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Pesquisa Social Tim May Professor de Sociologia e Diretor do Centre for Sustainable Urban and Regional Futures, University of Salford. Pesquisa Social Questdes, métodos e processos 3# edigao Tradugio: Carlos Alberto Silveira Netto Soares Consultoria, supervisao e revi 0 técnica desta edigao: Soraya Maria Vargas Cortes PhD em Politicas Sociais pela London School of Economics and Political Science. Professora no Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. CA CEN) on ao Pasisaey uNEB Sumario Prefacio da segunda edicao . Prefacio A terceira edicéo Introdugao . Parte I Questées na pesquisa social 1 Perspectivas da pesquisa social cientifica Escolas de pensamento na pesquisa social Feminismos e pesquisa Resumo . Questdes para reflexdo 2 Teoria social e pesquisa social . O relacionamento entre a teoria e a pesquisa social Situando a teoria social e a pesquisa Resumo . Questées para reflexio 3 Valores e ética no processo de pesquisa Valores e pesquisa social .... A ética e a sua relacdo coma pesquisa social Resumo .. Questées para reflexio Parte II : Métodos de pesquisa social 4 Estatisticas oficiais: topico e recurso . Fontes de estatisticas sociais Aconstrugio social das estatfsticas criminai Estatisticas oficiais: os debates .. Resumo ..... Questées para reflexdo 5 Surveys sociais: do desenho a anilise.... Com Malcom Williams ‘A logica do método de survey. Amostragem .. Etapas na constr de atitudes A anillise de questiondrios Surveis em uma perspectiva critica A tecnologia e o futuro das surveys Resumo Questdes para reflexiio de uma survey. 6 Entrevistas: métodos e processo Entrevistas na pesquisa social .. Conduzindo entrevistas na pesquisa social 152 A anilise das entrevistas 164 Questdes nas entrevistas 169 Resumo 171 Questdes para reflexiio 172 7 Observagao participante: perspectivas e pratica . Observagio participante e pesquisa social .. A pratica da observagio participante A anilise das observagées .. Questdes na observagio participante Pesquisa de estudo de caso Resumo .. Questées para reflexao 8 Pesquisa documental: escavagées e evidéncias . O lugar dos documentos na pesquisa social .. processo da pesquisa documental A anialise de documentos Questdes na pesquisa documental Resumo .. Questées para reflexdo 9 Pesquisa comparativa: potencial e problemas A globalizacao e a pesquisa social comparativa 0 processo de pesquisa transnacional . © potencial da pesquisa comparativa Problemas na pesquisa comparativa Potencial e problemas: uma visto geral . Resumo .. Questdes para reflexio .. Referéncias .. Indice onomastico Indice remissivo .. Introducao Os métodos de pesquisa constituem uma parte importante das ciéncias sociais € se constituem em um instrumento por meio do qual é promovido o seu desenvolvimento intelectual. De fato, com freqiiéncia o seu status como “ciéncia” é justificado aludindo-se aos aspectos técnicos dos métodos de pesquisa, enquanto o préprio termo “ciéncia” traz consigo idéias de areas de estudo que sao acessiveis somente para aqueles que passaram por um extenso processo de treinamento para entender o seu funcionamento interno. Ao mesmo tempo, também ha aqueles, nessas disciplinas, que po- deriam caracterizar-se como “teéricos” em vez de “pesquisadores”. Os ulti- mos concentram-se no processo de pesquisa, enquanto os primeiros pode- tiam argumentar que tém uma vantagem ao se distanciarem do mundo empirico para poderem refletir sobre os processos e os seus produtos. Ambas as visdes tém mérito, pois nao séo opostas como os seus respec- tivos protagonistas com freqiiéncia afirmam que sao. Como veremos, tanto um pensamento inovador como uma atengéo meticulosa para os detalhes da coleta de dados informam a pratica da pesquisa social. A teoria, a meto- dologia e os métodos sao todos parte das quest6es e dos processos que cercam e informam a disciplina. Entretanto, essas diferengas levam a dis- putas, assim como a confusées, sobre a natureza da pesquisa e os métodos que ela deveria empregar na busca de seus objetivos. Por essa raz4o, nos primeiros trés capitulos deste livro, examinamos as maneiras pelas quais obtemos o nosso conhecimento do mundo social, as relagdes que se consi- dera existirem entre teoria e pesquisa e o lugar dos valores e da ética na pratica de pesquisa. Embora essas questdes sejam complexas, elas também sao fundamentais para uma compreensdo dos métodos de pesquisa. Sem isso, problemas e métodos podem ficar separados e os investigadores fica- Tem com a impressao de que simplesmente tém que aprender varias técni- Cas para realizarem pesquisas. Portanto, o propdsito dessa primeira parte é de esclarecimento. 16_ mM May Uma atitude reducionista em relag4o a pratica de pesquisa perpetua a idéia de que teoria, ética, valores e métodos s4o tdpicos distintos, e que os pesquisadores, a despeito de viverem € participarem nas sociedades que es- tudam, so de algum modo distintos do mundo social, que é objeto das suas investigagées. A distancia entre eles e os objetos de estudo enseja a perma- néncia de uma no¢do limitada de isengdo de valores. Como ficara evidente, a questéo estd aberta a um debate consideravel, pois, pode ser argumenta- do, a nossa prépria integragdo em uma sociedade é uma condigdo necessaria para entender o mundo social do qual fazemos parte, assim como é um fato da vida do qual nao podemos escapar. De fato, essa participacao pode ser um pré-requisito da objetividade. Tendo-se um entendimento desses debates e da aplicabilidade dos diferentes métodos, o resultado final sera a melhoria da pesquisa e pesquisadores mais investigativos e confiantes. Nessa exten- sao, é importante estar ciente néo apenas das capacidades dos métodos par- ticulares de pesquisa social, mas também das suas limitag6es. O OBJETIVO DO LIVRO A discussao de questées forma o ponto de partida da filosofia que fun- damenta este livro: isto é, que as questées e os métodos nao podem ser separados de forma simples, e que nds, como pesquisadores, produzire- mos entendimentos mais sistematicos do mundo social estando cientes desses debates, das suas implicacgées e do nosso lugar nesse contexto. Visto isso, este livro também € escrito para aqueles que nado tém um conheci- mento detalhado das questées e dos problemas envolvidos na pesquisa social e nas suas prdticas. Assim, esses debates sio apresentados de uma maneira que nao pressup6e um conhecimento anterior detalhado por pat- te do leitor, ao passo que so sugeridas leituras adicionais para aqueles que tém inclinagdo e tempo para buscar maior aprofundamento no estudo des- sas questées, O livro, em si mesmo, é dividido em duas partes. A Parte J examina aS questées, e a Parte II discute os métodos utilizados em pesquisa social. Como 0 objetivo é produzir um texto acessivel, ha um limite para o qual as ConexOes entre as Partes I e II podem ser desenvolvidas. Por essa 1aZ40, $40 apresentados ambos os lados dos debates e tracados paralelos entre a Pat te IT ¢ as discussées anteriores da Parte I. Nao obstante, com muita fre aHéncia, a leitura pode ser um exercicio passivo no qual nés, como leitores, critica, b aoe seceptores do texto, mas nao nos engajamos nele pel (May, 19992) Pan Ae eee das teferéncias do material in 4 questdes que preten tenia Resse processo, no final de cada capitulo, Pretendem ajudar o leitor a refletir sobre o seu contetido- PESQUISA SOCIAL_17 UMA VISAO GERAL DA PARTE! A Parte I apresenta os debates envolvidos no processo de pesquisa e que o cercam. Essa parte do livro baseia-se na crenca de que valores, pre- conceitos e crengas anteriores afetam a maneira como todos nés pensamos sobre um evento, um objeto, uma pessoa ou uma tematica. Assim, assume- se que a consciéncia e a consideraciio de como aqueles relacionam-se com © processo de pesquisa sejam capazes de aprimorar e focalizar as nossas escolhas e decisées no trabalho de pesquisa. Para esse fim, o Capitulo 1 cobre as diferentes perspectivas que exis- tem na pesquisa social, examinando os argumentos e os fundamentos intelectuais delas. Para utilizar uma analogia oriunda do processo de cons- trucdo de prédios, se néo entendemos os fundamentos do nosso trabalho, € provavel que terminemos com uma estrutura vacilante. Termos como “realista”, “empirista”, “idealista”, “positivista”, “subjetivo”, “objetivo”, “pds-moderno”, “pés-estruturalista” exigem esclarecimentos para consi- derar as suas implicagdes para a pratica de pesquisa. Para isso, o Capitulo 1 também apresenta ao leitor o amplo leque de criticas que foram feitas 4 metodologia desde as perspectivas feministas. O Capitulo 2 desenvolve os pontos supracitados, examinando 0 relacio- namento entre a teoria e a pesquisa social, e o Capitulo 3 discute o lugar dos valores e da ética na pesquisa social. Com