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PRIMEIRA PARTE PRINCI{PIOS GERAIS caPiTULO I NATUREZA DO SIGNO LINGUISTICO §1. SiGNo, SIGNIFICADO, SIGNIFICANTE. Para certas pessoas, a lingua, reduzida a seu principio es- sencial, é uma nomenclatura, vale dizer, uma lista de termos que correspondem a outras tantas coisas. Por exemplo: Tal concepgao é criticavel em numerosos aspectos. Supde idéias completamente feitas, preexistentes 4s palavras (ver, sobre isso, mais adiante (p. 130) ; ela nao nos diz se a pa- lavra é de natureza vocal ou psiquica, pois arbor pode ser considerada sob um ou outro aspecto; por fim, ela faz su- por que o vinculo que une um nome a uma coisa cons- titui uma operagio muito sim- ples, o que estd bem longe da verdade. ARBOR EQUOS A i. ete. etc. Entretanto, esta visio simplista pode aproximar-nos da verdade, mostrando-nos que a unidade lingijistica é uma coisa dupla, constituida da unido de dois termos. Vimos na p. 19 s., a propésito do circuito da fala, que os termos implicados no signo lingiifstico s&o ambos psiquicos e 79 estZo unidos, em nosso cérebro, por um vinculo de associagio. Insistamos neste ponto. O signo lingitistico une nao uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem actstica'. Esta nao é 0 som ma- terial, coisa puramente fisica, mas a impressao (empreinte) psi- quica desse som, a representagdo que dele nos da o testemunho de nossos sentidos; tal imagem é€ sensorial e, se chegamos a cha- ma-la “material”, é somente neste sentido, e por oposigio ao outro termo da associagao, o conceito, gcralmente mais abstrato. O carater psiquico de nossas imagens acisticas aparece cla- Yamente quando observamos nossa prépria linguagem. Sem movermos os labios nem a lingua, podemos falar conosco ou recitar mentalmente um poema. E porque as palavras da lingua séo0 para nés imagens aciisticas, cumpre evitar falar dos “fonemas” de que se compdem. Esse termo, que implica uma idéia de ac&o vocal, nao pode convir sendo A palavra falada, a realizagdo da imagem interior no discurso. Com falar de sons € de silabas de uma palavra, evita-se o mal-entendido, des- de que nos recordemos tratar-se de imagem acistica. O signo lingiiistico €, pois, uma entidade psiquica de duas faces, que pode ser representada pela figura: Esses dois elementos estio in- timamente unidos e um reclama o outro. Quer busquemos o sentido da palavra latina arbor, ou a pa- lavra com que o latim designa o conceito “Arvore”, esté claro que somente as vinculagdes consagra- das pela lingua nos parecem con- formes 4 realidade, e abandonamos toda e qualquer outra que Se possa imaginar. Imagem actstica (1) © termo de imagem actistica parecerd, talvez, muito estreito, pois, ao lado da representacdo dos sons de uma palavra, existe também a de sua articulacdo, a imagem muscular do ato fonatério. Para F. de Saussure, porém, a lingua é essencialmente um depésito, uma coisa rece- bida de fora (ver p. 21). A imagem actstica ¢, por exceléncia, a tepresentacdo natural da palavra enquanto fato de lingua virtual, fora de toda realizacdo pela fala. O aspecto motor pode, entao, ficar subenten- dido ou, em todo caso, nao ocupar mais que um lugar subordinado em telagio & imagem actistica (Org.). 80 “Arvore” Esta definigao suscita uma importante questéo de termino- logia, Chamamos signo a combinagao do conceito e da ima- gem aciistica: mas, no uso corrente, esse termo designa geral- mente a imagem actstica apenas, por exemplo uma palavra (arbor etc.). Esquece-se que se chamamos a arbor signo, é somente porque exprime o conceito “érvore”, de tal maneira que a idéia da parte sensorial implica a do total. A ambigitidade desapareceria se designdssemos as trés no- gdes aqui presentes por nomes que se relacionem entre si, a0 mesmo tempo que se opdem. Propomo-nos a conservar o termo signo para designar o total, e a substituir conceito e imagem actstica respectivamente por significado e stgnificante; éstes dois termos tém a vantagem de assinalar a oposigo. que os se- para, quer entre si, quer do total de que fazem parte. Quanto