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(Charlotte Lamb) Retrato de Amor
(Charlotte Lamb) Retrato de Amor
Dreaming
Charlotte Lamb
Luisa estava disposta a esperar o tempo que fosse preciso para fazer esse
homem amá-la perdidamente!
"Não minta para mim", Zachary gritou. "Sei o que vejo no espelho! Nenhuma
mulher vai desmaiar ao me ver, exceto de susto, como aconteceu com você!" Zachary
West estava furioso e amargo. Aquele acidente automobilístico, além das cicatrizes na
face, deixara marcas profundas em seu coração. Luisa, porém, sabia que só o tempo
curaria todas as feridas. Enquanto isso, guardaria seu amor por Zachary fechado no
peito. Tudo teria seu tempo certo. E o tempo de amar e ser amada em breve faria
parte do presente.
Digitalização: Tinna
Revisão: Carola
Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb
Originalmente publicado em 1993 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra
Esta edição é publicada através de contrato com a Mills & Boon Ltd. Esta edição
é publicada por acordo com a Mills & Boon Ltd.
Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas
vivas ou mortas terá sido mera coincidência.
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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb
Capítulo I
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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb
O chalé onde morava havia sido construído no tempo da Rainha Anne por um
capitão aposentado, um homem solitário que gostava de fingir que ainda estava no mar.
A casa situava-se no alto de uma colina, suspensa sobre o litoral quase selvagem de
Suffolk, e durante um temporal, o rangido das tábuas dava a impressão de se estar
realmente num barco, enfrentando a fúria da natureza. O cenário permanecia
inalterado há três séculos e meio, um lugar isolado e selvagem, com o mar estendendo-
se à frente da casa cercada por campos verdes.
O vilarejo, Tareton, ficava a dois quilômetros de distância, e a cidade mais
próxima, Whinbury, separava-se dele por uma viagem de vinte minutos de carro. O
isolamento atraíra Zachary para aquele lugar. Ali podia trabalhar em paz, sem
interrupções ou distrações. Quando precisava de alguma coisa, ia ao pequeno centro
comercial do vilarejo, e quando tinha de comprar telas e tintas, dirigia até Whinbury,
de onde pegava a estrada principal para Londres, como faria naquela tarde.
A luz desaparecia aos poucos e Zachary finalmente trancou a porta da casa,
lançando um olhar preocupado para o céu cinzento. Ainda era cedo para o crepúsculo, o
que significava que as nuvens estavam carregadas, não gostava de dirigir sob chuva
forte, especialmente à noite, mas, com um pouco de sorte, alcançaria seu destino por
volta das sete horas, e antes do temporal.
Enquanto dirigia, pensava na exposição e em toda a confusão que normalmente a
precedia e que Leo tanto apreciava. Ele adorava as entrevistas coletivas, as festas
oferecidas por membros da alta sociedade, os críticos de arte com suas revistas e os
visitantes ilustres, mas Zachary odiava tudo isso.
Na verdade, estava odiando a experiência, e arrependia-se por ter deixado Leo
convencê-lo. Não era sua primeira exposição, mas passara anos recusando os convites
de galerias justamente por ter odiado as duas experiências anteriores, e porque não
precisava conquistar compradores. Não era um pintor de retratos em busca de rostos
ricos ou famosos. Pintava paisagens, e as vendia com facilidade porque as pessoas
podiam interpretá-las sem pedir explicações. Leo pensava que...
Nesse instante, Zachary teve a impressão de ver um vulto branco e virou a
cabeça num gesto instintivo.
— Que diabo é isso?
Zac estreitou os olhos, tentando enxergar com mais nitidez, mas foi inútil.
Talvez fosse um pedaço de papel carregado pelo vento, ou um pássaro branco...
Intrigado, pisou no breque e diminuiu a velocidade do furgão, os olhos fixos no
estranho objeto do outro lado da estrada, sobre uma elevação do terreno. Não era um
pedaço de papel, nem um pássaro... Afinal, o que podia ser aquilo?
Não acreditava em fantasmas, e irritava-se com coisas que não conseguia
explicar racionalmente. Era um artista, e sabia que peças os olhos podem pregar em
conjunto com o cérebro, criando imagens irreais e até assustadoras. Tinha de haver
uma explicação para o que via, mas... Qual?
O furgão estava quase parando quando vislumbrou uma cerca à distância, perto
da junção com a rodovia de três pistas que alcançaria em breve. A cerca protegia um
grande jardim e, apesar da névoa e da penumbra, era possível distinguir a casa ampla e
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Luisa riu. A confissão não era nenhuma novidade. Sabia o quanto David ficava
irritado quando algum superior insistia em acompanhar seu trabalho, dando palpites e
fazendo críticas. Para ela, receber ordens era uma rotina com a qual se acostumara
desde o treinamento, e que não a incomodava. David bocejou e disse:
— Estou indo embora, mas estarei em casa, dormindo. Se precisar de mim, pode
telefonar.
— Pobre David! Deve estar exausto! Espero não ter de acordá-lo. Boa noite, e
durma bem.
David despediu-se e Luisa desligou o telefone, deixando o escritório em seguida.
A enfermaria estava silenciosa, as cortinas haviam sido baixadas em torno de algumas
camas e uma das enfermeiras mantinha-se ao lado de um paciente que ainda não havia
superado a fase de risco. Alguns leitos estavam vazios, cobertos por capas plásticas e
exalando o cheiro forte do desinfetante usado para limpar todas as dependências. Em
outros, os pacientes permaneciam quietos como múmias, os lençóis erguidos sobre
travas de metal para não tocarem em seus corpos.
Tinham medo de fazer qualquer movimento, e por isso permaneciam quietos,
aprisionados pela dor. Apenas o movimento dos olhos indicava que estavam vivos... e
sofrendo. Luisa caminhou por entre as camas com passos silenciosos e lentos,
sussurrando palavras reconfortantes para os que estavam acordados e observando os
que dormiam.
Gostava do trabalho noturno. Havia um sentimento especial na enfermaria
durante aquelas longas horas, quando o resto do mundo dormia. Era possível
aproximar-se mais dos pacientes do que durante o dia, quando estavam prevenidos e
podiam esconder melhor seus medos e ansiedades. Durante a noite, precisavam de
mais conforto e assistência para sentirem que não estavam sozinhos em sua dor.
Tomara-se uma enfermeira porque queria um trabalho que fosse mais que um
simples meio de ganhar dinheiro, e ajudar pessoas doentes a vencer as longas horas
escuras a fazia pensar que estava realizando algo importante.
— Acabei de voltar da cantina — uma voz suave anunciou às suas costas. — Torta
de peixe novamente, e havia mais batata e molho no recheio do que qualquer outra
coisa.
— Por favor, enfermeira Carter! — Luisa sorriu. — Está me fazendo sentir
enjôos.
— Posso dispensar as outras para o lanche, ou vai precisar delas?
— Pode dispensá-las. E depois aplique a injeção do Sr. Graham, está bem?
Minutos depois Luisa ouviu os passos silenciosos das duas enfermeiras dirigindo-
se à cantina. No escritório, preparou a costumeira xícara de chá de jasmim, um líquido
aromático que a acalmava e a ajudava a suportar os longos plantões. Jamais comia
utilizava-se da cantina do hospital, porque a comida era muito pesada e a deixava
sonolenta. Tentara reclamar com a nutricionista, mas fora inútil, porque o restaurante
dos funcionários tinha um orçamento apertado, e as cozinheiras recebiam ordens para
praticar a culinária alternativa. A base dos pratos era sempre a mesma: pão, massas e
batatas. Luisa preferia alimentar-se com frutas e iogurte, e deixava para fazer a
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Zachary West estava preso num círculo de fogo. As chamas cresciam, e os vidros
estilhaçados o atingiam no rosto. O calor era insuportável, e não conseguia abrir os
olhos.
— Estou cego! —gritava em seu sonho. Mas ninguém o escutava.
Algumas vezes ela estava lá, flutuando a seu lado, leve como uma ave e pálida
como um fantasma. Uma presença silenciosa que o acalmava e aplacava suas dores.
Chamou-a de dentro do círculo de fogo, e viu que ela virava-se lentamente no ar para
olhar em sua direção. Cabelos longos e negros, um rosto gentil e olhos azuis, cheios de
bondade e compaixão. A dor diminuía e Zachary estendia a mão para tocá-la.
Mas então ela desaparecia, e o pesadelo o envolvia novamente.
Em uma das vezes conseguira abrir os olhos e gritar, mas não a encontrara. Havia
visto apenas rostos estranhos, cercados por uma luz amarela que o deixava tonto e
confuso.
Quem seriam? O que acontecera com a menina de branco?
Tentava perguntar, mas não conseguia articular as palavras.
Uma delas inclinara-se em sua direção e havia dito alguma coisa que ele não
pudera ouvir. Tinha um rosto calmo e pálido, e parecia ser uma enfermeira. Zachary
sentira uma antipatia imediata.
— Onde estou? O que aconteceu? — balbuciara, percebendo que a voz morria na
garganta. Com esforço, conseguira perguntar: — O que fez comigo?
Vira os lábios dela moverem-se, mas não conseguira escutar o que dizia. Só queria
que saísse dali e, apesar da dor, conseguira manifestar sua vontade.
A mulher erguera o corpo, dissera alguma coisa à outra jovem e em seguida ele
havia sentido uma pontada de dor em alguma parte do corpo. Que diabos era aquilo?
Mas elas haviam sumido novamente, e ele voltara para o centro do círculo de fogo.
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Queria gritar e não podia, porque a dor o dominava. Queria ver através das
chamas, do lado de fora, e de repente a viu flutuando em sua direção, sorrindo, e seus
temores desapareceram. Um anjo! A menina de branco era um anjo! Como não
percebera antes? Estava morto, e um anjo vinha buscar sua alma.
No final do plantão, Luisa foi até a enfermaria doze. Os pacientes já haviam
tomado o café da manhã e estavam lendo os jornais, ou conversando, enquanto os
funcionários começavam a rotina diária.
Seguindo as normas da cortesia, foi ao escritório da enfermeira chefe para
cumprimentá-la antes de atravessar o corredor de camas.
Beth Dawlish já havia partido há meia hora, substituída por uma colega que Luisa
só conhecia de vista.
