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PRADO NMBL, Et Al 2023 Org Da Atenção e Vigilância em Saúde Na Ap
PRADO NMBL, Et Al 2023 Org Da Atenção e Vigilância em Saúde Na Ap
18052022 1325
artigo article
frente à COVID-19 em municípios do Nordeste brasileiro
Abstract The aim of this study was to analyze Resumo O estudo objetivou analisar a organi-
the organization and development of primary zação e o desenvolvimento das ações de vigilância
health care and surveillance, including norma- e atenção na APS, desde o arcabouço normativo
tive frameworks and the implementation of local até a execução das ações sanitárias nos territórios
health actions. Qualitative descriptive multi- de abrangência das equipes de saúde. Estudo ex-
ple-case study involving three municipalities in ploratório, analítico-descritivo, de natureza qua-
the state of Bahia. We conducted 75 interviews litativa, de casos múltiplos em três municípios-se-
and a document analysis. The results were cat- de de região de saúde na Bahia. Foram feitas 75
egorized into the following two dimensions: ap- entrevistas e análise documental. Os resultados
proach to the organization of the pandemic re- consideraram a lógica de organização tecnoló-
sponse; and development of care and surveillance gica e o desenvolvimento das ações de atenção e
actions at local level. Municipality 1 was found vigilância em saúde pelas equipes no nível local.
to have a well-defined concept of the integration No caso do M1, constatou-se uma concepção
of health and surveillance with a view to orga- bem definida sobre a integração das ações, com
nizing team work processes. However, the munic- vistas à organização do processo de trabalho das
ipality did not strengthen the technical capacity of equipes. Contudo, não houve aumento da capaci-
health districts to support surveillance actions. In dade técnica dos distritos sanitários para apoiar
M2 and M3, delays in defining PHC as the entry as ações de vigilância junto às equipes. Em M2
1
Instituto Multidisciplinar point for the health system and the prioritization e M3, a demora na definição da APS como por-
em Saúde, Universidade of a central telemonitoring service run by the ta de entrada e a priorização de serviço central
Federal da Bahia. R. municipal health surveillance department com- de telemonitoramento realizado pela vigilância
Hormindo Barros 58,
Quadra 17, Lote 58, pounded the fragmentation of actions and meant municipal reforçou a fragmentação das ações,
Candeias. 45.029-094 that PHC services played only a limited role in revelando um baixo protagonismo da APS nas
Vitória da Conquista BA the pandemic response. Clear policy and techni- respostas. Diretrizes políticas e técnicas e condi-
Brasil. nilia.prado@ufba.br
2
Instituto de Saúde cal guidelines and adequate structural conditions ções estruturais mostraram-se fundamentais para
Coletiva, Universidade are vital to ensure the effective reorganization of a reorganização do trabalho, de modo a fomentar
Federal da Bahia. Salvador work processes and foster the development of per- arranjos permanentes que promovam condições e
BA Brasil.
3
Centro de Ciências da manent arrangements that strengthen intersec- incentivem a colaboração intersetorial.
Saúde, Universidade Federal toral collaboration. Palavras-chave Atenção primária à saúde, Vigi-
do Recôncavo da Bahia. Key words Primary health care, Health surveil- lância da saúde, COVID-19
Santo Antônio de Jesus BA
Brasil. lance, COVID-19
1326
Prado NMBL et al.
Introdução Método
Quadro 1. Sistematização de critérios para organização e desenvolvimento da atenção e vigilância aos usuários
sintomáticos para COVID-19 em cada local.