a signo, se nos contentamos com éle, é porque nao sabemos por que substitui-lo, visto nZo nos sugerir a lingua usual nenhum outro. O signo lingiiistico assim definido exibe duas caracteristi- cas primordiais. Ao enuncid-las, vamos propor os principios mesmogs de todo estudo desta ordem. § 2. Primeiro PRINGIPIO: A ARBITRARIEDADE DO SIGNO. O lago que une o significante ao significado € arbitrario ou ent&o, visto que entendemos por signo o total resultante da associagéo de um significante com um significado, podemos dizer mais simplesmente: 0 signo lingiiistico é arbitrério. Assim, a idéia de “mar” nfo esté ligada por relagao algu- ma interior & seqiiéncia de sons m-a-r que lhe serve de significan- te; poderia ser representada igualmente-bem por outra seqiiéncia, al nao importa qual; como prova, temos as diferengas entre as linguas e a propria existéncia de linguas diferentes: 0 significado da palavra francesa boeuf (“boi”) tem por significante b-6-f de um lado da fronteira franco-germanica, e o-k-s (Ochs) do outro. O principio da arbitrariedade do signo nao €é contestado por ninguém; As vezes, porém, é mais facil descobrir uma ver- dade do que lhe assinalar o lugar que lhe cabe. © principio enunciado acima domina toda a lingiiistica da lingua; suas conseqiiéncias so intimeras, E verdade que nem todas apare- cem, 4 primeira vista, com igual evidéncia; somente ao cabo de varias voltas € que as descobrimos e, com clas, a importancia primordial do princfpio. Uma observagio de passagem: quando a Semiologia estiver organizada, deverd averiguar se os modos de expressio que se baseiam em signos inteiramente naturais — como a pantomi- ma — lhe pertencem de direito. Supondo que a Semiologia os acolha, seu principal objetivo nado deixaré de ser o conjunto de sistemas baseados na arbitrariedade do signo. Com efeito, todo meio de expressao aceito numa sociedade repousa em principio num habito coletivo ou, 0 que vem a dar na mesma, na convengio. Os signos de cortesia, por exemplo, dotados freqiientemente de certa expressividade natural (lembremos os chineses, que saidam seu imperador prosternando-se nove vezes até 0 cho) nao estao menos fixados por uma regra; é essa ree gra que obriga a empregd-los, nao seu valor intrinseco, Pode- -se, pois, dizer que os signos inteiramente arbitrarios realizam melhor que os outros o ideal do procedimento semioldégico; eis porque a lingua, o mais completo e o mais difundido sistema de expressio, é também o mais caracteristico de todos; nesse sentido, a Lingiiistica pode erigir-se em padr&o de toda Semio- logia, se bem a lingua no seja senao um sistema particular. Utilizou-se a palavra simbolo para designar o signo lin- gilistico ou, mais exatamente, o que chamamos de significante. Ha inconyenientes em admiti-lo, justamente por causa do nosso primeiro principio. O simbolo tem como caracteristica nao ser jamais completamente arbitrdrio; ele nao esta vazio, existe um rudimento de vinculo natural entre o significante e o sig- nificado, O simbolo da justiga, a balanga, nao poderia ser subs- tituido por um objeto qualquer, um carro, por exemplo. 82 A palavra arbitrdrio requer também uma observagio. Nao deve dar a idéia de que o significado dependa da livre esco- Iha do que fala (ver-se-4, mais adiante, que nao esta ao alcance do individuo trocar coisa alguma num signo, uma vez que esteja ele estabelecido num grupo lingiifstico); queremos dizer que o significante & imotivado, isto 6, arbitrério em relagéo ao significado, com o qual nao tem nenhum lago natural na rea- lidade. Assinalemos, para terminar, duas objegdes que poderiam ser feitas a este primeiro principio: 1° © contraditor se poderia apoiar nas onomatopéias para dizer que a escolha do significante nem sempre é arbitré- ria. Mas elas nao sao jamais elementos orgdnicos de um sis- tema lingiiistico, Seu ntimero, além disso, é bem menor do que se cré. Palavras francesas como fouet (“chicote”) ou glas (“dobre de sinos”) podem impressionar certos ouvidos por sua sonori- dade sugestiva; mas para ver que nao tém tal cardter