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SIMPÓSIO

Tecnologia e medicina entre encontros


e desencontros
José Eduardo de Siqueira

O autor analisa as profundas modificações que ocorreram no exercício da medicina em função


do desmedido crescimento da tecnologia acompanhado de redução proporcional da participa-
ção crítica do profissional.
O modelo cartesiano-flexneriano que conduz a formação médica atual introduziu variáveis na
atenção à saúde que resultaram em dramáticas mudanças no relacionamento médico-paciente.
O inexorável avanço para as subespecializações e o uso acrítico da tecnologia biomédica des-
caracterizou a medicina como arte, levando o médico a perder a dimensão complexa das pes-
soas enfermas como seres biopsicossocioespirituais. Em conseqüência, a incompleta visão
biologicista fez crescer enormemente os dilemas éticos nas tomadas de decisões clínicas.
Argumenta ser necessário introduzir mudanças significativas na formação profissional que
contemplem o modelo perceptivo de medicina, e que, só assim, será positiva a convivência en-
tre médico e tecnologia, tendo em vista o benefício do paciente.

Unitermos:
Tecnologia, medicina, bioética

"Talvez, com o tempo, descubrais tudo aquilo


que se pode descobrir, e contudo o vosso pro-
gresso não será mais do que uma progressão,
deixando a humanidade sempre cada vez mais
para trás. A distância entre vós e ela pode,
Bioética 2000 - vol 8 - nº 1

José Eduardo de Siqueira


Doutor em Medicina; pós-
um dia, tornar-se tão profunda que o vosso
doutorado em Bioética pela grito de triunfo diante de alguma nova con-
Universidade do Chile; professor
de Clínica Médica e Bioética da quista poderia receber como resposta um
Universidade Estadual de
Londrina; 1º secretário da
grito universal de pavor."
Sociedade Brasileira de Bioética

Bertold Brecht
(A vida de Galileu)

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INTRODUÇÃO norte-americano(2), entronizando o modelo
cartesiano como guia das transmissões de co-
Iniciamos nossa aproximação sobre o tema nhecimentos nas escolas médicas. A medicina
deste Simpósio com uma citação de Bertold assume compromissos com o biológico, separa
Brecht que nos obriga a refletir sobre a intera- a mente do corpo e faz prevalecer a lógica de
ção do fazer científico com a sociedade huma- que a cada efeito corresponde uma causa, e o
na. Não estabelecemos distinção entre os ter- princípio segundo o qual para melhor conhecer
mos ciência e tecnociência, embora isso possa o ser humano haveríamos de dividi-lo em par-
significar, para alguns, impropriedade. Apoia- tes. Conhecendo as partes conheceríamos o to-
mo-nos na história para identificar o final do do. As doenças são compreendidas como pro-
séc. XVII como ponto de mudança no projeto cessos individuais, naturais e biológicos, guar-
ocidental de ciência. Nesse momento, passou- dando relações exclusivas com determinados
se a subestimar o saber puramente especulati- órgãos. Mergulhamos na intimidade das par-
vo, denominado escolástico, implantando-se o tes, esquecemos o todo e tornamo-nos explo-
modelo operativo de ciência. Bacon e Descar- radores de mares profundos, onde permanece-
tes redigiram os estatutos da nova ordem e, mos até hoje. Oxalá um grito universal de pa-
desde então, nos aplicamos em aperfeiçoá-los. vor faça-nos emergir para poder contemplar o
ser humano em toda sua complexidade biopsi-
Para avivar a memória, recordamos o discurso cossocioespiritual.
do novo método:

"Em lugar dessa filosofia especulativa que se Ciência e responsabilidade


ensina nas escolas deve-se encontrar o modo
de agir através do qual, conhecendo a forma e Hans Jonas, em sua obra O Princípio da Res-
as ações do fogo, do ar, dos astros, dos céus e ponsabilidade, apresenta a figura da heurística
dos corpos que nos rodeiam, tão claramente do temor para nos dizer que a tecnociência fre-
como conhecemos os diferentes ofícios de nos- qüentemente faz prevalecer os prognósticos
sos artesãos, deveremos empregá-los, de igual ruins, permitindo um acúmulo insuportável de
modo, para os usos que lhes são próprios e, as- ameaças à vida humana. Contemporâneo dos
sim, tornarmo-nos donos e possuidores da na- grandes avanços da engenharia genética, Jonas
tureza"(1). alerta para os riscos de ousadas ações da ciên-
cia ao pretender manipular os segredos da vi-
O modelo vigente de medicina, inaugurado no da, como num jogo de azar. Conclui afirman-
início do séc. XX por Abraham Flexner, é fiel do que nem todas as apostas são permitidas no
herdeiro dessa ciência operativa. Em 1910, o tabuleiro do jogo da vida. Sua preocupação é
famoso Relatório Flexner impôs mudanças ne- tanta que não se constrange ao propor a cria-
cessárias no relapso sistema de ensino médico ção de uma estrutura de poder, que denomina

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SIMPÓSIO
"tirania benevolente", exercida por um colegia- zação da técnica anula a liberdade humana e
do de sábios que se responsabilizaria por auto- torna inevitável a absorção do homem e seu
rizar ou não qualquer projeto científico(3). entorno social pelo universo frio da tecnociên-
Vaticinou Jonas que, mais do que a possibilida- cia. Fascinados pela tecnologia, teríamos nos-
de de um apocalipse abrupto, a moderna tec- so juízo moral abalado e perderíamos em defi-
nociência ensejaria o aparecimento de um apo- nitivo a capacidade crítica. Ellul chega a iden-
calipse gradual, que culminaria na descaracte- tificar uma "perversão do homem pela tecnolo-
rização da espécie humana e do Universo co- gia", já que seríamos desviados de nossas origi-
mo um todo. Propõe a criação de uma nova nais vocações(5). Heidegger, no mesmo senti-
ética, considerando que o alcance das prescri- do, considera a tecnociência o veículo que con-
ções até então vigentes, calcadas no modelo duzirá a vida à pura instrumentalidade, invia-
kantiano, reduziam-se ao âmbito da relação bilizando o projeto de existência humana au-
com o próximo, numa insatisfatória premissa têntica. Quando indagado por jornalistas do
antropocêntrica e contemporânea. Jonas quer periódico Der Spiegel sobre os destinos da hu-
uma ética voltada para o futuro, estende nos- manidade diante dessa perspectiva desastrosa,
sos compromissos morais de tal modo a alcan- respondeu com a célebre frase: "Agora só um
çar as gerações vindouras dos não-nascidos e Deus nos pode salvar!"
nos responsabiliza igualmente pelos cuidados
com a natureza extra-humana. Frente à ma- Gilbert Hottois em sua obra O paradigma
nipulação genética, na qual o homem toma em bioético: uma ética para a tecnociência, refere-se
suas mãos a própria evolução da espécie, inda- a um colóquio ocorrido num congresso que
ga: estamos qualificados para essa tarefa? reuniu em Londres renomados biólogos de to-
Quem serão os escultores da nova imagem do do o mundo que buscavam encontrar formas
homem? Segundo que critérios? Obedecendo mais adequadas de sobrevivência do ser huma-
a que modelos? Teremos o direito de alterar no nas futuras viagens espaciais. J.B.S. Halda-
nosso patrimônio genético? Finalmente, ad- ne argumentava estar o macaco melhor prepa-
verte: "Ante o potencial quase escatológico de rado que o homem para viver num meio com
nossa tecnologia, a ignorância sobre as últimas menor gravidade, mas que uma adequada in-
conseqüências de nossos atos será em si mes- serção de genes selecionados do símio no ho-
ma razão suficiente para uma moderação res- mem poderia dotá-lo de uma longa cauda, o
ponsável (...) Há outro aspecto digno de men- que o capacitaria satisfatoriamente para a so-
ção, os não-nascidos carecem de poder (...) brevivência no ambiente intergaláctico. Ler-
Que forças deve representar o futuro no pre- derg, outro cientista presente, interveio com
sente?"(4). otimismo aduzindo que se poderia conseguir o
mesmo "produto final" por caminhos que não
Pensadores como Heidegger e Jacques Ellul fo- o da manipulação gênica, mas, sim, substituin-
ram mais longe, ao considerarem que a civili- do partes do corpo humano por estruturas

