Sémele, a qual nfo suportando a visio do deus citcundado de clardes, tombou fulminada. Zeus retirou a crianca que ela gerava € ordenou que Hermes, o mensageiro dos deuses, a costurasse em sua (Zeus) coxa. Ao terminar 4 gestagio, Dioniso nasceu, vivo e perfeito. Contudo, Hera continuou a perseguir a estranha crianga de chifres, e ordenou aos Titas, deuses tetrenos, que matassem o menino, fazendo-o em pedagos. Zeus conseguiu resgatat © coracio da ctianga que ainda batia, colocando-o pata cozinhar, junto com sementes de romi, transformando tudo numa pocio mégica, a qual deu de beber para Perséfone, que acabara de ser raptada por Hades, deus das trevas ¢ da escuridao ¢ que se tornaria sua esposa. Perséfone engravidou e novamente deu 2 luz a Dionisio, o renascido das trevas. Por esse motivo era chamado de Dioniso-laco, 0 que nasceu duas vezes, deus da luz e do éxtase. Convocado por seu pai, Zeus, para viver na terra junto com os homens ¢ compartilhar com ele as alegrias ¢ sofrimentos dos mortais, Dioniso foi atingido pela loucura de Hera, indo perambular pelo mundo 20 lado dos sitiros selvagens, dos loucos ¢ dos animais. Deu 4 humanidade 0 vinho ¢ suas béncios, € concedeu, a0 éxtase da embriaguez, a redencio spiritual a todos que decidiram abandonar ¢ renunciar & riqueza e a0 poder material. Por fim, seu pai celestial permitiu-Ihe retornar ao Olimpo, onde tomou seu lugar & direita do tei dos deuses. Nesse petiodo, Dioniso conseguiu resgatar sua mie Sémele e revivé-la (intese extraida de: Sharman-Burke, J; Greene, L. O Tard Mitoligico. p. 19-20). A afabulagio do duplo-nascimento, que quer dizer também dupla-gestagio, remete a0 esquema cléssico da iniciacdo: nascimento-morte-renascimento. No mito, o duplo nascimento de Dioniso configura-se seja quando é gestado na coxa de Zeus e, depois quando nasce de Perséfone. Assim como Dioniso, os adotivos também foram rejeitados, vindo a ter uma segunda mie, a adotiva, que simboliza desde aqui, a possibilidade do renascimento a nivel psiquico. A dupla-mae refere-se a uma mie humana ¢ @ outra arquetipica. Sémele foi sua mie mortal, porém, através de Zeus (deus) € de Perséfone (deusa) se configura a sua mae arquetipica, a qual é projetada em quem cuidou dele. O mesmo se observa com 0 adotivo, que tem uma mie teal ¢ uma simbélica, ¢ que constelaré esta tiltima na primeira. Alids, como qualquer um de nés, adotivos ou nio. Dioniso mantém, por um certo tempo, uma conexio negativa com a mie arquetipica 30 Jung & Corpo represcntada por Hera (deusa que tudo fez pata o aniquilar). A deusa Hera comporta a mie- bruxa, a mae mé, simbolicamente a face materna da rejeicdo, pois cla nao aceita a sua existéncia, que no adotivo ocorre quando a mic ¢/ou o pai adotantes inconscientemente no 0 accitam como filho, repetindo-se novamente o abandono na vida da crianga, s6 que desta vez dentro do prépsio contexto da adogio. A conseqiiéneia é trigica, pois assim como Dioniso é tomado pela Joucura engendrada por Hera, 0 adotivo psiquicamente também se dissocia, quet por ndo saber conscientemen- te de suas origens, quer por no se sentir afetivamente filho dos pais adotantes. Dioniso fica possuido, tomado pelo aspecto ne que mitica e psicologicamente o mesmo ocorre com o adotivo quando tomado pelo arquétipo do abandono-tejeigio, © que compe o complexo materno terrotifico. tivo do arquétipo materno, representado por Hera, sendo Zeus, que sempre interfere a seu favor, pode ser entendido como a consciéncia de algo que € seu por direito, ser filho dele e herdar seu trono individuacional. B como se Zeus simbolizasse o constante chamado de quem Dioniso realmente é. A conscientizagio (Zeus) desses conteiidos cindidos ou dissociados € a alternativa para a reintegragio psiquica do adotivo, sendo 0 ponto inicial para que 0 ego possa comungar com o Self, podendo assim o adotivo recompor quem ele de fato é Esta recomposigio também ocorre quando Dioniso, qualificado de “touro” pelos poetas, € dilacerado pelos Titis e sua carne devorada pelas Bacantes. Segundo Brandio: [..] despedagando animais ¢ devorando-os, os devotos de Dioniso integram-se nele ¢ o recompdem simbolicamente, © que consoante Jung, configura a conscientizacio de contetidos divididos [...] De fato, os Titis, comportam-se como mestres de iniciagio, no sentido de que matam o nedfito, a fim de fazé-lo “renascee” numa forma superior de existéncia [-.] Dioniso ¢ 0 deus da metamorphosis, quer dizer, o deus da transformacio, (Mitologia grega. vol. L. p. 137 € 135), Mas afinal, o que é que motte ¢ renasce no adotivo? Algo que ele perde e reencontra, a sua identidade. Esse processo envolve uma busca para o interior de si mesmo; é a regressio da enengia para o inconsciente a fim de resgatat a mie arquetipica com quem perdeu o elo, ou melhor, que nao pode ser configurada nos mae/ pai adotantes. Ele busca a si através da mie. Assim, Dioniso representa a crianca divina que, em todos nés, vive esta eterna busca, E Hillman diz: Esta é a figura clissica do Puer Aeternus: 0 componente eternamente jovem de cada psique humana [...] que esta sempre ansiando, ¢ que em Ultima anilise esta ligado & mae arquetipica. Nosso poths refer 31 Jung & Corpo natureza angelical, e nossos anseios e viagens errantes pelo mar so efeitos, em nossas vidas pessoais, das imagens transpessoais que nos solicitam, ‘nos impelem e nos forcam a imitat os destinos miticos (Estudos de psicologia arquetipica. . 61 € 77) E nesse sentido que podemos dizer que somos todos adotados, que em cada um de nés habita um adotado, cujas caténcias e temores remetem a um Deus-Pai para consolo, mas, clama pela vinganga do abandono, do sentimento de fraqueza. O conflito esta presente ¢ é constitutivo do ser humano. Mas, neste trabalho importa refletir sobre estes mecanismos no adotado, sobre quem abandono e sofrimento foram recair. Dioniso exccuta essa busca descendo até o fando do Hades para de lé arrancar sua mie Semele ¢ confetir-Ihe a imortalidade. Hades pode simbolizar 0 inconsciente coletivo nas suas profundezas, e s6 um mergulho profundo neste vasto e infinito oceano é que nos fari te-significar a propria vida, pois nele eside a origem de tudo. A busca das origens é um tema universal (arquetipico), um motivo mitico presente em todos nés. A crianca adotiva, como qualquer outra crianga, em algum momento de sua vida, naturalmente, indaga sobre de onde veio, pata entio poder se orientar para onde vai. A integragio do que a crianga adotiva traz de suas origens e de seu passado, ao longo do seu desenvolvimento individual, 86 € possivel se os pais e a crianca aprenderem juntos a compreender esses dados. A restitui¢io do que a ctianca viveu permitira o sentimento de sua continuidade ¢ de sua identidade, Trata-se de um processo que reconstréi o passado em fungio do presente, com o olhar voltado para o futuro. adotivo poder entio cumprir o seu destino: o “quem sou” e 0 “para que sou”. 