— Sim, Dawlish me disse que você viria — informou a enfermeira Jacobs. — Fique
a vontade. Li os relatórios do plantão noturno, e parece que ele será liberado ainda
hoje, no final da tarde. Podia ter sido pior. Como vai o outro, aquele que receberam na
sua enfermaria? Ouvi dizer que sofreu lesões muito sérias. O carro pegou fogo? Não
sei como consegue trabalhar naquele lugar. Deve ter nervos de aço!
— Estou acostumada. Nosso paciente passou a noite sob o efeito de sedativos, e
está reagindo conforme o esperado.
— Melhor assim. Esse homem vai ter de ser muito corajoso para enfrentar todas
as conseqüências.
— É verdade. Bem, vou deixá-la trabalhar em paz.
Firme, Luisa dirigiu-se à última camada enfermaria. O paciente estava sentado,
recostado nos travesseiros e olhando para o nada, o rosto pálido marcado por
profundas olheiras. Ele virou-se ao ouvir o som de passos e, ao vê-la, estendeu a mão.
— Luisa! Ele... ele...?
— Está vivo — ela respondeu em voz baixa. — Não precisa ficar preocupado,
porque ele vai sobreviver, papai.
Capítulo II
Luisa dormiu apenas seis horas e teve um sono agitado. Ainda não conseguira
habituar-se com a inversão de horários. Levantou-se no meio da tarde, comeu uma
maçã e tomou uma xícara de chá, e concluiu que ficaria mais disposta se fizesse um
pouco de exercício ao ar livre. Morava num pequeno apartamento de dois dormitórios
perto do hospital e do centro comercial, cujas calçadas largas abrigavam cafés e
bares com vista para o parque.
O dia estava ensolarado, e muitas pessoas caminhavam pelas ruas. Luisa fez
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perguntou:
— Algum problema? Você não parece nada bem.
Mary era uma mulher casada, com dois filhos adultos, e trabalhava no hospital há
mais de quinze anos. Doce e carinhosa, havia sido uma grande amiga durante o período
de treinamento, quando Luisa ainda assustava-se com as coisas que via naquela
enfermaria.
— Eu estou bem — mentiu, tentando sorrir e convencê-la. Por mais agradável que
fosse, Mary jamais conseguira conquistar sua confiança. — É só uma dor de cabeça...
— Tem dormido o suficiente? Sabe como é importante dormir algumas horas a
mais quando se está no plantão noturno, não é?
— Eu tenho dormido bem, não se preocupe. Como foi o dia? Alguma ocorrência
importante?
Mary fitou-a como se quisesse insistir no assunto, mas em seguida reuniu os
relatórios e deu todas as informações sobre os pacientes, até chegar em Zachary
West.
— Ele será liberado em pouco tempo — disse.
— Liberado? Como? — Luisa espantou-se.
— Na verdade, ele será transferido para um hospital de Londres, onde receberá
tratamento especializado. Parece que temos uma celebridade ocupando um de nossos
leitos. Passei o dia todo atendendo telefonemas de jornalistas em busca de
informações. Acredita que um deles queria vir até aqui para fotografá-lo?
— Mas... Por que vão transferi-lo?
— Parece que seu empresário não considera nosso hospital bom o bastante para o
astro, e quer levá-lo para um centro de cirurgia plástica e re-implante de pele, em
Londres. Queriam levá-lo hoje, mas o doutor Hallow não autorizou a remoção. Disse
que só permitirá a transferência quando o Sr. West puder suportar a viagem sem
correr riscos.
— Uma viagem até Londres! Que absurdo! Não sabem como esse tipo de lesão é
dolorida? Imagine o sofrimento desse homem.
Zachary estava sendo alimentado através de sondas intravenosas, e recebia
medicação constante para superar os primeiros dias, quando a dor era insuportável.
Luisa aproximou-se da cama do paciente e olhou para a máscara inflexível que ele
mostraria ao mundo por vários meses, até que pudesse enfrentar uma cirurgia
plástica. A foto que havia visto no jornal mostrava um homem atraente, e era terrível
vê-lo naquelas condições.
Conforme Mary havia dito, felizmente era forte, ou jamais teria sobrevivido ao
acidente, e nem estaria mostrando os primeiros sinais de recuperação.
Era possível perceber o quanto sua estrutura física era saudável, com músculos
típicos de alguém habituado a exercícios físicos ou trabalho constante. A metade
inferior do corpo escapara ao incêndio, e as pernas eram bronzeadas e bem torneadas.
De repente ele ergueu as pálpebras e Luisa descobriu-se fitando os olhos
cinzentos dominados quase que totalmente pelas pupilas, um sinal claro da ação das
drogas que recebia para suportar a dor.
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David riu:
— Foi um procedimento necessário para que suportasse os primeiros dias.
Tínhamos de evitar movimentos excessivos e combater as possibilidades de um
choque, mas agora começaremos a diminuir as doses. Não queremos que se acostume
com a tranqüilidade da inconsciência...
O médico riu novamente, mas Zac respondeu com ar sombrio:
— Não existe a menor possibilidade de isso acontecer. Odeio perder o controle.
— É claro. Bem, estou feliz por ver que está se recuperando depressa. Virei vê-lo
novamente amanhã, um pouco mais cedo. Afinal, amanhã é sábado. Cruze os dedos para
que eu tenha um final de semana sossegado — brincou.
Desta vez os olhos de Zachary brilharam com um toque de humor:
— Sinto muito, doutor, mas não estou em condições.
— Tem razão — David respondeu encabulado.
O paciente sofrerá queimaduras graves nas mãos, e a dor ainda devia incomodá-lo
intensamente.
Naquela noite, conversando com Luisa. David comentou:
— Tenho um profundo respeito por aquele homem. Já vi pessoas com queimaduras
que não representavam nem a metade das dele fazendo escândalos impressionantes.
Zachary West é tão corajoso, que conseguiu até fazer piadas esta manhã. Eu não teria
tanta força. Tenho horror de sofrer esse tipo de lesão! Acho que por isso decidi me
especializar em cirurgia de pele. Meu pai sofreu queimaduras horríveis numa explosão
na indústria química onde trabalhava, e eu nunca esqueci de quando fui visitá-lo, uma
semana mais tarde. Eu tinha apenas dez anos de idade, e passei meses tendo
pesadelos. Sonhava que era eu quem estava naquela cama.
— Meu Deus! Deve ter sido uma experiência traumática, especialmente para uma
criança.
— Felizmente já passou. Bem, vou para casa. Tive um dia terrível no centro
cirúrgico, e preciso dormir um pouco. Vemos-nos amanhã. Animada para o baile?
— Muito! Não danço há anos, e é uma das coisas que mais gosto de fazer. Vou até
comprar um vestido novo!
— Para sair comigo? Quanta honra! — David riu, acentuando as linhas de cansaço
em torno dos olhos e da boca.
No dia seguinte, Luisa só conseguiu sair para fazer suas compras no final da
tarde, mas havia apenas uma loja de roupas finas em Whinbury, e não precisava de
muito tempo para analisar as possibilidades. Encontrou um vestido de seda azul de
cintura baixa, com as costas em renda e saia longa, que adquiria mais volume graças
aos três saiotes de renda que a sustentavam.
— Os clássicos sempre agradam — comentou a vendedora. — E seu corte de
cabelo combina com o ar vitoriano criado pelo estilista. Naquela época os cabelos eram
cacheados, mas acho que só as garotas usavam esse tipo de penteado. Na sua idade...
Luisa riu. A vendedora devia ter dezoito ou vinte anos e, para ela, uma mulher de
vinte e sete era uma velha. De repente, teve a sensação de ter envelhecido sem notar.
Vinte e sete anos não eram exatamente uma vida... Por que não podia usar os cabelos
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acontecendo?
Luisa o observava em silêncio, torcendo as mãos num gesto ansioso. Se David
tivesse de voltar ao centro cirúrgico, não poderiam ir ao baile.
Finalmente ele desligou e repetiu:
— Eu disse que não devia atender.
— Não sabia que estava na escala das chamadas de emergência.
— Não estou, mas um dos meus pacientes está aguardando uma cirurgia há três
dias, porque não está em condições de suportar os riscos da operação. A enfermeira
disse que ele está estável há vinte e quatro horas, mas o doutor Dawkins não quer
decidir sozinho. Ele pediu que eu fosse até lá para dar uma olhada no paciente.
— Ele vai tentar convencê-lo a fazer a cirurgia.
— Com certeza. Dawkins morre de medo de correr riscos.
— Isso significa que não iremos ao baile?
— É claro que não! Ele vai tentar me convencer, mas eu não disse que vou
concordar. Vamos passar pelo hospital a caminho do baile, e eu vou examinar o
paciente. Se ele estiver em condições de enfrentar a cirurgia, Dawkins terá de
assumir o comando. Afinal, o plantão é dele!
— Por que não esperam até amanhã para operá-lo?
— Porque não sei se ele pode esperar mais tempo. Vamos ver...
Quando chegaram ao hospital, David perguntou:
— Quer esperar no carro?
— Oh, não. Você pode demorar séculos! Vou tomar um café com a enfermeira
Jenkins.
— E mostrar o vestido novo...
— Também — ela riu.
Separaram-se no saguão do prédio, e Luisa dirigiu-se à unidade dos queimados.
Helen Jenkins estava supervisionando a enfermeira que distribuía a medicação
noturna, e Luisa aproximou-se das duas com passos silenciosos.
Ao vê-la, Helen espantou-se:
— O que houve? Não consegue ficar longe do trabalho? Rindo, Luisa explicou:
— David teve de vir examinar um paciente, e eu decidi tomar um café com você
enquanto espero.
— Sirva-se. Estarei no escritório em um minuto.
— Que vestindo lindo, Luisa — disse a mais jovem.
— Obrigada — ela sorriu. — É a primeira vez que o uso.
— Combina com você — a garota afirmou, erguendo os olhos para os cabelos
cacheados.
Helen também estava observando a aparência da colega:
— Nunca vi você usar os cabelos desse jeito — comentou.
— E nunca mais verá.
— Mas ficou ótimo! — a jovem exclamou.
— Eu também gostei — Helen concordou. — É diferente.
— Obrigada.
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Luisa ficou vermelha, e todas riram. Era irritante! Por que tinha de ruborizar
como uma adolescente? David podia achar gracioso e feminino, mas era um tipo de
charme que ela preferia não ter.
O baile foi encerrado à uma e meia, e David levou-a de volta ao hospital.