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mecânicas. E concluiu: "Se desejamos um ho- Essas manifestações sombrias da personalida-
mem com rabo, encontraremos um meio de de de alguns cientistas são apresentadas apenas
fazê-lo"(6). para mostrar que os mesmos são seres huma-
nos, em tudo semelhantes a qualquer dos sim-
Outro aspecto que merece realce é a constata- ples mortais, diferindo apenas por exercerem
ção de que os mentores da tecnociência não tarefas de enorme responsabilidade social, o
são seres tão imaculados quanto podem pare- que lhes veda o agir irresponsável.
cer, pois a busca do saber sempre pretende al-
cançar o fazer e o poder. Esse percurso, com A convicção de alguns de que a ciência tem
fortes matizes egóicas, já produziu desentendi- resposta para tudo decorre de visão distorcida
mentos que se tornaram públicos e nos mos- da realidade. É preciso estar atento para reco-
tram que não se pode considerar alguns ho- nhecer que, juntamente com benefícios, os
mens de ciência como personalidades acima de avanços tecnocientíficos também trazem ris-
qualquer suspeita. A disputa pela descrição do cos. Em medicina, particularmente, riscos e
vírus da imunodeficiência humana (VIH), en- benefícios constituem denominador comum
volvendo o francês Luc Montagnier e o norte- dos extraordinários progressos da propedêutica
americano Robert Gallo, não pode ser conside- armada e da terapêutica, sempre concebidos
rada propriamente como um elevado debate com o propósito primordial de promover a saú-
acadêmico. James Watson, prêmio Nobel de de. Essencial é preservar sempre o espírito crí-
Medicina e ex-diretor do Projeto Genoma Hu- tico, sabendo estagnador e inoperante o pessi-
mano, assim se manifestou sobre Craig Ven- mismo que pretende conter os avanços da bio-
ter, presidente da Celera, principal companhia medicina, mas reconhecendo também, como
privada que buscava concluir o mapeamento inquietante e insensato, o otimismo acrítico
do genoma humano: "Qualquer macaco pode- que ignora os riscos neles contidos.
ria fazer o trabalho de Venter"(7). William
Shockley, ganhador do prêmio Nobel de Físi- Os conhecimentos científicos são cumulati-
ca de 1956, assombrou o mundo ao sustentar vos; a construção dos valores éticos, não. A
que os negros tinham QI inferior ao dos bran- ética não é um tempero a ser adicionado à tor-
cos e propôs que as pessoas de menor inteli- ta da tecnociência para conferir-lhe melhor sa-
gência fossem esterilizadas. Em 1980, aos 70 bor, mas, ao contrário, constitui ingrediente
anos, doou seu sêmen a uma clínica interessa- indispensável para tornar o alimento palatável
da em comercializar espermatozóides de para toda a sociedade. Não infreqüentemente
gênios para serem usados em inseminação somos dominados pelo fascínio da tecnociên-
artificial. Morreu em 1989 e a clínica fechou cia e temos a ilusão de que o acúmulo de co-
em 1997, sem que se saiba de algum bebê que nhecimentos é suficiente para fazer-nos felizes
tenha sido gerado por intermédio de seu e dominarmos os segredos da vida. Precisamos
genial espermatozóide. estar atentos para a dura sentença de Nietzche

