You are on page 1of 20
MATHESIS 7 1998 77-96 UMA DESCRICAO QUINHENTISTA DO MOSTEIRO DE SANTA-CLARA-A-VELHA’™ Hetena Costa Tora A edificagdo de mosteiros, igrejas, hospitais e outras casas de assisténcia social, fosse de raiz, fosse a partir dos pré-existentes, reformulando-os ou concluindo-os, foi, em grande parte, ao longo dos tempos, da responsabilidade de membros das casas reais e da nobreza: reis, rainhas, principes, infantes e fidalgos empenharam-se devotadamente em edificios que ficaram como monumentos do seu amor a Deus e¢ ao proximo e como testemunho do seu anseio em conquistar o Reino dos Céus. A rainha Isabel de Aragao foi, desse empenhamento, grande exemplo; emparceirando com o marido D. Dinis, que impulsionou a construg&o, entre outros, do claustro da Abadia de Santa Maria de Alcobaga e do Convento de S. Dinis de Odivelas, para freiras cistercienses, onde quis ser sepultado e que contemplou no seu testamento, D. Isabel empenhou-se vivamente no desenvolvimento, conclusiio e manuteng%o de obras j4 inieiadas, mas nao concluidas, como as do Convento das Bernardas de Almoster, comegado pela sua aia Berengéria Aires, as do Hospital dos Inocentes de Santarém para meninos enjeitados (de parceria com o bispo da Guarda D. Martinho), e principalmente as do Mosteiro de Santa Clara de Coimbra (dito a Velha, para se distinguir do outro, dito a Nova, construfdo no séc. XVIL, para substituir 0 primeiro, que se “afundava” nas aguas do Mondego), junto do qual passou longos periodos da sua viuvez e onde quis ser sepultada. O Mosteiro de Santa Clara teve um inicio atribulado. Fora fundado por D. Mér Dias, uma abastada dama da nobreza, que, decidindo afastar-se do mundo, recolhendo-se num mosteiro, em 1250, sem, no entanto, professar (apenas para seguranca da sua honestidade), para poder continuar a possuir e a administrar os seus bens, comegara por escolher, para sua reclusao, 0 mosteiro feminino * Artigo redigido no ambito da investigagao conducente a elaboragao da tese de doutoramento, sob orientagio do Prof. Doutor Américo da Costa Ramalho, 78 HELENA COSTA TOIPA da ordem de Santa Cruz, em Coimbra, onde viveu algum tempo, aparentemente em situagio de poder dispor dos seus bens. Poucos anos passados, porém, por volta de 1278, mandava ela construir, junto do Mondego, umas casas e, em 1283, obtinha autorizagao para fundar um mosteiro onde pudesse recolher-se, da ordem de Santa Clara, dedicando-o a esta e a Santa Isabel de Hungria. Os Cénegos Regrantes de Santa Cruz, no entanto, nfo aceitaram pacificamente esta transferéncia de Mor Dias e da sua fortuna para outra instituigao e iniciaram contra ela uma demanda, argumentando que tinha professado na sua ordem e que, como tal, quer a pessoa, quer os bens Ihes pertenciam. O conflito prolongou-se por varios anos, solicitando até a intervencdo de outras hierarquias da Igreja, nomeadamente da Santa Sé, nfio s6 em vida da fundadora, chegando mesmo A sua excomunhao decretada pelo Prior de Santa Cruz, mas também depois da sua morte, que ocorreu em 1302, a ponto de, por uma decisio do tribunal favoravel aos frades de Santa Cruz, se expulsarem as clarissas do seu mosteiro, que ficou desabitado.’ Intervém, entéio, em favor das freiras expulsas e do convento despovoado, a rainha D. Isabel de Aragdo que, depois de contribuir para a composigao das partes, para evitar contendas, solicita autorizacdo para fundar um convento da invocagao de Santa Clara, naquele mesmo lugar onde o quisera D. Mor Dias, mas agindo como se comegasse de novo, comprando os terrenos em redor, e planeando uma grande construg&o, cujas obras decorriam ja em 1316 - a rainha torna-se, entdo, a segunda fundadora (Vasconcelos, 1983) ou ' 0 Livro que fala da boa vida que fez a Raynha de Portugal, Dona Isabel, ¢ dos seus b6os feitos ¢ milagres em sa vida e depoys da morte, de autor desconhecido, um relato biogréfico escrito muito pouco tempo depois da morte desta rainha, e, para os estudiosos, digno de crédito, diz 0 seguinte sobre este assunto: Outrosi per da boa dona, a que diziam Moor Diaz, fora fundado itu moesteiro de donas da Ord@e de S. Clara; avendo jé i casas e oratorio, veo a morrer esta Moor Diaz, ¢ 0 prior de Santa Cruz de Coimbra, que em aquel tempo era, dizia que aquela Moor Diaz era dona professa daquel sew moesteiro e que aquel logo u comecara de fazer aquel logar era daquel moesteiro, u avia feito profissom. E contenderam tanto perdante os juizes, a que per lo papa fora aquel feito cometudo, que was ‘poucas de donas que em aquel logo estavom forom lancadas daquel logar ¢ forom despavoradas as casas com seu terreiro (que) per lo priol do moesteiro de Santa Cruz e di adiante ficarom aquelas casas despobradas € tornou-se aquel logar, que fora comegado pera fazerem em ele servigo a Deus, acolhimento de muitos maos e maas pecadores pruvicas e sem vergonca. (p. 1336-1337) UMA DESCRICAO QUINHENTISTA 79 refundadora do mosteiro, que conhece, a partir dai o seu grande desenvolvimento.” Para acompanhar de perto a sua construgiio,” quando estivesse em Coimbra (0 que acontecia assiduamente, principalmente depois da morte de D. Dinis), a rainha mandou construir, nas proximidades, uma casa para si e para os seus‘, que posteriormente acompanhou de * Diz a biografia da Rainha, acima mencionada: Veendo esta rainha aquel logar despobrado e doendo-se ende, Propos a fundar acerca daquel logar eigreja e moesteiro da Ordée de Santa Clara, pera se fazer em ele servigo a Deus, e cobrou aquel logar daqueles cujo era. Comprou possessoes a redor, de lecenga e mandado especial do papa fez fundar a eigreja a onra de Deus e da Virgem sloriosa, sa madre, em no qual fundamento e edificagom forom juntos prelados e outras muito boas companhas eclesiasticas e segraes, e ela com sas mdos langando com aqueles bispos as pedras primeiras em no fundamento. E, pera aquel moesteiro seer fundado de donas daquela Ordee de boa vida e bem espertas em na regra da Ordée de Santa Clara, Pera que as outras donas que aaguel moesteiro depos elas veessem seguissem a sda vida e recebessem ensinanga, mandou a Camora por onze donas daquela Ordée que i avia de boa vida, porque em aquel tempo diziam que em moesteiro de qual Ordée quer que em Espanha Fosse, nom avia donas de tam boa vida, nem que assi guardassem a regla de sua Ordee e ¢ forom tiradas por mandado e lecenca de seus maiores. (...)E, quando forom postas em aquel comeso que fazia pera o moesteiro, foi i esta rainka, e a rainha comegou de mandar lavrar em na eigreja ¢ langar fundamentos pera casas, segundo viio que compria a tal logar. E comecarom de crecer cada dia em aquel logar dali adiante e filhar Ordée filhas de muitos cavaleiros e d'outros homées béos em aquel logar por capeldes. E comegou a comprar e aver possessées pera mantimento daquelas donas e filhou pera si e pera sa casa duas donas ancidas, que ‘nom prometeram engarramento, pera andar com ela per u ela fosse dali por diante. (pp. 1337 - 1338) * Como arquitecto, D. Isabel escolheu Domingos Domingues ( responsivel também pela construgdo do claustro de Santa Maria de Alcobaga ), que diigiu as obras até depois de 1325; em 1331, tinha sido substitufdo por Estevao Domingues, provavelmente por ter falecido. “Também esta informagao se pode recolher da biografia acima referida: E fez juntar pedreiros ¢ carpinteiros e comegou per eles