— Divertiu-se? — ele perguntou no estacionamento, depois de desligar o motor.
— Foi maravilhoso! Mas gostaria de não ter de trabalhar... Depois de apreciar o
jantar delicioso e o champanhe, rir e conversar com os amigos e dançar várias músicas,
não tinha a menor disposição para vestir o uniforme e enfrentar um plantão de seis
horas.
— Eu também — ele respondeu. — Se tivesse o resto da noite livre, poderíamos
aproveitar para fazer alguma coisa...
Foi o suficiente para que ela ficasse vermelha como um tomate. Sorrindo, o
doutor Hallow acariciou seu rosto e murmurou:
— Você é tão encantadora!
David inclinou-se para beijá-la e Luisa fechou os olhos. Por alguma razão, não
conseguia entregar-se ao beijo como gostaria, e seu corpo insistia em afastar-se como
se tivesse vontade própria.
Depois de alguns segundos, ele fitou-a nos olhos e perguntou:
— Escolhi o momento errado, não é?
— Desculpe, David, mas acho que não estou com a melhor das disposições. Deve
ser porque tenho de assumir o plantão e...
— Não precisa dar explicações. Teremos outras oportunidades, não? E agora,
trate de correr, ou vai se atrasar. Boa noite.
Luisa vestiu o uniforme, despediu-se de Helen Jenkins e foi dar uma olhada em
Zachary West.
Estava dormindo, e ela aproveitou para observá-lo, tentando compreender a
estranha compulsão que a dominara durante toda a noite. Queria vê-lo, e não havia
conseguido esquecê-lo nem por um minuto. O corpo estivera ao lado de David, mas a
cabeça não havia saído daquela enfermaria, invadida pelo homem hostil e agressivo por
quem sentia coisas tão estranhas.
Depois de alguns momentos, percorreu o restante da enfermaria e certificou-se
de que todos os pacientes dormiam tranqüilos. Voltou para o escritório e tentou
concentrar-se no trabalho burocrático, mas deixara a porta aberta e, a cada instante,
seus olhos buscavam o leito de Zachary West. Seriam às seis horas mais longas de sua
vida...
Zachary West permaneceu na enfermaria por mais uma semana, e mostrava sinais
de recuperação a cada dia. Só esperava que David Hallow o liberasse para a viagem a
Londres, onde seria tratado pelos maiores especialistas da área. Luisa também
esperava a liberação com ansiedade, pois sabia que tudo voltaria ao normal quando
Zachary partisse.
Era estranho... Queria que ele fosse embora, mas era invadida por um sentimento
estranho cada vez que David Hallow surgia para examiná-lo.
Doze dias após o acidente, Luisa entrou na enfermaria no início do plantão e
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Capítulo III
Meses se passaram antes que Luisa ouvisse falar Zachary West novamente.
Pensava nele de tempos em tempos, sempre quando menos esperava, como se invadisse
sua cabeça quando estava distraída com outras coisas.
Cada vez que isso acontecia, era como se levasse um choque. Seus nervos ficavam
tensos, e a garganta contraía-se subitamente.
Podia até compreender tais reações se estivesse apaixonada pelo homem, mas
nem gostava dele! Não havia sido um paciente fácil, e instintivamente, sabia que ele
era frio, duro e indiferente, mesmo quando perfeitamente saudável. A foto que vira no
jornal fora o bastante para compreender um pouco sobre sua personalidade. Não era
um homem de quem se podia gostar com facilidade, e o artigo comprovara suas
impressões.
Não sabia por que era tão difícil esquecê-lo, e isso a irritava.
Seu pai jamais o mencionara, como também não falava sobre o acidente. O caso
ainda não fora para os tribunais e, até que fosse intimado a depor, Harry Gilbey
preferia esquecer toda aquela história. Luisa podia compreender, porque queria a
mesma coisa. E por que não conseguia?
Saía com David sempre que estava de folga, o que significava muito pouco. Agora
podia entender porque ele não se casara. Como, se nunca tinha tempo para nada?
Dedicava-se totalmente ao trabalho, falava sobre ele quando não estava no hospital, e
agia com absoluta concentração durante as horas de plantão.
Mas isso não a incomodava. A relação calma e afetiva era satisfatória, tanto para
ela quanto para David. Nunca sonhara com uma paixão selvagem e avassaladora, e o
bom senso do doutor Hallow era justamente o que buscava num homem.
O que tornava a situação ainda mais estranha. Por que não conseguia esquecer
Zachary? Não era o tipo de homem calmo e sensato que preferia ter a seu lado.
Era puro instinto, como o vento e os trovões. Impossível prever ou controlar.
Luisa sempre tivera pavor de tempestades, e odiava o som do vento forte. E Zachary
West a perturbava e assustava da mesma forma.
Um pouco antes do Natal, Luisa recebeu um telefonema do pai em sua casa. Eram
pouco mais de três horas, e havia acabado de sair da cama.
— Acordei você, querida?
— Não, papai, eu já estava acordada.
— Vai trabalhar esta noite, ou podemos jantar juntos? Queria conversar sobre o
Natal. Já tem planos?
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— Vou trabalhar no dia de Natal, mas terei dois dias de folga depois dele.
Não tocara no assunto com o pai, porque suspeitava que Noelle não a quisesse por
perto, e preferia não embaraçá-lo forçando-o a dizer a verdade.
— Podemos nos encontrar para conversar?
— Seria maravilhoso, papai. Esta noite estou de folga.
— Ótimo! Quer jantar no Cherry Tree?
— Eu adoraria. — Era o mais novo restaurante de Whinbury, e estiva lá uma ou
duas vezes com David. — O Cherry Tree fica perto daqui, e podemos nos encontrar lá.
— Perfeito. Seremos só nós dois.
Luisa sorriu. Harry estava dizendo que Noelle não os acompanharia, o que não era
nada surpreendente. Sabia que a madrasta evitava sua companhia sempre que possível,
e sentia o mesmo por ela. Mesmo assim, preferiu não demonstrar o alívio que
experimentava.
— À que horas nos encontramos? — perguntou.
— Às sete e meia.
— Estarei lá.
Mais tarde, Luisa escolheu o vestido que o pai mais gostava, um traje azul e
simples de mangas compridas, gola alta e corte reto, que realçava seus olhos e
favorecia as formas harmoniosas.
Quando chegou, Harry já a esperava na porta. Era um homem alto e elegante,
apesar dos cinqüenta anos e dos cabelos grisalhos. Praticava esportes diariamente,
incluindo tênis e natação, e por isso mantinha a forma física.
As roupas também eram próprias para um homem mais jovem, acompanhando as
últimas tendências da moda, e qualquer pessoa poderia enganar-se a respeito de sua
idade, se não o observasse com muita atenção.
Fitando-o, Luisa sentiu uma onda de tristeza. Por que ele dava tanta importância
à juventude? Era seu pai e o amava intensamente, e era terrível vê-lo travando uma
batalha perdida contra uma entidade invencível.
— Você está linda, querida.
— Obrigada, papai. Você também está ótimo.
Não era verdade. O rosto alegre começava a mostrar sinais de cansaço e
preocupação e, desde o acidente, Harry Gilbey passara a aparentar sua verdadeira
idade.
— Quer ir para a mesa, ou prefere tomar um drinque primeiro? — ele perguntou.
— Vamos beber alguma coisa — Luisa respondeu, esperando distraí-lo de suas
preocupações. Parecia muito tenso, e estava começando a suspeitar que algo mais havia
acontecido.
Harry pediu um uísque e Luisa preferiu vinho branco. O garçom trouxe o
cardápio, e eles escolheram o que comeriam enquanto saboreavam suas bebidas.
Depois de pedirem os pratos, Harry disse:
— Luisa, eu queria conversar sobre o Natal por que... Bem, as coisas estão...
— Noelle não concorda com minha presença? — ela completou, apesar do
sofrimento intenso provocado pelas palavras.
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— Não sei. Gosto muito dele, mas ainda não falamos sobre casamento, se é o que
quer saber.
— Qual dos dois está incerto? — ele perguntou, tentando interpretar sua
expressão.
Tinha certeza de que a filha estava apaixonada, mas havia algo de estranho que
não conseguia definir. Se David Hallow magoasse sua menina, teria de acertar contas
com ele!
Mas Luisa não parecia ter as mesmas preocupações.
— Papai, o problema é que somos ocupados demais para pensar em casamento —
riu. — E estamos mais preocupados com nossas carreiras, pelo menos por enquanto.
Quem sabe um dia...
— Querida, sei o quanto é séria sobre sua profissão, mas o casamento não a
impediria de trabalhar. Não quer ter filhos? Você sempre gostou de crianças. Podia
jurar que adoraria ter algumas.
— E é verdade. Mas... Não sei... Não sinto nenhuma urgência em me casar e ter
filhos, entende?
— Talvez David não seja a pessoa ideal para você. Quando estiver realmente
apaixonada pelo homem certo, sentirá vontade de casar-se o mais depressa possível e
começar uma família.
— Papai, que idéia mais antiquada! — ela riu. — Hoje em dia as mulheres têm o seu
trabalho e são capazes de viver por conta própria. Não precisam mais do casamento
como uma forma de obter segurança e proteção.
— Mas ainda precisam de amor.
O garçom veio servir o prato quente e, quando ele afastou-se, Harry perguntou:
— O que vai querer como presente de Natal? Finalmente Luisa relaxou, certa de
que, daquele momento em diante, poderiam divertir-se com assuntos menos delicados
e esquecer todos os problemas.
Uma hora mais tarde, quando já estavam saindo do restaurante, Harry Gilbey
decidiu livrar-se da carga que o oprimira durante toda a noite.
— Com relação ao acidente... Bem, o julgamento foi marcado. Pálida e assustada,
Luisa encarou-o e perguntou:
— Para quando?
— Final de janeiro.
— Ainda terá de esperar todo esse tempo?
— Parece mentira, não é?
— Isso é crueldade! Obrigar as pessoas há esperar tanto tempo alimentando uma
ansiedade que pode prejudicar a saúde e desorganizar suas vidas!
— Tive um ano terrível por causa desse maldito processo. O acidente aconteceu
na metade do primeiro semestre, e ainda não consegui encerrar essa história.
Felizmente passei no teste de dosagem alcoólica, ou estaria ainda mais encrencado.
— O que seu advogado diz a respeito de tudo isso, papai? O que pode acontecer?