Dimensões Critérios M1 M2 M3
Lógica de Participação formal coordenação AB no planejamento geral S C C
organização da Disponibilidade de protocolos organizacionais S P P
resposta à pandemia Oferta de capacitações pela SMS S P P
Disponibilidade de insumos (EPIs) S S P
Disponibilidade de insumos (sanitizantes) S S P
Disponibilidade de insumos para a atenção à saúde (oxímetro) S S P
Disponibilidade de insumos para a atenção à saúde (oxigênio) S S P
Disponibilidade de insumos atenção à saúde (termômetros S S P
infravermelhos)
Disponibilidade de materiais tecnológicos (celular, tablet) S S S
Disponibilidade de telefone fixo S S P
Disponibilidade de conectividade P P P
Descentralização da testagem PCR para USF/UBS em todo o P C C
período analisado
Mudanças estruturais/adaptações em estrutura física C C P
Separação de acesso sintomáticos respiratórios S C P
Contratação de profissionais para equipes de APS S C C
Realocação de profissionais da APS para outros setores S C P
Trabalho remoto para profissionais da APS S C C
Desenvolvimento Fluxos assistenciais com inclusão da APS S C C
de ações de atenção Protocolos para triagem de casos suspeitos S S C/P
e vigilância pelas Previsão de novas atribuições para os profissionais da APS S C C
equipes Definição de equipes específicas para atender usuários sintomáticos S S S
Atenção presencial aos usuários sintomáticos S C/P C/P
Atenção /teleatendimento/ tele consulta aos usuários sintomáticos S C/P C/P
Monitoramento de sinais clínicos dos sintomáticos em isolamento S S C/P
domiciliar
Acompanhamento sistemático de casos isolamento domiciliar S S S
(remoto)
Notificação dos casos suspeitos pelas equipes APS S P P
Busca ativa de sintomáticos e contatos no território N N N
Comunicação de risco N N N
Atividades educativas S S S
Disponibilidade de medicamentos para estabilização de usuários S P P
Adoção de tratamento medicamentoso (tratamento precoce) N S S
Disponibilidade e realização de teste rápidos nas unidades de saúde S S S
Realização de RT-PCR na USF/UBS P P P
Previsão de fluxos de encaminhamento dos casos (moderados e S C S
graves)
Previsão de retaguarda de transporte sanitário (SAMU 192) S S S
S: sim; N: não; P: parcial; C: controverso, presente.
Fonte: Autores.
Foram realizadas capacitações em diversos for- plo do Ministério da Saúde (MS), da Fiocruz, da
matos para preparar os profissionais de APS. Os Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EB-
temas abordados contemplam normas de bios- SERH), do Núcleo do Telessaúde e os conselhos
segurança, manejo clínico, testagem e ações de de classe.
vigilância epidemiológica. Outras instituições Foram normatizadas responsabilidades co-
participaram ou ofereceram capacitação, a exem- muns a todos os profissionais na APS e particu-
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laridades de cada categoria. Os relatos e o conte- participação importante dos ACS na vacinação
údo documental convergiram sobre atribuições contra a COVID-19, contudo, mudanças em atri-
dos profissionais do Núcleo Ampliado de Saúde buições reduziram a atenção à comunidade para
da Família e Atenção Básica (NASF-AB) e das outros problemas de saúde.
equipes de saúde bucal no apoio para identifica- A organização dos fluxos de atendimento
ção de sintomáticos respiratórios nas UBS e mo- aos casos de COVID-19 prevista em diversas
nitoramento dos pacientes em isolamento. normativas municipais definiu como portas de
Os ACS desenvolveram suas atividades se- entrada do sistema de saúde os serviços de APS
gundo as normas da SMS, com maior centrali- (UBS com e sem ESF), as UPAs e as unidades de
dade no trabalho interno das unidades. Houve referência para síndromes gripais, denominadas
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Prado NMBL et al.
Quadro 2. Síntese dos resultados centrais e falas expressivas dos entrevistados nos três locais.
Município Síntese dos resultados centrais Falas expressivas
Feira de Integração entre APS e Vigilância “Conseguiu alguma integração com a APS e com a Vigilância Sanitária, mas
Santana isso foi se perdendo porque se não tiver gestores com planejamento integrado
com todos os setores e isso vai se perdendo ao longo do tempo” (EGFSA4).
Reorganização do processo de “Chegava uma nota técnica e a gente recebia mais de mil mensagens nos
trabalho das equipes de APS grupos. E quando questionamos não sabermos sobre o fluxo falavam. Ah, mas
está na nota técnica que foi passada para o grupo no grupo do WhatsApp.
Os fluxogramas deveriam ser enviados formalmente quando atualizados”
(EPFSA7).
Dificuldades para a garantia do “Essa sala que foi criada já existia que era uma sala que a gente fazia reunião
distanciamento social e separação e se transformou em isolamento. A gente colocou umas cadeiras e uma fita
física entre suspeitos e demais assim para não ficar tão perto do atendente assim para os pacientes não
usuários nas UBS/USF chegarem tão perto, mas foi a gente que fez” (EPFSA7).