freqiiéncia, considera-se que esses tépicos apresentam problemas tao intrincados para o pesquisador que s&o postos em segundo plano no decorrer do processo de pesquisa. Todavia, o desenvolvimento da teoria é uma parte necessdria do desenvol- vimento intelectual da pesquisa social e vice-versa, enquanto a ética é um componente fundamental da idéia de uma “disciplina” e da confianca que as pessoas tém nas acées dos seus membros. O lugar dos valores na pesqui- sa social também é central, e um entendimento da natureza e do efeito deles, uma parte necessdria da sua pratica. Como espero que venha se tornar evidente, ignorar essas quest6es no significa que nio tenham mais influéncia, pois elas informam e afetam a rotina da pratica de pesquisa. UMA VISAO GERAL DA PARTE II O primeiro capitulo da Parte TI (Capitulo 4) come¢a por examinar as principais fontes de estatisticas oficiais que os pesquisadores utilizam, se- guido por uma descrigdo das suas capacidades e fragilidades. Rastreando- se as questdes que cercam a produgao das estatisticas criminais, podem ser consideradas as indagagées a respeito do seu lugar na pesquisa social cone temporanea e a utilizacao de estatisticas oficiais em geral, 18_TMMay. Os Capitulos 5 a 8 examinam 0 processo € 0S métodos de anilise en- volvidos nas principais técnicas utilizadas na pesquisa social. Eles cobrem o desenho de questiondrios, as entrevistas, a observacao participante, os estudos de caso e a pesquisa documental. Para facilitar a comparagao entre esses diferentes métodos, cada um dos capitulos segue uma estrutura se- melhante. Primeiro, o capitulo comega com uma discussdo sobre o lugar do método na pesquisa social, o que estabelece ligagdes com as discussdes na Parte I. Segundo, hé um exame do processo real de fazer pesquisa, utilizando 0 método, e, terceiro, sao discutidas as técnicas de andlise de dados envolvidas em cada método. A minha intengao ao seguir esta estru- tura é possibilitar que o leitor considere as diferentes maneiras de abordar os seus dados e direcion4-lo para fontes especificas de investigagao adicio- nal sobre o tépico. Portanto, se o leitor decidir utilizar o método em sua propria pesquisa, deverd estar ciente nao apenas das maneiras nas quais os dados so coletados, mas também dos métodos empregados para a analise deles. Finalmente, cada capitulo termina com uma critica do método. Com- parando essa ultima seco em cada um dos quatro capitulos, junto com outras segdes e as questées cobertas na Parte I, as vantagens e desvanta- gens de cada método podem ser avaliadas. O Capitulo 9 serve como uma introdugaéo a pesquisa comparativa. Embora a idéia da comparagao venha sendo utilizada ha muito tempo nas ciéncias naturais e sociais, o crescimento da tecnologia de informacao e das instituigdes como a Unido Européia levou a um aumento do interesse pela pesquisa comparativa. Assim, ha desenvolvimentos importantes ten- do lugar nesse campo. Portanto, a consciéncia do potencial e dos proble- mas envolvidos nesses desenvolvimentos, bem como nos métodos da pes- quisa comparativa, tornou-se uma parte importante da pesquisa social. Ao longo do texto ha referéncias a outros trabalhos sobre ou relaciona- dos a pesquisa social. A bibliografia, desse modo, é um recurso que 0 leitor pode utilizar na exploracdo dos temas e tépicos com maior profundidade. Espero que, no final do livro, o leitor tenha adquirido a nocdo de que a pesquisa é uma parte estimulante e fundamental da pratica e do futuro das cigncias sociais, ao mesmo tempo em que é central para o entendimento ¢ a explicagdo das relagdes humanas. Ao entrarmos na Parte I, resta-me di- zer que espero que 0 leitor considere que este livro oferece uma compreen- sao mais ampla dos métodos e das questées envolvidos na pesquisa social. PARTE I QUESTOES NA PESQUISA SOCIAL Perspectivas da pesquisa social cientifica Este capitulo apresenta perspectivas que ajudam a entender os objeti- vos e a pratica da pesquisa social. Essas perspectivas nao determinam a natureza do processo de pesquisa em si mesmo, pois hd uma interacéo constante entre as idéias sobre o mundo social e os dados nele coletados. Observado isso, uma discussdo dos principais debates entre essas escolas de pensamento, junto com os termos fundamentais empregados, possibili- tard a consideracao dos argumentos dessas escolas e os pressupostos que cada uma assume sobre como podemos conhecer 0 mundo social e que propriedades ele contém. Elas podem entao ser ligadas com a Parte Il, onde discutimos a pratica dos métodos de pesquisa. ESCOLAS DE PENSAMENTO NA PESQUISA SOCIAL Com freqiiéncia, considera-se ciéncia um corpo coerente de pensamento sobre um tépico acerca do qual ha um amplo consenso entre os cientistas que a praticam. Como Alan Chalmers (1999) observa sobre essa visao po- pular de ciéncia: Quando € afirmado que a ciéncia é especial porque bascia-se nos fatos, presume-se que os fatos sejam manifestagées sobre o mundo que podem ser estabelecidas diretamente pelo uso cuidadoso e sem preconceito dos sentidos. A ciéncia deve ser mos, ouvimos e tocamos € nao em opiniées pessoais ou imagi- nagées especulativas. Se a observacao do mundo for realizada de uma maneira cuiadosa e sem preconceitos, entdo 0s fatos estabelecidos dessa maneira vio se constituir em uma base segura e objetiva para a cigncia. (Chalmers, 1999, p.1) baseada no que ve 22_newey ‘a ciéncia mostra que nao apenas hd pers. pectivas diferentes sobre um dado fendmeno, mas também métodos alterna. tivos de coleta de informagao e de andlise dos dados resultantes. pe i inci: is, aqui estamos preocupados com essas diferencas afetem as ci€ncias naturais, 2 ‘amr : ‘ociais (veja M. Williams, 2000). a historia e a pratica das ciéncias s¢ am Haver diferencas de perspectiva em um campo de atividades como a pes- quisa social apresenta-se como algo problematico. Se nao ha uma tnica ma- neira estabelecida de trabalhar, entao, com certeza, isso mina a idéia de uma disciplina cientifica? Talvez, contudo, devéssemos desafiar a idéia de que a ciéncia é uma explicagao total e completa do mundo social ou natural, que esta além da nossa critica, ou de que a unidade de método é necessariamente algo bom. Em vez disso, talvez essa perspectiva sobre esses assuntos seja con- testada tanto na justificagao como na aplicagdo, porque ha consideragGes po- Iiticas e de valor que afetam as nossas vidas. A ciéncia nao tem o poder de alter4-los, e nenhuma democracia poderia fazé-lo (veja Fuller, 2000). O papel da ciéncia é entender e explicar os fendmenos sociais, focalizar a atencao em questées particulares e desafiar crengas convencionais sobre os mundos social e natural, Entretanto, a pesquisa social difere das ciéncias naturais, pois os pesquisadores podem questionar aqueles a quem estudam: Contudo a pratica concreta di Diferentemente dos objetos na natureza, os humanos s4o seres autoconscientes, que conferem sentido e propésitos ao que fazem. Sequer podemos descrever a vida social de modo acurado a menos que, antes, apreendamos os conceitos que as pessoas aplicam a seus comportamentos. (Giddens, 1997, p.12-13) Também encontraremos teorias que desafiam 0 nosso entendimento do mundo social como parte da pratica da pesquisa social. Portanto, em suma, as ciéncias sociais sto mais complexas (e mais emocionantes) do que qualquer defini¢do unica de suas atividades poderia abranger: por exem- plo, esto em franca disputa o que constitui uma “ciéncia”, a natureza dos seus métodos e os tipos de dados que a mesma deveria coletar. Para ver como isso se manifesta, é necessdrio descrever as principais idéias e deba- tes sobre o tema dentro do campo da ciéncia social antes que prossigamos (no Capitulo 2) no exame da relacdo entre a teoria social e a pesquisa. A Introdugdo observou que a objetividade, junto com a generalizagé0 € a explicacéo, eram consideradas como caracteristicas fundamentais de uma ciéncia. Afinal, se nos apegarmos a visaio de que a pesquisa da ciéncia social nos oferece conhecimento sobre 0 mundo social, 0 qual nao est PESQUISA SOCIAL 23 necessariamente disponfvel por outros meios, entdo estamos reivindican- do para nosso trabalho algumas caracteristicas privilegiadas. Assim, a pes- quisa torna-se mais do que um reflexo das nossas opinides e preconceitos: ela substancia, refuta, organiza ou gera as nossas teorias e produz evidén- cias que podem desafiar nado apenas as nossas proprias crencgas, mas tam- bém aquelas da sociedade em geral. E nesse ponto que entra o debate sobre a objetividade nas ciéncias sociais. Com freqiiéncia, é assumido que, se os nossos valores néo entram na nossa pesquisa, ela é objetiva e acima de criticas. Portanto, a objetivida- de é definida como: a conviccao basica de que hd ou deveria haver uma matriz. ou estrutura