a fazer lavrar em aquel moesteiro a eigreja que comegara, e mandou fazer pera si sepultura e comegou a fazer lavrar acerca do moesteiro, pera sa morada e dos seus, das nobres casas, ¢ forom acabadas em pouco tempo, © fez fazer em aquel logar aquelas casas, pera poder ir mais a meude delas a veer lo moesteiro e donas e veer las obras que ela fazer mandava como se faziam, ca todas as casas que ela fazer mandava todo se fazia segundo ela divisava, e de guisa 0 mandava fazer que aqueles mesteiraes 80 HELENA COSTA TOIPA outros edificios, destinados a um hospicio que albergaria, separadamente, 15 homens e 15 mulheres pobres, com a respectiva capela e cemitério consagrados'; estes edificios ficariam, a sua morte, propriedade do mosteiro. Destes edificios mandados construir pela rainha - pago régio, hospicio e respectiva capela, mosteiro (com a sua igreja, dois claustros e anexos) - , pouco mais se via , até ha pouco tempo, que a parte superior do templo do mosteiro. As escavagées arqueolégicas recentes tém posto a descoberto o vasto edificio que Anténio de Vasconcelos tentara j4 «adivinhar» e descrever na sua vasta obra dedicada 4 Rainha Santa, nomeadamente em A evolugdo do culto de Dona Isabel de Aragao, baseando-se, entre outros documentos, nos escritos de autores antigos. E 0 relato de um desses autores, o padre jesuita Pedro Joao Perpinhio, feito em 1559, num momento em que, ameagando parcialmente ruina, os edificios da rainha eram ainda habitados ¢ perfeitamente visiveis, pois nado estavam ainda submersos pelas 4guas do Mondego, que apresentamos, em tradugiio. Pedro Joao Perpinhao, valenciano, veio para Portugal em 1551 e, nos colégios da Companhia de Jesus, foi, primeiro, estudante e, depois, professor de Gramatica, exercendo a sua actividade em Evora (1554) e principalmente em Coimbra, no Colégio das Artes ou Colégio Real que, fundado por D. Jodo III , iniciara a sua actividade em 1548, sob a direccdo de André de Gouveia, e que em 1555 fora entregue pelo monarca 4 Companhia de Jesus, sediada em Portugal havia pouco mais de uma dizia de anos. Perpinhao era, além de professor, o orador escolhido pelos seus 2 4 que o ela mandava fazer se maravithavom de entender assi e mandar fazer e em como os prasmava e corregia em aquelo que lavravam e ‘faziam. (pp. 1344-1345) * Um pouco adiante, diz o mesmo relato: E ante as casas de sa morada, que pera si e os seus fez fazer, fez fazer ia capela com seu cemeterio e casas pera o esprital, em que pos quinze ‘omées pobres e quinze molheres pobres, e os omées pos em sa casa apartada e as molheres em outra e a capela em na metade das casas, € a esies pobres dava certas rages de pam e de vinho e de carne e de pescado, segundo o dia era, e leitos pera dormirem e de vestir em cada itu ano. E ordiou que cada dia veessem ouvir as oras canonicas em aquela capela de au capelam que ela pos em ela com seu moozinho, que fossem em aquela capela residentes. E fez sagrar aquela capela com seu cemeterio. E a rainha por vezes viinha visitar os que em este esprital erom enfermos ¢ per si apresentava a eles 0 que aviam de comeer. (pp. 1346) UMA DESCRICAO QUINHENTISTA. 81 Pares para qualquer solenidade; foi cle que pronunciou a oragao de sapiéncia nesse ano de 1555, no Colégio das Artes, em nome dos Jesuitas; foi ele que, nesse mesmo ano, disse a oragao ftinebre quando da morte do Infante D. Luis, irmao do rei; foi ele, ainda, que Pronunciou, em trés anos consecutivos (1557, 1558 e 1559) as oragdes em louvor da Rainha Santa, instituidas como homenagem Pelo rei D. Jo&o Ill, para o dia 4 de Julho. A par destas oragdes laudatérias, Perpinh3o dedicou-se também, talvez para aproveitar a informagao recolhida na Pesquisa que efectuara Para a composigio das oracdes, a tedacgio de uma monografia sobre a Rainha, que dividiu em trés livros. Nessa monografia, no livro II, que abrange 0 periodo que decorre entre o seu Tegresso da peregrinaciio a Santiago de Compostela até a sua morte € culto posterior, oferece uma descrigdo de Santa Clara, em grande parte fruto da observagiio in loco € dos relatos de acontecimentos Tecentes. O texto, além de dificil de encontrar, nao foi ainda, que saibamos, traduzido (na obra referida de Anténio Vasconcelos, Surgem apenas alguns extractos do texto latino), pelo que apresentamos a tradugao da passagem que se refere 0 mosteiro de Santa Clara, ao témulo da Rainha, ao Pago e hospital vizinhos, acompanhada do texto latino original. Sobre o pao régio, escreveu o seguinte: Nondum exaedificata erat domus illa $. Clarae, quam ad Conimbricam institutam fuisse diximus in ripa Mondae. Partin tgitur quo aks id opus urgeret, ac citius, ut cupiebat, perficeretur, partim quo Srequentius ad illum uirginum sacrarum coetum adire possen, st Prope habitaret, et saepius earum sanctissima consuetudine frui licerct, domag Sibi ac suis paululum aduerso flumine a Parthenone remotam poucis mensibus conficiendam locauit. Fuit illud Elisabethae uiuentis adhue ueluti sepulerum quoddam, in quo sic delituit extrema senectute, ut Dag quidem tum maxime uiueret, cum minime uideretur, rebus autem humanis ¢t huius uitae wanitati mortua penitus et sepulta putaretur. Ea. domus usque ad hance memoriam annos circiter ires et triginta supra ducemos integra stetit; id quodammodo curante et prouidente Deo, ne prits tam insigne monimentum religionis illus et sanctitatisinteriret, quam literis multorum illustraretur; quo quidem omni tempore receptaculum illud extitit miseris et egentibus hominibus, quo iniurias caeli uitandi causa Succederent, et satis patens et peropportunum, ut quos illa uiuens omni studio protexisset, eisdem etiam mortua perfuagium praeberet. Anmo wero ab ortu Christi seruatoris quingentesimo quinguagesimo nono supra rmillesimum, cum hoc totum factum aestate superiore fuisset in lucem Prolatum a nobis altera oratione de rebus a regina gests, priusquam lertidy quae fuit extrema, diceretur, ineunte uere, nocte S. Matthiae ferias antecedente, cum et wetustate nemine reficiente consumpta, et maximis 82 HELENA COSTA TOIPA aique assiduis imbribus hyemis proxime dissoluta esset, inquilinis innoxia corruit magna ex parte, tamquam et officio suo perfunctam se esse cognouisset, et charissimos quondam Elisabethae habitatores continere sensisset. Nam et pridie eius diei rimis actis, ac uelut ante denuntiata ruina omnes, ut alio migrarent, admonuit, antequam opprimerentur, et puerum, qui solus cum iumento remanserat in imis aedibus, trabibus a solo ad alterum parietem stantem cratis in modum quasi de industria erectis, et pondus ruentis tecti sustinentibus ita molliter excepit, ut multorum diligentia breui purgato loco, puluere quidem obsitus, sed Prorsus integer extraheretur, quem omnes suspicarentur esse penitus obiritum. Nimirum etsi muta inanimaque tecta carebant sensibus, erat tamen et uigebat diuina uis, cuius illa non modo uoluntatibus, werum etiam nutibus obsecundaret, Sed olim dum ibi pie ac religiose uiueret Elisabetha, aediculas sibi quasdam ad ianuam Parthenonis aedificarat, quo cum immigraret saepenumero ex illo suo uicino domicilio (obtinuerat enim a Pontifice maximo, ut quotiescumgue uellet eo introire, sibi fas esset cum necessario ancillarum comitatu) multos dies inter uirgines dedicatas Christo morabatur, cum incredibili quadam animi uoluptate ex earum suauissimis integerrimisque