Contratação de ACS “Como não tem ACS, teria que contratar agente comunitário de saúde para
fazer a identificação dos sintomáticos da área e traçar estratégia.” (EPFSA8).
Uso de ferramentas digitais/ Nnós realizamos o acompanhamento remoto então a gente fica fazendo
virtuais para monitoramento o monitoramento de casos desses pacientes. tem uma planilhazinha
clínico de casos leves de Covid em que colocamos por dez dias o acompanhamento e registramos os sintomas
isolamento domiciliar que a pessoa está apresentando” (EPFSA4).
“Esse foi outro grande problema em alguns lugares que precisava
colocar internet ou linha telefônica, e não teve por conta da conectividade e
isso precisa realmente avançar” (EGFSA5).
Comunicação efetiva com os “A USF não desenvolve alguma atividade educativa para o enfrentamento
usuários da COVID-19 no território, não faz atividade de divulgação ou panfletagem
folders até porque a unidade não tem ACS” (EPFSA8).
Vitória da Perspectiva de integração das “Acabou que a vigilância tomou mais a frente, no sentido de estar se
Conquista equipes da vigilância com as UBS/ apropriando da organização, para depois estar repassando para nossos colegas de
USF trabalho, sobretudo dos outros setores.” (EGVDC4)
“O enfrentamento tinha um peso grande da APS e nem sempre a coordenação da
APS, conseguiu compreender exatamente o que precisava ser dito” (EGVDC3).
Reorganização do processo de “Uma equipe atendia os usuários não sintomáticos pela manhã e à tarde outra
trabalho das equipes de APS atendia os sintomáticos” (EPVDC4).
Dificuldades para a garantia do “A USF atende os casos suspeitos e casos confirmados, aí tiramos uma salinha
distanciamento social e separação de acolhimento e passamos a colocar só a sala de assintomáticos. E tivemos
física entre suspeitos e demais que colocar tipo um biombo isolando a parte dos consultórios da recepção
usuários nas UBS/USF porque os pacientes estavam entrando e saindo muito, aglomerando muito
no corredor. Antes não tinha recepcionista e adequamos um ACS rural, para
ajudar na recepção para ter esse controle dessa triagem, acolhimento e fluxo
do paciente sintomático” (EPVDC9).
Realocação de funções/atribuições “Antes não tinha recepcionista e adequamos um ACS rural, para ajudar na
dos ACS recepção para ter esse controle dessa triagem, acolhimento e fluxo do paciente
sintomático” (EPVDC9).
Uso de ferramentas digitais/ “Fazíamos o telemonitoramento clínico dos casos por teleatendimento. A
virtuais para monitoramento única coisa que fazíamos presencial era a notificação” (EPVDC4).
clínico de casos leves de COVID
em isolamento domiciliar
Fonte: Autores.
gripários; houve a criação de Mini UPAs em UBS regulação de leitos, pontos para testagem e oferta
adaptadas para estabilização de casos moderados de cuidados integrados para a população em si-
e graves. Como transporte sanitário, utilizou-se tuação de rua e aos residentes de instituições de
o SAMU 192. Buscou-se padronizar fluxos para longa permanência para idosos (ILPI), crianças
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Município 1 (M1)
Casos suspeitos
SAMU 192 SAMU 192
Regulação
Notificação Notificação
classificação risco VGEP
Pontos de coleta testes Distrito Sanitário Gripários
Avaliação/notificação*
Teleacesso/telecadastro
Casos leves ou
reinfecção Casos moderados
UBS (mini UPAs) Encaminhamento
continua
Figura 1. Síntese dos fluxos de atenção e vigilância de casos suspeitos para COVID-19 nos três casos analisados, janeiro 2020 a
agosto 2021.