desde a origem, basta remontar as suas formas latinas (fouet derivado de fagus, “faia’, gias = classicum); a qualidade de seus sons atuais, ou melhor, aquela que se lhes atribui, é um resultado fortuito da evolugdo fonética. Quanto 4s onomatopéias auténticas (aquelas do tipo glu- -glu, tic-iac etc.), ndo apenas s&o pouco numerosas, mas sua es- colha é j4, em certa medida, arbitraria, pois que nao passam de imitagao aproximativa e j4 meio convencional de certos rui- dos (compare-se o francés ouagoua € o alem’o wauwau). Além disso, uma vez introduzidas na lingua, elas se engrenam mais ou menos na evolucao fonética, morfolégica etc., que sofrem as outras palavras (cf. pigeon, do latim vulgar pipid, derivado também de uma onomatopéia): prova evidente de que per- deram algo de seu cardter primeiro para adquirir o do signo lin- gitistico em geral, que é imotivado. 2.° As exclamagées, bastante préximas das onomatopéias, d&o lugar a observagdes andlogas e n4o constituem maior amea- ¢a para a nossa tese, E-se tentado a ver nelas expressdes espon- taneas da realidade, como que ditadas pela natureza, Mas, para a maior parte delas, pode-se negar haja um vinculo neces- sario entre o significado e o significante, Basta comparar duas linguas, sob esse aspecto, para ver o quanto tais expressoes va- 83 riam de uma para outra lingua (por exemplo, ao francés aie! corresponde em alemao au! e em portugués ai!/). Sabe-se tam- bém que muitas exclamagoes comegaram por ser palavras com sentido determinado (cf. diabo!; ou em francés, mordieu = morte Dieu etc.). Em resumo, as onomatopéias e as exclamagées séo de im- portancia secundaria, e sua origem simbdlica é em parte contestavel. § 3. SgcuNDO pPRINGiPIO: GARATER LINEAR DO SIGNIFICANTE. O significante, sendo de natureza auditiva, desenvolve-se no tempo, unicamente, e tem as caracteristicas que toma do tempo: a) representa uma extensdo, e b) essa extensdo é men- surdvel numa sé dimensao: € uma linha, Este principio é evidente, mas parece que sempre se negli- genciou enuncid-lo, sem divida porque foi considerado dema- siadamente simples; todavia, éle é fundamental e suas conse- qiiéncias sio incalculéveis; sua importdncia é igual a da pri- meira lei. Todo o mecanismo da lingua depende dele (ver p. 142). Por oposigio aos significantes visuais (sinais mariti- mos etc.), que podem oferecer complicagGes simultaneas em varias dimens6es, os significantes actisticos dispdem apenas da linha do tempo; seus elementos se apresentam um apds outro; formam uma cadeia, Esse cardter aparece imediatamente quan- do os representamos pela escrita e substituimos a sucessao do tempo pela linha espacial dos signos grAficos. Em certos casos, isso nao aparece com destaque, Se, por exemplo, acentuo uma silaba, parece que acumulo num sé pon- to elementos significativos diferentes. Mas trata-se de uma ilu- sio: a silaba e seu acento constituem apenas um ato fonatério; nao existe dualidade no interior desse ato, mas somente oposi- cées diferentes como que se.acha a seu lado (ver, sobre is- to, a p. 151 s.). 84 CAPITULO II IMUTABILIDADE E MUTABILIDADE DO SIGNO § 91. Imurasivipape. Se, com relagdo 4 idéia que representa, o significante apa- rece como escolhido livremente, em compensagéo, com relagio a comunidade lingilistica que o emprega, nao é livre: € im-_ posto. Nunca se consulta a massa social nem o significante escolhido pela lingua poderia ser substituido por outro. Este fato, que parece encerrar uma contradicZo, poderia ser chama- do familiarmente de “a carta forgada”. Diz-se a lingua: “Es- colhe!”; mas acrescenta-se: “O signo serd este, nZo outro.” Um individuo nado somente seria incapaz, se quisesse, de modifi- car em qualquer ponto a escolha feita, como também a prépria massa nfo pode exercer sua soberania sobre uma unica palavra: esta atada 4 lingua tal qual é. A lingua nZo pode, pois, equiparar-se a um contrato puro e simples, e é justamente por esse lado que o estudo do signo lingiiistico se faz interessante; pois, se se quiser demonstrar que a lei admitida numa coletividade é algo