Ele encolheu os ombros:
— Posso perder a licença de motorista por dois ou três anos, pagar multas... É
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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb
difícil dizer. Depende do tribunal — e olhou para o relógio. — Vou acompanhá-la até
sua casa. Posso usar seu telefone para chamar um táxi?
— É claro que sim! — ela riu, aceitando o braço que ele oferecia e caminhando a
seu lado. — É assim que está se locomovendo? De táxi?
— Não voltei a dirigir desde o acidente, e acho que nunca mais terei coragem de
segurar um volante. Não consigo esquecer aquele homem... Arruinei uma vida!
— Como pode saber? Ele já deve ter feito a cirurgia plástica, e é possível até que
já tenha se recuperado. Já vi lesões piores que as dele. Eram queimaduras de apenas
vinte por cento do...
— Pelo amor de Deus! Acha que isso é pouco?
— Não, mas não pode ficar se culpando pelo resto da vida. Foi um acidente!
— Um acidente que eu provoquei. Destruí todos os quadros de um artista famoso,
telas que ele levou quatro anos para concluir e que foram transformadas em cinzas.
Ele deve me odiar!
— Papai, ele sabe que foi um acidente! Quer fazer o favor de parar de se
torturar?
— Você não sabe, Luisa... Oh, meu Deus, preciso contar isso a alguém, ou vou
acabar enlouquecendo. Não posso dizer nada a Noelle, porque ela ficaria furiosa. Não
quero nem pensar no que ela vai fazer quando o caso for julgado e a verdade vier à
tona.
Estavam chegando, e Luisa tentou reconfortá-lo enquanto abria a porta do
apartamento:
— Não pode ser tão ruim, seja o que for. Vou fazer um café, e depois falaremos
sobre essa... Verdade.
Harry afirmou com a cabeça e Luisa percebeu que ele precisava confiar em
alguém para sentir-se melhor. Antes de ir para a cozinha, ela acendeu a lareira
elétrica para criar uma atmosfera mais agradável e aconchegante. Havia um sistema
de aquecimento central, mas o calor do fogo era mais envolvente, próprio para as
noites frias. Deixando o pai na sala, Luisa foi fazer o café.
Minutos depois voltou com uma bandeja, que deixou sobre a mesa ao lado da
lareira.
— Sente-se, papai, e tome o seu café em paz.
Ele obedeceu e segurou a xícara com as duas mãos, como se sentisse muito frio.
Sorrindo, esperando que ele voltasse a falar sobre a culpa que sentia, Luisa
sugeriu:
— Por que não desabafa?
— Eu... Não sei como... A verdade é que esqueci de pagar o seguro.
— Você... O quê?
— A apólice de seguro estava vencida, e eu vivia dizendo a mim mesmo que tinha
de renová-la o mais depressa possível, mas sempre esquecia de enviar o cheque e...
— Meu Deus!
— Se o tribunal decidir que eu fui o responsável pelo acidente, terei de arcar
com todos os prejuízos. Zachary West vai me processar e eu terei de pagar até o
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— Luisa, acho que ainda não entendeu a situação. Eu simplesmente, não posso
pagar! Quando fiz a hipoteca da casa não foi tão ruim, mas agora são duas hipotecas...
Mal posso pagar as dívidas que já tenho! E na minha idade, só consegui o empréstimo
com prazos reduzidos. O que significa que os juros são de tirar o fôlego.
— Quanto ainda falta para pagar? — ela perguntou, sentindo que a aflição
ameaçava dominá-la.
— A maior parte. Se tiver de arcar com os prejuízos de Zachary West, perderei
a casa e provavelmente a fábrica. Tudo depende da quantia que o tribunal fixar, e do
prazo que eles me darão para efetuar o pagamento.
— Mas... Não pode ser tão ruim. A empresa é sólida, tradicional, e nenhum banco
se negaria a emprestar dinheiro para cobrir suas dívidas.
— Luisa, o banco já liberou dois empréstimos! Se esse acidente não houvesse
acontecido, eu conseguiria resgatar as hipotecas com o lucro da empresa. Já estamos
conseguindo novos contratos... Noelle está fazendo milagres, e os rendimentos são
maiores a cada dia. Ela estava certa! Mas o acidente estragou tudo...
Quando Harry partiu, Luisa passou algum tempo sentada diante da lareira, os
olhos fixos no fogo. Aquele acidente causara danos irreparáveis a muitas pessoas, e
ela era a única culpada.
Se não houvesse se comportado como uma criança mimada. Se pelo menos
pudesse fazer alguma coisa para tirar aquela carga de cima dos ombros do pai! Mas o
único dinheiro que tinha era uma pequena importância que economizara para as férias,
uma soma irrisória, comparada ao total das dívidas que ele havia contraído.
Zachary West não era o tipo generoso, e jamais seria capaz de perdoar. Um
tremor sacudiu seu corpo ao lembrar-se dos olhos hostis e do rosto que vira na
fotografia daquele jornal. Era um homem duro.
Mas, e se soubesse que poderia arruinar a vida de seu pai? Talvez aceitasse um
acordo...
Luisa foi deitar-se e dormiu bem, apesar das preocupações. Na manhã seguinte
levantou cedo, comeu uma fruta e tomou uma xícara de chá, e em seguida foi procurar
o número de Zachary West na lista telefônica.
O endereço era Captains's Cottage, Tareton Road, Tareton. Conhecia o vilarejo,
e sabia que apenas meia hora de carro o separava da cidade. Antes que perdesse a
coragem, apanhou o telefone e discou o número de Zachary West.
Estava quase desligando quando alguém atendeu do outro lado. Uma voz seca,
imperiosa e firme.
— Alô?
Era ele! Conhecia aquele tom!
Nervosa, Luisa desligou sem responder. Agora sabia que ele estava em casa.
Vestiu uma jaqueta vermelha sobre o suéter branco e a calça preta, e pegou as
chaves do carro que havia comprado dois anos antes, com o dinheiro das férias.
Em pouco tempo a cidade ficou para trás, substituída pela paisagem litorânea ao
longo da estrada. O mar estendia-se infinito à sua esquerda e, à direita, campos
verdes e produtivos, cobertos pela névoa fina das primeiras horas da manhã,
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Capítulo IV
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Finalmente saiu do estúdio, sem sequer olhar para a tela coberta de tinta
vermelha, e foi para a cozinha, onde se serviu de mais uma xícara de café. Estava
tomando o primeiro gole, quando o telefone tocou.
— Alô?
— Zachary? E então? Virá na próxima semana, ou não? Era Flora, sua irmã
autoritária e impositiva. Morava em Provence com o marido francês, Yves, um homem
tolerante e paciente a ponto de viver dez anos ao lado de uma mulher como ela.
— Já disse que... — Zac começou.
Mas Flora não o deixou terminar. Era sempre assim. Por ser cinco anos mais
velha, julgava-se no direito de ditar ordens e interrompê-lo sem a menor cerimônia.
— Não pode passar o Natal nesse lugar! O chalé deve estar congelando, e duvido
que tenha comida armazenada para o feriado. O comércio estará fechado, e ninguém
pode passar o Natal longe da família. O que é um Natal sem crianças?
— Uma maravilha — ele sussurrou.
— Vou providenciar sua passagem em Marseille, e você poderá pegá-la em
Heathrow quando passar por lá. É melhor marcar viagem para o dia vinte e três, ou não
estará conosco na ceia da véspera.
— Flora, já disse que não vou. Não gaste seu dinheiro numa passagem que não
usarei.
— Escute aqui, Zac...
— Eu não vou! — O tom furioso a silenciou por alguns instantes e, mais
controlado, ele prosseguiu: — Sei que só está querendo ajudar, mas não serei boa
companhia. Não estou com disposição para ser um tio divertido e carinhoso, e Sammi e
Claude não têm culpa dos problemas que estou enfrentando. Não quero estragar o
Natal de ninguém. Portanto, divirtam-se e aproveitem o feriado. Mande um abraço
para Yves e um beijo para as crianças.
— Dana vai passar o Natal com os pais — Flora disse apressada, sentindo que ele
estava prestes a desligar. — Eu disse a ela que você viria. A pobrezinha está louca
para vê-lo, apesar das grosserias que fez quando ela foi visitá-lo no hospital. É uma
garota tão doce! Ela disse que entendeu sua atitude, e que está disposta a perdoar e
esquecer. Você precisa vir!
— Flora, pare de interferir em minha vida! Por favor, me deixe em paz, está bem?
— e bateu o telefone.
Em seguida pegou a xícara de café e voltou para o estúdio, disposto a apreciar a
obra prima que acabara de criar e que retratava tão bem seu humor explosivo. Uma
mancha vermelha...
Flora insistia em promover encontros entre ele e Dana. Interferia em sua vida há
tanto tempo, que era incapaz de parar para pensar no que ele preferia. Julgava saber
o que era melhor para o irmão, e naquele momento Dana estava entre as prioridades.
Flora não conseguia entender por que haviam rompido o namoro.
Uma loira exuberante. Dana era uma excelente cantora e ganhava muito dinheiro
com seu talento. Prática e direta, Flora vivia repetindo o quanto a admirava.
— Por que rompeu com ela? — repetia sempre que o encontrava.
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o acidente, as únicas mulheres que vira haviam sido Flora, algumas tias e as
enfermeiras, treinadas para não reagirem diante de lesões como as suas, e Dana o
fizera ver o que as mulheres normais sentiriam quando o vissem.
E esta era outra razão pela qual ainda não fora procurar a garota de branco.
Tentando esquecer tudo isso, Zachary vestiu uma jaqueta e foi rachar lenha no
quintal.
Alguns minutos mais tarde ouviu um carro aproximando-se. Não costumava
receber visitas e, irritado, contornou o chalé e encontrou uma mulher parada no
portão.
Por um segundo, teve uma estranha sensação de familiaridade, mas em seguida
observou a visitante com atenção e concluiu que jamais a havia visto.
A última visita que recebera no chalé havia sido de um jornalista interessado em
escrever sobre o acidente, mas o mandara embora e garantira que quebraria seu
pescoço se o visse rondando a casa novamente.
Seria outra jornalista? Irritado com a possibilidade, gritou:
— Quem é você? O que quer aqui?
Quando ela disse que era uma enfermeira do hospital Whinbury, conseguiu
lembrar-se vagamente de seu rosto, apesar de meses terem se passado desde que
saíra de lá, após uma semana de inconsciência quase completa.