per- manente, anistérica 4 qual podemos apelar em tiltima instancia para deter- minar a natureza da racionalidade, do conhecimento, da verdade, da realida- de, da bondade ou da correco. (Bernstein, 1983, p.8) Muitas pessoas aceitam como “verdade” o que os cientistas dizem. Por outro lado, o tema das ciéncias sociais é a propria vida social. As pessoas sdo obviamente fundamentais para a vida social, e, agora, coloca-se a ques- téo: como pesquisadores sociais e como membros de uma sociedade, é possivel ou desejdvel que suspendamos o nosso sentimento de pertenci- mento? Perspectivas diferentes deram respostas para essa questo. Positivismo Podemos argumentar que as pessoas reagem ao seu ambiente assim como as moléculas ficam “excitadas” quando é aplicado calor a um liquido. Obvia- mente, a ciéncia nao tem que perguntar para as moléculas o que elas pen- sam. Entao, é necessrio que nés, como cientistas sociais, fagamos perguntas as pessoas? Podemos, é claro, estar interessados nas opinides delas em ter- mos das suas reaces aos eventos que afetam as suas vidas, mas somente até onde elas esto reagindo, e desejamos explicar e prever os seus comporta- Mentos. Contudo, nao acreditamos todos que possuimos algo chamado li- vre-arbitrio? Ou seja, que podemos, em alguma extensdo, controlar OS nos- sos destinos em vez de té-los controlados por mudangas no ambiente, como moléculas? Em outras palavras, que podemos “agir sobre”, bem como nos comportarmos em “reagdo a”, nos nossos ambientes sociais? Alguns experimentos nas ciéncias sociais sao organizados de modo a fazer alteracdes no ambiente e observar como as pessoas reagem a elas. Aqui, 0 problema é controlar as interferéncias em situagdes experimentais Para ver quais mudangas causam quals alteragdes particulares no comporta- {a idéia de “quase- il pment neo Riad a Be eodelo de Beatie Por ena mentagao” como uma apro i avaliacdo, € selecionado plo, em ae ea ey isa oe valiad. Entao, esse anes acon serd comparado com outro que nao foi ed ao programa, No obstante, devemos perguntar: a vida social é assim rea mente? Por se- rem artificiais, experimentos em laboratério ndo deixam de refletir as com. plexidades, decisées e contradig6es envolvidas na vida social? Se acreditamos que somos produto do nosso ambiente — criados por ele — entdo, em alguma extensdo, somos a sua imagem refletida. Isso define a nossa natureza, 0 nosso ser. Nao temos porque fazer perguntas as proprias pessoas, pois podemos prever como se comportarao, referindo-nos somente aos fatores ambientais. Expresso de modo simples, essa é a posicdo de duas escolas de pensamento na pesquisa social: 0 comportamentalismo e 0 positivismo. Entre- tanto, deveria ser observado que o positivismo refere-se a tradigdes variadas de pensamento social e filoséfico e, dado que o termo é com freqiiéncia utiliza- do em sentido pejorativo, sem a devida consideracio da sua histéria, corre 0 tisco de ser desprovido de qualquer significado especifico (Bryant, 1985). Para um autor inclinado ao positivismo, o cientista social deve estudar os fendmenos sociais “com a mesma postura mental do médico, quimico ou fisiologista quando penetram uma regio ainda inexplorada do campo cien- tifico” (Durkheim, 1964, p.xiv). Assim, a objetividade é definida como sendo a mesma da ciéncia natural, e a vida social pode ser explicada da mesma maneira que os fenémenos naturais. Portanto, essa tradicdo pode ser carac- terizada pela busca da previsao e explicacio do comportamento dos fené- menos € a procura da objetividade, que é definida como o “desligamento” do pesquisador do tépico sob investigacao. Usando esse método de investi- gacdo, os resultados de pesquisa sao considerados capazes de produzir um conjunto de “leis” precisas, amplas e “verdadeiras” (conhecidas como leis de cobertura) do comportamento humano. Entio, serfamos capazes de genera- lizay,a Partir das nossas observacées sobre os fendmenos sociais, para fazer afirmagées sobre © comportamento da populacaio como um todo. Assim, 0 Ee explica ° cere mmento humano em termos de causa e efeito, ie ser coletados “dados’ ” sobre 0 ambiente social e as reacoes S pessoas a ele (no exemplo supracitado, o calor é a causa, e 0 efeito € 4 excitagao das moléculas quando a temperatura aumenta). Empirismo Se 0 objetivo do : c Positivismo é coletar e reunii re o mundo Social, a partir dos qu reunir dados sob: aS Possamos generalizar e explicar o comportament? PESQUISA SOCIAL_ 25 humano através da utilizacéio das nossas teorias, entao ele compartilha com o empirismo a crenga de que ha “fatos” que podemos obter no mundo social, independente da forma de como as pessoas os interpretem. Como pesquisa- dores, precisamos simplesmente refinar os nossos instrumentos de coleta de dados para que sejam instrumentos de registro neutros, como a régua mede comprimentos, e o reldégio, o tempo. Contudo, a diferenga fundamental en- tre o empirismo e o positivismo reside na esfera da teoria. Como sera desen- volvido no Capitulo 2, os dados no positivismo orientam-se pela teoria e sao planejados para testar a precisio dela. Por outro lado, 0 empirismo é um método de pesquisa que nao se referiu de maneira explicita 4 teoria, para guiar os seus procedimentos de coleta de dados. Ele caracteriza-se “pelo lema ‘os fatos falam por si mesmos” (Bulmer, 1982b, p.31)”, E importante nao confundir, como ocorre com muita freqiiéncia, as palavras empirico e empirismo. A primeira refere-se A coleta de dados no mundo social para testar, gerar ou interagir com as proposigées da ciéncia social, enquanto, como indica a citacdo de Martin Bulmer, a escola de pen- samento empirista acredita que os fatos falam por si mesmos e n4o reque- rem nenhuma explicacao via engajamento teérico. Embora haja diferencas entre o positivismo e o empirismo, o primeiro baseia-se nos métodos do segundo. Ambos afirmam que hd fatos sobre o mundo social que podemos reunir — independente das variacdes devidas a interpretagao. Logo, a objeti- vidade é definida em termos do desligamento dos pesquisadores do mun- do social, assim como da precisdo dos seus instrumentos de coleta de da- dos. De modo bem simples, ha um mundo | fora que nés podemos regis- trar e podemos analisar independentemente da forma como as: pessoas 0 interpretam. Isso segue a “teoria da realidade correspondente”, que sus- tenta que uma crenga, afirmacdo ou sentenca é verdadeira desde que haja um fato externo que corresponda a ela. Realismo O realismo compartilha com o positivismo 0 objetivo de explicacao. O Paralelo nao vai além dessa semelhanga. Uma ramificacéo do realismo, conhecida como “realismo critico” (com freqiiéncia, e erroneamente, os dois séo fundidos) desfrutou de um impulso nas ciéncias sociais com os trabalhos de Roy Bhaskar (Archer et al., 1998), que afirma: Normalmente, ser um realista na filosofia ¢ estar comprometido com a exis- téncia de algum tipo disputado de ser (por exemplo, objetos materiais, uni. versais, leis causais; proposi¢des, niimeros, probabilidades; razées efica Zes, estruturas sociais, fatos morais). (Bhaskar, 1993, p.308) 26 rivmay O realismo tem uma longa histéria e pode ser associado com as obras de Karl Marx e Sigmund Freud (veja M. Williams e May 1996, p.81-8). Por exemplo, Marx construiu a sua tipologia (um método de classificagao) do capitalismo com base em que hd certos aspectos essenciais que o distin- guem de outros sistemas econdmicos € politicos. Nesse sistema econdmico, existem “mecanismos estruturais centrais”, e a tarefa dos pesquisadores é “organizar os seus conceitos para apreender os aspectos essenciais dele com sucesso (Keat e Urry, 1975, p.112, destaque dos autores)”. ‘Ao referir-se aos mecanismos estruturais subjacentes, esté sendo empre- gado um argumento que é importante nesta perspectiva. Se os pesquisado- res apenas contentam-se em estudar a vida social cotidiana, como as conver- sas e as interagGes entre as pessoas, isso os distraira de uma investigacao dos mecanismos subjacentes que tornam tais conversas e intera¢des possiveis em primeira instancia (Collier, 1994; Sayer, 2000). A tarefa dos pesquisado- res nessa tradic&o é revelar as estruturas das relagGes sociais para entender, ent&o, porque temos as politicas e as praticas que temos. De modo seme- Ihante, Sigmund Freud argumentava que a nossa consciéncia era determina- da pelo nosso subconsciente. Assim, as neuroses das pessoas sao as manifes- taces visiveis dos desejos sexuais e agressivos que est&o reprimidos no seu subconsciente. Pode ser dito que a contribuicao singular de Freud para o pensamento social reside “na idéia de que a cultura é reproduzida através da estruturacdo repressiva das paixées inconscientes (Elliot, 1994, p.41)”. Em- bora as pessoas possam nao estar diretamente cientes das causas destas ex- periéncias, mesmo