Telemonitoramento casos suspeitos Telemonitoramento casos suspeitos (Call center - Vigilância epidemiológica)
Regulação
Casos suspeitos USF
urbana rural Central
SAMU 192 Regulação
Pontos de coleta
testes RT-PCR Casos graves/estabilização
USF/UBS
USF/UBS
respiratórias
avaliação (sala privativa)
Piora clínica
Policlínicas de saúde Acolhimento/triagem/avaliação (sala privativa)
coleta das amostras
Exame clínico respiratórias Centro de referência
Casos confirmados COVID-19
Casos graves Pontos de
(estabilização) coleta testes
Casos leves/moderados RT-PCR Casos moderados
Casos confirmados
Teste rápido SAMU 192
teste rápido
o
Isolamento domiciliar ava liaçã Piora clínica Piora clínica
nova Monitoramento clínico/48h (por ava liação
Monitoramento/48h telefone/visita) nova
Alta/orientação
(por telefone/visita) alta/orientação
Figura 1. Síntese dos fluxos de atenção e vigilância de casos suspeitos para COVID-19 nos três casos analisados, janeiro 2020 a
agosto 2021.
USF: Unidade de Saúde da Família; UBS: Unidades Básicas de Saúde; UPA: Unidade de Pronto Atendimento; SAMU: Serviço de Atendimento Móvel
de Urgência; ILP: Instituições de Longa Permanência; ADE: acolhimento à demanda espontânea de casos suspeitos; MID: monitoramento remoto do
isolamento domiciliar; ACOM: abordagem comunitária e comunicação social; VGEP: vigilância, gestão e educação permanente.
Fonte: Autores.
As ações de vigilância da COVID-19, a cargo dos to dos casos de COVID-19, prevenção contra o
profissionais das equipes, ficaram restritas à no- contágio e sobre as vacinas. Priorizou-se a utili-
tificação e ao monitoramento dos casos leves que zação de estratégias de difusão rápida, tais como
buscavam atendimento nas UBS/USF e à realiza- cards virtuais para divulgação em grupos criados
ção de testes. na rede social WhatsApp, além da realização de
palestras via web.
Município 2 (M2) Outro aspecto restritivo foi o incipiente ar-
cabouço normativo para ordenar as ações de en-
A organização das ações em resposta à pan- frentamento da pandemia. Resumiu-se ao Plano
demia de COVID-19 foi protagonizada pela es- Municipal de Contingência, único documento
trutura municipal de vigilância epidemiológica localizado em domínio público. Embora tenha
(VIEP), inicialmente com dificuldade de arti- sido exposto por gestores que adotaram protoco-
culação com os demais setores, destacando-se a los para o enfrentamento da pandemia pautados
pouca participação da APS. em recomendações do Ministério da Saúde e da
Não há registro de investimento municipal Secretaria Estadual de Saúde, esses documentos
na ampliação da cobertura populacional da ESF não foram localizados na página oficial da SMS
nem houve reposição de profissionais em equipes nem disponibilizados para os pesquisadores.
que apresentavam déficit de trabalhadores, desta- Sobre o processo de trabalho, o plano reco-
cando-se a insuficiência de ACS, segundo relatos mendava que todos os profissionais da ESF/SB e
dos entrevistados. NASF-AB realizassem monitoramento clínico de
Houve capacitações relacionadas a manejo pacientes em isolamento domiciliar a cada 48h e
clínico, fluxos de atendimento, monitoramen- avaliação do estado geral dos casos.
1334
Prado NMBL et al.
A organização dos fluxos de atendimento esse profissional nos domicílios pelo receio de
aos casos de COVID-19 previstos no plano de contaminação. Tal cenário fragilizou as ações de
contingência apontam, como uma das portas de comunicação em saúde e prevenção comunitária,
entrada no sistema de saúde, o serviço de tele- restringindo-se a informações veiculadas nas sa-
monitoramento, conforme fluxograma resumido las de espera dos serviços direcionadas aos usuá-
da atenção para casos suspeitos, a regulação dos rios que buscavam atendimento.
considerados em maior gravidade para serviços A logística de coleta de teste PCR estava pre-
emergenciais ou hospitalares, seguindo defi- vista para ser coordenada e realizada pela equipe
nições pactuadas com a Secretaria Estadual de da VIEP em unidades de coletas (fixas ou volan-
Saúde no Plano de Contingência Estadual, mas tes). Nas unidades eram disponibilizados apenas
não explicitou os critérios para articulação da os testes rápidos, e em outros pontos específicos o
APS com os demais pontos da rede de atenção. exame de PCR para COVID-19, mediante enca-
As equipes de APS, no primeiro momento, rea- minhamento. Havia um fluxo diferenciado para
lizavam apenas a triagem dos casos que procu- a realização de testes PCR em ILPIs. Somente
ravam as USF presencialmente e encaminhavam no segundo semestre de 2020, gestores e profis-
os leves e moderados para as policlínicas para sionais entrevistados explicitaram que o exame
realização do diagnóstico clínico. Em seguida, de PCR passou a ser referenciado também para
assumiu o monitoramento clínico dos casos leves as USF/UBS, assim como a notificação dos casos
referenciados pelas policlínicas, predominante- atendidos.