3. Cimplices do destino Confesso ser cimplice de tudo que foi exposto, através da minha ancestralidade. Meu sobrenome paterno foi inventado ha trés geragdes passadas. Numa das vezes que estive na Italia, em 1989, obtive a confitmacao de que meu bisavé paterno tinha vivido em um orfanato no inicio de sua infncia, sendo adotado por um casal, que assim como ele, desconhecia sua origem biologica. Pot parte materna, minha avé também italiana, foi criada pela propria mae como sendo adotada, porque aquela acteditava que a filha morrera durante 0 parto, supondo que 0 matido The trouxera uma outra érianga em seu lugar. Compreendi entio “por que” e “para que”, por obra do destino, sucederam comigo tantos encontros com os adotivos, Nao acredito em coincidéncias; por intimeras vezes cu conseguia entender 0 que essas criangas queriam me dizet, mesmo que nada pronunciassem, € ptincipalmente sentir o que sentiam no seu coragio. B importante esclarecer que, quando falo em destino consideto ambos os principios, Jung & Corpo causal (“pot que) ¢ final (“para que”), entretanto ressalto a visio simbélica desse termo, enquanto uma possibilidade a porvir, com um sentido (Sinn). Em 1990 comecei a ministrar palestras ¢ a publicar artigos sobre o tema da adocio, porém nenhum adotivo chegou a6 consultério através dessa divulgacio, mas exatamente ‘como antes, cles continuavam vindo sem 0 conhecimento prévio da minha experiéncia pro- fissional com a adocio. Anos depois me mudei de Si Paulo para o Parang, e acreditei que o meu encontro com 08 adotivos se romperia, ¢ assim que recomecci 0 atendimento psicoterépico procurei um orfanato na nova cidade para prestar um trabalho psicolégico voluntario, mas no localizei nenhum, Apés trés meses, a vizinha do consultétio, a qual eu nao conhecia, pediu que eu atendesse uma menina drfa, que habitava no orfanato coordenado por el. Em 1997, a0 desenvolver um trabalho mais profundo sobre esse tema em outra Pés- graduacio, apenas depois dos grupos de supervisio terem sido formados € que vim a saber que “coincidentemente” a minha supervisora tinha uma trajetéria pessoal com a adogio, ou seja, era mie adotiva, ssas situagdes supracitadas so algumas dentre tantas outras que me sucederam. Como podem ser entendidas essas sucessivas “coincidéncias”? Conforme Jung, esses sio eventos sincronisticos, sendo a sincronicidade compreendida como um “principio de conexio acausal”. Nio é uma causalidade magica, mas sim a concomitincia entre dois fatos que nio sio regidos pela causalidade. Uma conexio que ocorre entre a psique pessoal ¢ 0 mundo material, ambos considerados apenas como diferentes formas de energia, justamente por serem regidos pelo arquétipo. Na palavras de Jung: [J] no apenas é possivel mas até bastante provivel que psique € matétia sejam dois aspectos diferentes de uma s6 € mesma coisa. Parece- me que os fendmenos sincronisticos apontam nesta direcio, pois mostram. que © nao psiquico comporta-se como psiquico, ¢ vice-versa, sem que haja qualquer conexio causal entre eles (CW. 8/2, § 418). Em Reflexies Tedricas sobre a Natureza da Psigue, Jung compata, de forma sistemética, 0 tecutso de uma analogia entre a Fisica Quiintica psique, ou seja, uma profunda convergéncia de perspectivas entre a Fisica e a Psicologia, dizendo: [..] comparada a outras ciéncias naturais, a Psicologia se encontra em uma situagio critica porque the falta uma bare clocada ao eterno do seu objeto Nio pode traduzit-se ou reconhecer-se que em si mesma. Quanto mais se alarga 0 campo de seus objetivos, mais estes se fazem complexos, ¢ mais, The falta um Angulo visual distinto do seu objeto. E quando a complexidade retoma a ptépria complexidade do homem empirico, a sua psicologia de- 33 Jung & Corpo semboca inevitavelmente no mesmo proceso psiquico. ) condigdes de distinguir-se desse, mas torna-se o processo idéntico. O efeito €0 seguinte: o processo tetoma a consciéncia ¢ |... a psicologia é 0 “fazer- se consciéncia” do proceso psiquico mas nao é uma explicagio de tal Processo, porque cada explicacao do fato psiquico nio pode ser outra que © proprio proceso vital da psique [..] (CW. 8/2, § 429). OBS: O grifo € meu e proposital E € exatamente nesse ponto que Jung cita a analogia entre a Fisica Quintica e a psique. Elle busca recursos de apoio na Fisica por acteditar que em certas zonas de contato entte 0 fisico e 0 psiquico fosse operativo o principio de sincronicidade. Em particular, o conceito de arquétipo, na sua irrepresentabilidade constitutiva — que porém esté ligada com o seu operat “inditeto” sobre a consciéncia — é que mais se beneficia, segundo Jung, das vantagens provenientes da correspondéncia estabelecida com certos setores de pesquisa da Fisica. Assim, conforme Jung: [.]Também a Fisica apresenta uma situago andloga. Existem, na Fisica, particulas que por si ndo sdo petceptiveis, capazes porém de efeitos em base & cuja natureza podemos consttuir um determinado modelo. A representasio arquetipica, 0 assim chamado motivo ou mitologema, corresponde a uma construgio do género [..) Quando a Psicologia hipotetiza, com base nas suas observacées, a existéncia de certos fatores psicdides irrepresentiveis, se comporta do mesmo modo que a Fisica quando consttéi um modelo de atomo[..J (CW. 8/2, § 417). A sincronicidade é quintica pelo fato de existir uma concomitincia entre o fisico ¢ 0 psiquico, ou entre o psiquico ¢ 0 psiquico. B 0 fato do individuo perceber a concomitincia propicia favorecer o significado, Assim, os fatos estio sempre interligados mas depende do “‘olhar” do observador pata perceber a concomitincia c qual o significado (subjetivo) da mesma. Esse olhar é em tiltima instincia simbélico, ¢ a interpretacio do simbolo é pessoal, ou scja, subjetiva. Para a Fisica Quantica o Universo é como um mar de ondas quinticas, A energia quintica se move por ondas, as quais transportam informacées, interligando tudo no Universo. Daf advém a idéia de maccocosmo € mictocosmo interligados, unificados. Isto porque a energia quintica que é uma enetgia primitiva, tem seu deslocamento mais ripido do que a velocidade da luz, onde 0 todo ¢ suas partes mantém uma reciproca inter-relagio ¢ similaridade. Poderiamos comparar o Universo (mactocosmo) como sendo um bolo ¢ cada um de nds (microcosmo) como sendo as fatias, e portanto tudo o que esté no bolo (como pot exemplo, farinha, leite, ovos, etc.) esté também em cada fatia, Por isso para compreendermos 0 Uni: 4 Jung & Corpo verso nio precisamos buscar fora, mas sim dentro de nés mesmos. Assim como 0 todo contém as partes, cada parte contém o todo. A sincronicidade seria como uma pedra que lancada num lago forma varios circulos, sendo que tudo 0 que se encontrar numa mesma faixa, mesmo que distante, tem a mesma informagio. Dessa forma, por destino compreende-se algo organizado sincronisticamente com uma diregio. Quando falamos em Universo nos referimos ao infinito a nfvel de espaco ¢ tempo, onde no ha comego € no hé fim, sé mudanga, ou seja, um proceso continuo. Nesse sentido, o tempo € 0 espaco niio sto absolutos, pois sio na realidade uma construgio do pensamento, da consciéncia. Jung tenta ampliar a rclatividade espago-temporal dos eventos, para neles incluir, como ulterior elemento determinante, o “estado psfquico”, desde que este seja definido no modo mais amplo possivel: [..] Nas experiéncias com o tempo e 0 espaco, respectivamente, esses dois fatores teduzem-se mais ou menos a zero, como se 0 espaco ¢ 0 tempo dependessem de condiges psfquicas, ou como se existissem por si ‘mesmnos ¢ fossem “produzidos” pela consciéncia.[..] Em si, 0 espaco ¢ 0 tempo consistem em nada. Sao conceitos hipostasiados, nascidos da atividade disctiminadora da consciéncia ¢ formam as coordenadas indispensaveis para a descti¢o do comportamento dos corpos em movimento. Sio, portant, de origem essencialmente psiquica [..] (CW. 8/3, § 840). Assim, mais e além do que uma tentativa da consciéncia de explicar 0 que é espago € tempo, se poderia atribuir a estes um cardter simbélico de “pontes” unissonas entre 0 antes € 0 depois, ¢ entre 0 ki € 0 aqui, num todo dinico ¢ continuum. Essa interconexio transcende todos os nossos sentidos, ¢ toda ¢ qualquer explicagio se apresenta como um mero constructo teérico redutivo. Em outras palavras, 0 que permanece aqui como uma questo em aberto é 0 fato de que tanto a Psicologia Analitica quanto a Fisica sabem que existe algo que nao é 0 espaco- tempo; sabem apenas que existe algo além, mas nfo sabem o que é, ou seja, que permanece como um constructo teético, fruto da consciéncia, O além do espago-tempo nao é fisico, é imensuravel. Mas 0 que esti além do espago-tempo esti dentro de todas as coisas, dentro de cada ponto de nés mesmos, dentro de cada ponto do Espago (Universo). Portanto, dentro e fora simultaneamente, numa interpenetragao de universos. 