que se suporta e nao uma regra livremente consentida, a lingua é a que oferece a prova mais concludente disso. Vejamos ent&o como o signo lingiifstico escapa 4 nossa von- tade, e tiremos em seguida as conseqiiéncias importantes que decorram desse fendmeno. A qualquer época que remontemos, por mais antiga que seja, a lingua aparece sempre como uma heranga da época precedente. O ato pelo qual, em dado momento, os nomes te- 85 riam sido distribuidos As coisas, pelo qual um contrato teria sido estabelecido entre os conceitos e as imagens aciisticas — esse ato podemos imagind-lo, mas jamais foi ele comprovado. A idéia de que as coisas poderiam ter ocorrido assim nos é sugeri- da por nosso sentimento bastante vivo do arbitrario do signo. De fato, nenhuma sociedade conhece nem conheceu ja- mais a lingua de outro modo que nao fosse como um produto herdado de geragdes anteriores ¢ que cumpre receber como tal. Eis porque a questo da origem da linguagem nao tem a im- portancia que geralmente se lhe atribui. Tampouco se trata de uma questo a ser proposta; o winico objeto real da Lingitis- tica 6 a vida normal e regular de um idioma ja constituido. Um dado estado de lingua é sempre 0 produto de fatores his- téricos e sfo esses fatores que explicam porque o signo € imu- tavel, vale dizer, porque resiste a toda substituigao. Mas dizer que a lingua é uma heranga nao explica nada, se nao se for mais longe. Nao se podem modificar, de um mo- mento para outro, leis existentes e herdadas? Esta objecio nos leva a situar a lingua em seu quadro so- cial e¢ formular a questZo como a formulariamos para as outras instituigdes. sociais. Como sc transmitem as instituigdes? Eis a questo mais geral, que engloba a da imutabilidade. Cum- pre, primeiramente, avaliar a maior ou menor liberdade de que desfrutam as outras instituigdes; ver-se-A que para cada uma delas existe um equilibrio diferente entre a tradigao imposta e a ago livre da sociedade, A seguir, investigar-sc-A por que, em uma categoria dada, os fatores de primeira ordem sio mais cu menos poderosos do que os de outra. Por fim, voltando 4 lingua, perguntar-se-4 por que o fator histérico da transmis- sio a domina totalmente e exclui toda transformago lingitisti- ca geral e repentina. Para responder a tal pergunta, pode-se atribuir validade a vArios argumentos e dizer, por exemplo, que as modificages da lingya nao esto ligadas & sucesso de geracdes que, longe de se sobrepor umas as outras, como as gavetas de um mével, se mesclam e interpenetram ¢ contém cada uma individuos de todas ‘as idades. Sera mister lembrar também a soma de esforgos que exige o aprendizado da lingua materna para concluir pela im- possibilidade de uma transformagio_geral. Cumpriré acrescen- 86 tar, ainda, que a reflexdo nao intervém na pratica de um idioma; que os individuos em larga medida, nao tém consciéncia das leis da lingua; e se nao as percebem, como poderiam modi- dificd-las? Ainda que delas tivessem consciéncia, é preciso lem- brar que os fatos lingiiisticos ndo provocam a critica, no sentido de que cada povo geralmente esta satisfeito com a lingua que recebeu. Estas consideragdes sio importantes, mas nao sao especi- ficas; preferimos as seguintes, mais essenciais, mais diretas, das Ss; 5 , 7 quais dependem todas as outras: 1. — O cardter arbitrério do signo. Wimos acima que © cardter arbitrario do signo nos fazia admitir a possibilidade tedrica da mudanga; aprofundando a questAo, vemos que, de fato, a prépria arbitrariedade do signo pée a Kngua ao abrigo de toda tentativa que vise a modificd-la. A massa, ainda que fosse mais consciente do que é, nao poderia discuti-la. Pois, para que uma coisa seja posta em questo, ¢ necess4rio que se basele numa norma razodvel. Pode-se, por exemplo, dis- cutir se a forma monogamica do casamento é mais razoa- vel do que a forma poligimica e fazer valer razdes para uma e outra. Poder-se-ia, também, discutir um sistema de simbolos, pois que o simbolo tem uma relagao racional com 0 significado (ver p. 82); mas para a lingua, sistema de signos arbitra- rios, falta essa base, e com ela desaparece todo terreno sélido de discussio; n&o existe motivo algum para preferir soeur a sister, ou a irma, ochs a boeuf ou boi. 2. -— A multidéo de signos necessdrios para constituir qualquer lingua, A importancia deste fato é consideravel. Um sistema de escrita composto de vinte a quarenta letras pode, a rigor, ser substituido por outro. O mesmo poderia suceder 4 Vingua se ela encerrasse um numero limitado de elementos; mas os signos lingtifsticos sio inumerdveis. 