moribus accepta (...) ( «De Vita et Moribus B. Elisabethae Lusitaniae Reginae lib.III», pp.308-310.) «Ainda no estava inteiramente construfda aquela casa de Santa Clara, que dissémos ter sido instalada junto de Coimbra, na margem do Mondego. Por isso, fosse para apressar mais essa obra ¢ para a acabar com maior rapidez, como desejava, fosse para poder visitar com mais frequéncia aquela comunidade de santas mulheres, vivendo mais perto, € para lhe ser permitido deleitar-se amitide com os seus santissimos costumes, mandou construir uma casa, para sie para os seus, a montante do rio, um pouquinho afastada do convento, para ser concluida em poucos meses. Foi esse quase uma espécie de sepulcro para Isabel, vivendo ela ainda, ao qual de tal forma se acolheu no fim da velhice que, quanto mais vivia em Deus, tanto menos era vista e, em verdade, se julgaria estar completamente morta e sepultada para as coisas humanas e para as vaidades desta vida, Esta casa permaneceu inteira até a nossa época, durante cerca de duzentos ¢ trinta e trés anos, e de algum modo sucedeu que, gracas a0 cuidado ¢ providéncia de Deus, nao ruiu to insigne monumento da sua religiosidade e santidade, antes de ser imortalizado pela literatura de muitos. Pelo que, em verdade, durante todo esse tempo, existiu aquele abrigo para ‘0s homens pobres € desgracados, para onde eles corriam a abrigar-se das injGrias do céu, suficientemente aberto € muitissimo oportuno, de modo que, aqueles que ela, vivendo, protegera com todo o zelo, a esses, de igual modo, depois de morta, oferecia um porto de abrigo. No ano de Cristo Salvador de mil quinhentos e cinquenta e nove, tendo odo este facto sido, por nés, trazido A luz, no verao anterior, numa outra oragdo sobre os feitos da rainha, antes de se ter dito a terceira, que foi a ‘iltima, no comego da Primavera, na noite que antecedeu 0 feriado de S. Matias, por estar néo s6 consumida pela decrepitude por ninguém restaurada, mas também abalada com as abundantes e frequentes chuvas do UMA DESCRIGAO QUINHENTISTA 83 {iltimo inverno, sem inquilinos, ruiu, em grande parte, como se soubesse que, por um lado, desempenhara completamente a sua tarefa, e, por outro, sentisse que albergava habitantes outrora queridissimos a Isabel. Com efeito, na véspera desse dia, abrindo fendas, tal como antes de uma ruina anunciada, deu sinal a todos para que partissem para outro lugar, antes que fossem esmagados, mas, em contrapartida, a um rapaz que permanecera sozinho com um burro, nos aposentos anteriores, como as traves se erguessem como que deliberadamente do solo para a outra parede que estava de pé, a maneira de uma grade, e sustentassem 0 peso do tecto a Tuir, ao rapaz, de tal forma suave o recebeu que, ao limpar-se logo o lugar, gragas a diligéncia de muitos, foi tirado coberto de po, € verdade, mas ‘completamente intacto aquele que todos suspeitavam estar completamente esmagado. Sem diivida que, embora os tectos mudos e sem alma carecessem de sentidos, existia, todavia, e vigorava ainda a divina forga daquela a cujas, nio s6 vontades, mas também sinais, eles se submetiam, Mas Isabel, noutro tempo, enquanto af vivera, de forma pia e religiosa, mandara construir alguns edificios para si junto a porta do convento, para onde se deslocava muitas vezes, vinda daquele se domicflio vizinho (obtivera, com efeito, do Pontifice Maximo, que, todas as vezes que quisesse entrar nele, the fosse permitido fazé-lo, acompanhada da necesséria comitiva de servas); morava, durante muitos dias, entre essas mulheres dedicadas a Cristo, com inacreditavel prazer de - pe 6 espirito, aceitando os seus suavissimos e sumamente integros costumes.°» Além dos edificios que para si mandara fazer, junto do mosteiro, nos quais residia quando estava em Coimbra para orientar os trabalhos e levar uma vida de recolhimento, mandara também edificar, em frente, como vimos acima, um hospicio, com capela e cemitério consagrado. Eis o que diz Perpinhio: Conimbricae uero ubi diuersabatur, illam Elisabethae magnae materterae suae sectam, et admirabilem uitae rationem, quoad ei licuit, persecuta est. Ante Regiam enim quam Parthenoni S. Clarae propinquam ‘fuisse diximus, in eadem sinistra fluminis ripa, hinc et illinc frequentes aediculas extruxit, quas inter, sacellum quoddam ex aduerso Regiae direxit, area quadrata satis magna puteum medium complectente inter haec omnia relicta. In his tectis humanissima Regina, nulla magis uicinitate delectata, quindecim uiros egentes, totidemque feminas, ut sexu ® Também € 0 Livrof...} que fornece esta informagaio: E esta rainha entrava antre elas por la dita graca que o papa a ela outorgara e fezera ita camara pera si aa porta do moesteiro e per ali se viinha per vezes a rainha das casas outras de sa morada e estava i por dias e rezava com aquelas donas do moesteiro e siia antre elas e de seer com elas avia gram prazer e confortava-as ¢ dizia a elas que perseverassem em no servico de Deus, cujas esposas eram, ¢ outras € mui nobres palavras, que ela bem sabia dizer. (pp 1349-1350) HELENA COSTA TOIPA ipso dispares erant, sic locis disiunctos collocauit, ad quem numerum hominum, qui essent €0 beneficio digni in perpetuum alendum certas assignauit pecunias, unde annona, lectus, uestisque quotannis unicuique praeberetur. Sacello wero proximo cum coemeterio consecrato, sacerdotem custodem praefecit, qui praesentibus iis qui annuum acciperent ex atributa pecunia subsidium quotidie faceret rem diuinam, et solemnes omnium horarum concineret precationes. Neque satis habuit excellens humanitate Regina, tecto ab iniuria frigoris calorisque tueri miseros, egentibus suppeditare, pascere famelicos, quod neque ipsi difficile erat, illa copia, neque semel a regibus opulentis usurpatum, sed ad hanc liberalitatem ea adiunxit officia, quae etiam tenues et obscurae mulierculae defugiunt, existimantes aliena dignitate sua. Etenim nullas humanitatis et beneficentiae partes christiana Regina indignas esse rata, uisebat frequenter quos aliquo morbo teneri audiuisset, confirmabat uario placidoque sermone, hortabatur ad perferendam aegritudinem animi, et corporis dolores, multa de aliorum patientia memoriter, iucundeque narrabat, et oblita regiae auctoritatis, ipsa complexa iacentes erigebat, praeparatosque iam ante cibos afferens leuabat fastidium uerbis, denique Christum in pauperibus agnoscens, omnia ea munera pie, uc demisse exequebatur quae diligenti, et officiosae famulue in charissimos dominos non praetermittenda esse uideri possent. 