35 Jung & Corpo Esse além, essa consciéncia supetior, jamais poderd ser atingida em sua plenitude, mas certamente ser vivenciada através dos encontros com 0 “outro” € “consigo mesmo”. Esse além sempre existiu ¢ existité além de nds e em cada um de nés, e também por infinitas vezes viti a0 nosso encontro, de maneira natural, para que cumpramos 0 nosso destino. B assim como um poema esse além é inesgotivel. Gragas quero dar ao Divino labirinto dos afetas © das causas pela diversidade das eriaturas (gue foram este singular Universo, pela reo que no cessaré de sonbar com um plano do labirint, ‘pelo amor que nos deixa ver os outros como os v6 a divindade, pelo fulgor do fogo que nenbum ser bamano pode olbar sem um assombro antigo, pelo pio ¢ pelo sal ‘pelo mistiio da rosa que prodiga a cor e que nao a vé, ‘pela arte da amizade, pela linguagem, que pode simular a sabedoria, pela manba que nos depara a ilusio de um principio, pelo valor ¢ a fiiidade dos oxtros, ‘pelo fato de que 0 pooma & inesgotével @ se confiunde com a soma das criaturas e jamais chegard ao sltimo verso, ‘pelos minutos que precedem 0 sonbo, ‘pela misica, mistriosa forma do tempo, (lorge Lads Borges) 36 Jung & Corpo Referéncias Bibliograficas BRANDAO, J. S. (1996). Mitologia grega. vol. I. Pettpolis: Vozes. EDINGER, E. F. (1995). Anatomia da psigue. Sio Paulo: Culttix HILLMAN, J. (1981). Estudos de pricoloia arquetipica. Rio de Jancizo: Achiamé. JUNG, C. G. (1985 a). natureza da psique. CW. 8/2. Peteépolis: Vozes. (1985 b). Mysterium coniunctionis. CW. 14/1. Petrépolis: Vozes. (1990). Sineronicidade, CW, 8/3, Petcopolis: Vozes. (1991). Tipos psicolégicos. CW. 6, Petrépolis: Vozes. SHARMAN-BURKE, J; GREENE, L. (1988). O taré mitoligice. Sa0 Paulo: Siciliano ZIMEO, A. M, (1994). Nas entrelinhas da adogio: uma abordagem psicol6gica. InFREIRE, F Abandono e adogio. vol. 2, p.98-104. Curitiba: Terre des Homes. Jung & Corpo UMA EXPERIENCIA COM O TRABALHO CORPORAL NO ATENDIMENTO DE UMA PACIENTE COM ANOREXIA NERVOSA Sergio Carlos Stefano! Este trabalho foi realizado no PROATA - Programa de Orientacio ¢ Assisténcia aos Pacientes com Transtornos Alimentares da Escola Paulista de Medicina - Universidade Federal de Sio Paulo. © PROATA € um setvico espectfico do Departamento de Psiquiatria e dedica-se as atividades de assisténcia, ensino e pesquisa. Conta com uma equipe multidisciplinar formada por 04 psiquiatras, 12 psicélogos, 01 nutticionista ¢ 01 personal trainer, ¢ mantém patcerias com os departamentos de Endocrinologia ¢ Gastropediatria. Introdugao Os Transtornos Alimentares (Anorexia Nervosa, Bulimia Nervosa € 0 Transtorno da Compulsio Alimentar Periédica) tém sido tema de interesse crescente ma literatura médica € liga (midia). Isto talvez se explique pela prevaléncia entre mulheres jovens de 0,5 a 1% para Anorexia Nervosa e de 1 a 3% para Bulimia Netvosa. Outro aspecto pode set o fato de se tratarem normalmente de quadros graves; Anorexia Nervosa, por exemplo, apresenta as maiores taxas de mortalidade entre os transtornos psiquidtricos: 5 a 20% das pacientes morrem por complicagées fisicas ou suicidio. "Plcdlogo Clinico especalsta em Psicoterapia de Orientaslo Junguiana Coligada a Téenicas Cosporais. Pés- Graduando do Depto, de Psiquiatria da Universidade Federal de Sio Paulo. 39 Jung & Corpo Os estudos apontam uma incidéncia crescente dos quadros de Transtornos Alimentares, mas hé 0 questionamento se este crescimento é real ou aparente. Com 0 maior desenvolvi- mento de conhecimentos na tea, maior divulgacio do tema na midia ¢ maior reconheci- mento de casos pelos profissionais, talvez 0 que tenha crescido na verdade seja a qualidade © capacidade de se fechar diagnésticos mais precisos. Quando se fala cm Transtornos Alimentares no podemos pensar em uma causa tinica como determinante da doenga. Podemos sim, falar em fatores predisponentes que seriam aspectos sécio-culturais, familiares e individuais. Anorexia Nervosa Caracteristicas Demograficas: Sexo: feminino (10:1) Faixa etéria: 12 - 25 anos Raga: branca Nivel sécio-econdmico: extratos mais elevados (média e alta) Ocupagées: modelos, dangatinas, atrizes, ginastas, patinadoras, jockeys, nutticionistas, etc. Histéria Clinica: Inicio: picos na adolescéncia (aos 14 aos 17 anos) Dieta: diferente - extremamente restrita; Jeva a uma aumentada insatisfacio com 0 corpo; - visa mudanga de objetivos de peso; ~ habitos peculiares no comer ¢ no preparo dos alimentos. Alteragées no Comportamento: Usa desculpas para nfo se sentar & mesa; Evita situagdes sociais (envolvam comida); Serve comida pata outros (mas no come); Veste-se com camadas superpostas de roupas; Examina-se no espelho, pesa-se ou mede-se com freqiiéncia; Utiliza métodos compensatdtios escondidos (disfarces); Pode apresentar hiperatividade. Jung & Corpo Sintomas do Estado de InanigSo: SPECTOS FisICOs episédios de desconteole = preocupacio com comida € voracidade alimento ~ concentragio e meméria hipotermia prejudicadas = bradicardia - habitos peculiares de comet ~ amenorréia retraimento social - problemas gastrointestinais, alteragdes do humor como ~ distuirbios do sono inritabilidade e depressto ~ perda de cabelo = comportamentos obsessivos - surgimento de lanugem compulsivos - perda de interesses (sexual c atividades anteriores) Caso Clinico A paciente W. iniciou atendimento em nosso servigo em junho de 1998. Tinha 36 anos, estava casada ha 13 anos e um filho de 12 anos. W. tem nivel superior incompleto, trabalhou em uma empresa aérea no setor de eventos € desde sua gravidex parou de trabalhar, No momento da triagem W. tinha 1,78m de altura e pesava 56 Kg, o que representa um indice de massa corpérea (IMC= peso/altura a0 quadrado) de 17,67. Foi diagnosticada com um quadro de Anorexia Nervosa Atipica (CID-10), pois apresenta medo mérbido de engordar, dieta extremamente restritiva, distorgio da imagem corporal, mas nfo apresenta amenortéia iniciou simultancamente atendimento psiquiétrico, nutricional ¢ psicolégico, sendo este iltimo em sessdes individuais duas vezes por semana Aspectos Comportamentais: - Acotda no meio da noite para conferir se cabe na cama; - Durante as sessdes fica conferindo se cabe no assento da cadeira; - Nao consegue olhar-se no espelho do pescogo para baixo: quando olha seu rosto no vé nada, apenas lagrimas ou um vulto; e quando olha para baixo vé dobras e dobras de gordura “vazando” de seu corpo; 41 Jung & Corpo ~ Quando vé uma pessoa gorda enxcrga seu rosto nesta pessoa; =W. tem sonhos recorrentes com uma menina em uma praia tentando pegar um punhado de arcia e levar de um lado 20 outro, mas a ateia escapa pelas mios. Iniciamos o trabalho corporal com um més de atendimento, depois de explicar-Ihe muito bem quais os principios da técnica e seus procedimentos, W. aceitou a proposta, mas demorou a entregar-se ao trabalho; nas primeiras aplicagdes s€ movia muito, abrindo os olhos varias vezes e dizendo que eu a estava “medindo”, que sua gordura “vazaria” pelas minhas mios. A medida que continudvamos 0 trabalho ela foi se acalmando e se entregando 20 trabalho. ‘As técnicas utilizadas desde 0 inicio foram: Compressio Fracionada no corpo todo, Descomptessio Fracionada nos ombros ¢ omoplatas ¢ Calatonia nas maos {nega-se a ser tocada nos pés). W. costuma entregar-me desenhos € poesias feitas espontaneamente em sua casa, ‘Viitios autores avalisam a importincia de abordar o corpo de pacientes com Transtornos Alimentares mas no ha indicagbes de téenicas ou estratégias de como fazé-lo Hercovici (1997), aponta que “para pacientes que padecem de um Transtorno Alimentar, © corpo, longe de ser uma fonte de prazer, € causa de angiistia, vergonha € mal-estar. Apés tum tempo, essa afeccio vai adquitindo vida prdpria, que aprisiona a pessoa, aumentando sua sensagio de fracasso. Estes pacientes vio se isolando socialmente e se auto-avaliam de acordo com 0 éxito que obtiveram ao baixar de peso ou controlar 0 que comem”. White & Fadiman (1976) afirmam que a indugio a0 relaxamento pode diminuir a ansiedade que est por tris de um grande mimero de doengas. O relaxamento prové um procedimento de tratamento efetivo por reduzir a ansiedade ctdnica ¢ desconfortos relacionados. Pode também ser benéfico para pacientes psiquidtricos ¢ individuos “normais” que estejam sofrendo de uma variedade de desconfortos (Dawley Jt, 1976) Optei por apresentar a evolugio do caso através de uma seqtiéncia de desenhos que W. veio me entregando ao longo dos atendimentos. Alguns destes, a meu pedido, tém escrito no verso como a paciente sentia-se no momento. © desenho 1 foi o primeito desenho que W. me entregou, Foi feito em duas folhas ¢ ela telata que & assim que se sente quando se olha em um espelho. No desenho 2 ela expressa graficamente sua vivéncia diante um espelho. 