assim elas afetam as suas acdes. O realismo argumenta que o conhecimento que as pessoas tém do seu mundo social afeta o seu comportamento, e, diferentemente das proposigdes do positivismo e do empirismo, o mundo social simplesmente nao “existe” de forma independente desse conhecimento. Isso estabelecido, as causas nao sao, de maneira simples, determinantes das agdes, mas devem ser vistas como “tendéncias” que produzem efeitos particulares. Contudo, o conhecimento das pessoas pode ser parcial ou incompleto. Portanto, a tarefa da pesquisa social nao € sé coletar observagGes sobre o mundo social, mas explicd-las no contex- to de quadros tedricos que examinam aqueles mecanismos subjacentes que informam as agées das pessoas e impedem as suas escolhas de chegarem a termo: por exemplo, como as escolas funcionam para reproduzirem uma forca de trabalho para o capitalismo, a despeito da resisténcia que possa ter lugar na sala de aula (R Willis, 1977). Como Bob Carter expressa no seu estudo da relagaéo entre o realismo e o racismo: “o realismo é resolutamente pés-empitis- ta na sua énfase sobre a capacidade da teoria impulsionar o conhecimento cientifico social (Carter, 2000, p.171)”. O objetivo de examinar e explicar mecanismos subjacentes nao pode uti- lizar os métodos do empirismo, pois estes refletem somente o mundo cotidia- PESQUISA SOCIAL_ 27 no, nao as condigGes que o tornam possivel. Portanto, junto com outros nessa tradigao (Sayer, 1992), Keat e Urry (1975) argumentam que o realismo deve utilizar uma definicdo de ciéncia diferente do positivismo. Em particular, uma concepcao realista da ciéncia social nao assumiria necessariamente que nds pudéssemos “conhecer” o mundo 14 fora independentemente das maneiras com que 0 descrevemos. Contudo, isso nao equivale a dizer que a realidade social no é estratificada: por exemplo, nos niveis individual, interativo e ins- titucional. O acesso a essas diferentes camadas da realidade é a tarefa de um programa de pesquisa realista e expor para as pessoas como estas afetam as suas agdes em uma situacdo de didlogo e cooperacdo. Em contraste com ou- tras abordagens (veja Clarke com Dawson, 1999), é nessa filosofia que se fundamentam as recomendagées de Ray Pawson e Nick Tilley (1997) para a condugao da avaliagao de um programa. Ademais, como define Dave Byrne na sua exposicao da teoria da complexidade, ela também compartilha com o realismo critico uma “insisténcia sobre o cardter material emergente do enten- dimento em particular e da aco social em geral” (Byrne, 1998, p.51). Dado o exposto, ha aqueles nessa tradicéo que construiram pontes entre a idéia de que hé um mundo la fora independente da nossa interpre- taco dele (empirismo e positivismo) e a necessidade dos pesquisadores entenderem 0 processo pelo qual as pessoas interpretam o mundo. Antes de discutir aqueles que tentaram fazer isso, deveremos examinar primeiro as perspectivas que argumentam, de forma contrdria ao positivismo e ao empirismo, que nao ha um mundo social “além” das percepgées e interpre- tacdes das pessoas. Até aqui, falamos das maneiras nas quais 0 nosso ambiente ou as suas estruturas subjacentes - das quais nao estamos cientes necessariamente — estruturam-nos ou criam-nos como objetos (positivismo) ou sujeitos e obje- tos (realismo). Talvez 0 leitor nao esteja contente com a idéia de que é criado e formado dessa maneira. Gostamos de acreditar que exercemos livre-arb{- trio e fazemos juizos que alteram 0 curso das nossas vidas. O positivismo nao Presta muita atengao para o detalhe dos estados mentais internos das pesso- as. Por outro lado, o realismo pode se referir 4 consciéncia delas na medida em que esta reflete as condigdes nas quais elas vivem, como as estruturas sao Teproduzidas e os seus desejos e suas necessidades sao frustrados, Quando nos referimos a consciéncia das pessoas, estamos Preocupados com © que ocorre — em termos de pensamento e agao — no interior de cada um de né; Esses estados subjetivos referem-se ao nosso mundo “interior” de experiéncias ¢ nao ao mundo “ld fora”. Para concentrarmo-nos na subjetividade, enfocamos os 28 nwvay 0 seu ambiente, nao 0 ambiente em si, Ao contrario do que alegam os positivistas, nds, como pesquisadores, no podemos conhecé-lo independentemente das interpretacoes que as pessoas fazem dele. a tinica coisa que podemos conhecer com certeza € como as pessoas interpretam © mundo ao seu redor. Agora, o nosso interesse central como pesquisadores volta-se para os entendimentos e as interpretaches das pessoas sobre os seus ambientes sociais, parte dos quais foi denominada uma abordagem “fenomeno- légica” de pesquisa do mundo social (veja Moustakas, 1994). significados que as pessoas dao at Idealismo Algumas escolas de pensamento enfatizam a nossa criagaéo do mundo social através do reino das idéias, em contraste com a nocao de sermos sim- plesmente condicionados ou criados por ele. Elas argumentariam que as nos- sas acdes niio so governadas por mecanismos de causa e efeito, como no caso das moléculas em um tubo de ensaio, mas pelas regras que utilizamos para interpretar o mundo. Como a ciéncia natural lida com matéria que no é “cons- ciente”, os pesquisadores dessa corrente de pensamento argumentam que os métodos daquela nao podem lidar com a vida social e, assim, deveriam ser descartados desse estudo. Falar de causa e efeito nao é aplicavel 4 pesquisa da vida social, pois as pessoas contemplam, interpretam e agem nos seus ambien- tes. Por essas razdes, os métodos das ciéncias sociais sao fundamentalmente diferentes dos das ciéncias naturais, mas ndo inferiores a eles. E no mundo das idéias que estamos interessados como pesquisadores sociais: “Esse ponto de vista sugere que a atividade humaria nao é comportamento (uma adaptagao As condicdes materiais), mas uma expressao de significado que os humanos dio (via linguagem) para a sua conduta (Johnson et al., 1990, p.14)”. Existem regras na acio social através das quais produzimos a sociedade € entendemos e reconhecemos uns aos outros. E claro, elas so quebradas com freqiiéncia e também estdo sujeitas a diferentes interpretacgdes. Por essa razao, nao podemos prever 0 comportamento humano, mas as pessoas ainda age™ como se estivessem seguindo regras, e isso torna as suas acées inteligiveis. As pessoas esto constantemente engajadas no processo de interpretacao, ¢ ¢ 4 ele que deverfamos procurar entender. Em outras palavras, os pesquisadores deveriam concentrar-se sobre como as pessoas produzem a vida social. A vida social pode ser entendida somente através de um éxame da selegdo e da inter” pretacéio que as pessoas fazem dos eventos e das acées. Para as escolas de pensamento dessa tradi¢ao, o objetivo da pesquisa é entender esses processoS e as regras que os tornam possiveis. Ou seja, nao se trata de explicar porque a pessoas se comportam de certas maneiras por referéncia aos seus estados sub- conscientes ou as condigdes ambientais, mas como elas interpretam 0 mun- PESQUISA SOCIAL_ 29 do e interagem umas com as outras. Esse processo é conhecido como intersub- jetividade. A idéia de uma “realidade” social externa foi abandonada, porque os significados que agregamos ao mundo nao sao estaticos, nem universais, mas sempre multiplos e varidveis e est’io sujeitos A modificacéo e 4 mudanca de forma constante. Logo, as nossas descricdes do mundo social devem ser “jnternalistas”: ou seja, provir do contexto das culturas que estamos estudan- do. Como um defensor dessa visao afirma acerca do significado e da utilizagao da linguagem: “explicar o significado de uma palavra é descrever como ela é utilizada, e descrever como ela é utilizada é descrever 0 intercurso social em que ela entra” (Winch, 1990, p.123). Ha aqueles nessa tradic&o que argumentam que os pesquisadores preci- sam empregar “principios hermenéuticos”; hermenéutica referindo-se a teoria e a pratica da interpretagdo. Nao estamos mais proclamando 0 nosso “desen- gajamento” do nosso objeto de estudo como uma condico da ciéncia (positi- vismo), mas 0 nosso “compromisso” e “engajamento” como uma condigaio do entendimento da vida social. O nosso sentimento de pertencimento a uma sociedade e as técnicas que utilizamos para o entendimento nao sao impedi- mentos para os nossos estudos. Agora, os procedimentos por meio dos quais entendemos e interpretamos 0 nosso mundo social s4o condig6es necessarias para que realizemos pesquisa. No processo, tanto utilizamos como desafiamos os nossos entendimentos ao fazer pesquisa social, e o pesquisador social paira no centro do processo de pesquisa como uma exigéncia para interpretacao da vida social. Agora, a idéia de ciéncia é muito diferente do positivismo e do empirismo. Por essas razes, como sera observado na Parte II, ha uma tendén- cia nessa tradic¢do