3. — O cardter demasiado complexo do sistema. Uma Iingua constitui um sistema. Se, como veremos adiante, esse & 0 lado pelo qual a lingua nZo é completamente arbitraria e onde impera uma razAo relativa, é também o ponto onde avul- ta a incompeténcia da massa para transformd-la. Pois tal sis- tema é um mecanismo complexo; sé se pode compreendé-lo pela reflexdo; mesmo aqueles que dele fazem uso cotidiano, a7 ignoram-no profundamente. Nao se poderia conceber uma trans- formag&o que tal sem a intervengao de especialistas, gramati- cos, légicos etc,; a experiéncia, porém, mostra que até agora as intervengdes nesse sentido nao tiveram éxito algum. 4. — A tesisténcia da inércia coletiva ‘a toda renovagao lingiiistica, A lingua — e esta consideragao sobreleva todas as demais — é, a cada momento, tarefa de toda a gente; difun- dida por u’a massa e manejada por ela, € algo de que todos os individuos se servem o dia inteiro. - Nesse particular, nao se pode estabelecer comparagao alguma entre ela e as outras ins- tituigdes. As prescrigées de um cédigo, os ritos de uma reli- gido, os sinais maritimos etc., nfio ocupam mais que certo nime- ro de individuos por vez e durante tempo limitado; da lingua, ao contrério, cada qual participa a todo instante e é por isso que ela sofre sem cessar a influéncia de todos. Esse fato capital basta para demonstrar a impossibilidade de ama revolugdo. A lingua, de todas as instituigdes sociais, é a que oferece menos oportunidades 4s iniciativas. A lingua forma um todo com a vida da massa social e esta, sendo naturalmen- te inerte, aparece antes de tudo como um fator de conservagao. N&o basta, todavia, dizer que a lingua é um produto de forgas sociais para que se veja claramente que nao é livre; a par de lembrar que constitui sempre heranga de uma época pre- cedente, deve-se acrescentar que essas forgas sociais atuam em fung3o do tempo. Se a lingua tem um cardter de fixidez, nao é somente porque esta ligada ao peso da coletividade, mas tam- bém porque esté situada no tempo. Ambos os fatos sao ins: paraveis. A todo instante, a solidariedade com o passado poe em xeque a liberdade de escolher. Dizemos homem e cachorro porque antes de nds se disse homem e cachorro. Isso nao impede que exista no fendmeno total um vinculo entre esses dois fato- res antindmicos: a convengao arbitrdéria, em virtude da qual a escolha se faz livre, e o tempo, gracgas ao qual a escolha se acha fixada, Justamente porque o signo é arbitrario, nao co- nhece outra lei sendo a da tradigio, e é por basear-se na tra- digio que pode ser arbitrdrio. 88 § 2. Murastipape, O tempo, que assegura a continuidade da lingua, tem um outro efeito, em aparéncia contraditério com o primeira: o de alterar mais ou menos rapidamente os signos lingiiisticos e, em certo sentido, pode-se falar, ao mesmo tempo, da imutabilidade e mutabilidade do signo!. Em ultima andlise, os dois fatos sio solidarios: o signo estd em condigées de alterar-se porque se continua. O que domina, em toda alteragao, é a persist€ncia da matéria velha; a infi- delidade ao passado é apenas relativa. Eis porque o principio de alteragao se baseia no principio de continuidade, A alteragéo no tempo assume diversas formas, cada uma das quais forneceria matéria para um importante capitulo de Lingitistica, Sem entrar em pormenores, eis 0 que & mais im- portante destacar. Em primeiro lugar, nZo nos equivoquemos sobre o senti- do dado aqui ao termo alteragdo. Poder-se-ia fazer acreditar que se tratasse especialmente de transformagées fonéticas sofri- das pelo significante