42 Ww Jung & Corpo desenho 2 Jung & Corpo desenho 2 “6 Jung & Corpo desenho 3 No desenho 3 W. escreveu uma poesia no verso: “Dor, mesa, comida, Essa é a vida? Fome, calafrio, calorias, Serd que algo me trax, alegria? Que castigo & esse, Que me assusta tanto, ‘Me tira todo interesse, Me fax sofre, arranca men pranto E af pereo todo encanto E 0 alimento que & sinal de vida Passa a ser meu formento” & desenho 4 44 Jung & Corpo A respeito do desenho 4 diz: “sinto que estou presa a meu corpo, como se fosse prisio neira dele. Nao sei se a sombra faz parte de mim ou se é outra pessoa, com outra alme, cabeca, coragao € ... corpo! Quero ser atirada para longe! Nao quero ela presa om mim”! desenho 5 Comenta sobre 0 desenho 5: “vejo que 0 corpo definha mas ndo é meu corpo: meu corpo esté preso a algo, e eu a ele”. A seqliéncia de desenhos a seguir foi feita a0 longo de um periodo de mais ou menos 8 meses de atendimento © demonstram todo seu sofrimento com felacio 20 corpo ¢ suas vivéncias, Podemos notar que surge a dimensio de um corpo mais prdximo ao “seal” no desenho 7. desenho 6 desenho 7 ~—y Jung & Corpo Neste momento W. aceita melhor 0 trabalho corporal, trazendo observacées do tipo: “Estava fora de sintonia, igual a televisdo com fantasmas, e agora tem uma imagem $6, sintonizada”’; “Engracado, é como se eu tivesse carregando uma mochila muito, muito pesada e agora nao”; etc. Comecam a susgir imagens mais femininas ¢ harmoniosas, ¢ os sintomas mais evidentes Gistorgéo de imagem corporal, acordar & noite para se conferir e ver seu rosto em outras pessoas) diminuem bastante Questdes ligadas a sexualidade comecam a surgit. desenho 8 “Muitas vezes sinto como se estivesse dentro de uma ostra e bem no fundo do mar Onde a falta de ar me sufoca e seu ndo sei o que fazer para viver. Seria mais facil fechar a ostra?” desenho 9 “Quero ter a liberdade dos passaros, mas no consigo juntar-me a eles” 46 Jung & Corpo O desenho 10 demonstra um momento de maior equilbrio ¢ estabilidade, um momento de fertlidade onde pudemos avangar em questoes mais profuandas de seu passado, desenho 10 W. comeca a trazer nas sessdes lembtangas perturbadoras de sua infincia, com 0 possivel assédio sexual por parte de um adulto, Isto € trazido em falas curtas, com multe dor « Sriosio, Respeito seus limites ¢ deixo que o assunto surja na medida que ela possa suporta, Normalmente ela fala deste assunto momentos apés trazer as observacdes do trabalho corporal; sempre aos picados e mostrando desenhos. Estes, ais, foram um dtimo vecule pois a auxiliavam a contar sua histéria, Jung & Corpo A familia de W. morou na casa de conhecidos em um outro pais quando ela tinha por Rplts dos 8 anos de idade. Este pesiodo foi de muitas dificuldades financeitas e privacses Nesta casa ela era molestada pela dona da casa e seu filho adolescente, sob amearas se cla reatasse 2 alguém, © que a colocava em um situagio de total impoténcia e desesperanca, Neste momento do proceso estamos trabalhando estas questdes, Do ponto de viste de Anorexia Nervosa, W, oscila entre perfodos de uma ingesta mais adequada de alimentos ¢ io da imagem corporal também tém oscilado, periodos de maior testrigao; as questées de disco mas com uma intensidade menot que no inicio, Por fim apresento 0 desenho 14, que a meu ver expressa como esti o processo de W reste momento € quais as possibilidades para o futuro: desenho 14 “Vou tentar achar wn caminho, vou comegar mesmo estando nublado...” 9 Jung & Corpo Meu objetivo nesta apresentagao nao € tirar conclusdes definitivas sobre 0 uso do trabalho corporal neste tipo de patologia mas sim apontar, quem sabe, novas diregdes na abordagem destas pacientes. Gostaria de deixar algumas conclusdes: ~ A Anorexia Nervosa é uma doenga grave ¢ perigosa, devendo portanto ser tratada por ‘uma equipe multidisciplinar especializada em Transtornos Alimentares ¢ nunca apenas por um profissional isoladamente. ~ O corpo pode (¢ deve) ser abordado nestes casos, mas com um cuidado € respeito exttemos, ~ O momento de iniciar a abordagem corporal, assim como as técnicas as serem usadas, devem ser bem pensados ¢ estruturados para que mio se tornem um entrave 20 processo 40 invés de faciliti-l. Bibiiografia DAWLEY JR., H.H. (1976) in Relax: How you can feel better, reduce stress, and overcome tension. - WHITE, }, FADIMAN, J. ~The Confucian Press Inc. ~ Menlo Park ~ Calif6rnia. HERCOVICI, CR. (1997) A escravidio das dietas. Ed. Artes Médicas. Porto Alegre WHITE, J., FADIMAN, J. (1976) - Relax: How you can feel better, reduce stress, and overcome tension. ‘The Confucian Press Inc. ~ Menlo Park — California. 50 Jung & Corpo RELIGIOSIDADE E MEDICINA: Uma dialética da vida Antonio Fernando Stanziani! 1. 1- Introdugao Se existe algo que se perde tio longinquamente nas origens da cultura humana além da religido, € a medicina, Bastante compreensfvel, jé que ela se ocupa de aplacar a dramitica do sofrimento humano, que as doencas sempre representaram. Ligadas por um certo atavismo, medicina e religiio surgem como resposta a superagio das formas mais essenciais de alienacao vividas pelo homem, nas palavras de Rubem Alves (1984:30), “o suspiro da criatura optimida”, um “protesto contra o softimento real”. expres Convivendo por séculos a fio, medicina ¢ religido dispuseram de priticas, rituais e proce- dimentos nem sempre demarcados por limites muito claros, na transicio de um para outro campo. Na antigitidade grega, os asclepfades tinham como certo que mesmo com 0 uso de medicamentos ou de procedimentos terapéuticos de qualquer natureza, a cura total s6 acon- teceria se ocorresse 2 metandia, ou seja, a transformacio dos sentimentos. Este proceso era denominado nooterapia ~ cura pela mente, “Os sacerdotes de Asclépio partiam do prin- cipio que 2 harmmonia e a ordem divina exercem influéncia decisiva sobre a satide psiquica ¢ corporal”... “Era portanto 0 equilfbrio biopsiquico o fator basico, o medicamento de uma cura inreversivel” (Brandio1987: 92) Por quase onze séculos, aproximadamente desde 0 século IV antes de Cristo, as priticas de cura em Epidauro, famoso templo grego dedicado a Asclépio, tinham como fandamento "Priclogoespecilisa em Picotrapia de Oieatago Janguian Coigada Técnicas Corpora plo lnstiao Sedes Sipenie 5 Jung & Corpo © principio de que corpo e mente no estio separados no processo de cura. “O tinico lugar onde se curava 0 corpo total eta em Epidauro” (hid, 1987). Asclépio desenvolveu uma escola de medicina onde os métodos eram considerados mégicos por se desconhecer os Processos pelos quais as curas ocortiam. Dentro destes métodos utilizava-se pot exemplo, massagens, banhos, beberagens e mensagens oniticas. Se olharmos a evolugio da medicina vetemos que durante muitos séculos predomina todo um cenirio