de pensamento ‘social a preferir os métodos de pesquisa como a observacdo participante e as entrevistas focais. Construindo pontes Ha aqueles que tentaram sintetizar alguns aspectos dessas principais pers- Pectivas, Em particular, um tedrico social argumentou que as nossas acdes cotidianas sio significativas para nés, mas elas também reproduzem estrutu- Tas que tanto possibilitam como restringem as nossas agdes (Giddens, 1976, 1984, 1996), uma posigao que é compartilhada por Roy Bhaskar, cujo traba- lho foi abordado antes. Pierre Bourdieu também é um pensador cujo trabalho foi impulsionado por interesses empiricos e, assim, desenvolveu uma série de “ferramentas” de pesquisa e pensamento sobre o mundo social (por exemplo, veja Bourdieu e Wacquant, 1992; Bourdieu, 1993; Bourdieu com Saint Mar- tin, 1995; Bourdieu et al., 1999). Os insights da psicanilise e da lingiiistica também foram empregados pata argumentar que, embora as acdes humanas Sejam significativas e varidveis, isso nao significa que nao possamos concordar 30_TMMaY lid “ve o mundo social. a construéo de é vélido ou « ” iment < eae me ‘undir os objetivos gémeos det Saree earner a or que” (explicagao) na pesquis s imo a quel inclui o fldote to. ém ha a escola do “pés-estrutural a cés Jeanues Derrida, bem como Michel Foucault até a sua eee oe Em icular, o pensamento de Foucault evoluiu em reagao tanto ao sul jetivismo fe algumas p s sociais como ao empirismo ingénuo im- de algumas perspectivas nas ciéncia: Ir i Sara das ciéncias naturais (Foucault, 1977, 1980). rea ° seu trabalho caracteriza-se por ir além do estruturalismo e da hermenéutica, na direcao de uma “analitica interpretativa” (Dreyfus e Rabinow, ran No a ele considera que 0 conhecimento e 0 poder sao ne le um con- junto de praticas sociais. O resultado é 0 questionamento do conceito de ver- dade como separavel do exercicio do poder, Interessantes € provocativas como so, essas idéias tém sido discutidas em um nivel sociotedrico e filos6fico. Embora o préprio Foucault fosse um pesquisador social cuidadoso e utilizasse as suas fontes de pesquisa de maneiras diferentes, é possivel interpretar 0 seu trabalho com o propésito de fazer pesquisa social e desenhar paralelos com a teoria da rede de atores de Michel Callon e Bruno Latour (veja Kendall e Wi- ckham, 1999; Law e Hassard, 1999). Enquanto uma exposigio dessas idéias e das suas implicagées para a pesquisa estejam bem além dos objetivos declarados deste livro, eu as in- clui de forma deliberada para que o leitor possa referir-se diretamente aos seus trabalhos ou aos estudos sobre os mesmos (veja Morrow com Brown, 1994; May, 1996; M. Dean, 1999). Eles demonstram a originalidade e a criatividade com que pensadores sociais tentaram enfrentar questdes que sao tao centrais para a pesquisa social. rdadeiro” sobre Pés-modernismo Antes de passar para a seco sobre a Pesquisa feminista, precisamos considerar uma perspectiva sobre a qual ha muita discussio, mas, com fre- qiiéncia, muito pouca clareza. Como veremos mais adiante, 0 pés-modernis- mo compartilha com o relativismo feminista a crenca de que o conhecimen to é tanto local como contingente, e que no ha padrées além dos contextos Particulares por meio dos quais podemos julgar a sua verdade ou falsidade- ,,bmbora haja aqueles que sao rotulados como pés-modernistas, os quais no €/ou uma epistemologia, enquanto ; i TOCesso que, di a época his- torca conhecida como a pés-modernidade (veja yen 1995, Bere 2000a). » importante observar que nao é necesséio se tornar um pés-moder- a pos-modernizacio relaciona-se a um. PESQUISA SOCIAL 31. nista para aceitar alguns dos seus insights a respeito das mudangas histéricas que estamos vivendo. Com efeito, “pds-modernismo” & freqiientemente utili- zado como um rétulo conveniente Sob 0 qual siio classificadas uma série de observacoes sobre as questées contemporaneas (Bauman, 1997). Os pos-modernistas siio antifundamentalistas, Seja falando sobre a im- plosio do significado, com a Conseqiiéncia do mundo tornar-se desprovido de qualquer significado (Baudrillard, 1983a), ou sobre a era da computacgao eo corte do vinculo entre conhecimento e legitimidade (Lyotard, 1984), ou sobre o potencial para o didlogo no interior de um consenso liberal no qual afirmagoes cientificas de verdade sobre os mundos social e natural tém pou- co espaco (Rorty, 1989), os P6s-modernistas exibem a mesma tendéncia fun- damental: ou seja, de que nao ha padrées universais em relagao aos quais a ciéncia possa fazer afirmacées Para validar os seus padrées. De maneira bem simples, a objetividade dd passagem ao relativismo com o resultado de que nao apenas a ciéncia, mas também a verdade, a bondade, a justiga, a racio- nalidade, etc., so conceitos relativos ao tempo e ao lugar: “Uma vez que todos os atos de cognicao ocorrem necessariamente em uma perspectiva particular, o relativismo afirma que nao existe base racional para julgar uma perspectiva como melhor do que qualquer outra” (Fay, 1996, p.2). E dito que aqueles que tm sido denominados “tivais reprimidos” da cién- cia — a religio, a sabedoria popular, a narrativa e o mito — agora estado retor- nando para a “revanche” (Seidman, 1998). £ significativo que seja no interior das ciéncias humanas e da area de estudos culturais que essas vis6es encontra- Tam a sua maior legitimidade. Contudo, como isso se traduz em um programa pratico de pesquisa, sem contradic¢do e retendo a relevancia da pesquisa, é uma questdo de dificuldade consideravel e muito disputada. Por exemplo, tome a idéia de verdade que fundamenta a pesquisa, Nao devem todas as comunidades, incluindo aqueles que conduzem pesquisas, assumir uma ver- dade que esta além daquela que propagam para legitimar as suas crencas e praticas em primeira instancia? Assim sendo, o relativismo deve pressupor a existéncia de algo além de si mesmo. Ao longo do livro, retornarei a questdes como estas para tornar debates importantes, porém dificeis, mais inteligiveis, Ao considerar todas as perspectivas supracitadas, as Aguas séo muito mais turvas do que parecem. Por exemplo, com freqiiéncia, Durkheim é con- Siderado um positivista, mas nao negaria o lugar da subjetividade na vida Social, nem um idealista necessariamente negaria a objetividade definida como “desligamento” do mundo social, enquanto Foucault, ao discutir as implicacées do seu trabalho, observou que se elas significavam. que “alguém € positivista, entao fico feliz em ser um” (Foucault, 1972, p.125). Entretanto, Permanecem diferengas; em particular se a ciéncia social é igual ou diferente da natural, e se as acdes humanas, ao contrario dos efeitos observados dos fenémenos no mundo fisico, s40 significativas e intencionais, FEMINISMOS E PESQUISA ais discuti até agora eram homens. Isso é importante? Se os homens produziram idéias cele resultados de Pesquisa que nos permitiram entender as relagdes sociais, CO. aria § Proble- ma preocupante se mais mulheres desejassem tornar-se cerca e Pesquisado- ras, mas fossem impedidas de fazé-lo porque aqueles, intencionalmente ou nao, bloqueassem as aspiragées delas. Todavia, e se as idéias eas Praticas dos ho- mens nao colaborassem para o entendimento, mas refletissem um viés que de- fine a sociedade e a ciéncia em termos de valores particulares? Nao apenas os objetivos de pesquisa estariam incompletos, mas os seus resultados também seriam uma distor¢ao do mundo social. Entdéo, 0 que tomamos como ciéncia tefletiria essa situagao e, assim, perpetuaria certas visdes sobre as mulheres ao fornecer um “manto cientificista” que nao seria mais do que preconceito. Essas alegacGes formam o ponto de partida das criticas feministas da cién- cia. Talvez o primeiro ponto que deveria ser estabelecido é que, como as ciéncias sociais em geral, as perspectivas feministas no so simplesmente um corpo unificado de pensamento, e é mais preciso falar de “feminismos”. Entretanto, nas discusses subseqiientes, deveria se ter em mente que elas compartilham diversas crengas. Primeiro, as mulheres e as suas contribuicgdes fundamentais para a vida social e cultural foram marginalizadas, e isso é refletido na pratica de pesquisa, Segundo, as normas da ciéncia perpetuam e ocultam o mito da supe- rioridade dos homens sobre as mulheres e refletem um desejo de controlar os mundos social e natural. Terceiro, o género, como uma categoria social significa- tiva, esteve ausente das nossas compreensdes e explicacées dos fendmenos soci- ais em favor tanto de categorias como de classe social. Claramente, essas catego- rizag6es nao transmitem a profundidade e a sofisticacdio dos argumentos ém- pregados por diferentes escolas do feminismo (veja Meyers, 1997; Kourany et al., 1999). Ao mesmo tempo, essas criticas irrefutdveis nao podem ser ignora- das. Portanto, para acrescentar ao nosso entendimento da vida social em gerale dos métodos de pesquisa em particular, elas devem ocupar uma posicao central em qualquer discussao sobre perspectivas de pesquisa. Todos os pensadores sobre 0s qu: Desai indo © manto cientificista _De acordo com as criticas feministas, as nossas nocées dos papéis, Te lagGes e forcas no interior da sociedade sio construidas sobre suposigdes nao-examinadas sobre as mulheres, que sio depois reproduzidas nas nos- sas teorias sobre a sociedade. Quando os Papéis das mulheres so conside- rados na vida social, eles so Caracterizados como passivos e emocionais. Embora essa suposicio seja desafiada Por grupos de mulheres ha muito ——.aM!