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SIMPÓSIO
sobre o cientificismo: "Vós sois seres frios, que das da Internet do site Globo.com (saúde) nos
vos sentis encouraçados contra a paixão e a dias 1º de fevereiro e 8 de junho de 2000. A
quimera. Bem que gostaríeis que a vossa ciên- primeira refere-se a centenas de experiências
cia se transformasse em adorno e objeto de or- com terapia gênica realizadas nos EUA, que
gulho! Afixais em vós mesmos a etiqueta de redundaram em fracasso, algumas com morte.
realistas e dais a entender que o mundo é ver- De 691 experimentos, apenas 39 foram noti-
dadeiramente feito tal qual vos parece"(8). ficados ao Instituto Nacional de Saúde
(NIH), como exige a legislação norte-america-
Impedir o avanço da ciência é uma insensatez, na. A respeito do fato, Stuart Newman, pes-
atitude inócua e rigorosamente contra a essên- quisador do New York Medical College, infor-
cia do ser humano, cuja aspiração sempre será mou que os maus resultados foram mantidos
a de construir a realidade, desde que foi derro- em segredo para não gerar prejuízos para as
gado o princípio do ordo factus. O imperativo empresas financiadoras das pesquisas. Quanto
categórico kantiano libertou-nos da atitude à segunda notícia, refere-se ao estudo realiza-
puramente contemplativa do Universo para do pelo Instituto de Câncer de Roterdam, que
nos entregar a responsabilidade de criar e mo- identificou grande número de mulheres porta-
dificar. A partir de então, consideramos a "or- doras de mutações gênicas, motivo que as tor-
dem feita" como passível de mudanças, pas- nava candidatas a desenvolver câncer de mama
sando a empenharmo-nos em construir uma e ovário, tendo, por isso, sido orientadas por
nova "ordem" universal. Imperioso, porém, ter seus médicos a submeterem-se à extração de
presente que é pouco razoável considerar, co- seus órgãos sadios.
mo propõe E. Teller, um dos principais ideali-
zadores da bomba atômica, que "o homem da Se por um lado temos os seguidores do precei-
era da tecnociência deve produzir todo o possí- to baconiano, que estabelece que todo o possí-
vel e aplicar os conhecimentos adquiridos sem vel deve ser feito, podemos ouvir vozes mais
qualquer limite"(*). Contrariamente, Giovanni prudentes como a de Potter, criador do neolo-
Berlinguer, um dos grandes expoentes da bioé- gismo bioética, que assim se expressa: "Meu sa-
tica européia, que também participa do pre- ber é limitado, mas o combinarei com os co-
sente Simpósio, pondera: "A velocidade com nhecimentos e opiniões de outros homens inte-
que se passa da pesquisa pura para a aplicada é, ligentes, inspirados no sentido ético, e provenien-
hoje, tão alta que a permanência, mesmo que tes de várias disciplinas, para ordenar minhas
por breve tempo, de erros ou fraudes pode pro- convicções e ações(10). Felizmente, entre o
vocar catástrofes"(9). Corroborando a tese de laissez-faire e a satanização da tecnociência nos
Berlinguer, reproduzimos duas notícias extraí- é oferecido o sensato caminho da prudência.

* Citado por G. Hottois in El paradigma bioético: uma ética para la tecnociencia, Cap. VI, p. 115.