onde a arte de curar é uma mistura entre religido, filosofia, ervas medici- nais, citurgias ¢ a transformacio de sentimentos, a “metandia”, Com os trabalhos de Hipécrates (460-370 a.C), 0 mais célebre dos asclepiades, inicia-se a cientifizagio da medi- cina. No decorrer do tempo, a sistematizagao do conhecimento levou gtadualmente a uma medicina que privilegia 0 estudo das doencas quanto aos aspectos objetivos do corpo hu: mano deixando em plano secunditio a experiéncia subjetiva, tanto mental quanto corporal, a qual passou a ser considerada de menor importincia. Os confrontos entre medicina ¢ religifo parecem ter no entanto se tornado mais acentuados somente apés 0 advento da medicina cientifica. Na medicina a ciéncia introduziu nao somente o fator da observacio objetiva, mas tam- bém o de ruptura com a religio, que longe de se realizar definitivamente, permanece como um campo ativo, Ciéncia e religiio parccem af fancionar como antipodas, gerando uma tensio permanente por onde se tece uma dialética da vida, objetivo deste trabalho € caracterizar um pouco deste proceso dialético, tendo como base a idéia que a medicina experimentou uma crescente dessactalizacio, na medida da correspondente cientifiza¢io, como também, mais especificamente a relacio médico paciente, onde cresceu a petda da individualidade ¢ de sua implicita subjetividade, a partir do confinamento tanto do médico quanto do paciente a0 modelo cientifico de atendimento. 2. Encontros ¢ desencontros entre ciéncia e religido na medicina A histéria da humanidade mostra em seu curso que doenga, cuta ¢ religiosidade sempre estiveram estreitamente ligadas, Diante da perspectiva de sofrimento, motte, e pot no saber © que acontece consigo, o homem recorre & divindade buscando compreensio, ajuda e resolugio para sua afligio, Este fato é facilmente constatavel, através dos relatos histéticos de todas as Epocas. E, muito embora os avangos no campo da ciéncia médica tenham modi- ficado em muito as tinturas do quadto, ainda hoje ele continua esscncialmente o mesmo para boa patte dos seres humanos. A ciéncia e pensamento racional empirico ajudaram a formar um novo tipo de homem. Para buscar a explicacio do mundo ele se separa ou se afasta de Deus, no minimo colocando- © numa outra dimensio de sentido ¢ significado, Para Jung o efeito deste afastamento ganha um carter praticamente de ruptura, uma vez que conduz & indeterminacio que parece estar 52 Jung & Corpo na base da angistia do homem moderna. “Sempre que o espitito de Deus é excluido dos cileulos bumanos, seu lugar é tomado por um sucedineo inconsciente” (Jung, 1984:352). Por outro lado, M. Eliade argumenta que o homem modetno conserva tragos de valores religiosos, que a dessacralizacio do mundo no conseguiu apagat. Podem ser identificados, Por exemplo, cm seu encanto em telagio 4 natureza, “Nao se trata unicamente dos valores estéticos, desportivos ou higiénicos concedidos & Natureza, mas também de um sentimento confuso e dificil de definir, no qual ainda se reconhece a recordacao de uma experiéneia teligiosa degenerada” (Eliade, 1996:126). ‘Muito cmbora esta forma de pensat a agir no abranja a totalidade de seres humanos no planeta, ela agregou ao grupo uma categoria significativa e extremamente influente de pessoas. Apoiadas no poder ¢ no inegivel apelo de convencimento da racionalidade empitica e das evidéncias, elas privilegiam 0 modo de agit © pensar cientificos. © saber cientifico levou a humanidade a uma posigio mais segura em relagio as suas possibilidades, aquisicSes ¢ realizagdes. A ciéncia ¢ as instituigdes cientificas desenvolveram- se com forca suficiente para alterar dramaticamente todas as representagdes € concepces fundamentais sobre a vida eo “estar” no mundo, Além disso modificaram c simultaneamente ampliaram as formas de relagio que o individuo mantém consigo mesmo, com os outtos ¢ 0 ‘mundo, acentuando contrastes que contribuem paradoxalmente para exacerbar conflitos ou amenizé-los, tanto na esfera individual subjetiva quanto na social objetiva, Paleati (1994:19) comenta a contraposigio dos cédigos “cientifico” e “popular” que ocortem na complexa visio de mundo do homem modetno. Ela apresentaria desdobramentos no denominado “esquema bipolar” com representacdes catacteristicas nos meios urbano e rural Este afastamento de Deus, basicamente tepresentado por uma ruptura entre a visio religiosa ¢ a visio cientifica do mundo no poderia, é clato, deixar de influenciat, menos significativamente, a relagao que o homem tem com 0 adoecer e 0 curar-se. Constituindo-se um dos eixos bisicos da representagio do viver ¢ atuar no mundo, esta relagio io estatia livre de softer as fortes influéncias geradas pela atitude cientifica, cedendo as demandas do mundo moderno criado pela ciéncia. As representagdes bem como as formas de lidar com a doenga e a cura ocupam papel central nas religides e no modo de organizacio social de quase todos os povos. Muito embora a anilise histérica permita a classificagio em categorias de cura que compreendam 0 cientifico € o teligioso, esta é uma prcocupacio atinente aos olhos do cientista pesquisador moderno. Pata a grande maioria dos povos, principalmente do mundo antigo, a alternincia entre procedimentos, pogdes ¢ titos devocionais representa- vam um movimento nico ¢ integrado em diregio ao fim tiltimo que é o restabelecimento do estado de saiide A medicina cientifica eclode a pattit da instituigio do método cientifico em meados do século XIX, criando com ele tal identificagio, que nos dias atuais ela pode dispensar 0 qualificativo de “cientifica”, permanecendo este implicito ao nome; tudo que se refere a medicina implica por principio a prerrogativa de atender as exigéncias ¢ 20 rigor do método 53 Jung & Corpo cientifico. Autores como Shorter (1993) e Lopez Gast6n (1999) mencionam um periodo pés-moderno pata a histéria da medicina, basicamente a partir do primeito quartil século XX, onde o referencial cientifico comeca a ser questionado, nio no contexto total das cién- cias médicas, mas especificamente no Ambito da telacio médico-paciente. A posi¢io predo- minantemente cientifica estaria afastando médicos de seus pacientes pelo abandono dos fatores humanititios, entte eles o religioso, no campo da telacao. Thomsen (1998) pontua o fato do treinamento dos médicos abranger mais facilmente os aspectos fisiolégicos ligados & avaliagio dos pacientes permanecendo numa total mudez no que diz respeito 4 suas neces- sidades espirituais. As escolas geralmente no incluem ou dio pouca importincia pata esta temética na organizagio de seus curriculos. O resultado é que os valores nucleares referen- tes A escolha € motivacio do profissional acabam por sc petder entre as demandas da pritica diaria. Lembra que as terapias alternativas, embora na maior parte das vezes sendo menos efetivas € tio ou mais caras que os procedimentos médicos convencionais, afiguram- se entretanto mais adequadas ao olhar do paciente porque parecem mais acolhedoras, ge sando maior ressonancia em seu mundo interno. ‘Tal problema entretanto mal chega a arranhar a identificagio da medicina com a ciéncia, que corrobora-se cada vez mais diante do enorme desenvolvimento tecnolégico que ela expetimentou principalmente no dltimo quartil do século XX. Puchalski e Larson (1998) mencionam 0 enorme avango técnico ocorrido neste perfodo, em contraposicio ao abandono do cuidado compassivo. As escolas de medicina enfrentam agora o desafio de passat um enorme cabedal de conhecimento ¢ técnicas especialistas no relativamente curto espaco de tempo dos anos de formacio. Longe de realizar uma ruptura definitiva com a religiio a partir do advento da medicina cientifica, pode-se observar, pelo estudo de alguns autores, que a medicina iniciou a partir dai um intenso confronto que sé faz por revigorar