7) Huius tantae liberalitatis etiam nunc tenuia quaedam et obscura uestigia comparent; constant enim adhuc illa tecta circum regiae ruinas frequentissime a pauperibus habitata, cum uetustissimo sacello, in quo dominicis diebus unus aliguis sacerdos ex finitima S. Francisci aede sacris operatur, et duodecim mulieres egentes aluntur in illo Parthenone S. Clarae, certa pecunia, quam Elisabetha quondam dicitur attribuisse. Mihi uerisimile uidetur hanc illam esse pecuniam, quam antiquissimae literae ud homines triginta pascendos et uestiendos, uti diximus, assignatam fuisse commemorant; sed annona magis in dies ingrauescente factum esse tandem, ut quae summa in illa temporum illorum uilitate satis esset ad triginta homines alendos, eadem in hac inopia tanta, et caritate rei frumentariae, uix dugdecim iam ali possint: quippe ut agua intercus bibendo, sic auaritia, quiae semper infinita et insatiabilis est, ipsa argenti aurique copia supra modum creuit, et libido ganeae, nimisque mollis corporis cultus et elegans, tantam inopiam rerum omnium, tantam difficultatem inuexerunt, ut nisi Crassus aliquis aut Croesus, nemo sine summo labore uiuat. ( pp.322-326) «Quando morava em Coimbra, imitava, quanto Ihe agradava, aquele caminho da ilustre Isabel, sua tia paterna, ¢ 0 seu admirdvel modo de vida. Com efeito, diante da residéncia real, que dissémos ter sido colocada préxima do convento de Santa Clara, na mesma margem esquerda do rio, de um lado e de outro, fez construir muitos edificios, entre os quais uma capelinha que alinhou em frente & residéncia real, deixando, entre todos eles uma area quadrada suficientemente grande para compreender um poco, no meio. estas casas, a humanissima rainha, por mais nenhuma vizinhanga UMA DESCRIGAO QUINHENTISTA 8s deleitada, colocou em lugares separados, de acordo com o sexo, quinze homens pobres e outras tantas mulheres; a este nimero de pessoas, para que fossem dignas deste beneficio, destinou certas quantias em dinheiro Para sustento perpétuo, donde se providenciava para cada um, todos os anos, pio, cama ¢ roupa. Na capelinha proxima, consagrada com o cemitério, colocou de guarda um sacerdote que, na presenga daqueles que recediam, do dinheiro atribuido, um subsidio anual, celebrasse diariamente o oficio divino e cantasse as preces solenes de todas as horas, E esta rainha excelente em humanidade no considerou suficiente proteger os infelizes, sob um tecto, da injaria, do frio e do calor, dar aos pobres, alimentar os que tinham fome, o que nao the era dificil naquela abundancia, nem usurpado, uma s6 vez, de reis opulentissimos; mas, a essa_liberalidade, juntou-lhe aquelas tarefas que até as mulherzitas humildes ¢ obscuras evitam, considerando-as alheias a sua dignidade. Pelo contrério, nao considerando a rainha cristd serem indignos de si todos os aspectos da humanidade e da beneficéncia, visitava frequentemente aqueles que tivesse ouvido dizer estarem dominados por alguma doenga, confortava-os com uma conversa variada e plécida, exortava-os a suportar a afligdo do espirito e as dores do corpo; contava de meméria e de forma agradabilissima muitas historias sobre 0 softimento de outros e, esquecida da sua autoridade régia, ela propria Jevantava, abragando-os, os jazentes e levando-os jé preparados diante das refeigdes, afastava o fastidio com palavras; e, finalmente, reconhecendo Cristo nos pobres, executava piedosa ¢ humildemente todas estas tarefas que, a uma servidora diligente e oficiosa, ndo podiam parecer dever ser negligenciadas em relagao aos seus carissimos senhores. G) Desta to grande liberalidade e humanidade, ainda hoje se encontram alguns ténues e obscuros vestigios. Com efeito, conservam-se ainda esses edificios, em volta das ruinas do paco régio, muito frequentemente habitados por pobres, com a sua antiquissima capela, na qual, aos domingos, um dos sacerdotes da vizinha casa de S. Francisco celebra os rituais; e 12 mulheres pobres sio providas, neste convento de Santa Clara, de algum dinheiro, eémo se diz ter outrora atribuido Isabel. Com verosimilhanga me parece ser este aquele dinheiro que a literatura mais antiga lembra ter sido atribuido, como dissémos, para alimentar ¢ vestir trinta pessoas; mas, encarecendo o trigo cada vez mais, de dia para dia, 0 facto € que, por fim, o que era suficiente, naquela suprema pobreza desses tempos, para alimentar trinta pessoas, essa mesma, nesta t@o grande pobreza e caréncia de abastecimento de trigo, a custo pode j4 alimentar doze. E que, tal como a hidropisia aumenta ao beber-se Agua, assim a avareza, que € sempre infinita e insacidvel, aumenta acima da medida, com a propria abundancia de prata e de ouro; € prazer da devassidao, 0 culto e a elegincia do corpo demasiado preguigoso trouxeram tanta caréncia de todas as coisas, tanta dificuldade, que ninguém, a ndo ser um Crasso ou um Creso, viveria sem supremo trabalho...) Depois de escrever sobre estes edificios, Perpinhio debruca-se, mais adiante, sobre a edificago do mosteiro e descreve-o tal como o 86 HELENA COSTA TOIPA via no periodo em que viveu em Coimbra. Este €, podemos dizer, 0 estado desta vasta obra, em meados do século XVI, em 1559 aproximadamente. Comega por referir-se ao monumento que a rainha fizera construir para seu sepulcro. Ab hoc colloquio digressa repetiit pristinum suum otium, cum iam triginta supra mille trecentos numerarentur a natali Christi. Anno wero proximo perfecta aede sacra, monimentum ingens e lapide sigitlatum, corporis Reginae post obitum quieta sedes, in medio collocatum, cancellique circumdati ab omni parte. Id tantum spatii ocuparat, ut de amplitudine templi, et dignitate multum diminutum esse uideretur. Quapropter iam sua sponte inclinatum animum Elisabethae facile inopinatus euentus impulit, ut alium quaereret sepulcro locum; nam illo ipso anno, qui recentesimus tricesimus primus supra millesimum a die rnatali Christi numerabatur, ita forte accidit, ut Monda uehementer auctus imbribus, quantum illa hominum memoria numquam ante creuerat, cum alueus, quanuis, ut ferunt, multo quam nunc est, altior, tantam aquae uim tamen capere nequiret, in aedificium recens irrumpens obrueret totum monimentum, et omnem dubitationem eius alio transferendi praecideret, si qua esset. Ergo partim ante, partim super odeum (sic enim appellant Graeci locum in quo cantat chorus) quod e regione cellae ima sede fuerat aedificatum in extremo templo, ad mediam fere altitudinem excitare iussit ingentem cameram lapideis fornicibus iunctam, quam cum mediam pariete satis lato diuisisset, partem alteram quae scalis adiri posset extrinsecus in formam sacelli redactam, sedibus, altari, signis adornauit, alteram interiorem Parthenonis parietibus penitus inclusam, in modum odei ferreis clatris communiuit, omnibus et existimantes et palam praedicantibus, non sine nutu uoluntateque diuina factum esse, ut ad eum Tocum flumen quo nunquam antea peruenisset, ui et impetu repentino penetraret, ut in eodem aedificio duo quasi templa duoque odea constituerentur, Supra eam testudinem, in editiore sacello, statutum monimentum, ut neque templi partem ullam occupatam et impeditam magnitudine teneret sua, neque iterum quantumuis amnis augeretur imbribus, allui posset aliqua exrparte. Constans fama est in demoliendo sepulcro, et ex infimo templo in sublimem sedem transferendo, cum permultae operae, partim uectibus labefactare conarentur, partim undique deligatum funibus ad se rapere per scalarum gradus, nec tamen illa moles ascensu tam accliui posset commoueri, Reginam omnes uoce cohortantem, Deum uenerantem animo, tetigisse scipione quo niteretur, ae repente conuulsum, minimo negotio, magna hominum admiratione fuisse sublatum, In eodem loco monimentum Elisabethae neptis. suae, quae educatione aie ad summam uirtutem efflorescens, prius fuerat extincta, quam ad maturitetem perueniret, poni woluit ut apud quam educata et mortua fuisset, apud eamdem sepulta, Christi liberatoris aduentum, et promissum bonis omnibus corporis decus expectaret. Raymundus Pontifex Conimbricensis aedem ipsam cum superiore sacello, arasque omnes et coemeterium rite dedicauit. (pp. 327-329) UMA DESCRIGAO QUINHENTISTA 87 «Regressando