___——rssauisa sociat_ 33 tempo, uma leitura seletiva d zes (Spender, 1982). Em parti reza humana”: ‘Os eventos histéricos nao captou as suas vo- I icular, hé a referéncia a algo chamado “natu- Ou seja, uma crenca nas caracteristicas fundamentais das pessoas a despeito de sua histéria ou seu contexto social. Os pensadores sociais ofereceram muitas justificativas para a crenga de que os papéis soci- ais sdo naturais, ao invés de produto de manipulagdo social e politica dos homens sobre as mulheres. Um influente fildsofo, John Locke (1632-1704), por exemplo, acreditava que as pessoas eram inatamente “razodveis” (uma viséo da natureza humana). Ao mesmo tempo, ele via a necessidade de um “contrato social” para que pudesse ser imposta ordem ao que de outro modo seria um mundo social e politico caético (Jaggar, 1983). A partir dessas posigées de “razoabilidade” e da necessidade de um contrato social, ele deu um salto para argumentar que, por causa da sua capacidade reprodutiva, as mulheres eram “emocionais” e incapazes de proverem a si mesmas, sendo assim “naturalmente” dependentes dos ho- mens. Como nas sociedades ocidentais contemporaneas, os direitos de pro- priedade eram cruciais nas idéias de Locke, e, devido a dependéncia natu- ral das mulheres, ele argumentava que elas nao possuiam tais direitos. O casamento era um contrato em que elas entravam para gerar filhos que pudessem, entdo, herdar a propriedade. Assim, 0 contrato de casamento assegura que os direitos de propriedade sejam estaveis na sociedade, e os homens tenham filhos para perpetuar a sua linhagem. Como académicas feministas observaram (Sydie, 1987), Locke igua- lou “direitos” com a capacidade de ser razoavel, 0 que, ele entio argumen- tava, as mulheres nao possufam. As feministas argumentam que essa divi- sdo das diferengas ditas naturais ocorre em todo o pensamento ocidental e fornece a fundacdo sobre a qual baseamos o nosso pensamento e pratica cientificos. Embutidas nessas suposicées, nao ha declaracées cientificas, Mas preconceitos profundamente enraizados de pensadores homens con- tra as mulheres. Por exemplo, 0 fildsofo alemao Hegel (1770-1831) acredi- tava que a posi¢éo das mulheres na familia, como subordinadas aos ho- mens, era a esfera natural dada a “disposicao ética” delas. Do mesmo modo, Darwin (1809-82) acreditava que havia descoberto uma base cientifica para Suposi¢des tradicionais sobre a divisdo do trabalho entre os sexos. De novo, somos levados a acreditar que essas sejam diferencas naturais. Se acredita- Mos que elas sejam naturais, entdo altera-las perturbaria a “ordem natural da vida”, Entretanto, esse é precisamente 0 ponto em debate. As feministas argumentam que a posicéo das mulheres em uma sociedade nao é um fendmeno natural, mas um produto social, polftico e econémico que é re- fletido e perpetuado pelo enviesamento da “ciéncia” (S. Harding, 1991). De acordo com as criticas feministas, a economia, a politica, a sociolo- 8ia, a politica social e outras ciéncias sociais, como as ciéncias naturais, 34_ TM MAY, sse mito (J. Dale e Foster, 1986; Sydie, 1987; Stanley e Wise, perpetuaram e: . all, 1997). Por exemplo, nos primeiros 1993; Gibson-Graham, 1996; Pascall, ue a pesquisa feminista tivesse estudos sobre a familia e 0 trabalho, a as mulheres eram “esposas” algum impacto sobre eee dominan os direitos proprios. O sociélo. ea (1902-79) parecia acreditar que o status prin. cipal de uma mulher adulta urbana era o de dona de casa. ae vez, 0 status dela nessa esfera doméstica era determinado pelo status lo marido, ou, como ele também é referido comumente, 0 chefe da familia. O positivis. ta Emile Durkheim, que também era adepto da idéia de uma ciéncia natural da sociedade, nao produziu uma analise efetivamente cientifica da socieda- de, mas uma moralizadora, oculta pelo disfarce de ciéncia. De acordo com aquele que é provavelmente o estudo mais autorizado da sua vida e obra, as suas vis6es sobre a familia eram uma “alianga de perspicacia sociolégica com estrita moralidade vitoriana” (Lukes, 1981, p.533). A utilizag4o do ter- mo “familia” na pesquisa no campo das politicas sociais também é proble- matica por omitir os interesses das mulheres (Pascall, 1997). Se as nossas alegagées de teorizacdo sobre a vida social funcionam simplesmente para encobrir essa moralizagéo, elas serao distor¢gdes do mundo social. Na separacéo do mundo social “publico” do “privado”, os homens tornaram-se as pessoas de acdo na esfera publica, enquanto as mulheres s&o subordinadas a esfera Privada da familia e ao seu status de- terminado de acordo com isso. Para as. feministas, as perspectivas sobre a vida social refletiram esse fenémeno politico ou tentaram justificd-lo como 0 estado natural das coisas (Walby, 1997). Assim, esse silenciar das vozes femininas e a perpetuacio de idéias de ciéncia particulares e estreitas limitam o nosso entendimento da vida social. Com freqiiéncia, a pesquisa social enfoca seletivamente a esfera piiblica: sao os homens que pintam os quadros, sao eles que refletem sobre o mun- do, que ganham dinheiro e que tracam 0 nosso destino. Se a contribuicdo das mulheres é reconhecida, o é em termos do “poder por tras do trono”, a Patroa da casa” ou o que foi descrito como a “manipulagiio da sala de visitas”. Por exemplo, nas pesquisas sobre o mundo do trabalho, operamos de acordo com definigdes que continuam sem desafio; entio, é claro que a segregagio sexual persiste na forg Clonais brutos confirmam que mulheres e ho: carreitas distintas, a despeito da redug hos tiltimos anos. (DeLaat, 1999, p.s) ‘a de trabalho. Os dados ocupa- Mens ainda sio segregados em io do volume geral dessa segregaciio Os i 5 dangay Peeduisadores nao apenas forneceram evidéncias para algumas mu modelo dominante de trabalho (Horning et al., 1995), mas 4 PESQUISA SOCIAL_ 35, sua natureza de género e o relacionamento com a sexualidade também é de importancia central (Adkins, 1995). Assim, é argumentado que as teorias sobre 0 mundo social e as praticas de pesquisa sao androcéntricas. O que chamamos ciéncia nao se baseia em critérios universais isentos de valores, mas em normas masculinas e, em particular, na separacéio mitica entre razao (homens) e emocdo (mulheres): De uma perspectiva androcéntrica, as mulheres sio vistas como objetos pas- sivos ao invés de sujeitos da histéria, como submetidas aos atos ao invés de seres atuantes; a androcentricidade impede-nos de entender que tanto os homens como as mulheres est4o sempre submetidos aos atos assim como estado agindo, embora de maneiras muitos diferentes. Duas formas extremas de androcentricidade sao a ginopia (invisibilidade feminina) e a misoginia (6dio a mulheres). (Eichler, 1988, p.5) Razdo e emocao Ha uma tendéncia para assumir-se que os homens sao capazes de racioci- nar, enquanto as mulheres sao emocionais. Todavia, os grupos tém certas ma- neiras de interpretar as definigdes das palavras, e as suas traducées politicas tomam formas sutis. A natureza disso torna-se altamente problematica pelo fato das mulheres serem excluidas das praticas cientificas em virtude dos homens dizerem que elas so incapazes de “raciocinar”. Como Lloyd (1984) o define: “historicamente, as nossas idéias de Razdo incorporaram uma exclusio do femi- nino e... a propria feminilidade foi constituida, em parte, através de processos de exclusao” (citado em Whitford, 1988, p.110). A partir dessa idéia, baseamos a ciéncia sobre a razo, e a razdo baseia-se na verdade. Por outro lado, as feminis- tas argumentam que n4o se pode separar a razdo e a emocdo de maneira sim- ples. Portanto, certas idéias de desengajamento ou separaco do pesquisador e do pesquisado sao criticadas pelo pensamento feminista. A critica do “desengajamento” A idéia de que a “pesquisa rigorosa” envolve a separac4o dos pesquisado- tes do objeto da sua pesquisa reflete simplesmente a idéia de que a razdo ea emogao devem ser separadas. Em vez de ver as pessoas no processo de pesqui- Sa como simples fontes de dados, as feministas argumentam que a pesquisa é um processo de duas vias. Entretanto, com freqiiéncia, os