Não gostara dela desde o início. Era uma mulher estranha, fria e controlada,
capaz de caminhar sem fazer o menor ruído e sorrir o tempo todo. Era o tipo de
mulher que mais detestava. Autoritária, como sua irmã, perfeitamente organizada,
detalhista e controlada. E o pior era que insistia em falar com ele com voz melosa, e os
olhos azuis estavam sempre cheios de compaixão.
Zachary não suportava esse tipo de atitude. Não queria que as pessoas sentissem
pena dele. Preferia insultá-las, porque assim provocava raiva em lugar da piedade.
Portanto, fingiu acreditar que havia ido visitá-lo por julgá-lo irresistível, e porque
não conseguira ficar longe dele.
Divertia-se com a brincadeira de mau gosto. Atração era a única coisa que a
levaria a procurá-lo, e bastava olhar para seu rosto pálido e assustado para imaginar o
que sentia diante de um homem com sua aparência.
Também demonstrava certa surpresa, porque devia ter imaginado que, após a
cirurgia plástica, seu rosto voltara a ser quase normal. Mas Zachary sabia o quanto
estava longe disso. Ó cirurgião o prevenira sobre a necessidade de outras operações
antes que voltasse a ter um rosto parecido com o que tinha antes.
Sendo assim, divertiu-se às custas dela, beijando-a e abraçando-a, e acabou
tendo de carregá-la para dentro de sua casa... Desmaiada!
E agora lá estava ela, deitada no sofá da sala, esperando o conhaque.que havia ido
buscar na cozinha.
Quando voltou, a enfermeira já conseguira sentar-se e estava vermelha de
vergonha.
— Eu sinto muito... O que vai pensar de mim? Não sei o que aconteceu.
— A culpa foi minha — ele cortou, colocando o copo de conhaque nas mãos dela. —
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favor, acredite em mim; ele sabe o que fez, e está sofrendo muito.
— Não mais que eu! Afinal, o que veio fazer aqui? O que você quer?
Luisa levantou-se e deixou o copo sobre a mesa ao lado do sofá:
— Eu vim implorar... sei que meu pai é culpado, e ele não discute sua
responsabilidade no caso, mas... Sr. West, vai se recuperar completamente em algum
tempo. Tenho uma larga experiência com casos como o seu e sei que vai voltar ao
normal, embora o processo seja lento.
— Meu rosto nunca mais voltará a ser o que você chama de normal!
Estava tão furioso, que mantinha os punhos cerrados para não agredi-la.
A enfermeira insistiu:
— Está enganado, Sr. West. Posso entender porque pensa que tudo está perdido,
mas está enganado. Talvez o processo se arraste por mais um ano, mas a cirurgia
plástica é capaz de realizar verdadeiros milagres, principalmente quando o caso está
nas mãos de um especialista. Conheço o médico que está cuidando do seu rosto, e ele é
reconhecido como o melhor cirurgião do país.
— E nem ele teve coragem de afirmar que meu rosto voltará ao normal —
Zachary sorriu com amargura, lembrando-se de Dana. — Devia ter visto a cara da
minha ex-namorada quando foi me visitar, depois da cirurgia. Pensei que ela fosse
desmaiar!
A enfermeira Gilbey empalideceu ainda mais:
— Tenho certeza de que ela estava apenas preocupada com sua saúde. Não vou
negar que o processo é lento, mas garanto que, com o tempo, seu rosto voltará ao
normal.
— Não minta para mim! Eu sei o que vejo no espelho! Estou feio como o diabo, e
nunca mais terei o rosto que tinha antes do acidente! Nenhuma mulher vai desmaiar ao
me ver, a não ser de susto, como aconteceu com você.
— Sr. West, eu não...
— Vai negar? Desmaiou quando eu a beijei, e tive de carregá-la para dentro de
casa!
— Mas não foi por causa do...
A gargalhada dele a interrompeu:
— Não perca tempo fingindo! Sei muito bem porque desmaiou. Era inútil tentar
convencê-lo e, confusa, Luisa permaneceu em silêncio.
Ele a fitava com ar divertido, como se houvesse aprendido a rir da própria
amargura.
Finalmente disse:
— Não vou culpá-la por isso. Vejo meu rosto no espelho todos os dias, e entendo
perfeitamente o que sentiu quando percebeu que eu ia beijá-la.
— Não é nada disso! — ela explodiu, cansada de defender-se de um crime que não
havia cometido. — Por favor, acredite em mim! Eu não senti nada do que está dizendo!
Zachary também estava cansado de insistir no mesmo assunto. Queria esquecer
aquele maldito acidente, e estava fazendo tudo o que podia para retomar sua vida
normal.
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— Vamos esquecer tudo isso, está bem? — sugeriu com impaciência. — O que quer
de mim, enfermeira Gilbey?
— Não sei se... Seus advogados disseram que...?
— Pelo amor de Deus, fale de uma vez!
— Meu pai esqueceu de renovar o seguro.
Zachary fitou-a em silêncio. Havia passado muito tempo em hospitais, e deixara a
questão legal nas mãos dos advogados, recusando-se a discutir o problema, exceto
quando tivera de dar a sua versão dos fatos. Portanto, jamais pensara no seguro de
Harry Gilbey.
— Está brincando! — exclamou incrédulo.
Luisa balançou a cabeça e sentiu-se tonta, incapaz de coordenar os pensamentos.
Zachary a fitava com insistência, e de repente notou o azul profundo daqueles
olhos. Lembravam a sombra da neve dos Alpes, profundos e brilhantes em contraste
com o tom pálido do rosto. Azul e branco... Sempre gostara dessa combinação.
Retomando a lógica, censurou-se por ser tão tolo. Estava pálida porque
desmaiara, e porque estava preocupada com o pai. Que tipo de homem seria esse
Harry Gilbey? Por que mandara a filha para implorar em seu lugar, em vez de ir
pessoalmente ou mandar um advogado?
— Como alguém pode ser tão irresponsável? — disse, mais para si mesmo que para
ela.
— Como eu disse antes, papai estava sob forte tensão, e está enfrentando
dificuldades financeiras que não sabe como solucionar. Por isso ele esqueceu do
seguro. Pretendia renová-lo logo após o vencimento da apólice, mas... Sei que parece
estúpido, mas...
— Explicações não vão cobrir meu prejuízo!
— Não estou pedindo que libere meu pai do pagamento...
— Ótimo, porque eu jamais faria isso!
Luisa abaixou a cabeça e respirou fundo. Não podia permitir que ele a
intimidasse, ou sairia daquela casa sem uma resposta positiva.
Ignorando as lágrimas que queimavam seus olhos, fitou-o e disse:
— Meu pai ficará arruinado se tiver de pagar o prejuízo de imediato. Ele já
hipotecou a casa e a fábrica, e vai perdê-las se tiver de arcar com mais esta dívida
agora.
— Isso é problema dele, não meu! Ele causou o acidente, e terá de arcar com
todas as conseqüências. Deve ser muito ingênua, enfermeira Gilbey, ou não teria vindo
até aqui esperando que eu abrisse mão dos meus direitos, só porque me contou uma
história triste sobre um pai falido!
— Eu só pensei que...
— A única coisa que me interessa agora é minha vida, enfermeira! A vida que o sei
pai destruiu!
— Sei que sofreu ferimentos muito graves, mas garanto que vai se recuperar. Em
um ano seu rosto estará como antes!
— Aquele acidente destruiu o trabalho de anos, sou obrigado a conviver com
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dores terríveis e sei que ainda terei de suportá-las durante muito tempo. Não
consegui pintar novamente desde o desastre. É como se batesse com a cabeça na
parede a cada dia, olhando para as telas vazias e dizendo a mim mesmo que tenho de
recomeçar. Eu tento, mas estou começando a acreditar que meu talento também foi
destruído pelo incêndio. Tem idéia do que sinto? Para mim, não poder pintar é como
estar paralisado! Ou morto!
Luisa estava pálida como uma estátua, e Zachary a fitava com olhos cheios de
raiva. Todo o ressentimento havia crescido dentro dele desde o acidente, e um
estranho sentimento de alívio o invadia após a explosão.
Aquela mulher não era responsável por tudo o que acontecera, mas seu pai era e,
ao tentar defendê-lo, ela o enfurecera ainda mais.
— Não me peça para sentir pena de seu pai! — ele continuou. — Se eu fosse um
santo, talvez pudesse perdoar, mas não sou! O caso será levado aos tribunais e o valor
do prejuízo será decidido por outras pessoas, que levarão em conta as evidências. E
seu pai vai ser obrigado a acatar a decisão das autoridades.
— Mas se você pudesse...
— Está tentando me convencer a desistir de uma coisa que me pertence? — Zac
sorriu com sarcasmo. — Ou será que entendi mal? Por acaso está me oferecendo outra
coisa em troca desse dinheiro?
Luisa fitou-o com ar confuso, incapaz de compreender a que tipo de acordo ele
referia-se.
Zachary riu alto e, lentamente, deixou os olhos passearem pelo corpo esbelto e
bem feito, detendo-se alguns segundos nos seios e na curva dos quadris.
Finalmente ela compreendeu o que se passava na cabeça, do pintor e sentiu o
rosto queimar. O rubor o fez rir ainda mais.
— Sinto muito, mas você não é meu tipo — Zachary disparou. — Prefiro loiras
curvilíneas. Você é muito magra, e duvido que tenha experiência suficiente para me
seduzir.
Se um olhar tivesse o poder de matar, ele estaria estendido a seus pés. Zachary
continuava sorrindo com ar vitorioso, especialmente depois de perceber o quanto a
ofendera, mas, de repente, surpreendeu-se com a própria reação. Por que havia
perdido o controle a ponto de sentir vontade de feri-la? Ela não tinha culpa do
sofrimento que estava enfrentando! Que diabos estava acontecendo? Não tinha o
direito de insultar uma mulher só porque era filha do homem que destruíra sua vida!
Não havia nenhuma razão lógica para o que acabara de fazer. Exceto... Tinha de
admitir que, ao observar aquele corpo esguio e proporcional, sentira uma pontada de
desejo. Era isso! Havia mentido ao dizer que ela não era seu tipo. Na verdade, nem
tinha um tipo definido. Gostava de mulheres. Ponto final. E esta podia ser seu tipo.