ou ent%o transformasées do sentido que afetam © conceito significado. Semelhante perspectiva seria insuficiente. Sejam quais forem os fatores de alteragio, quer funcionem isoladamente ou combinados, levam sempre a um deslocamento da relagao entre o significado e o significante. Eis alguns exemplos: o latim necdre, “matar’, deu em francés noyer, “afogar’, Tanto a imagem acistica como o conceito mudaram; é inttil, porém, distinguir as duas partes do fendmeno; basta verificar in globo que o vinculo entre idéia € signo se afrouxou e que houve um deslocamento em sua re- lagdo. Se, em vez de comparar necare do latim cldssico com © francés noyer, 0 Contrapusermos ao necare do latim vulgar do século IV ou do V, j4 com o significado de “afogar”, 0 caso é um pouco diferente; mas aqui também, embora no tenha ocor- (1) Seria injusto censurar a F. de Saussure o ser ilégico ou para- doxal por atribuir a lingua duas qualidades contraditérias. Pela oposicao de dois termos marcantes, ele quis somente destacar uma verdade: que 4 lingua se transforma sem que os individuos possam transforméla, Pode-se dizer também que ela é intangivel, mas nao inaltergvel (Org.). a9 rido alteragZo aprecidvel do significante, houve um desloca- mento da relacaio entre a idéia e o signo. © antigo alemio dritteil, “‘o terceiro”, tornou-se, no alem4o moderno, Drittel. Neste caso, conquanto o conceito tenha per- manecido o mesmo, a relagao se alterou de dois modos: o sig- nificante foi modificado nio sé no aspecto. material como tam- bém na forma gramatical; ndo implica mais a idéia de Teil, “parte”; é uma palavra simples. De um modo ou de outro, trata-se sempre de um deslocamento de relagio. Em anglo-saxao, a forma pré-literdria fot, “o pé”, perma- neceu fdt (inglés moderno foot), enquanto que seu plural * foti, “os pés”, se transformou em fzt (inglés moderno feet) Sejam quais forem as alteragdes supostas, uma coisa é certa: ocorreu deslocamento da relagao; outras correspondéncias sur- giram entre a matéria fonica e a idéia. Uma lingua € radicalmente incapaz de se defender dos fa- tores que deslocam, de minuto a minuto, a relagao entre o sig- nificado ¢ o significante. E uma das conseqiiéncias da arbitra- riedade do signo. As outras instituigdes — os costumes, as leis etc. — estdo todas baseadas, em graus diferentes, na relagdo natural entre as coisas; nelas ha uma acomodac4o necessdria entre os meios empregados e os fins visados. Mesmo a moda, que fixa nosso modo de vestir, nfo é inteiramente arbitraria: nao se pode ir além de certos limites das condigées ditadas pelo corpo huma- no. A lingua, ao contrério, nao esta limitada por nada na escolha de seus meios, pois nao se concebe o que nos impediria de associar uma idéia qualquer com uma seqiiéncia qualquer de sons, Para mostrar bem que a lingua é uma instituigio pura, Whitney insistiu, com raz&o, no cardter arbitrario dos signos; com isso, colocou a Lingiiistica em seu verdadeiro eixo. Mas ele nao foi até o fim e nao viu que tal cardter arbitrdrio se- para radicalmente a lingua de todas as outras instituigécs, Is- so se vé bem pela maneira por que a lingua evolui; nada mais complexo: situada, simulténeamente, na massa social e no tempo, ninguém lhe pode alterar nada e, de outro lado, a arbi- trariedade de scus signos implica, teoricamente, a liberdade de estabelecer nao importa que relacdo entre a matéria fénica 90 e as idéias. Disso resulta que esses dois elementos unidos nos signos guardam sua prépria vida, numa proporgo desconhe- cida em qualquer outra parte, ¢ que a lingua se altera ou, me- lhor, evolui, sob a influéncia de todos os agentes que possam atingir quer os sons, quer os significados. Essa evolugio é fatal; nao ha exemplo de uma lingua que lhe resista. Ao fim de certo tempo, podem-se sempre comprovar deslocamentos sensivei: Isso € tao verdadeiro que até nas linguas artificiais tal principio tem de vigorar. Quem cria uma lingua, a tem sob dominio enquanto ela nZo entra em circulagéo; mas desde 0 mo- mento em que ela cumpre sua missfo e se torna posse de todos, foge-lhe