livros académicos falam de evitar o “envolvimento excessivo” com os Participantes, Identificar-se 36 nr way demais com o “objeto” da pesquisa impede uma boa! pe oO pesauisa. dor deveria desligar-se para, por conseguinte, ser © 1) a ‘cordo com as feministas, isso nao é apenas um objetivo mItco, mas ta . m é indesejave pois disfarga a mirfade de maneiras nas quais 0 pesquisador é afetado pelo contexto da pesquisa ou pelas pessoas que fazem parte dela. Biografia De maneira bastante semelhante com que as idéias de desengajamen. to e objetividade so desafiadas, também o é a idéia de que a biografia de um pesquisador nao é importante ou relevante para 0 processo de pesqui- sa. Tanto ele como as pessoas que participam na pesquisa trazem com elas uma histéria, um sentido de si mesmas e da importancia das suas experién- cias, Entretanto, a experiéncia pessoal é freqiientemente desvalorizada como sendo subjetiva demais, enquanto a ciéncia é objetiva. Ha muito a ser ganho pela exploracao das vidas e das experiéncias das mulheres para entender a sociedade e corrigir o siléncio que abafa as vozes femininas (Griffiths, 1995). Como ficard claro na Parte II, isso é um aspecto funda- mental dos métodos de pesquisa como, por exemplo, as entrevistas e as histérias orais. Os pesquisadores deveriam estar cientes das maneiras nas quais a sua prépria biografia é uma parte fundamental do processo. Tanto as experiéncias do pesquisador como as dos pesquisados so importantes. A despeito disso, esse €é um tema da pesquisa social reservado com fre- qiiéncia para publicagées separadas (veja C. Bell e Newby, 1977; C. Belle Roberts, 1984; Roberts, 1990; D. Bell et al., 1993; Hobbs e May, 1993; Jupp et al., 2000). Epistemologias feministas ,_ Agora, temos a critica do desengajamento, a critica da auséncia 40 genero como uma categoria social significativa na pesquisa social e a eriti- ca da natureza e dos métodos através dos quais a ciéncia é construida baseada em uma perspectiva masculina e de idéias limitadas sobre 0 que constitui a razdo. Essas configuram-se como uma acusacao consideravel Pratica da ciéncia. Permanece a i inista® r ; uma questo: que \s feminist tém proposto que s . sass, peaguisedon ejam de importancia para nés, i 2 Isso n08 © a , pesquisadores? Iss leva i questdes de epistemologia e ontologia. pes es ; : eles 4 temas complexos, mas, para os propésitos da nossa discuss40. ee i maneiras Por meio das quais percebemos e conhecemos ° al € as teorias a respeito do que “existe”. Portanto, sem telo PESQUISA SOCIAL_ 37 explicitado, examinamos as epistemologias e as ontologias do positivismo, em- pirismo, realismo € idealismo. Por outro lado, as feministas comecam com as criticas da ciéncia supracitadas, e as suas respostas podem ser consideradas sob trés titulos: epistemologias empiristas, de posicionamento e relativistas. O feminismo de posicionamento desenvolveu-se em contraste com muitas das maneiras dominantes de ver o conhecimento (Hartsock, 1987; Smith, 1993, 1999). A sua base reside em tomar a desvantagem da exclu- sao das mulheres da esfera publica feita pelos homens e transforma-la em. uma vantagem de pesquisa. Como as mulheres sao “estranhas” a esfera publica e dela exclufdas, isso Ihes prové uma oportunidade singular para realizar pesquisas: “A estranha traz para a sua pesquisa exatamente a com- binacao de proximidade e distanciamento, preocupacao e indiferenca, que sao centrais para maximizar a objetividade” (S. Harding, 1991, p.124). Assim, uma pesquisadora é capaz de operar tanto de uma posiciio opri- mida como mulher quanto de uma privilegiada como académica (J. Cook e Fonow, 1990). A biografia e as experiéncias de uma mulher tornam-se cen- trais para a producao de descricdes ndo-tendenciosas do mundo social. En- tretanto, nao é a prépria experiéncia que prové a base para a reivindicagaio de objetividade pelas feministas de posicionamento. Embora a experiéncia seja um ponto de partida fundamental, as préprias experiéncias sao reflexos das relagées sociais dominantes. A experiéncia é um ponto inicial para pes- quisar, mas, para as feministas de posicionamento, isso logo deve ser situado no contexto mais amplo das vidas das mulheres em geral. Contudo, o cienti- ficismo masculino suprime a experiéncia. Assim, para que 0 teérico nao se torne entdo o especialista na vida das pessoas, como é a maneira hierdrquica comum na qual o cientificismo procede, qualquer reflexao do pesquisador sobre as vidas das mulheres deve ocorrer de uma maneira participativa e democratica pelo envolvimento de outras mulheres. Duas énfases ficam evidentes na epistemologia de posicionamento a partir dessa discusséo. Primeiro, as experiéncias das mulheres séo um ex- celente ponto de partida sobre o qual basear a pesquisa, pois elas ocupam uma posicéo marginalizada na sociedade e, assim, podem “olhar” para uma nova cena social como um estranho o faria. Como Sandra Harding o expressa, 0 objetivo “no é tanto o direito de reivindicar um rétulo como o de possuir os pré-requisitos para produzir descrig6es, explicagdes e enten- dimentos menos parciais e distorcidos” (Harding, 1987b, p.12). Segundo, uma énfase no estudo cientifico da sociedade cujo objetivo é colocar as experiéncias das mulheres em uma teoria mais ampla do seu lugar Na sociedade. Por essa razdo, ha paralelos entre as epistemologias do femi- nismo de posicionamento e o realismo (Cain, 1990). Embora a idéia de cién- Cia seja mantida, as suas normas mudaram. Ela torna-se uma postura femi- nista, que néo marginaliza, mas promove a causa das mulheres em geral. 38 TM MAY tida para as diferencas 6 mam _o ponto de partida di en. Essas duas assergbes formar © & epistemologias relativistas feminis. ici to e as 1 ‘nismo de posicionament epistemo" © n a ee eeietas relativistas feministas, ¢ isso incluiria aquelas influenciadas tas. Primero, ‘mi jeitari idéi er tipo de ciéncia, poj. i m a idéia de qualq D0 de ipa 4s-modernismo, rejeitaria é c pelo pos s outra maneira por melo da qual as experiéncias das mulhe. res seri a arresta ivindicam ser especialistas. Elas ar. res seriam a) i das por aqueles que Te: n as. EI mentam que a abordagem dominante da teoria trata as experiéncias das gu ” pessoas como “falhas’ Segundo, elas também rejeitariam a visio de que é possivel 0 conhecimento ou a “yerdade” sobre a posicéo das mulheres na sociedade. Em seu lugar, ha muitas vel rsoes da realidade social, as quais so todas igualmente validas. As experiéncias das mulheres tornam-se um ponto de partida e de chegada para as pesquisas que visem a auxiliar © processo de “ompimento” do paradigma positivista com © objetivo de produzir uma “fundamentacdo fraturada” para os métodos de pesquisa: ‘A“tealidade” mostra-se multidimensional e multifacetada. Mas a “realidade” é construida como uma realidade simples e plana. Por isso a necessidade de suprimir, distorcer, utilizar, oprimir as diferencas das mulheres. (Stanley e Wise, 1993, p.183) Impor uma idéia teérica sobre o mundo social conspira com essa supres- sao da diferenca. As experiéncias e os sentimentos das mulheres nao sao limitados nessa perspectiva, mas sao validos por si mesmos. Logo, os meios pelos quais a pesquisa é realizada deveriam ser disponibilizados para que todos os vissem, como parte desse processo de validar experiéncias. Entre- tanto, todas as experiéncias séo igualmente vdlidas e nao limitadas e/ou enviesadas? A opiniao da mulher de classe média que diz que as mulheres nao 9 oprimidas é igual 4 daquela da classe trabalhadora que diz que elas 0 sao? Para algumas feministas, a resposta para avaliar essa questo foi ace” tar a base da ciéncia, mas afastar-se da perspectiva centrada no homem ¢ colocar a mulher no seu centro. Com a tens4o entre a diferenga e 0 essen cialismo, e o relativismo e o objetivismo em mente, em particular quando se cae da pratica concreta da pesquisa famintsra (Acker et al., 1990) toy a Wise 1995), que defendem um “fundamentalismo fraturado” (Stan: 7 » um “essencialismo estratégico” (Grosz, 1994), um “um versalismo interativo” (Ber i coe Fa nhabib, 1992) e um A teoria do “médi aa (Maynard, 1998), > mrommoneee a urd sera “yer quelas feministas que caem na categoria do empirismo feminista us tiam a si mesmas co a ineini mo seguindo princi ra regia € 0s principios existentes s principalmente com mais rigor as 18 das ciénci : eel” Plo, a it Ei ias (S. Harding, 1991, p.111). Por obra de Margrit Bichler (1988, 1997) fosrece ura série de Passos PESQUISA SOCIAL_ 39 técnicos que um pesquisador deveria evitar para produzir pesquisa que nao cala Nas quatro “armadilhas” das pesquisas de vertente masculina. Estas sao as praticas androcéntricas: a generalizacdo excessiva das desco- bertas de Pesquisa que sdo baseadas unicamente nas experiéncias dos ho- mens, uma auséncia