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Medicina: entre a arte e a técnica se a ultra-sonografia evidencia particularidades
de minúsculos cálculos vesiculares? Por que
Desde as primeiras lições, o estudante de me- auscultar atentamente o coração enfermo se o
dicina aprende, por intermédio de método ana- ecocardiograma ou a cintilografia miocárdica
lítico, que para bem compreender uma enfer- fornecem informações com precisão quase
midade deve dividir o objeto de seu estudo em matemática sobre a anatomia e a fisiologia
tantas partes quanto possível. O conhecimen- cardíacas? A medicina tecnológica passa a
to das partes é levado à exaustão. Na seqüên- identificar a "doença" até mesmo onde o
cia, pretende-se com a união das mesmas re- paciente ainda não a percebeu. Quem sabe,
construir o todo. Ocorre que, com freqüência, por exemplo, quantas vesículas biliares foram
não conseguimos concluir satisfatoriamente a removidas tão logo se obteve a informação da
derradeira parte dessa tarefa. Caminhar entre presença de cálculos ao exame ultra-sonográfi-
os diagnósticos etiológico, anatômico e sindrô- co do abdome? A medicina tecnológica alterou
mico, guiados fundamentalmente pelo raciocí- o roteiro de elaboração do diagnóstico e, por
nio clínico, não é fácil tarefa. Os grandes mes- conseqüência, o ato terapêutico(11).
tres da medicina, até a década de 1960, tran-
sitavam por esse caminho com extrema com- Devemos condenar a tecnologia? É óbvio que
petência. Como esquecer as famosas reuniões não! Fundamental é corrigir nossa atitude
anatomoclínicas nas quais o médico responsá- diante dela, o que significa usá-la com critério,
vel pelo caso construía seu raciocínio diagnós- isto é, fazendo-a dependente do raciocínio clí-
tico exclusivamente a partir da história clíni- nico, ou seja, reconduzindo-a à condição de
ca? Nessa época, as informações extraídas dos método complementar de investigação. Exem-
equipamentos eram consideradas complemen- plo paradigmático da subversão promovida pe-
tares e o raciocínio clínico o único aceito co- la tecnologia extraímos do artigo de Rozen-
mo soberano. O crescimento impressionante man, cujo título é bastante sugestivo: "Where
da tecnologia médica foi sendo assimilado na did good old clinical diagnosis go?" O autor
prática profissional de maneira inadequada, relata a "via-crucis" de um paciente idoso sub-
pois de complementar transformou-se em es- metido a cirurgia de revascularização miocár-
sencial. Deixou de ser súdito e assumiu a con- dica que passa a apresentar febre e anemia. É
dição de soberano. Atrofiou-se enormemente a examinado por um elenco de competentes es-
destreza em colher anamneses elucidativas; o pecialistas e submetido a inúmeros procedi-
exame físico detalhado transformou-se em mentos, entre os quais endoscopia, colonosco-
exercício cansativo e, até mesmo, desnecessá- pia e tomografia computadorizada da coluna,
rio diante do poder inesgotável das informa- seguida de biópsia vertebral. As suspeitas diag-
ções fornecidas pelos equipamentos. O que era nósticas variaram de mieloma múltiplo a cân-
complementar transformou-se em essencial. cer com metástase na coluna, até que a auscul-
Por que "perder tempo", ouvindo um paciente, ta de um sopro sistólico mitral, de grande in-

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SIMPÓSIO
tensidade, evidenciando insuficiência valvar, gãos. Schraiber(13) refere-se a uma equação
acompanhada de hemocultura positiva para composta por componentes do médico e do pa-
Staphylococcus epidermidis, definiu o diagnós- ciente, cujo equilíbrio foi sendo modificado
tico de endocardite infecciosa, o que foi con- com o passar do tempo. Até a década de 50, a
firmado pelo ecocardiograma transesofágico. relação médico-paciente era 1:1; com o adven-
O autor chama a atenção para o tortuoso ro- to das especialidades foram ocorrendo altera-
teiro utilizado para o esclarecimento diagnós- ções nessas variáveis até ser atingido o equiva-
tico do caso, entendendo que os inúmeros es- lente à n: 1. Como provado está que o núme-
pecialistas convocados para opinar o faziam ro de subespecialidades crescerá até nn, é pre-
utilizando-se de longa e minuciosa investiga- ciso recuperar o equilíbrio inicial, com a for-
ção, "dentro de suas áreas de conhecimento", mação de profissionais generalistas, responsá-
permanecendo despreocupados com o quadro veis essenciais pela atenção aos pacientes. Em
clínico geral(12). suma, advogamos que cada paciente tenha seu
médico geral e que ambos sejam os protagonis-
O crescimento das subespecialidades gerou tas nas tomadas de decisões sobre saúde
curiosa situação, em que as relações de espe- que concluírem necessárias. As opiniões de
cialidades médicas reconhecidas pelas Associa- especialistas passarão obrigatoriamente pelo
ções Médicas se encontram permanentemente crivo deliberativo de ambos. Imprescindível,
desatualizadas. Assim, a denominação da espe- portanto, será formar esse novo profissional,
cialidade cardiologia é hoje incompleta, já que sempre presente ao lado do seu paciente,
se torna necessário saber se o profissional se conhecendo-o em todas as suas múltiplas e
dedica ao estudo de crianças ou adultos, o que complexas variáveis. Acreditamos que só assim
também é insuficiente, pois é preciso conhecer se poderá cuidar da pessoa doente, e não
a área específica de seu conhecimento, se rela- apenas tratar a doença da pessoa.
tiva a doenças coronárias, valvares, miocárdi-
cas, cardiopatias congênitas cianóticas ou Isso representa, de fato, uma inversão percep-
acianóticas. Com o avanço no conhecimento tiva, pois significa abandonar o modelo bioló-
do genoma humano certamente teremos espe- gico cartesiano, que nos faz crer que o ser hu-
cialistas em organelas ou aqueles que dedicarão mano é um amontoado de orgãos limitados
todas as suas energias para estudar o cromos- por um invólucro dérmico, e passar a percebê-
somo 21. O que fazer diante desse crescente lo como um sistema vivo, protagonista de um
número de subespecialidades? Condená-las à conjunto de relações complexas, em interação
fogueira pelo Tribunal Holístico Universal? permanente com o meio ambiente e com os
Certamente, não! É preciso considerar, porém, outros seres humanos de igual complexidade.
que a pessoa adoece em toda a sua complexa Que sentido faz, por exemplo, descrever o sis-
estrutura biopsicossocial, e não simplesmente tema nervoso, o hormonal ou o imunitário, se
em organelas, cromossomos, tecidos ou or- formos incapazes de "ler" e integrar as relações