ao controle. O esperanto é um ensaio desse género; se triunfar, escapard A lei fatal? Passado o primeiro momento, a lingua entrar4 muito provavelmente em sua vida semiolégica; transmitir-se-4 segundo leis que nada tém de comum com as de sua criagfo reflexiva, e nio se poder4 mais retroceder, O homem que pretendesse criar uma lingua imutdvel, que a pos- teridade deveria aceitar tal qual a recebesse, se assemelharia 4 ga- linha que chocou um ovo de pata: a lingua criada por ele seria arrastada, quer ele quisesse ou n&o, pela corrente que abarca todas as linguas. A continuidade do signo no tempo, ligada A alteragéo no tempo, é um principio de Semiologia geral; sua confirmagio se encontra nos sistemas de escrita, na linguagern dos surdos- -mudos etc. Mas em que se baseia a necessidade de mudanga? Talvez nos reprovem por no termos sido tao explicitos nesse ponto quan- to no principio da imutabilidade: é que ndo distinguimos os diferentes fatores de alterago; seria -preciso encard-los em sua variedade para saber até que ponto sio necessdrios. As causas da continuidade estio @ priori ao alcance do observador; nio ocorre 6 mesmo com as causas de alteracgio através do tempo. Melhor renunciar, provisoriamente, a dar conta exata delas, e limitar-se a falar, em geral, do desloca- mento das relagdes; o tempo altera todas as coisas; nao existe razio para que a lingua escape a essa lei universal. Recapitulemos as etapas de nossa demonstragao, reportan- do-nos aos principios estabelecidos na introdugao, a 1° Evitando estéreis definigdes de termos, distinguimos piimeiramente, no seio do fenémeno total que representa a lin- guagem, dois fatores: a lingua e a fala. A lingua é para nés a linguagem menos a fala, E o conjunto dos habitos lingitisti- cos que permitem a uma pessoa compreender e fazer-se com- preender. 2.° Mas essa definigéo deixa ainda a lingua fora de sua realidade social; faz dela uma coisa irreal, pois nao abrange mais que um dos aspectos da realidade: o individual; é mister uma massa falante para que exista uma lingua. Em nenhum momento, e contrariamente 4 aparéncia, a lingua existe fora do fato social, visto ser um fenémeno semiolégico. Sua na- tureza social € um dos seus caracteres internos; sua definigZo completa nos coloca diante de duas coisas insepardveis, como o demonstra o esquema: Mas, nessas condigées, a lingua é vidvel, nfo vivente; levamos em conta apenas a realidade social, nao o fato his- térico. 3.2 Como o signo lingiiistico é ar- bitrario, pareceria que a lingua, assim definida, € um sistema livre, organizd- vel & vontade, dependendo unicamente Massa de um principio racional. Seu cardter falante social, considerado em si mesmo, nZo se opée precisamente a esse ponto de vista. Sem diivida, a psicologia coletiva nio opera sobre uma matéria puramente 16- gica; cumpriria levar em conta tudo quanto faz ceder a raz&o nas relagdes praticas de individuo para individuo. E, todavia, n&o é isso que nos impede de ver a lingua como uma simples convencao modificdvel conforme o arbitrio dos interessados, é a acao do tempo que se combina com a da forga social; fora do tempo, a realidade lingitistica ndo é completa e nenhuma con- clusao se faz possivel. Se se tomasse a lingua no tempo, sem a massa falante — suponha-se o individuo isolado que vivessé durante varios séculos — nfo se registraria talvez nenhuma alterag3o; o tem- po n&o agiria sobre ela. Inversamente, se se considerasse a 92 massa falante sem o tempo, nao se veria o efeito das forgas sociais agindo sobre a lingua. Para estar na realidade, é ne- cessdério, ent&o, acrescentar ao nos- so primeiro esquema um signo que Tempo. indique a marcha do tempo: A lingua j4 nao € agora livre, porque o tempo permitira as for- Gas sociais que atuam sobre ela de- senvolyer seus efeitos, e chega-se assim ao principio de continui- dade, que anula a liberdade. A Massa continuidade, porém, implica ne- falante cessariamente a alteracgao, o deslo- camento mais ou menos considerd- vel das relagoes, 93

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