Mas, sabia que ela preferia a morte a ser tocada por alguém como ele. Se havia
desmaiado só porque a beijara... Se soubesse em que estava pensando, sairia correndo
e só se atreveria a parar quando estivesse muito longe dali.
— Eu não estou oferecendo nada do que insinuou! — ela disse, recobrando o poder
de reação.
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Capítulo V
—Eu já devia imaginar! Sente-se melhor me agredindo, Sr. West? Sinto muito por
você. Não queria estar em seu lugar nem por um minuto. Não por causa das
queimaduras, mas porque as piores cicatrizes estão em sua alma!
Luisa não esperou pela reação. Furiosa, virou-se e saiu do chalé. Estava abrindo a
porta do carro, quando o viu parado na porta e escutou a voz clara e potente:
— Se decidir aceitar a oferta, entre em contato comigo antes que o caso chegue
ao tribunal. Depois disso, será tarde demais.
Sem responder, ela entrou no carro e partiu. O encontro com Zachary West a
perturbara de tal forma, que estava dirigindo mal, e quase provocou um acidente na
saída do vilarejo. Nervosa, parou o carro além dos limites de Tareton tentou acalmar-
se.
As coisas que ele havia dito ecoavam em seus ouvidos, provocando reações
confusas. Deduzira que era uma virgem, e havia conseguido acertar no alvo! Como podia
saber? Estaria escrito em seu rosto?
Nem ela mesma sabia por que nunca entregara-se a alguém. Sentira desejo por
alguns homens, mas nunca conseguira ultrapassar a barreira da virgindade. Passara os
primeiros anos da carreira em alojamentos de enfermeiras, e isso tornava impossível
um relacionamento mais íntimo com alguém que não tivesse um lugar próprio, com um
mínimo de privacidade. Mas a maioria de seus namorados haviam sido médicos, que
também residiam em alojamentos. É claro que a maior parte deles havia tentado.
Em carros, apartamentos de amigos, depois de festas... mas Luisa nunca
conseguira relaxar o suficiente para dar o grande passo.
Havia algo de furtivo e apressado nesses encontros, e queria que a primeira vez
fosse especial, romântica e inesquecível.
Quando terminara o curso e o treinamento, voltara a viver na casa de seu pai e
passara a conviver com barreiras diferentes das anteriores. Não podia correr o risco
de levar um namorado para sua casa e ser surpreendida pelo pai!
Droga! Afinal, a quem estava tentando enganar? A verdade era que nunca havia
sentido desejo por alguém a ponto de decidir entregar-se. Gostara da companhia de
alguns rapazes, sentira-se atraída por eles, mas nunca experimentara uma necessidade
imperiosa a ponto de exigir satisfação imediata.
Até meia hora atrás, não conhecera o desejo ardente e intenso... até Zachary
West a beijar.
Era difícil acreditar que estava vivendo algo tão espantoso.
Sempre soubera que ele a atraía, desde a primeira vez em que o vira naquela
cama de hospital com o rosto deformado pelo fogo.
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E não era apenas uma sensação física. Havia uma espécie de força emocional,
como se cada movimento dele, cada palavra, cada olhar fosse importante para ela.
Irritada, obrigou-se a parar de pensar em coisas tão ridículas e ligou o carro
novamente. Não diria a seu pai que fora procurar Zachary West, porque ele ficaria
horrorizado. E sabia que Zachary também não comentaria aquela estranha visita com
quem quer que fosse.
O dia de Natal era perfeito para se passar no hospital. Havia uma atmosfera
agradável em todas as enfermarias, embora alguns pacientes choramingassem por não
estarem em casa. A ala infantil era a mais comovente e, de maneira surpreendente, os
adultos ficavam mais tristes que as crianças, mimadas com presentes e atenção dos
familiares e da equipe médica.
Na enfermaria de Luisa, alguns sequer sabiam que era Natal. Seu dia foi mais
quieto que nas outras alas, mas ela e as colegas haviam providenciado uma decoração
especial que incluía uma árvore com laços vermelhos e pequenos sinos prateados.
Seu pai já havia lhe dado o presente um dia antes de partir para a Suíça com
Noelle e, mais uma vez, demonstrara bom gosto ao escolher um lindo vestido de veludo
azul. Só tiveram tempo para tomar um drinque enquanto trocavam os presentes,
porque ele precisava voltar para casa e arrumar as malas.
No dia seguinte ao Natal, Luisa ofereceu-se para dar plantão na emergência,
onde o movimento era sempre maior depois de um feriado prolongado. Havia um
homem com um anzol enterrado na mão, uma mulher que quase arrancara metade do
dedo fatiando peru, e um garoto que caíra da bicicleta nova e fraturara o braço. Os
pacientes entravam e saíam o tempo todo, e a equipe reduzida mal conseguia dar conta
dos casos mais urgentes.
— Obrigada pela ajuda — disse a jovem médica encarregada do setor, assim que
conseguiram parar para tomar um café.
— Não precisa agradecer. Eu estou gostando — Luisa sorriu. — É sempre bom
mudar a rotina, especialmente num feriado.
— Pois eu preferia aproveitar o feriado!
— Aqui entre nós, eu também. Mas minha família viajou para a Suíça, e eu teria
de passar o Natal sozinha.
A médica, uma indiana de olhos grandes e negros, sorriu com simpatia e
confessou:
— A minha família também viajou. De qualquer maneira, nós não comemoramos o
Natal.
— Também foram para a Suíça?
— Não, para Delhi — Indira Kumar respondeu, virando-se para observar a
entrada de mais um paciente. — Lá vamos nós outra vez!
Luisa levantou-se mais devagar, surpresa e encabulada ao identificar o homem
que acabara de entrar. Que diabos Zachary West estava fazendo ali?
Indira foi para o consultório, certamente para preparar os instrumentos a fim de
atender mais um paciente, e a enfermeira Gilbey atravessou o corredor para alcançar
Zachary West.
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família?
— Meu pai foi para a Suíça com a esposa.
— E você não tinha para onde ir no Natal...
— Isso mesmo — admitiu, lutando para esconder a tristeza. Luisa bateu na porta
do consultório e abriu-a, afastando-se um pouco para que o paciente entrasse.
Mais uma vez, Zachary comportou-se como um bravo. Sério, acompanhou todos os
movimentos da médica, que manejava a agulha com habilidade.
— Você devia aproveitar esse talento para bordar — brincou. Com um sorriso
divertido, Indira respondeu:
— Mas eu sou uma excelente bordadeira. Minha mãe me ensinou a costurar assim
que eu cresci o bastante para segurar uma agulha. Queria que eu fosse costureira.
— E como ela reagiu quando soube que você seria médica?
— Minha mãe é antiquada, e acha que as mulheres não precisam estudar.
— Aposto que queria vê-la casada.
— É verdade. Venderia os dentes para conseguir um futuro melhor para os filhos,
mas sempre achou que educar uma menina era jogar dinheiro fora. Na verdade, ela
temia que eu tivesse idéias ocidentais sobre igualdade e acabasse me casando com
alguém que a família não aprovasse.
— E como conseguiu tornar-se médica? — Zachary admirou-se.
— Meu pai sempre quis ser médico, e ele dizia que eu devia ir para a universidade,
se tivesse realmente vocação. É claro que me esforcei para demonstrar que merecia o
voto de confiança.
— E sua mãe aceitou?
Indira sorriu:
— Minha mãe sempre aceita as decisões de meu pai. Ela tenta persuadi-lo quando
não concorda com alguma coisa, mas sempre faz o que ele diz. Mamãe acha que este é
o segredo para um casamento feliz.
— E você concorda com ela?
— Acho que as decisões devem ser tomadas pelo casal, e que deve haver muita
compreensão e companheirismo.
— Seu pai deve sentir muito orgulho de você — disse Zachary, sorrindo ao
examinar o trabalho concluído. — Ei, essa é a melhor sutura que já vi, e sou um
especialista no assunto! Já fui operado pelos melhores cirurgiões do país.
Indira riu:
— Obrigada pelo elogio. E quanto ao meu pai, ele realmente sente orgulho por ter
uma filha médica. É como se pudesse realizar o seu sonho através do meu trabalho.
Quando eu fui admitida neste hospital, ele vinha me visitar todos os dias, e ficava na
recepção dizendo aos pacientes que era pai da médica que os atenderia.
— Acho que vou fazer a mesma coisa. Vou ficar lá fora, mostrando a todos o
trabalho perfeito que fez na minha mão.
— Pare de flertar, Sr. West — Indira riu. — Sou noiva de um cirurgião deste
hospital, e vou me casar em breve. Ele é muito ciumento, e um médico tem
instrumentos perfeitos para uma vingança. Injeções, bisturis...
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— Pelo amor de Deus! Nem diga ao seu noivo que me conheceu — Zachary riu. —
Seu pai também aprova o casamento?
— Oh, sim! A família dele é de Delhi, como a minha. Na verdade, meus pais estão
na casa dos pais dele neste exato momento, discutindo os detalhes do casamento.
Luisa, que havia ficado na sala para o caso de ser necessária, fitou a médica com
expressão surpresa. Conhecia Indira há quase um ano, e nunca a ouvira falar com tanta
desenvoltura sobre si mesma, sobre a família e sua vida pessoal. Por que sentia-se tão
pouco a vontade perto de Zachary West, quando era óbvio que a maioria das pessoas
experimentava por ele uma simpatia imediata?
Sabia sobre o noivado de Indira com Girish, um cirurgião da equipe de
otorrinolaringologia muito querido por todos os colegas, mas não imaginava que
tivessem planos para um casamento imediato.
Zachary levantou-se para partir e a médica preveniu-o:
— Tome cuidado para não usar muito esta mão nos próximos dias. Os pontos
podem se soltar, e ainda existe risco de infecção.
— Prometo que vou tomar cuidado.
Luisa acompanhou-o e avisou:
— Vou marcar um dia para que venha tirar os pontos, Sr. West.
Verificou o livro de consultas, sugeriu um dia e um horário na semana seguinte, e
escreveu o nome de Zachary no espaço vazio. Depois preencheu o cartão de retomo e
entregou-o, como fazia com todos os pacientes.
— Não se importa por ter de trabalhar no Natal? — ele perguntou, guardando o
cartão no bolso.