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que os organizam entre si e que definem tanto dúvidas a respeito de sua moléstia. Não há lu-
a saúde como a enfermidade? Precisamos in- gar nesse modelo de medicina para a participa-
corporar, também, a noção de Homo systemus, ção do paciente como sujeito. E segue, alvo e
um ente que tem suas fronteiras alargadas por altivo, pelos corredores dos hospitais o cortejo
novos territórios, por interações múltiplas com dos sábios cultuadores do modelo nietzcheano
outros Homo systemus, por acontecimentos, de ciência.
escolhas, atitudes e que, tanto sua saúde como
sua doença, serão completamente ininteligí- Dispondo de enorme arsenal de métodos para
veis na ausência da integração de todas essas investigar nossos pacientes, será que o utiliza-
variáveis(14). mos de maneira adequada? Infelizmente, a res-
posta é negativa. Kaplan estudou 6.200 análi-
A falta de domínio desses conhecimentos nos ses bioquímicas realizadas em 2.000 pacientes
conduziu às atuais catástrofes de relaciona- que seriam submetidos a cirurgias eletivas no
mento interpessoal presentes no cotidiano de hospital da Universidade da Califórnia e con-
nossa profissão. A medicina, originalmente ri- cluiu que 60% das análises eram desneces-
ca arte de relacionamento intersubjetiva, foi sárias(15). Estudo efetuado em três grandes
reduzida a um pobre ofício de leitura de variá- centros norte-americanos que realizam endos-
veis biológicas. Escutamos sem ouvir, pois fo- copia digestiva mostrou que em 17% do total
mos treinados para subestimar a subjetividade de 1.069 procedimentos a indicação do exame
das pessoas. As visitas às enfermarias, realiza- foi considerada incorreta(16). Bernard Lown,
das em muitos hospitais universitários, com- um dos mais conceituados cardiologistas do
põem-se de uma seqüência monótona de leitu- séc. XX, observou que de 1 milhão de cineco-
ra de uma interminável relação de dados vitais ronariografias realizadas em 1993, nos EUA,
de pacientes, colhidos por meio de sofisticados duzentas mil foram normais, tendo concluído
equipamentos. Com muita freqüência, o do- que "se as lições de meu mestre, prof. Samuel
cente encerra a discussão fazendo alguma refe- Levine, fossem seguidas, poucos pacientes com
rência aos últimos estudos multicêntricos que coronárias normais seriam submetidos a tal es-
são identificados por enigmáticas siglas como tudo, invasivo e dispendioso"(17).
RESULT II, LOGUS I ou COCOEX, e ad-
verte que, vivendo a fase da medicina baseada Outro território onde a tecnologia, ao lado de
em evidências, desconhecer esses grandes trials contribuições decisivas para salvar vidas, indu-
significa grave limitação para a tomada de de- ziu a adoção de condutas inadequadas é o das
cisões terapêuticas com base científica. O pa- unidades de terapia intensiva (UTIs). Desne-
ciente, que nada compreendeu daquela lingua- cessário ressaltar os benefícios obtidos nessas
gem e permanece o tempo todo calado, tem unidades com as novas metodologias diagnós-
sua insegurança aumentada e recorre, com fre- ticas e terapêuticas. Incontáveis são as vidas
qüência, a outros profissionais para esclarecer salvas em situações críticas, tais como, por