continuamente seus propésitos de busca enquanto ciéncia. Porter (1993) em seu artigo “Religion and Medicine” sugete que, neste confronto, posicées aparentemente antagénicas compartilham, em suas origens, de raizes comuns na histétia da cultura humana. Tal € por exemplo 0 dualismo corpo mente, ctiado na maioria das sociedades, particularmente na ocidental. Apoiadas neste dualismo, de um lado a religiio se voltou para o enobrecimento da alma em detrimento do valor das, experiéncias corporais. De outro, a medicina criou uma nitida distingao entre concepgdes da experiéncia corporal ¢ mental. Em ambos os casos, teligiio ¢ medicina sempre operaram sobre um mesmo e fundamental terreno: a tertivel alienagio da satide e da vida, experimen- tada pelo ser humano quando adoece. Durante séculos a doenga foi vista como 2 zanga dos deuses para com os homens, ou entio um teste 4 sua tolerdncia e paciéncia, ou ainda castigo divino a pecados coletivos ou individuais, Religido e medicina alternaram-se, as vezes imbricando-se uma & outra, no sentido de encontrar solugio pata esta frdgil condicio humana, Porter mostra que tanto a religifo quanto a medicina encontram sentido comum na tarefa 54 Jung & Corpo humana de lutar para manter 0 corpo sadio ¢ livre de softimentos. A medicina reveste-se entio do carter de instrumento divino, embora tenha muitas vezes se utilizado de priticas consideradas repudiveis por atentarem contra as leis de Deus. Foram também expesiéncias médicas, realizadas cm conjunto com iniciativas da catidade cristi, principalmente apés a conversio de Constantino, as responséveis pela cria¢Zo dos protétipos dos hospitais como sto conhecidos hoje. Além disso, no grupo social, promoveram a transferéncia de grande parte dos problemas da satide do setor privado para o puiblico. ‘Um outro ponto interessante ressaltado por Porter é que o ceticismo racionalista que Perpassa a medicina durante os séculos principalmente a partir do século XVIII também ‘em sua passagem pelo pensamento cristo. Milagres sempre foram objeto de tratamento cético por parte da propria Igreja. O protestantismo juntou-se 4 nova ciéncia ¢ a0 materialismo médico para desmistificar os milagteitos. Nao seria portanto de estranhar que médicos adotassem a mesma postura descrente ou cética em relagio as possibilidades religiosas da cura. Numa onda anti-clerical bastante caracteristica na Europa durante virada do século XIX para o XX, houve alguns que, num arroubo de ambicioso materialismo, Procuraram encontrar no corpo fisico razdes para a atitude e 0 comportamento teligioso? ‘Muito da dispura entre medicina ¢ religiZo se manteve ativa no que tange as causas das doengas. Tanto do ponto de vista da medicina ~ problemas ambientais, ma constituicio, germes - quanto da religido — estilo de vida depreciativo, intemperanca, vicios — as causas acabavam no mais das vezes por se entrecruzat em padroes l6gicos, Mas o principal ponto de contengio parece tet sido, segundo Porter, aquele que diz respeito a feiticaria e possessio, pois era universalmente accito que 0 diabo produzia males fisicos, pessoalmente ou através de seus feiticeiros. A doenga era um sinal da a¢io do diabo e, nesse campo, medicina e religiio chegaram a concorrer seriamente. Na base destes conflitos, geralmente intensos quando ocortiam, pode-se identificar posigdes € questdes ortodoxas de ambas as partes Porter ressalta que no obstante as contendas, em situagdes de crise extrema medicina ¢ religido parccem ter experimentado uma coexisténcia harménica, como o fazem até hoje, quando fora destes periodos. Fé regular coexiste com medicina regular. Uma posigio bas. (ante mediadora foi aquela introduzida por Patacelso, afirmando que a saiide nasce da forca interior do individuo. A medicina oferece através dele uma chave para a compreensio espi- ritual do ser para a cura. Em contrapartida teve que assumir af uma posigao holistica ¢ espiritualista, reconhecendo a interpenettagio entre 0 somitico ¢ o espiritual, Ventos da temperanca também chegaram no confronto medicina ¢ religiio, com o advento dos narcé- ticos, que propiciaram a vivéncia da motte trangiiila nos casos terminais, minimizando o terror frente a0 sofrimento vivido nas experiéncias pregressas com a morte. 2 Diga-s de passage, que movimento semethante pode ser observa auimente com a explosfo de cone ‘mento genida plas neaociénits. Vise 8 referéncas do Prof Edo Vallis obras de D’Aqull E.G. Newbery, AB. ‘Ar baer Neaofoligias das Relies o por que Deas ni ir embore™ (2000), Jung & Corpo Estudos ja desenvolvidos na area da antropologia médica mostram a profunda ligagao da medicina com tragos culturais ¢ religiosos que, em diversos grupos sociais, tiveram caracte~ tisticas Gnicas, ¢ com tal diversidade e peculiaridade, que dificilmente ela poderia set estu- dada dentro de um padrao hist6rico linear de desenvolvimento, Macdonald (1983:61), quando discorre sobre a perspectiva histérica do desenvolvimento cientifico da medicina, menciona as conclusées de historiadores famosos neste campo, tais como Ackerknecht ¢ Sigetist que no conseguem desconectar nem mesmo a medicina moderna, com sua base amplamente cientifica, de padrdes ou influéncias culturais tipicas de nossa época. ‘A medicina afirma no campo da ciéncia um fértil terreno para fundamentar seus desen- volvimentos; entretanto parece longe ainda de encontrar uma resolucio no que diz respeito 4 separacio do campo religioso. Simplesmente porque nele encontra inegavelmente boa parte de suas raizes ainda vivas. Mais antiga do que a ciéncia, ela contém em seu corpo de conhecimentos elementos de base nao somente biolégica mas também ontoldgica. Ao pro- por uma ruptura da medicina com a religiio, a visio cientifica confere-lhe um cariter utopi- co, cuja esséncia é 0 anseio perene pela libertagio do jugo da dor, do sofrimento ¢ da mor- talidade. Entretanto, por preceder 4 ciéncia nos rumos da vida, as artes médicas tornaram- se experimentadas no campo das dramaticas contradigdes humanas, com freqiéncia testemunhando rupturas tipicas do universo teligioso, e que nao cabem por inteiro nesta utopia. O proprio fendmeno do efeito placebo, amplamente conhecido pelos médicos, atesta entre outros a virtual impossibilidade de se reduzir a visio do ato médico a bases estritamente cientificas. 3. Médico e paciente: uma relagdo singular ¢ sutil A histétia da medicina parece confundit-se com a hist6ria do proprio homem. Através dela percebe-se a complexidade, a diversidade e todos os matizes que caracterizam a riqueza, ‘a ctiatividade da experiéncia humana, Mas a medicina tem algo muito especial em sua hist6ria. ‘Algo que vai para além do aprendizado do homem sobre como funciona seu préprio corpo. Elz revela 0 gesto humano da identificagio com o sofrimento do outro ¢ de incorporat isso no agir em relagio a cle. Um olhar breve e panorimico sobre a histétia da medicina mostra que o que a impulsionou através dos séculos nio se testringe & sequiosidade do conhecimento dos mecanismos do corpo, mas sobretudo 4 necessidade de aplacar uma das formas de sofrimento fundamentais na vida humana que é 0 adoecer. ‘A doenca ocupa alto grau de importincia na escala de qualificacio das experiéncias de softimento humano, ¢ parece ter prevalecido sobre outros que também poderiam ter sido eleitos, como por exemplo, a fome, as intempéties, 0 ataque de animais, os acidentes ou incidentes naturais, ¢ outros. Para o Budismo, a doenca esta diretamente vinculada a uma das formas de exercicio da sensorialidade humana, Gyatrui Rinpoché (1998) a descreve como um dos quatro “grandes rios” que o ser humano deve suportar em sua experiéncia pela 56 Jung & Corpo Vida ~ sendo os outros 0 nascimento, o envelhecimento ¢ a morte. Intrinsecamente ligada 0s ciclos de acumulacio de karma, a doenga apresenta-se como 0 resultado