mente por via remota, por enfermeiros, dentistas
e profissionais do NASF-AB. Município 3 (M3)
A triagem dos usuários suspeitos, o moni-
toramento clínico e o rastreamento de contatos Em M3, embora os documentos normativos
eram feitos pela equipe de vigilância municipal, e alguns gestores expressassem a perspectiva de
mediante linha telefônica exclusiva com serviço articulação entre os setores de APS e vigilância
de telemonitoramento dos sinais e sintomas. Pos- em saúde, os profissionais indicaram um proces-
teriormente, quando o número de casos superou so de gestão desarticulada e com evidentes difi-
a capacidade da vigilância municipal, as equipes culdades para a coordenação integrada da crise
das UBS/USF passaram a realizar o acolhimento sanitária. As ações para resposta e enfrentamento
dos usuários de suas áreas de abrangência, indi- da pandemia foram capitaneadas pela Vigilância
cados pela vigilância municipal, conforme lista à Saúde, com baixo protagonismo da APS.
de suspeitos triados pelo serviço de telemonito- Diante da incipiente capacidade técnica da
ramento e nos peri-domicílios, por ACS. Uma gestão municipal da saúde, foi contratado um
restrição importante ao trabalho das equipes foi a consultor externo para apoiar a organização dos
incipiente conectividade para o desenvolvimento fluxos organizacionais, assistenciais e monitorar
de ações remotas. Alguns médicos da APS ade- a situação epidemiológica local. As principais re-
riram ao protocolo de uso precoce do tratamento ferências técnicas foram recomendações do Cen-
para a doença, mesmo sem evidências científicas ters for Disease Control and Prevention (CDC),
comprovadas dos Estados Unidos, e normativas publicadas
O atendimento de casos suspeitos de CO- pelo Ministério da Saúde, com consideração ao
VID-19 requereu mudanças no trabalho das apoio técnico da Secretaria Estadual de Saúde.
UBS, destacando-se a redução do atendimento Mas o processo de tomada de decisão foi sus-
ou a desativação de atividades rotineiras para tentado pela retórica de que o enfrentamento da
possibilitar a criação temporária de um setor pandemia deveria ser direcionado para os grupos
exclusivo para sintomáticos respiratórios. Além de risco e pela defesa de medicamentos sem com-
disso, foi ressaltado que foram feitos arranjos in- provação de eficácia científica para a COVID-19.
ternos de realocação de salas destinadas a outras Uma das primeiras medidas para enfrenta-
atividades e improvisação de divisórias. mento foi a abertura de uma unidade especiali-
Segundo relatos dos profissionais, os ACS zada em tratamento de COVID-19 e a organiza-
fizeram visitas peri-domiciliares para acompa- ção de um serviço central de telemonitoramento
nhamento dos usuários em isolamento, em busca denominado call center, localizado no prédio da
de sinais de gravidade e de familiares sintomáti- SMS, para realizar telerrastreio, telemonitora-
cos para comunicação à equipe. Destacaram-se mento e notificação de pacientes suspeitos, sem
como obstáculos a ausência de ACS em alguns priorizar, no primeiro ano, a participação da APS.
territórios e a recusa da população em receber Para tanto, conforme gestor entrevistado, foram
1335
preparação e gestão da resposta sanitária com para controlar e mitigar a propagação da doença
produção de um arcabouço normativo e concep- em todo o mundo. No entanto, sua implemen-
ção bem definida sobre a integração das ações tação tem se mostrado desafiadora, pois requer
de APS e vigilância, com vistas à organização coordenação interorganizacional entre vários
do processo de trabalho das equipes de atenção atores. Na América Latina32,33, merece destaque a
primária, assim como esforços na ampliação da implementação de estratégias de coordenação in-
cobertura da APS e implementação de estraté- terorganizacional para a vigilância da COVID-19
gias para ampliação da resolutividade da atenção na Colômbia, em particular as cidades de Bogotá,
aos casos de COVID-19. Entretanto, evidências Cali e Cartagena.