deste encontro, procurou 0 seu antigo repouso, quando ja se contavam, a partir do nascimento de Cristo, 1330 anos. Terminada, no ano anterior, a construcao sagrada, fora colocado, no meio, um grande monumento, talhado em pedra, tranquilo depésito do corpo da rainha depois da morte, com grades cincundando-o por todo 0 lado. Isso ocupara tanto espago que parecia diminuir muito a amplitude e a dignidade do templo, Por isso, um acontecimento inesperado convenceu facilmente 0 espirito de Isabel, jd de sua vontade inclinado a procurar outro lugar para o sepulcro; € que, nesse mesmo ano, que era, do nascimento de Cristo, 0 de mil trezentos e trinta e um, de tal modo sucedeu, que o Mondego, grandemente aumentado com as chuvas, cresceu como nao havia meméria, entre os homens, de alguma vez ter crescido antes; como o leito, ainda que, segundo dizem, muito mais fundo do que agora é, ndo pudesse comportar, todavia, tanta quantidade de gua, esta, irrompendo no edificio recente, cobrira 0 monumento inteiro e suprimira completamente qualquer hesitagdo, se alguma houvesse, em transferi-lo para outro lugar. Por isso, em parte, diante, em parte, sobre 0 odelio ( assim denominam os gregos 0 lugar onde canta o coro), que fora construfdo ao fundo do templo, no lugar mais afastado, defronte do santuério, mandou erguer, quase a meia altura, uma grande camara unida por arcos de pedra; como a dividisse, a meio, com uma parede suficientemente grande, um dos lados, tragado em forma de capela, a0 qual se podia chegar , do exterior, através de degraus, adornou-o com assentos, altar e estatuas; 0 outro lado, interior, completamente incluido nas paredes do convento, fortificava-o admiravelmente com as grades de ferro do coro, pensando todos e dizendo-o publicamente que nao fora feito sem o sinal e a vontade divinas que 0 rio, aquele lugar, aonde nunca tinha chegado antes, penetrasse com forga e impeto repentino, para que, no mesmo edificio, fossem estabelecidos como que dois templos e dois coros. Sobre este aposento, abobadado, na capelinha mais elevada, foi colocado o monumento, para nao ter ocupada, nem obstrufda, com a sua magnitude, qualquer parte do templo, e para nfo poder ser submerso, por algum lado, quando quer que, de novo, o rio crescesse com as chuvas. A fama que corre € que, a0 desmanchar-se o sepulcro e ao transferi- lo da parte baixa do templo para o lugar mais elevado, apesar dos muitissimos trabalhos de todos que, esforgando-se, ora, por mové-lo com vigas, ora, ligando-o por todos os lados com cordas, por puxé-lo para si, através dos degraus da escadaria, nem assim, todavia, péde aquela mole imensa ser removida em subida tao acentuada; até que a rainha, exortando a todos com as suas palavras, venerando Deus no seu espirito, tocou-o com 0 bast em que se apoiava e, agitando-se de repente, sem 0 minimo esforgo, foi ele levantado com grande admiragao dos homens. No mesmo lugar quis que fosse colocado 0 monumento de Isabel, sua neta que, florescendo para a suprema virtude, gragas educagio da av6, morrera antes de chegar A maturidade, para que, criando-se € morrendo junto dela, sepultada junto dela esperasse a chegada de Cristo Redentor e a prometida gléria do corpo para todos os bons. O Pontifice conimbricense Raimundo consagrou ritualmente a construgdo em si, com 88 HELENA COSTA TOIPA acapelinha superior, bem como todos os altares ¢ 0 cemitério.’» Pode encontrar-se uma descrig&io um pouco mais detalhada deste monumento, nomeadamente do timulo, num outro texto de Perpinhdo, uma oragdo em louvor de Santa Isabel, composta para o dia 4 de Julho de 1559, para a sessdio comemorativa do passamento da Rainha: Foi colocado na capelinha superior, onde agora se vé. Apoiava-se, como também agora vedes, sobre vito ledes e era ornado, de todos os lados, por muitas figurinhas. Uma imagem muito grande da Rainha, vestida com 0 habito das freiras de Santa Clara, com as mdos juntas, bem como os pés, semelhante a falecida, jazia por cima. ‘A verdade é que, gracas a liberalidade destas santas mulheres ¢ a sua piedade, ele estd magnificamente ornado. Tudo brilha em belissimas cores e estd coberto de ouro e de uma abébada de madeira excelsamente pintada, que € suportada, de todos os dngulos, por quatro colunelos preciosamente feitos de madeira." "Diz o Livro (. E, acabada a eigreja do moesteiro e abobeda, fez poer 0 moimento que ela ja tiinha feito pera sa sepultura em 0 meo da eigreja. E per razom do moimento, que era mui grande e per razom das gradizelas, postas por derredor, que tiinkam gram parte da eigreja, ficava embargada muito. E em aquel tempo que 0 moimento na eigreja seia sobreveo iiu deluvio d'augua em Coimbra, dezoito dias de fevereiro, era 1369 ( sic) anos, que entrou a augua do rio Mondego, que vem por redor da cidade de Coimbra, per aquela eigreja, e em tanto que nom era naquele tempo em memoria dos omées que aquela augua a tal logar veesse chegar, nem que aquel rio tam crecudo fosse, e foi tanta a augua do rio em na eigreja, que foi aquel moimento cuberto d'augua. E a rainha, vendo em como o rio aaquel logo chegara e veendo em como per aquel asseentamento a eigreja era embargada, ordiou logo como se fezesse em aquela eigreja, que era alta quanto compria, sobre arcos ua ‘capela algada em meo da eigreja como coro, pera as donas estarem, e fez fazer departimento grande antre 0 coro ¢ a capela, e fez em cima poer ‘aquel seu moimento e sepultura, que tiinha em fundo, e fez ali poer 0 moimento da ifante Dona Isabel, sa neta, que ela criara a passara em sa casa, ¢ fec fazer altar e imagées e seedas, para seerem os creligos ¢ os outros que veessem i ouvir as oras ou dizerlas, e assi, per razom da augua que entrou em na eigreja, d ora em na eigreja duas eigrejas ¢ dous coros; e teverom que a Deus aprouguera de se assi fazer, quando a el prouguera de entrar augoa em aguela eigreja e u nom soia entrar. E 0 bispo Reimondo de Coimbra sagrou aquela eigreja e capela ¢ os altares que som postos em ela e 0 cemeterio de fora. ( pp. 1347-1348) 8 _ petri loannis Perpiniani, «Laudationis in B. Elizabetham Lusitaniae Reginam If», in Orationes duodeviginti, 1589, Pompelonae, p. 66v. Constitutum est in illo superiore sacello, ubi nunc. cernitur. UMA DESCRICAO QUINHENTISTA. 