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SIMPÓSIO
exemplo, na recuperação de doentes com in- gravemente enfermos, concluindo que 55%
farto agudo do miocárdio e/ou enfermidades dos mesmos estiveram conscientes nos três di-
com graves distúrbios hemodinâmicos, cuja re- as que antecederam a morte; 40% sofreram
cuperação pôde ser alcançada com o uso de en- dores insuportáveis; 80%, fadiga extrema; e
genhosos procedimentos terapêuticos. Ocorre 63%, grande dificuldade para tolerar o sofri-
que nossas UTIs passaram a receber, também, mento físico e emocional que experimentavam
pacientes com doenças crônicas incuráveis, (20). Trata-se de categóricas evidências que de-
apresentando intercorrências clínicas as mais monstram que perdemos a capacidade para
diversas, que foram contemplados com os mes- compreender a plenitude do ensinamento de
mos cuidados oferecidos aos agudamente en- Oliver Holmes: "A Medicina cabe curar às ve-
fermos. Se para os últimos, com freqüência, zes, aliviar muito freqüentemente e confortar
alcança-se plena recuperação, para os doentes sempre". Orientamo-nos apenas pela primeira
crônicos pouco se oferece além de um sobrevi- afirmação de Holmes e esquecemo-nos de que
ver precário e, muitas vezes, não mais que ve- não nos é facultado curar sempre. Fomos edu-
getativo. Situação essa por nós conhecida co- cados para interpretar a vida como fenômeno
mo obstinação terapêutica, futilidade nos paí- estritamente biológico e incorporamos toda a
ses de língua inglesa e encarniçamento tera- tecnologia biomédica para perseguir essa uto-
pêutico para os de fala hispânica. Até quando pia. A obsessão de manter a vida biológica a
avançar nos procedimentos tecnológicos de su- qualquer custo nos conduziu à obstinação te-
porte vital? O modelo cartesiano de medicina rapêutica. Temos, portanto, um grave dilema
nos ensina muito sobre tecnologia de ponta e ético que é cotidianamente apresentado aos
pouco sobre o significado metafísico da vida e médicos intensivistas: quando se impõe não
da morte(18). utilizar toda a tecnologia disponível?

Um trabalho realizado por Hill mostrou que


apenas 5 de 126 escolas de medicina norte- Conclusão
americanas oferecem ensinamentos sobre a
terminalidade da vida. Apenas 26 dos 7.048 Enfatizamos mais uma vez ser desnecessário
programas de residência médica tratam do te- apontar os benefícios oferecidos à humanidade
ma em reuniões científicas(19). Desprepara- pelos avanços tecnológicos da medicina mo-
dos para a questão, passamos a praticar uma derna. Basta recordar as precisas informações
medicina que subestima o conforto do enfer- obtidas pelos tomógrafos, pela ressonância
mo terminal, impondo-lhe longa e sofrida ago- magnética, pela medicina nuclear, as contribui-
nia. Adiamos a morte às custas de insensato e ções da ultra-sonografia como método diag-
prolongado sofrimento para o paciente e sua nóstico, o decisivo valor da mamografia
família. Estudo conduzido por Lynn colheu na detecção precoce do câncer de mama, as
informações de familiares de pacientes idosos minuciosas informações obtidas pela endosco-