de explicac6es para as influéncias econémicas e sociais das relages de género e, finalmente, a utilizagao de “padrées duplos”, por exemplo, em termos de linguagem como “homem” e “esposa”, quando de- veriamos nos referir a “homem” e “mulher”. O objetivo é produzir descri- des menos parciais e mais precisas da vida social. Em outras palavras, as suas criticas nado sao tao focalizadas nos fundamentos da ciéncia, mas na sua prdtica. Por essa razdo, ela tem sido criticada por replicar as normas masculinas de investigagao cientifica, as quais, de acordo com outras epis- temologias feministas, deveriam ser tanto desafiadas como mudadas. Como com as perspectivas de pesquisa em geral, ha uma série de pontos de vista a partir dos quais as feministas abordam as tematicas envolvidas na pesquisa social. Nao obstante, podemos tirar as ligdes seguintes para a prati- ca da pesquisa. Como pesquisadores, deverfamos procurar evitar a antiga falacia sobre a capacidade reprodutiva das mulheres como sendo um obsté- culo para a participagao delas na sociedade. As questées importantes sao: primeiro, como o fato da reproduc4o nas mulheres é manipulado na organi- zacao da vida social. Segundo, como elas s4o marginalizadas na esfera pt: blica. Terceiro, um entendimento maior da contribuicao fundamental que elas fazem para a vida cultural, politica e econdmica. Quarto, as implicagées da andlise feminista para a pesquisa em particular e a vida social em geral. Quinto, um desafio geral ao pensamento androcéntrico, mas também aos Ppressupostos heterossexistas na nossa sociedade. Por essas raz6es: © feminismo nao parte de um posicionamento desligado e objetivo sobre 0 conhecimento das relacées entre mulheres e homens. Mesmo os defensores mais moderados dos direitos das mulheres devem assumir posigao sobre 0 fato dos homens terem direitos que sio negados as mulheres injustamente. Esse compromisso no significa que 0 conhecimento feminista nao é um co- nhecimento valido, mas acarreta perguntar 0 que queremos dizer com co- nhecimento e por que algumas formas de conhecimento so vistas como mais vlidas do que outras. (Ramazanoglu, 1990, p.9) Mulheres, raca e pesquisa Os feminismos, embora corrijam as perspectivas de pesquisa centradas has classes sociais, enfrentaram criticas semelhantes 4 pesquisa em geral, Pois negligenciam a questao da raga. Os pesquisadores documentaram as 40_TiM MAY Otipos raciais e sexuais trespassam um ao oa ro (Ackers, 1993). Entretanto, uma concentracdo exclusiva sobre o gé . Enti to, P 5‘ ines t i nas peeauisas vem em detrimento das diferengas que exist - e a classe ni S€ney entre as mulheres segundo linhas étnicas e racials: maneiras nas quais os estere verdade que a opressio das mulheres néo conhece fronteiras étnicas, nem raciais, mas isso néo significa que ela seja idéntica considerando essas dife- rencas. Nem os reservatérios do nosso poder ancestral conhecem essas fron- teiras, Tratar de um sem jamais aludir ao outro € distorcer a nossa comunali. dade assim como a nossa diferenga. (Lorde, 1992, p.139) Angela Davies (1981) documenta 0 racismo do comego do movimen- to de mulheres com os seus pressupostos a respeito da inferioridade inte- lectual de homens e mulheres negras. Por outro lado, as descrigées da sociedade baseadas nas classes sociais foram criticadas por serem econo- micamente deterministas e ignorarem as dimensées politicas de géneroe raca. Nas nossas pesquisas e nos limites do nosso poder, deveriamos estar cientes dessas questdes e de como elas se relacionam com 0 processo de pesquisa (veja Phoenix, 1994; Reynolds, 2002). O mais importante a en- quadrar no contexto dessas criticas é a interagdo entre esses elementos sem a suposicaéo de que se fala em nome da verdade. Ao contrario, 0 reconhecimento da parcialidade e da natureza localizada do conhecimento pode oferecer a possibilidade de reforgar o entendimento, por meio de desafio 4s maneiras dominantes de pensamento. Como Patricia Hill Co- llins expressa: As afirmagées do conhecimento alternativo em si e por si mesmas s40 ameacado- ras para o conhecimento convencional... Muito mais ameagador é o desafio que as epistemologias alternativas oferecem para o processo basico utilizado pelos pode- rosos para legitimar as afirmagdes de conhecimento que, por sua vez, justificam 0 direito deles governarem. Se a epistemologia utilizada para validar o conhecimen- to entra em questo, entao todas as afirmacées do conhecimento anterior valida- das sob o modelo dominante tomam-se suspeitas. (Collins, 2000, p.270-1) 1 Aplicando essas criticas ao funcionamento das disciplinas e a come clas eee social, Marcia Rice observa que a criminologia te™ cae ae sexista em um quadro referencial “machocéntrico . ra primaria” (Ri inidade é definida como sendo “a caracteristica definid® mar ce, 1990, p.68, n.1). Ela no apenas considera que a crim ntrada nos homens, mas também critica o feminismo pelo se PESQUISA SOCIAL 42. Primeiro, os pesquisadores deveriam evitar esteredtipos racistas e abor- dagens etnoc€ntricas de pesquisa, pois isso nao apenas é uma representa- cao imprecisa do mundo social, mas também ignora diferengas importan- tes entre as experiéncias das pessoas. Isso evitaria 0 que Fiona Williams (1989) chama de “perigo da homogeneizacio”, pelo qual a utilizacdo dos termos como “negros” e “mulheres”, os quais nao especificam a sua com- posigéo, supe que essas categorias sejam universais e, assim, nao admite a diversidade das historias, culturas e experiéncias das pessoas. Segundo, deveria haver um aumento das pesquisas que examinam as maneiras nas quais “os papéis de género e as estruturas de oportunidades diferenciais so afetados pelo racismo bem como pelo sexismo” (Rice, 1990, p.68). Terceiro, um aumento dos estudos comparativos das dimensdes de raca, classe e género auxiliaria no nosso entendimento sobre o modo como ope- ra o poder e a discriminacao na sociedade. Quarto, para reforcar o enten- dimento, os estudos empiricos deveriam ser situados em uma esfera mais ampla de contextos sociais, politicos e econémicos. Finalmente, como com o feminismo em geral, as experiéncias daqueles pesquisados nao deveriam ser separadas dos pesquisadores. Deveria ocorrer uma troca baseada na consulta e na participagao na qual todos aprendem uns com os outros. RESUMO Este capitulo apresentou uma introdugio as principais perspectivas no campo da pesquisa social. Partimos da idéia de que a ciéncia social deveria refletir os objetivos e métodos da ciéncia natural, passamos pela critica des- ses métodos como inaplicdveis a ciéncia social, até chegarmos as criticas feministas dos fundamentos e objetivos da ciéncia como sendo centrados nos homens e hierarquicos, terminando com uma critica da pratica de pes- quisa como etnocéntrica e racista. Os debates em si mesmos sdo complexos, mas nem por isso nao menos importantes. Contudo, deverfamos observar que essas perspectivas nio di- tam a natureza da pesquisa em si ou como ela é conduzida; embora sejam os problemas, as quest6es que informarao como os objetivos, os métodos e o Processo da pesquisa social s4o considerados. Como Jennifer Platt escreveu em uma histéria dos métodos de pesquisa na América do Norte: no nivel da teoria, quando ela esta absoluta e conscientemente envolvida, os métodos de pesquisa podem refletir uma bricolage ou justificagées post hoc, em vez da elaboracao consistente através de suposicées fundamentais escolhidas cuidadosamente. Com freqiiéncia, as escolhas metodolégicas so governadas Por consideragGes totalmente diferentes, algumas das quais de uma naturena 42_TIMMAY oldgicas independentes com os seus Ai 4 tradigées metod: altamente pratica e ha tradi¢o« 96, p.275, grifos do original) canais préprios de transmissao. (Platt, 19 s est ciente das questées levanta- flexivamente, tem mais proba- istematicos sobre a vida social, Dito isso, a pesquisa que nao apena das neste capitulo, mas que também age refl bilidade de produzir estudos revigorados e si Questées para reflexdo 1. Quais s4o as diferencas entre positivismo e realismo? 2. O que é uma abordagem “interpretativa” da pratica da pesquisa social? 3. Por que as pesquisadoras feministas tém sido criticas da pesquisa social e da ciéncia em geral? 4. Depois de ler este capitulo, quais as quatro principais questdes que informariam a sua pratica como pesquisador e por qué? LEITURAS SUGERIDAS Alvesson, M. e Skéldberg, K. (2000) Reflexive Methodology: New Vistas for Qualitative Re- search. London: Sage. Reinharz, S. (1992) Feminist Methods in Social Research. Oxford: Oxford University Press. Sayer, A. (2000) Realism and Social Science. London: Sage. Williams, A. e May, T. (1996) Introduction to the Philosophy of Social Research. London: UCL Press.

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