89 Terminado o templo e colocado o sepulcro no seu lugar, a Rainha preocupa-se agora em concluir 0 que falta do mosteiro: Hac susceptae curae parte, quae quoniam erat religione propior et coniunctior, prima omnium esse debuit, liberata Regina, tum domum se totam conuertit ad inchoatum domicilium uirginum sacrarum, et extruendum, et ornandum, cuius omnes partes ita descripserat, ut nihil commodius, nihil opportunius, nihil pulchrius illis temporibus fieri posse putaretur. Non enim spectabat solum, quid necessitas naturae, quid disciplinae grauitas, quid illorum temporum paucitas requireret ( etsi iam tum amplius quinquaginta uirgines in illo collegio numerabantur) sed multitudinem futuram tanto ante mente et cogitatione complectens, considerabat secum ipsa diligenter, quid officium suum , quid studium pietatis, quid diuina maiestas postularet, Illum sibi uoluit esse uiuenti tranquillum curarum portum, mortuae quietam corporis sedem, omni uero tempore animi sui singularis aduersus christianam Religionem insigne atque monimentum. Stat adhuc propter ripam, et manet illud opus amplum, excelsum, augustum, dignum illa copia, dignum religione et munificentia sanctissimae Reginae, cui pro detrimento et incrementa et dignitatem maiorem attulit, omnia conficiens et consumens uetustas. Primum, quadrata est area latitudine mediocri, tribus ex lateribus humilioribus aedificiis iam tum ab initio cincta, ubi partim sacri collegit necessariae ministrae, partim inopes mulieres, quibus quotidiana cibaria praebentur, habitant; quartum latus ad meridiem uergens templo ipso clauditur, porticu non magna a ualuis ad Parthenonis ianuam pertinente; id saxo quadrato antiqua illa opera, et antificio perfectum, tecto concamerato, duobus ingentium pilarum ordinibus triplicem testudinem sustinentibus, multis tabulis pictis et beatorum signis adornatur. E regione tholi, quo tegitur ‘ara maxima, duplex odeum est, ut supra significauimus, unum plano pede, alterum supra concamerationem in altitudinem elatam, ante sacellum structum superiore loco, et sepulcrum Elisabethae; ipsum autem sacellum duplicem habet aditum, alterum ex templo gradibus lapideis bene factis, ostio maiore, alterum ex porticu externa, arcto humilique ostiolo, iisdem, quibus ad ianuam ascenditur, scalis, Sed odei praecipua, et prodigiosa fere magnitudo facile demonstrat quam frequentiam, quam speciem, quam amplitudinem concepisset in posterum excelsi animi Regina. Etenim nunc, cum solae illae quae publice solemniterque uota nuncuparunt, altero tanto sint plures, quantum erant uniuersae, tantum abest tamen ut multitudine tanta Nitebatur ut etiam nunc videtis, octo leonibus, multis undique sigillis ornabatur, una imago Raginae pergrandis, virginum Sanctue Clarae habitu, manibus iunctis, et pedibus instar mortuae iacebat in summo. Nunc vero liberalitate mulierum sacrarum et pietate magnificentius exornatum est. Nitent omnia pulcherrimis coloribus, et auro et testudine lignea egregie depicta teguntur, quae ex omnibus angulis quatuor columellis affabre factis e ligno sustinetur(...) HELENA COSTA TOIPA compleatur, ut longe maiorem numerum capere possit. Intus duo peristylia magnitudine pari, dispari nobilitate. Alterum iunctum ipsi templo magnificentius exaedificatum est; quatuor enim porticibus, opere testudineato tectis continetur, ea pilarum fornicatos parietes sustinentium mole, ea multitudine columnarum, octonis columnis fulcientibus singulas pilas, ut cum omnibus opulentissimorum regum operibus, amplitudine, artificio, firmitate certet. In medio compluuio stagnum est ingens, cuius in quatuor angulis totidem impositi fontes aquam fundunt iucundissimo sono. luxta, puteus incremento suo, fluminis inundationes multo ante praenuntiat, magnum incommodum allaturas, nisi illo, uelut e specula signo dato, cauerentur. Quod spatii reliquum est, exquisitissimis herbis, fruticibus, arboribus uiret. Hic, dicta mirum, quinque sunt cubiculorum ordines, quorum quilibet non exiguo coetui satis esse posse uideatur, duo praeterea minores. Hic exedra longitudine sesquitertia latitudinis fenestrarum, et ostiorum tum frequentia, tum apta descriptione uehementer illustris, cuius interiores parietes emblemate uermiculato uestiuntur, ea dignitate, ut ad omnes motus animorum conficiendos facta esse uideatur. Hic denique coenatio tam longe lateque patens, ut ducentae uirgines in ea quam commodissime possint discumbere. laque tum propter hanc tam uastam magnitudinem, tum quia crescente fluuio humore noxio redundat, ea non utuntur; ante eam coenationem, fons es ad abluendas manus, € saxo, quem impendens testudo superne operit columnis quadragenis innixa. Proxime stabat platanus, rarissima in his oris arbor, ad opacandum locum patulis diffusa ramis, quae superiore anno, quod pauxillum forte salis ad stirpes imas accidisset, nimia naturae teneritate, uel minimae iniuriae impatiens, penitus exaruisse dicitur. Alterum peristylium frequentibus arboribus, porticibus, _columnis ornatum, sed diuturnitate ipsa iam affectum, coenationem habet lapideis mensis, ubi nunc cibus capitur, et officinas, atque cellas multitudini tantae necessarias; hortus uero bene magnus, et plurimis consitus arboribus, partim ramorum amoenitate gratis, partim pomorum ubertate fructuosis, circumuallatus altissimo pariete, non inhonestam, neque iniucundam animi remissionem praebet assiduo labore fessis. Omnia rursus, qua fluuium spectant, mediocri uelut obiecto muro muniuntur extrinsecus, ad hibernos impetus fluminis argendos. Tantum aedificium munifica Reginae liberalitas cum donis quamplurimis et sacrorum ornamentis decorauit, magnum etiam nunc usum afferentibus, tum firmissimis opibus in perpetuum stabiliuit, atque fundauit. Inde ad ducenta millia sestertium annua percipiuntur, nec dubitant homines periti rerum, quin copiosiores fructus quotannis caperentur, si diligentius curarentur pecuniae ab Elisabetha contributae. Non defuit tam pio labori, atque huic tantae largitati diuinum numen , habuitque res ea incrementa, quae praestans ille animus tanto ante prouiderat. Centum namque ueteranae uirgines obligatae et astrictae solemnibus uotis, rite uelatae nigro uelo, et quinquaginta nouitiae nondum tyrocinii tempore completo, flos Lusitaniae nobilitatis, inclusae in illo Parthenone seuera disciplina, magna existimatione uirtutis ac sanctimoniae caste ac religiose uiuunt. His triginta mulieres intra sacros parietes, totidem uel paulo plures foris ancillantur. ( pp. 329-333). UMA DESCRICAO QUINHENTISTA 91 «Depois desta parte das tarefas que assumira, que, por ser mais proxima e mais unida a religido, teve de ser a primeira de todas, liberta, 4 rainha dedicou-se, entdo, a todo 0 edificio, para comegar 0 domicilio das freiras, para o edificar e ornar; dele, de tal forma descrevera todas as partes, que nada mais cémodo, ou mais conveniente, ou mais belo se poderia imaginar ser feito naqueles tempos. Com efeito, ndo olhava apenas aquilo que a necessidade da natureza, o que a gravidade da disciplina, o que a caréncia daqueles tempos requeria ( ainda que jé se contassem, entéo, naquele colégio, mais de cinquenta freiras), mas, antevendo a multiddo futura, com tanta antecedéncia, com a inteligéncia € 0 espirito, considerava para consigo diligentemente 0 que exigiam a sua tarefa, o zelo da piedade e a divina magestade. Quis que aquele fosse para si, enquanto vivesse, um porto tranquilo de preocupagdes, a sede calma do seu corpo, depois de morta, e, para todos os tempos, o ‘monumento insigne do seu esptrito singular em relagdo a religido crista. Esta ainda e conserva-se perto da margem aquela obra ampla, excelsa, augusta, digna daquela abundancia, digna de religiéo ¢ da munificéncia da santissima rainha, @ qual, em vez de prejuizos, a velhice que tudo consome e enfraquece trouxe quer novos incrementos, quer uma maior dignidade. No principio, existe uma drea quadrangular, de latitude mediana, cingida ja, entio, desde o inicio, de trés lados, pelos edificios mais humildes, onde , em parte, habitam as servidoras necessdrias ao sagrado colégio, em parte as mulheres pobres, a quem se fornece alimentagdo didria. O quarto lado, voltado para sul, é fechado pelo préprio templo com um pértico ndo muito grande, que se estende das portas de batente até d porta do mosteiro? O templo, feito com pedra quadréda, naquela antiga arte e engenho, com 0 tecto em abdbada, com duas fileiras de enormes pilares sustentando @ cobertura abobadada triplice, esté ornado com muitos quadros e estétuas de santos. Diante da ciipula que cobre 0 altar-mor, estd 0 duplo coro, como acima referimos, um de pé plano, outro sobre uma abdbada elevada em altura, diante da capelinha erigida em lugar alto e do sepulcro de Isabel. E esta mesma capelinha tem uma dupla entrada, uma partindo do templo, com degraus de pedra bem feitos, pela porta maior, outra partindo do POrtico exterior, por uma humilde entradita a norte, pelas mesmas escadas através das quais se ascende @ porta, A especial ¢ quase prodigiosa grandeza do coro demonstra claramente qual a frequéncia, qual a espécie, qual a amplitude que a rainha de espirito ilustre concebera para a posteridade. E, agora, com efeito, ainda que s6 aquelas que publica e solenemente pronunciaram os Seus votos sejam outro tanto mais quanto eram no seu conjunto, ele esta, todavia longe de encher-se com tdo grande multiddo, de modo que poderia comportar um nimero de longe maior. * Se voltarmos as costas ao rio e ficarmos de frente para a igreja do mosteiro, estas construgées situavam- se a direita dela, 92 HELENA COSTA TOIPA, Dentro estavam dois claustros'’, de grandeza semelhante, mas de diferente nobreza. Um, unido ao préprio templo, estava edificado de forma mais magnificente. Com efeito, estd limitado por quatro galerias, ‘com tectos de formato abobadado, como uma tal multiddo de pilares sustentando paredes arqueadas'', com uma tal quantidade de colunas, em grupos de oito sustentando cada um seu pilar, que rivaliza, em amplitude, em arte e em firmeza, com todas as obras dos reis mais ricos. ‘No compliivio que estd a meio, existe um tanque grande e, dele, nos quatro cantos, outras tantas fontes' at colocadas derramam dgua com agradabilfssimo som. Ao lado, um pogo, quando enche, previne muito antes que as inundagées do rio vao trazer grande incémodo, se ndo se fugir dele, como se de um sinal dado de um lugar de observagdo. O que rresta de espaco verdeja com ervas requintadissimas, arbustos e drvores. Aqui, é admirdvel de ser dito, existe cinco fileiras de quartos, das quais qualquer uma parecerd poder ser suficiente para uma comunidade niio pequena, para além ainda de duas menores. Aqui, uma sala de reuniées'? com 0 comprimento de uma vez e um tergo da largura, ilustrissima, seja pela abundancia de janelas e portas, seja pelo tragado apropriado, cujas paredes interiores se ornam de mosaico lavrado, com tal dignidade que parece ter sido feita para acalmar todas as revolugées da alma. Aqui, finalmente, um refeit6rio 140 amplo em comprimento e largura que podem sentar-se nele, da forma mais cémoda, duzentas freiras."“ E, assim, quer por causa desta tdo vasta magnitude, quer '© De frente para a igreja do mosteiro, com o rio correndo atras de nés, os claustros ficavam a nossa esquerda. '! Com esta expresso, Perpinhao refere-se provavelmente aos arcos que omamentavam as paredes das galerias, tal como Fr Manuel da Esperanga os viu € descreveu, anos depois: ? De obra e pag. Todos os lados de fora (do claustro) ido Secidos em arcos: huns grandes, outros pequenos: huns abertos, outros fechados com redes da mesma pedra, por galante artificio. (Historia Serafica dos Frades Menores na Provincia de Portugal, T. 11, L. V1, Cap.XVII, p. 35). uma dessas fontes, faz Fr. Manuel da Esperanga uma breve descrigdo, na acima citadas: No meio do mesmo claustro descuberto a 0 ceo, ocupava grande campo hum tanque mui aprazivel, em o qual desagoavdo muitas fontes por diferentes figuras, & a maior, que eu ainda achei, pela boca de hita serpe, enroscada no brago de hia Ninfa. Vinha de fora a agoa, por hum cano, que se chamou “dos amores” por raziio de hita fonte deste nome, onde tem o seu principio. '5 Provavelmente a Sala do Capitulo. "4 Diz o Livro que fala (...): Depois que a eigreja e dormitorio foi acabada, fez abobedas aa castra e fez mui nobres paagos e bem postados e pera refeitorio e dormitorio ¢ enfermaria e castra e cozinha e todas as outras casas, pera UMA DESCRICAO QUINHENTISTA 93 Porque, quando o rio crescia, se enchia com uma humidade doentia, ele ndo era utilizado. Diante deste refeit6rio, existia uma fonte para lavar as mdos, feita de pedra, coberta por um tecto abobadado, suspenso e apoiado em 40 colunas. Nas proximidades estava um pldtano, drvore rarissima'® nestas Paragens, para sombrear 0 lugar, estendendo-se com as suas ramagens abertas, que, no ano passado, por ter chegado talvez um pouguito de sal as suas raizes mais fundas, pela demasiada fragilidade da sua natureza 0u por néo poder sofrer a menor injiria, diz-se que secou completamente, O outro claustro estd ornado com drvores abundantes, com galerias € com colunas, mas afectado jd da prépria longevidade; tem um refeitorio com mesas de pedra, onde agora se tomam as refeigies, e oficinas ¢ quartos necessdrios para td0 grande multiddo. O jardim, verdadeiramente grande, plantado com muitas drvores, ndo $6 agradaveis pela amenidade dos ramos, mas também titeis pela abundancia de frutos, rodeado de um altissimo muro, oferece, aos que estdo cansados do trabalho constante, um descanso de espirito nem desonesto, nem desagraddvel. Por outro lado, tudo que estdé voltado para 0 rio estd fortificado, de fora, por um muro mediano, como uma barreira para fazer frente aos impetos do rio, no inverno. Tamanho edificio, decorow-o a liberalidade munificente da rainka com muitissimas dddivas e ornamentos de objectos sagrados,!° que tém 98 oficios que compriam em no moesteiro, e fez cercar todo 0 moesteiro de alto muro, (p. 1348) 'S Sobre 0 pltano e sua raridade nessas paragens e nessa €poca, leia-se De Platano, de Joao Rodrigues de Sa, do qual se pode encontrar a tradugdo parcial em Américo da Costa Ramalho, (1985) Latim Renascentista em Portugal, Coimbra, INIC, pp. 118-135. 'S Muitos destes ormamentos resultaram da transformacdo dos seus bens pessoais, de que quis desfazer-se apés a morte do marido. Diz.a biografia acima citada: E, acabado aquelo, tornow-se pera Coimbra, pera dar cima e cabo 4o moesteiro que comegara, e ali mandou apartar quantos panos de ouro € de seda avia em tempo que era casada, que eram muitos e mui nobres, € mandou deles fazer vestimentas e ornamentos pera as eigrejas e, des que forom acabadas, feze-as béezer e, acabadas e béetas, partio-as per ‘muitas eigrejas de Portugal, e dando a cada ita eigreja e logar, segundo 0 logar era e 0 merecia e segundo saber podia que compria. E da moor parte do ouro que avia fez fazer culezes ¢ cruzes ¢ encensairos & lampadas, e pos destes ornamentos em aquel seu moesteiro e partia per outras eigrejas, segundo viia que compria ao logar. (p. 1344) Fr. Manuel da Esperanga, cronista dos franciscarios, descrevé, no século XVII, alguns dos objectos com que a rainha ornara 0 mosteir Deixoulhe tambem toda a sua capela, & Reliquias sagradas, muitas das quais the mandara o Papa Jodo XXII, quando a quiz. consolar da morte de seu marido. Pertencia a este mesmo thesouro hum Ornamento mui rico, que ella bordou de aljofar por suas proprias mos. Deuthe mais 94 HELENA COSTA TOIPA ainda hoje muito uso; estabeleceu-o € fundamentou-o, entdo, para a eternidade, com firmissimas riquezas. Desde ai, sido recebidos cerca de ducentos mil sestércios por ano, e os homens peritoy nestes assuntos no duvidam que se receberiam todos os anos frutos