apontaram que essas estratégias não foram sufi- A abordagem cubana de rastreamento ma-
cientes para uma mudança nas práticas de saúde. nual massivo de contatos foi coordenada pelo
Teoricamente, o que se esperava enquanto amplo sistema de saúde primário, que viabilizou
resposta abrangente à pandemia era um modelo uma vigilância “porta-a-porta”, facilitada por
de APS que incorporasse as ações de vigilância condições preexistentes, como o sistema de saúde
em saúde e vice-versa. Entretanto, nos municí- primário amplo e bem organizado e a alta taxa de
pios estudados, apenas M1 se aproximou do refe- médicos por milhões de habitantes, possibilitan-
rido modelo no plano ideológico/normativo. Nos do uma exitosa resposta cubana34.
demais municípios, observou-se uma vigilância Nesse sentido, é importante refletir sobre a
passiva, com ações de vigilância epidemiológica viabilidade dos processos integrados de saúde
reativa “por demanda”; da estrutura central da nos territórios. Existem diferentes perspectivas
vigilância e/ou dos usuários sintomáticos que sobre os principais fatores que influenciam os
buscavam as unidades por iniciativa própria; arranjos de coordenação entre as instituições.
controle de danos, com processos de trabalho Uma diz respeito aos desafios estruturais ou im-
divergentes e individualizados. A base territorial pedimentos à coordenação de diferentes institui-
foi utilizada para compor as listas de usuários ções dentro dos sistemas de saúde, o que inclui
identificados pela vigilância municipal a serem coordenar programas de vigilância coletiva (por
acompanhados pelas UBS, mas não houve ações exemplo, estratégias comunitárias) com inter-
sistemáticas de “vigilância ativa” para identifica- venções individuais (por exemplo, tratamento
ção de sintomáticos respiratórios nos domicílios. clínico) e priorizar as necessidades da popula-
Chama atenção a contradição demonstrada ção35.
pelos sujeitos a partir da ênfase dada a mecanis- Ao analisar o modelo da vigilância em saúde
mos institucionais insuficientes para romper com adotado como eixo orientador da concepção da
a lógica dos modelos de atenção hegemônicos, gestão, desvela-se um desafio persistente quanto
caracterizados pela fragmentação do processo de à reorganização dos processos de trabalho das
trabalho em saúde. equipes, apontado como principal dificultador
Adequar as ações emergenciais em um mo- à existência de lógicas próprias entre as ações
delo de atenção à saúde que prioriza a APS, de desenvolvidas tradicionalmente nas vigilâncias.
base territorial e comunitária no Brasil, exigiu Evidências apontam que os papéis organizacio-
esforços adicionais dos estados e municípios bra- nais em resposta à COVID-19 foram mal defini-
sileiros30. Experiências exitosas no enfrentamen- dos, inicialmente, devido à falta de comunicação
to da pandemia congregaram um misto de ações entre a diversidade de atores dentro do sistema
de vigilância de base comunitária e reforçaram a de saúde36.
necessidade de medidas para fortalecer a posição Tais questões revelam a necessidade de maior
central da APS na rede, bem como sua legitimi- colaboração em resposta a crises imediatas ou
dade profissional e social ante a crise sanitária desafios em longo prazo. Assim, para plane-
mundial. Em países onde os sistemas univer- jar novas estratégias de vigilância com base no
sais de saúde com atenção primária abrangente, trabalho coordenado, é fundamental entender
como nas nações escandinavas, Nova Zelândia, a influência e a interação entre mecanismos de
Austrália, Canadá, Japão e Coréia do Sul, obteve- coordenação interorganizacional em contextos
se maior êxito no controle da pandemia. Assim específicos. Por outro lado, cabe pontuar que
como países como Vietnã, Cuba, Sri Lanka e Tai- diretrizes políticas e técnicas e condições estru-
lândia, conhecidos por sistemas de saúde relati- turais são fundamentais para a reorganização do
vamente mais universais31. trabalho entre os setores, de modo a fomentar
A introdução de vigilância abrangente é reco- arranjos permanentes que promovam condições
mendada como medida urgente de saúde pública e incentivem a colaboração intersetorial37. Con-
1337
Colaboradores
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