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pia digestiva e pela cineangiografia. Do ponto década de 30, quando a medicina era exercida
de vista terapêutico, devem ser lembradas as ci- em consultórios com mínima tecnologia, para
rurgias realizadas por intermédio de videolapa- o atual, em que os atos profissionais são reali-
roscopia, as microcirurgias e os procedimentos zados em hospitais com sofisticados equipa-
cirúrgicos minimamente invasivos efetuados mentos, com ausência quase completa de laços
com o auxílio da robótica, que tornaram qua- de relacionamento entre médicos e pacientes.
se inexistente a distância entre a realidade e a Para o ano 2005, o autor delineia o perfil de
ficção. Dispensável, portanto, exaltar as con- um profissional ainda mais afeito à tecnologia
tribuições da tecnologia à medicina. Torna-se e definitivamente distante do ser humano en-
imprescindível, porém, refletir sobre o uso ade- fermo(22). Precisamos resgatar a medicina de
quado de todo esse custoso aparato. relação, pois somente através dela poderemos
recuperar o ser humano enfermo em todas as
Recordamos as lúcidas afirmações do prof. Jo- suas ricas e complexas dimensões.
sé Paranaguá de Santana que, por ocasião do
XXXVIII Congresso Brasileiro de Educação Em suma, o desafio que temos pela frente é o
Médica, realizado em setembro de 2000, as- de continuar exercendo a medicina como téc-
sim se expressou: "O avanço científico e tec- nica cega e surda, tributária de um arsenal
nológico realizado nos marcos da concepção crescente de equipamentos, ou de tentar resga-
flexneriana, especialmente na segunda metade tar a percepção, a reflexão e a crítica em nos-
do séc. XX, é uma evidência que dispensa ar- sos atos profissionais. Não podemos esquecer,
gumentação comprobatória; por outro lado, e outrossim, que a tecnologia já seduz enorme
também sobre esse aspecto não pairam discor- contingente de pacientes que, com freqüência
dâncias, tem-se observado, mais que estagna- cada vez maior, procura atendimento médico
ção, franca deterioração dos padrões éticos no apenas para conseguir realizar o sonho de sub-
curso de prestação de serviços médicos"(21). meter-se aos últimos procedimentos inventa-
Há, pois, ampla concordância em condenar as dos pela tecnociência. Cresce a confiança de-
ações que resultam na formação excessivamen- positada nas informações fornecidas pelos
te técnica, e pobre em conteúdo humanístico, equipamentos na mesma proporção que de-
do profissional médico. Greenlick, em interes- cresce a segurança na competência pessoal do
sante estudo, compara o comportamento dos médico. Será que assistiremos passíveis a arte
médicos nos anos 1935, 1985 e 2005. Apon- médica ser transformada em marionete do
ta para a progressiva deformação do modelo da fundamentalismo tecnocientífico?

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SIMPÓSIO

RESUME
Tecnología y medicina entre encuentros y desencuentros

El autor analiza las profundas modificaciones que ocurrieron en el ejercicio de la medicina


en función del desmedido crecimiento de la tecnología acompañada de la reducción
proporcional de la participación crítica del profesional.
El modelo cartesiano-flexneriano que conduce a formación médica actual introdujo
variables en la atención a la salud que resultaron en dramáticos cambios en la relación
médico-paciente. El inexorable avance para las subespecializaciones y el uso acrítico de la
tecnología biomédica descaracterizaron la medicina como arte, llevando al médico a perder
la dimensión compleja de las personas enfermas como seres biopsicosocioespirituales. En
consecuencia, la incompleta visión biologicista hizo crecer enormemente los dilemas éticos
en la toma de decisiones clínicas.
Argumenta que sea necesario introducir cambios significativos en la formación profesional
que contemplen el modelo perceptivo de la medicina; y sólo así será positiva la convivencia
entre médico y tecnología, teniendo como punto de mira el beneficio del paciente.

ABSTRACT
Technology and medicine between achievements and mishaps

The author analyses the profound changes that have occurred in the practice of medicine
due to the inordinate growth of technology accompanied by a proportional reduction in the
critical involvement of the medical professional.
The Cartesian-Flexnerian model that steers medical education and training today has
introduced variables in medical treatment that have resulted in dramatic changes in the
doctor-patient relationship. Medicine is no longer characterized as an art due to the
relentless advancement towards subspecializations and the indiscriminate use of
biomedical technology. This has caused doctors to lose the complex notion of sick people
as biopsychosociospiritual beings. Subsequently, the incomplete biologistic view has
greatly heightened the ethical dilemmas in the clinical decision-making process.
This article argues that it’s necessary to introduce significant changes in medical
professional education and training that contemplate the perceptive model of medicine;
only in this manner will there be a positive coexistence between doctors and technology,
in the ultimate benefit of the patient.

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ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA

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