Luisa balançou a cabeça e virou-se para a recepcionista, que tentava acalmar uma
mulher aflita com uma criança nos braços. A jovem encaminhou a mãe para a sala de
radiografia, e ela virou-se para Zachary:
— Estou acostumada. As funcionárias casadas e com filhos têm prioridade nos
feriados, e o Natal pode ser muito especial num hospital. Principalmente para quem
vive sozinho.
— Como você. E como eu...
— Não tem família?
— Minha irmã queria que eu fosse passar o Natal em sua casa, mas achei que não
conseguiria sobreviver aos meus sobrinhos. São terroristas domésticos! Eles quebram
tudo o que tocam, e precisam de atenção constante. Gostam de música barulhenta e
jogos eletrônicos, e passam horas na frente da televisão. Quando chegam da escola, a
casa se transforma num inferno!
—. E onde eles moram?
— Provence.
— Na França?
— Na última vez em que consultei o mapa, ainda era lá.
— Que sorte! — Luisa comentou com ar sonhador. — Por mais terríveis que sejam
seus sobrinhos, eu não teria recusado o convite. Adoraria conhecer Provence.
— É mesmo? Eu irei, se você também for.
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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb
— Muito engraçado!
— Eu não estava brincando.
Confusa e irritada, Luisa desviou os olhos dos dele:
— Sinto muito, Sr. West, mas não tenho tempo para suas brincadeiras. Estou
trabalhando.
A emergência estava ficando movimentada novamente. A recepcionista verificava
a natureza de cada novo caso, e uma jovem enfermeira pedia aos pacientes que
esperassem para serem examinados pela doutora Kumar.
Whinbury não era um hospital grande, e nem sempre era tão movimentado.
Localizado numa pequena cidade na área rural, tinha um pronto-socorro bem diferente
daqueles encontrados nos grandes centros urbanos. Ali, um paciente podia ser
atendido e dispensado em menos de meia hora, e Luisa gostava de trabalhar num
ambiente tranqüilo e bem organizado, embora tivesse a intenção de passar um ou dois
anos em Londres, só para adquirir mais experiência.
Da recepção, podia ouvir Zachary West pedindo ao porteiro que chamasse um
táxi. E por que estava tão surpresa? Era óbvio que não podia dirigir com aquela mão
ferida.
— O que temos agora? — perguntou à recepcionista. Depois de receber as fichas
das mãos da jovem, olhou mais uma vez para a porta, onde Zachary ainda esperava, e
disse a si mesma que tinha de concentrar-se no trabalho e esquecê-lo.
Não voltou a erguer os olhos da ficha, mas soube o momento exato em que o táxi
partiu, levando o pintor, e experimentou uma estranha mistura de alívio e tristeza.
Horas depois, Luisa foi despedir-se da doutora Kumar.
— E então, o que achou de passar o dia na emergência? — a médica perguntou.
— Havia me esquecido de como era cansativo. Estou exausta!
— A unidade de queimados é menos movimentada.
— Pelo menos consigo passar algum tempo sentada — ela riu.
— Aqui nós nunca temos tempo para isso. Mas você foi brilhante, Luisa. Gostaria
muito de poder contar com alguém tão competente na equipe. Se algum dia quiser
transferir-se, será recebida de braços abertos. Pense no peso que vai perder!
Luisa riu:
— Obrigada, Indira, mas não quero emagrecer. Além do mais, gosto de onde
estou. O trabalho é duro, mas é maravilhoso poder fazer alguma coisa para amenizar o
sofrimento daquelas pessoas.
— Imagino. Bem, aproveite o dia de folga. Vai sair com David?
— Não. Ele foi passar o Natal com os pais, em Gales.
— E não a convidou? Desculpe, acho que estou sendo indiscreta. Mas eu pensei
que... bem, você e David estão saindo há meses, e imaginei que o relacionamento fosse
sério.
— Ainda não.
David havia sugerido que o acompanhasse, mas na época ela ainda esperava passar
o Natal com a família. Quando o pai contara que iria para a Suíça com Noelle, havia
preferido não dizer nada a David para não forçá-lo a repetir o convite. Na verdade,
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Capítulo VI
Luisa ficou furiosa ao sentir o rosto vermelho. Por que tinha de ruborizar cada
vez que o via? Por isso ele continuava divertindo-se à sua custa.
— Vim ver se precisa de ajuda com a casa. A médica disse que não devia usar a
mão, lembra-se?
— Você é enfermeira, ou assistente social?
— Eu estava passando por aqui e... — olhando além da soleira, Luisa notou a
bagunça que dominava o interior do chalé. Livros espalhados pelo chão, gavetas
abertas e objetos jogados em todos os lugares. Horrorizada, exclamou: — Meu Deus!
O que andou fazendo? Está se mudando?
Na primeira visita, notara que a casa estava limpa e arrumada, mas não podia
esquecer que ele era um artista. Talvez fosse excêntrico, e gostasse de um pouco de
confusão para quebrar a rotina.
Zachary surpreendeu-a com a resposta:
— Eu fui assaltado. Ontem, quando voltei do hospital, encontrei a casa toda
revirada.
— Mas isso é terrível! Roubaram alguma coisa de valor?
— A tevê, o vídeo, o equipamento de som e o forno microondas. Em outras
palavras, tudo o que pode ser vendido com facilidade.
— A polícia já veio registrar a ocorrência?
— Estiveram aqui há pouco mais de meia hora, e não ficaram muito tempo.
Disseram que as equipes estavam desfalcadas por causa do Natal, e que minha casa
não havia sido a única assaltada durante o feriado. Não encontraram impressões
digitais ou pistas, e tenho a impressão de que eles não têm esperança de capturar os
ladrões e recuperar minhas coisas.
— Tem uma faxineira, ou alguém que possa vir arrumar toda essa bagunça?
— Sim, mas ela foi passar o Natal em Harrogate, e só voltará na próxima semana.
Eu estava me preparando para começar a limpeza, quando você chegou.
— Então vou aproveitar que estou aqui para ajudá-lo.
— Eu já esperava que dissesse isso — Zachary sorriu, afastando-se para que ela
pudesse entrar. — Se terminarmos a tempo, iremos almoçar no Black Swan. E o melhor
restaurante de Tareton. Mas você terá de dirigir até lá.
Luisa tirou a jaqueta e sugeriu:
— Se tiver alguma coisa na geladeira, eu posso fazer o almoço quando
terminarmos a arrumação. Como está o resto da casa?
— Melhor que a sala. Os ladrões subiram aos quartos, mas acho que estavam mais
interessados nos objetos que encontraram aqui em baixo. Deviam estar com pressa, e
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não perderam tempo revirando outros armários e gavetas. A polícia disse que meu
prejuízo foi pequeno, em vista do que estão acostumados a ver.
— Que consolo!
Apesar do cansaço provocado pelos plantões dos últimos dias, Luisa tinha o hábito
de terminar tudo o que começava, e só parou para respirar quando viu que o chalé
estava voltando ao normal. Notando a palidez de Zachary, ordenou que ele fosse
descansar um pouco, enquanto ela cuidava dos últimos detalhes.
— Eu estou bem — ele protestou.
— Não está. Sente-se, e não seja teimoso. O que vai ganhar ficando doente outra
vez?
—Não gosto de mulheres autoritárias!
— Não pedi para gostar de mim — ela respondeu, apesar da pontada de dor. — Só
quero que use o bom senso e sente-se, antes que acabe desmaiando.
Encolhendo os ombros, Zachary sentou-se em uma das cadeiras da sala e Luisa
voltou ao trabalho. Nem percebeu quando ele foi para a cozinha, alguns minutos depois.
Mais uma vez ele a surpreendeu, desta vez com um bule de café fresco e um
prato de sanduíches.
— O restaurante já deve estar fechado — explicou. — O que prefere? Queijo, ou
maionese?
— Qualquer um — Luisa respondeu, concentrada no trabalho.
— Pare de gastar a superfície da minha mesa com esse pano e vá lavar as mãos
para comer!
Passando os dedos sobre os riscos feitos pelos ladrões, ela comentou:
— Por que algumas pessoas fazem coisas tão horríveis? A mesa está arruinada, e
parece muito antiga.
— Estilo Gregoriano. Não é uma peça de valor, mas pertence à minha família
desde 1820, e eu não gostaria de perdê-la. Espero poder reparar o estrago. Conheço
alguém que recupera mobília antiga, e sei que ele é capaz de fazer milagres.
— Que bom — e olhou em volta. — Bem, acho que terminamos.
— Sim, já terminamos! Quer fazer o favor de ir lavar as mãos? O banheiro fica lá
em cima, à esquerda.
Luisa encontrou-o sem dificuldade. Os azulejos amarelos pareciam aumentar a
luminosidade, e as toalhas e acessórios eram da mesma cor, como se ele tivesse o
cuidado de combinar as peças. O sabonete perfumado ainda não havia sido usado, mas
seu odor delicado pairava por todo o ambiente.
Quando voltou para a sala, Zachary já havia arrumado as xícaras e pratos na
mesa menor, ao lado da janela. Estava servindo o café, e de repente Luisa percebeu o
quanto estava faminta.
— Sente-se e coma — Zachary comandou, colocando um sanduíche de queijo no
prato.
— Você sempre almoça sanduíches?
— Só quando estou trabalhando. Não posso perder tempo cozinhando, ou saindo
para comer em restaurantes. Só vou ao vilarejo quando não estou pintando.
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— Este é todo o trabalho que consegui fazer desde o dia do acidente — Zachary
disse, apontando para os borrões vermelhos que cobriam toda a extensão do quadro.
— Ah... Infelizmente não conheço muito sobre arte moderna.
— Isso não é arte! É o resultado de uma explosão! Estava tão furioso e
frustrado, que decidi desabafar através do pincel,
— Entendo. Eu... sinto...
— Não diga que sente muito, ou vou acabar tendo outro ataque! Nervosa, Luisa
aproximou-se de uma das imensas janelas e perguntou:
— E o que mais posso dizer?
De repente o sol venceu o bloqueio das nuvens e incidiu sobre seu corpo, criando
uma luz dourada em tomo do vestido azul que estava usando.
Como se alguma coisa importante estivesse acontecendo em seu cérebro,
Zachary ergueu a mão e sussurrou:
— Fique quieta.
— Por quê?
Sem responder, ele aproximou-se da escrivaninha e apanhou um lápis e uma folha
de papel. Depois de observar seus movimentos durante alguns instantes, ela
perguntou:
— Está me desenhando? l
— O que mais eu poderia estar fazendo?