de apego 20 Sansara ou @ roda das rcencarnagoes. Colocada ainda hoje entre os sofrimentos que mais assolim o homem moderno, prineipalmente o que vive nos centtos urbanos, adoenga ameaga, €xP6¢ a riscos ¢ fragiliza. Nao é de se estranhar portanto que as religides tenham dela so ocupado ativamente, ¢ que os primeiros médicos tenham sido também sacerdotes, A doensa ¢ confinante, subjuga o individuo, subtraindo-o de seu mundo de oportunida des. Caplan (1993) comenta que, especialmente na sociedade moderna capitalists doenga e sate estio profundamente vinculadas a0 senso de disponibilidade de capital sécio-cultural part Darticipagio no mundo competitivo, Doenga ¢ deficiéncia so temas importantes, na medida em que bloquciam a igualdade de oportunidades entre os individuos Pats a serovidace Bovernamental é importante buscar definigSes do que é normal ou patologico, pata decidir © auanto de recurso deve despender com a sociedade, e 0 quanto deve fazer para propiciat 208 doentes uma vida pessoal e social decente. A medicina adquize portanto seu mais claro sentido a partic de uma das formas mais significativas de alienacio que 0 ser humano experimenta. As taizes de sua existéncia assentam-se sobre o fato de que em qualquer nfvel considerado, material, psicolégico, espiritual, o homem doente aliena a celebragio da vida, A medicina cumpre um papel de catlsador de movimento sobte o processo de alienagio vivida pelo doence, qual sei, o de estabclecer uma comprecnsio objetiva da que fol alienado (© dlagnéstico —o mal que acomete, o que acontece), bem como do caminho a ser seguido ara uma superagio ou reintegtagio no entio perdido curso normal da vida (a terapéutica — © que fazer para curat). A medicina interfere na relagio que o doente mantém com eua docnsa ¢ consigo mesmo a partir dela, transforma sua consciéncia e acelera o desencadear de uma resolucio para o problema. Parte significativa da interferéncia da medicina na vida do paciente ocorre através da acio do médico ¢ do modo de relagio estabelecida com o paciente, Tao antiga quanto a ropria medicina, esta relagio tem se transformado a0 longo da histétia, mas seu earirer essencial ¢ sua importincia no sentido de conseguir resultados de cura, na visio de muitos médicos, continuam as mesmas. F também nesta relagio que surge muito da inflexio entre Giencis ¢ seligi2o, jd que, além do corpo objetivo de conhecimentos ¢ tecnologia disponibilzados pela ciéncia, enconteam-se também ali presente, ¢ em continua interaeao, dois seres humanos ¢ toda a subjetividade, e a possivel alternincia entre racionaldade c inracionalidade, existente em suas concepgdes de vida. © encontro entre médico ¢ paciente é um ato de extrema intimidade e profundidade, E caymomento em que o paciente repassa sua histria ¢ toda dramaticidade nela presente. Cada mfnimo detalhe relatado pode ser importante para que o médico dimension, « ajuda ve poderia dar a ele. Por isso mesmo a celagio reveste-se de uina certa sacralidade, muito Semelhante Aquela encontrada nos rituaisreligiosos. Jung (1988) afirma que para o medica importante considerar duas dimensdes de seu paciente: aquela que diz respeito } dese 87 Jung & Corpo ses do individuo enquanto pertencente a categorias definidas dentro da espécie, passivel de set apreendido via conhecimento cientifico, ¢ aquela que diz respeito a0 individuo em si mesmo a partir de seus tacos singulares. Esta tiltima, segundo ele, no podera ser acessada via conhecimento cientifico, demandando para sua apreensio uma compreensio que sera adquirida via interagio, na experiéncia presente de cada relagio, Trata-se da porca0 do individuo que 0 caracteriza enquanto tal, distinguindo-o do homem em geral. Ela pode eventualmente representar a parte mais importante a ser tratada num processo de cura. ‘Também foi a mais abandonada pela sociedade moderna quando da adocio de padroes estritamente cientificos para o modelo de cura. O autor acrescenta: uma formagio em principio cientifica baseia-se esscacialmente em ver~ dades cientificas e em conhecimentos abstratos que transmitem uma cosmovisio iereal, embora racional, em que o individuo como um fend- ‘meno marginal, no desempenha nenhum papel. Mas o individuo como uum dado irracional é 0 verdadeiro portador da realidade, é o homem con- cteto em oposi¢ao 20 homem ideal ou “normal” itreal, a0 qual se referem as teses cientificas Jung (1988: 6). Na visio de Pelling “..a relagio médico paciente permanece vital para a medicina mes- mo que sua importincia tenha sido negada pela “cientifizacio” do conhecimento médico ¢ historicamente depreciada por aqueles que desejavam desligar a medicina de suas origens nas tradigGes artesanais” (1993:379), Além disso, na visio da autora tal relagio contém elementos de grande significado social ¢ humano, que a fazem surgir como objeto de estudo em outras areas do conhecimento humano como a sociologia e a antropologia. No ensaio “The history of the doctor patient relationship”, Shorter (1993) traga um Panorama sobre os rumos desta relagio a0 longo dos séculos da historia da medicina. Ele divide a historia da relagio médico paciente em trés perfodos caractetisticos, a saber (1) 0 tradicional, que vai desde os primérdios da antigtiidade até meados do século XVIII, (2) 0 moderno, compreendendo o final do periodo antetior até meados do século XX e, finalmente, @G) © pés-moderno, que cobre 0 petiodo remanescente até nossos dias, O que torna a anilise de Shorter interessante é que ela discotte de maneira clara sobre 0 papel do médico, como se transformou, ¢ quais valores Ihe etam imputados ao longo destes petiodos histéricos da medicina. Trata-se de um modelo bastante simplificado que privilegia uma visio abrangente, mas é precisamente isto que o torna interessante para a realizacio de uma reflexdo sobre os eixos fundamentais de alienagio na histéria da relagio médico paciente. 3.1. A relagdo médico paciente no periodo tradicional O periodo tradicional é o mais longo de todos, ¢ assim se manteve precisamente porque rele as caractetisticas da relagio médico paciente tiveram pequenas variagdes, basicamente Porque as formas diagndsticas se mantiveram estéveis durante séculos, As pessoas de ma- 58 Jung & Corpo neira geral procuravam os médicos pelos conhecimentos que estes tinham de pogdes, prepa os ¢ ungiientos. Boa parte delas sequer acreditavam na competéncia deles em conhecer os segredos da natureza. Os processos diagnésticos eram bastante pessoais sendo muito co- mum buscar 0 conhecimento da historia de vida do paciente, baseando-se nele o encami- nhamento de uma terapéutica para cura. A imagem do médico como caminhante, indo de lugar a lugar atendendo as pessoas ¢ algo caracteristico neste periodo, como foi alids o proprio Hipécrates, que “viajava constantemente e era um peripatético que praticava uma medicina de primeira qualidade baseada em minuciosa obscrvagio. Interrogava atentamen- te seus pacientes, ouvindo-os, cheitando-os, apalpando-os ¢ até mesmo tocando-os com a lingua” (Dixon, 1981: 6). Houve uma clara distingZo entre dois tipos de médicos: aqueles do povo, cujo exercicio da profissio, aprendido na pritica, eta geralmente dividido entre outras atividades como barbeiro, boticétio, vendedor de bebidas e preparos, etc. Havia também os de elite, cujo conhecimento cra adquirido em algum centro de aprendizado ou universidade, Shorter ressalta entretanto que seja qual fosse a classe social a que o médico pertencesse, esta no era uma profissio que Ihe rendesse muito e, com freqiiéncia, os médicos eram pessoas tio pobres quanto seus pacientes. Se algum tivesse dinheiro havia grande possibilidade de té-lo conseguido pot outros meios, por exemplo, heranca. Uma vex que a medicina possufa valorizacao social e econémica duvidosa, é dificil imaginar sentido mais significativo no