mais abundantes, se mais diligentemente se preocupassem com os dinheiros atribuidos por Isabel. Nao faltou a tdo piedoso trabalho e a esta tamanha largueza a divina vontade; ¢ teve esta situagdo um to grande desenvolvimento como © que tanto tempo antes the providenciara aquele ilustre espirito. Na verdade, cem mulheres veteranas, obrigadas € ligadas a votos solenes, ritwalmente veladas de negro, e cinguenta novigas, com 0 tempo do noviciado ainda ndo completo, flor da nobreza lusitana, fechadas naquele convento na mais severa disciplina, vive honesta e religiosamente em grande consideragdo de virtude ¢ castidade. A estas servem-nas, entre as paredes sagradas, precisamente trinta mulheres, ou um pouco mais, fora. Nesta situagHo se encontravam, segundo Pedro Perpinhao, o mosteiro de Santa Clara e edificios vizinhos, no meio do século XVI, mais exactamente em 1559, j4 afectados, de longa data, pelas enchentes do Mondego, que tinham j4 provocado a ruina do pago régio € tornado quase inabitiveis algumas dependéncias, como a do refeit6rio que, por demasiado htimido, deixara de ser utilizado pelas freiras. ‘As condigées parecem ter-se agravado bastante para o final do século, com o rio subindo progressivamente e nao recuando mais, a ponto de as freiras solicitarem 0 auxilio régio, no sentido de se fazerem alteragdes no Mosteiro, como de facto se fizeram, pois no segundo decénio do século XVII, foi langado um segundo pavimento, nao sé na igreja, que ficou, toda ela, ao nivel da capela que a rainha fizera erguer para colocar a sua sepultura, mas também no claustro, que recebeu um outro andar. Como, mesmo assim, a situagao se tornou insustentavel, acabaram por mudar-se para o mosteiro que ainda hoje se vé no monte fronteiro, designado de Santa-Clara-a- Nova, por volta de 1677, tendo os seus fundamentos sido langados em doze Apostolos de prata, os quaes desfez 0 mosteiro por acudir em hua necessidade a ElRei Dom Afonso IV, que depois tho soube agradecer. Duas Imagens, que ainda se conservo, da Virgem Maria Senhora nossa, feitas do mesmo metal: hita grande, & a outra assentada en hum ramo a modo de Gilbarbeira. Hita Cruz tambem de prata, outra de coral, ¢ ambas enriquecidas com particulas notaveis do santo Lenho, em que Christo Senhor nosso padeceo. Outros tres Reliquarios de prata: hum semelhante a cofre, 0 qual guarda hum pedago da carne assada do Martyr $. Lourengo: os dous da feigdo de Portapaz, guarnecidos dle Reliquias, com hum dente do Baptista S. Jodo. (Historia Serafica dos Frades Menores na Provincia de Portugal, T. Il, Livro VI, cap. XIX, p. 41) UMA DESCRICAO QUINHENTISTA, 95 1649, com pompa e circunstncia, por D. Joao IV. Do estado lastim4vel em que se encontrava nos seus tltimos tempos de existéncia deu conta Fr. Manuel da Esperanga, cronista dos franciscanos, autor dos dois primeiros livros da Historia Serafica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco na Provincia de Portugal. Diz, sobre a igreja do Mosteiro: 3 Era esta gravissima Igreja fabricada com abobadas, repartida em tres naves, & todas de cantaria. A sua capela mor estava acompanhada de duas colateraes, que na muita perfeigdo the fazido semelhanga. Sobre 4 grade do coro subido duas tribunas de pedra, as quaes se comunicavdo por outra grade de ferro: hita por dentro do mesmo coro, a outra pela Igreja. Sobre esta ussentou o seu sepulcro a gloriosa Rainha, ¢ hum altar, em que se dizia Missa: na de dentro podido estar as Freiras, que visitaydo as suas santas Reliquias: & ambas se estenderdo agora nos nossos tempos, levantando sobre as mesmas abobadas outra Igreja, & outro coro de novo, que se pudessem salvar das inundagdes do rio. O antigo tinha muita majestade, porque sendo terraplanado, & baixo, néo Somente ocupava grande sitio, ornado com muita arte, mas tambem ficava superior, a 0 lastro da Igreja, nove degraus de altura, pelos quais da parte da grade se subia para ele. E neste espago baixo avia alguns altares, e sepulturas ilustres, que the davééo muita graga....) (Tomo Il, Livro VI, cap. XVI, pp.34-35) Sobre o claustro e suas dependéncias e sobre a entrada do mosteiro: 5 Conforme a estas plantas erdio os mais edificios, & oficinas da casa: todos grandes, suntuosos, & perfeitos: quaes pedia a devacdo, & grandeza da Rainha, que os mandava fazer. Porem a nossa desgraca, que alterou a soberba do sobredito Mondego pera sepultar entre as suas aréus os mesmos campos, que se deixavdo rasgar pera elle ter passagem, o fez tambem arrevido na fea destruigao deste insigne mosteira santificado por muitas servas de Deus, e mais em particular por esta S. Rainhd. Corta por certo a alma ver tdo grande perdigdo: porque de alguas oficinas ndo ha mais que o seu rastro, & quasi todo desfeito pelas enchentes do rio. Outras jazem entulhadas com o lodo, sem se poder usar dellas. O claustro he hua cisterna viva, que nem no verdo se seca. De maneira, que os baixos desta grandiosa machina, ou ja perdérdo o ser, ou estado desfigurados, ou convertidos em charcos. Pelo que foi necessario levantar em muitas partes sobre as casas antigas outro mosteiro mais alto, & passar as capelas & ermidas pera a cabeca do claustro, onde esti coroando, a pezar deste tristissimo pégo, 0 monte da Santidade...) 6 Faz ainda a 0 mosteiro entrada 0 seu pateo antigo, mas muito desfigurado da primeira fermosura, aberto por duas portas, & ambas mysteriosas....) (Tomo Il, Livro VI, cap. XVI, p. 36) 96 HELENA COSTA TOIPA. Sobre o pago régio, d4 conta também da sua ruina, como Perpinhao, aludindo ao mesmo episédio relacionado com o rapaz e 0 burro que tinham ficado encerrados dentro do edificio e que se salvaram por milagre. Sobre o hospital diz que (...teve a mesma desgraga de cair pera nunqua se erguer. Nao ficou delle em pe, sendo a sua Igreja, mas tdo cativa das cheas, que pera se por em salvo, ao menos 0 Altar, subio por doze degraos. Nesse tempo, que foi na nossa idade, se levantou 0 alpendre numas colunas antigas, que ja avido servido noutra obra do mosteiro (...) (Tomo Il, Livro V1, cap. XX, p. 44) Estas linhas de Fr. Manuel da Esperanca foram escritas aproximadamente um século depois das de Perpinhdo e revelam a degradag&o avangando rapidamente sobre o Mosteiro, que muito pouco tempo depois seria abandonado pelas suas habitantes e tomado, definitivamente pela 4gua do rio e pelo entulho, que o sepultaram quase até aos nossos dias. S6 recentemente, com efeito, as ruinas desta construcio, fruto da idealizagaio de Rainha, viram de novo a luz do dia e se livraram da 4gua do Mondego, oferecendo aos nossos olhos um pouco da que foi a sua majestade. BIBLIOGRAFIA DIAS, P. (1994), A arquitectura gética portuguesa, Lisboa, Ed, Estampa. ESPERANGA, Fr. M., ( 1656-1666) , Historia Serafica dos Frades Menores de S, Francisco, na Provincia de Portugal, Lisboa. «Livro que fala da boa vida que fez a Raynha de Portugal, Dona Isabel, € dos seus boons feitos e milagres em sa vida e depoys da morte». Introdugao e notas de J.J.Nunes (1921), Boletim da Classe de-Letras da Academia das Ciéncias de Lisboa, Coimbra, XII. LOPES, F. F.(1953) «Fundagao do mosteiro de Santa Clara de Coimbra», Colecténea de Estudos, Braga, ano IV, n° 2, pp. 165-192. PERPINHAO, P. J. «De Vita et Moribus B. Elisabethae Lusitaniae Reginae lib. II», Opera, Tomo II, 1749, Roma, pp. 305-391. ww----e--r--,

You might also like