movimento da maiotia destes médicos do que o de pessoas que se deixavam tocar pela compaixio frente ao softimento das outras pessoas, Uma escolha umanitiria, acentuadamente religiosa. De certa forma reconheciam o fardo da condigio alienante da docnea e, movidos por isto, operavam seu esforgo de identificar e curar o mal causado por cla, Sua acdo poderia ser muito claramente ilustrada, a pattit do mito de Quitio, © centauro mestre das artes médicas, que por nfo poder curar sua propria ferida “sabia muito bem compreender seus pacientes” (Brandio, 1987-90). A patticipacio da dimensio individual tanto do médico quanto do paciente, no processo do adoecer ¢ curar-se, é a que parece mais marcante neste longo petiodo histético da relacio médico paciente. A este ponto Jung (1988) chama a atencio, argumentando que o homem do mundo antigo ¢ medieval era menos dotado de informasio objetiva, entretanto mais integrado em sua subjetividade que o homem moderno. A religiio embora opressiva acaba va por contribuir para esta integragio j4 que patticipava e dava exptessio ativa ao foro intimo das pessoas. A fluéncia expressiva da subjetividade, tanto do médico quanto do paciente, era algo ‘muito provavel no proceso de cura. Esta seria possivelmente objeto de trato pessoal entre © par paciente-médico € os deuses ou as forgas do destino. A alienacio aqui presente poderia ser eatacterizada mais precisamente no contexto do discusso religioso, correspondendo basicamente a da ruptura do homem com a divindade. Adoecer ¢ cutar-se nio eram atos que se esgoravam em si mesmos. Correspondiam também a perder e resgatat a graca divina. 59 Jung & Corpo Dado 20 pouco conhecimento existente sobre causas ¢ terapéuticas eficazes, médico € Paciente compartilhavam da virtual impoténcia diante das doenas. Tinham que dispor de seus prOptios recursos e forcas criativas para vencer o desafio ¢ isto possivelmente os unia frente is incertezas do destino, Além disso, por ser considetado, na maior parte das vores, assunto da vida privada, freqientemente o sofrimento com as doengas seria também priv, tvo. Demandaria portanto a busca de possiveis interpretagées a vontade dos deuscs para aqucla situasio especifica. Sendo a histéria pessoal bastante especulada, © a cura também iediada por essa base de seferéncias, uma ver aleangada, haveria grandes chances de queo Paciente se apropriasse mais facilmente de seu mérito como uma auto cura, Pot outro lado, as possibilidades de cura para uma boa parte de doencas hoje considers: das corriqueiras era bem reduzida e a morte uma ameaca mais freqiiente. Privado de fontes seguras de conhecimento © médico pouco podia garantir ao paciente em termos da cats efetiva, Estava entretanto razoavelmente livre do jugo do insucesso que setia também interpretado como vontade dos deuses, Paciente e médico reconheciam, cada um a sua maneita, a condigio de sofrimento € Partiam cm busca da superagao e do resgate da saiide perdida. Nesta rota, 0 médico fancionaria como uma espécie de mediador da transfotmacio necessitia 4 consciencis e as compo, atuando no sentido de reconeiliar o doente com a vida, Embora a condigio de doente fosse claramente imputada ao paciente, ela assentava-se entretanto sobte uma ferida mais Profunda que dividiam, ou seja,o limitado poder de agir diante da situagio ¢ 0 teconhecimento de que estariam a mercé de foreas para aim de sua capacidade. A relagio portanto estarin fortemente impregnada pelo sistema de crengas de ambos, que servia de apoio para a busca da cura. Médico ¢ paciente situavam-se como dois viajantes pelo oceano da vida, ocupando 0 ‘mesmo barco, compartilhando © mesmo sentimento de estar separados da graca divina e tentando a ela retornar. 3.2. A telagio médico paciente no periodo moderno Neste petiodo Shorter mostra uma importante transformagio no papel do médico, espe- cialmente do valor a ele atribuido em fungio da evolugio da medicina diagndstica © do estabelecimento da “patofisiologia”. A investigagio clinica comeca efetivamente a tornan. se ciéncia ¢ arte, A anatomia patolégica desenvolve-se em bases cientificas possiblitando 0 refinamento dos diagnésticos e, a0 final do século XIX, a teotia dos germes poe fim a todas as velhas nogées de aquisicio de doengas por miasmas, deménios, etc. A microbiologia evolui rapidamente propiciando e fortalecendo a realizagio de diagnésticos seguros, Médicos ganham a forca de representagio das ciéncias médicas e, embora o desenvolvi- mento de tcrapéuticas eficazes de cura tenha sido modesto nesta fase, eles comecam oo Jung & Corpo investir-se do status de pessoas especiais. Mesmo nao podendo curat a contento, etam capa zes de dizer o que as pessoas tinham. Os pacientes passam entio a cultuar a imagem do doutor cientista. A forte personalidade do médico passa a ser altamente determinante na relagio médico paciente. El conselheiro ¢ 0 paciente tanto mais enxergard suas possibilidades de cura quanto mais reco: nhecer a autoridade do médico. As limitagdes em estabelecer uma terapéutica garantidamente eficaz coloca énfasc sobre a dimensio psicolégica da relagio ¢ na forsa do médico em induzit no paciente uma atitude de cura, Pode-se perceber neste periodo, marcado pela emergéncia da ciéncia nas artes médicas, uma nitida apropriacio, ainda que parcial, por parte do médico, do poder de cura, antes atribuido a divindade, Este ponto é importante porque mostra um deslocamento do cixo de io, do discurso teligioso, para o epistemologico. O real passa a set conceituado por aquilo que a observacio € capaz de fornecer e ocorte uma considerével dessactalizacio no proceso de cura. referéncia da aliena © aperfeicoamento das técnicas diagnésticas torna secundaria a atencio a histéria do paciente ¢ também a seu modo especifico de viver a doenga. Tais informacées somente sero importantes na medida em que ratificarem o processo diagnéstico. Embora ocorra uma ampliaio na atencio ao aspecto psicoldgico da rel poder do médico e da impoténcia do paciente, O paciente teduz considera io, ela se dé nas polaridades do elmente a visio do valor de sua participacio e colaboragio pessoais no processo de cura, uma vez que esse Papel fica quase que exclusivamente atribuido a0 médico. Pouco poderi realizar que nio seja através dele, que é possuidor do conhecimento real do mal que 0 acomete e passa a ser considerado uma referéncia seguta. Rompe com sua perspectiva de auto cura, depositando ‘no médico tais expectativas. Torna-se paciente na plena acepcao da palavra. O conhecimento estar’ disponivel para ele, mas nfo nele. Empossado do conhecimento ¢ do poder implicito que os instrumentos da ciéncia Ihe propiciam, 0 médico experimenta além disso grande valorizagio de seu papel profissional Aspira tornar-se antes de tudo um médico cientista e tende a privilegiat a visto do paciente enquanto individuo social, virtualmente desconsiderando ou desvalorizando a patticipacio de sua subjetividade, Aliena-se de sua propria individualidade na medida em que esta nio Ihe serve de instrumento para o processo de diagnéstico e terapéutico. Sua fetida reduz-se & fetida do paciente ¢ nio lhe serve de fio condutor a uma empatia com ele, Militem ou no em sistemas de crengas semelhantes, médico e paciente passam a relaci onar-se regidos por uma objetividade cujas referéncias sio em parte estabelecidas externa- mente & suas hist6rias pessoais. Sua conduta na relacio subosdina-se a forga de seus papéis sociais, aumentando portanto o catiter formal e conseqtientemente reduzindo a expectati- va da intimidade e cumplicidade na busca da solugao do problema. Incertezas ptesentes nos processos poderiio ser vividas em niveis diferentes para cada uma das partes, sendo oculta- das principalmente quando nio corresponderem aos papéis esperados ot

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