Finalmente voltara a trabalhar, e ela havia sido sua inspiração!
Feliz, Luisa permaneceu imóvel, fazendo o possível para ajudá-lo.
Depois de alguns minutos ele deixou o lápis sobre a escrivaninha e estudou o
esboço com ar crítico.
— Posso ver? — ela pediu.
Zachary hesitou, mas decidiu mostrar o desenho. Impressionada com a
semelhança obtida com alguns traços rápidos, Luisa exclamou com sinceridade:
— É maravilhoso! Seu talento é realmente invejável, Sr. West! Deve ser uma
espécie de dom divino.
— Você também é muito competente na profissão que escolheu... mas eu
reconheço o esforço que fez para aprender tudo o que sabe.
— Oh, desculpe... — apressou-se, sentindo o rosto vermelho. — Não quis dizer
que não se esforça. Mas é diferente, não acha? Existem milhares de boas
enfermeiras, mas artistas talentosos... Quando vai transformar o esboço em quadro?
— O quê? De onde tirou essa idéia? Desenhar é um gesto automático. Só preciso
copiar o que vejo. Mas pintar é algo bem diferente, que exige semanas e até meses de
dedicação. Preciso de inspiração, e tenho de saber exatamente o que estou buscando
através daquela obra em particular. E é exatamente isso que está faltando... o impulso
criativo.
Sentindo-se tola e humilhada, Luisa abaixou a cabeça para esconder mais um de
seus incômodos rubores. Ele devia julgá-la vaidosa, e sem dúvida a desprezava por ter
tido a ousadia de imaginar-se capaz de inspirá-lo.
Zachary deixou o desenho sobre a escrivaninha e aproximou-se da janela:
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— O que achou do jardim? Eu mesmo fiz o projeto. Não está muito bonito porque
o inverno acaba com as flores, mas plantei arbustos altos que bloquearão o vento do
mar. Já estão crescendo, e na próxima primavera finalmente terei o jardim como
sempre quis.
— Também é bom jardineiro?
— Cuidar das plantas é uma maneira de passar o tempo. Está vendo aquele
arbusto, à direita? — apontou. — É minha magnólia preferida. Em breve ela estará
coberta de flores brancas.
Luisa tentou concentrar-se no assunto, mas sentia-se cada vez mais perturbada
pela proximidade. Assustada com as próprias reações, virou-se para afastar-se, mas
ele moveu-se no mesmo instante e a colisão foi inevitável.
— Desculpe — murmurou, rezando para que ele não interpretasse o vermelho que
tingia seu rosto como uma demonstração da resposta física que aquele contato
provocara.
Mas o rosto cheio de cicatrizes estava contorcido pelo cinismo, e um brilho
metálico transformava os olhos cinzentos numa arma mortal.
— Devia ter mais cuidado — ele sorriu. — E pare de tremer, porque eu posso
tomar sua agitação por um convite, e nosso último beijo não foi sua melhor
experiência. Na verdade, foi tão repulsivo que você desmaiou. Não quer que aconteça
de novo, quer?
Luisa estava chocada, não com as palavras, mas, com o tom que ele havia usado
para pronunciá-las. Talvez achasse realmente que era repulsivo a ponto de fazê-la
desmaiar!
— Eu não... — começou, sem saber como articular uma negação que não soasse
como um convite. — Quero dizer, não desmaiei por... Não pense que... Bem, você não
deve pensar que deixou de ser um homem atraente...
— Não? Nesse caso... — e abraçou-a, aproximando-se até que os corpos se
tocassem.
Luisa sentiu o coração disparar assim que as mãos a tocaram, uma em suas costas,
firme e determinada, e outra em sua nuca, acariciando a pele sensível e provocando
arrepios.
A resposta era tão intensa e incontrolável, que começou a tremer de maneira
quase convulsiva. Era como ser arrastada por uma onda, puxada para dentro de um
oceano profundo que poderia esmagá-la com o peso de sua fúria.
Fechando os olhos, deixou-se levar pela avalanche de sensações que ele estava
provocando. O bom senso dizia que estava sendo ingênua e tola, mas recusava-se a
ouvir os avisos. Naquele momento, só queria experimentar os prazeres que havia
conhecido em sonhos. Ao sentir os lábios quentes que tocavam os seus, ela emitiu um
gemido abafado e passou os braços em torno do pescoço de Zachary West.
As mãos dele tornaram-se ainda mais firmes, puxando-a de encontro ao peito, e a
boca dominava a sua como se lhe pertencesse desde sempre. Ele a queria!
Mas... seria realmente por ela que ardia, ou passara tanto tempo sozinho que,
agora, qualquer mulher seria capaz de despertar aquele desejo incontrolável?
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— Você é enfermeira, e deve saber alguma coisa sobre psicologia. Talvez possa
entender o que aconteceu. Num minuto eu estava furioso, e beijei você porque sabia
que estava sentindo pena de mim, e isso me aborrecia. Mas então fechei os olhos e
pensei em outra coisa... em outra pessoa...
Pensara em outra pessoa enquanto a beijava? Sentia-se tão humilhada, que não
podia mais conter as lágrimas.
— Por isso perdi o controle — ele continuou. — Sei que é estupidez pensar nisso...
nela...
Luisa estava travando uma batalha acirrada contra o pranto, mas não perdia uma
única palavra do que Zachary dizia. Ela? Em quem estava pensando?
— Ela nem é real! Na verdade, eu nem a conheço. Não sei seu nome, nem onde
mora, e só a vi uma vez, de passagem, mas... — e suspirou. — Mas a imagem dela me
persegue. Pode entender uma coisa dessas?
— Acho que sim — Luisa respondeu, obrigando-se a vencer a dor.
Entendia melhor do que ele era capaz de imaginar. Desde o dia em que o vira pela
primeira vez, também era perseguida por sua imagem, e a obsessão tornava-se mais
forte a cada instante.
— Entende? — Zachary duvidou. — Eu gostaria de poder dizer o mesmo. Se
alguém me dissesse que um dia eu ficaria obcecado por uma mulher que nem conheço,
certamente teria rido até perder o fôlego. É como uma doença, e sinto que não posso
curá-la sozinho. Sei que tudo isso é só um produto da minha mente, como uma
miragem, e vivo dizendo a mim mesmo que não posso estar apaixonado por alguém com
quem sequer falei. É loucura!
Luisa havia virado para observá-lo, e tinha de fazer um esforço cada vez maior
para não romper em lágrimas.
Depois de alguns instantes de silêncio, Zachary riu com amargura:
— O que sei sobre essa mulher? Nada! Ela pode ser casada, mãe de cinco filhos,
ou uma psicopata, ou uma fugitiva da polícia... qualquer coisa! Por que não consigo
esquecê-la? Sonho com ela todas as noites, e acordo pensando nela todos os dias.
Luisa jamais imaginara que fosse possível sentir uma dor tão intensa.
Zachary também estava sofrendo, dominado por uma angústia que contorcia seu
rosto e o transformava numa máscara de desespero.
— E o mais estranho... O mais estranho é que a vi justamente naquela tarde. Acha
que é só uma coincidência, ou que, por isso, não consigo esquecê-la?
Reunindo toda a força que ainda lhe restava, Luisa conseguiu sussurrar:
— Que tarde? — e, como se recebesse uma mensagem telepática, concluiu: — No
dia do acidente?
Ele afirmou com a cabeça:
— Eu estava em algum lugar entre Tareton e Whinbury, e dirigia com cuidado
para não arruinar as telas que transportava no furgão. Estava pensando na exposição,
e é claro que sentia uma grande ansiedade. Seria a maior de todas... Estava
escurecendo, e eu acendi os faróis para compensar a falta de iluminação pública.
Quando comecei a atravessar a área rural, um objeto branco chamou minha atenção...
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alguma coisa que flutuava sobre uma colina, ou um muro... Não consigo me lembrar com
nitidez, mas fiquei curioso. Pisei no breque, e o carro começou a perder velocidade...
Do que ele estava falando? Confusa, Luisa mantinha os olhos fixos em seu rosto
e, ao notar que ela o encarava com aquele ar atônito, Zachary comentou:
— Sei que parece loucura, mas... Por um segundo, pensei que fosse um fantasma.
— Um fantasma? Não pensei que fosse o tipo de pessoa que acredita nessas
coisas!
— Não sou. Mas sabe como a imaginação humana pode pregar peças,
especialmente ao entardecer, quando o mundo parece mudar de forma para esperar a
noite. Mas é claro que não levei essa história de assombração a sério, e acabei rindo
de mim mesmo. Eu havia visto uma garota caminhando atrás de uma cerca... sim, agora
me lembro. Era uma cerca em torno de um jardim, e acho que também havia uma casa
no terreno. Mas eu só tinha olhos para ela. Era como se houvesse passado todo o
tempo do mundo naquele lugar, caminhando pelo jardim ao entardecer, e usava um
vestido branco e longo que flutuava ao vento como um traje de gala.
— Um traje de gala? Ela estava passeando no jardim usando um vestido a rigor?
— Eu não disse que era. Só que parecia. E é esse o grande problema. Era tudo
muito estranho, como se eu estivesse sonhando... Mas não estava. Sei que tudo aquilo
realmente aconteceu.
Luisa não disse nada. Era difícil seguir o raciocínio confuso de um homem incapaz
de distinguir sonhos da realidade, mas, de qualquer forma, talvez pudesse
compreender alguma coisa se o deixasse prosseguir.
— De uma coisa eu tenho certeza. Ela era muito jovem, tanto que, a princípio,
pensei tratar-se de uma criança.
Sua expressão era tão sonhadora, que Luisa sentiu a dor crescer como se alguém
cravasse uma faca em seu peito. Por que não podia fitá-la com aquele brilho nos olhos?
Por que vivia obcecado por alguém que sequer conhecia, e que talvez nem existisse?
Mas Zachary estava isolado em seu mundo, dominado pelas próprias emoções.
— Ela era magra e delicada, com cabelos negros e longos emoldurando o rosto
pálido. Parei o carro e fiquei imóvel, olhando para ela, e mesmo tendo virado o rosto
em minha direção, acho que ela nem notou minha presença. Senti que estava
totalmente distraída, mergulhada num mundo onde só ela existia...
A ironia a fez sentir vontade de rir. A garota estava distraída, perdida num
mundo de sonhos, e nem olhou para ele? Agora havia uma ruga profunda marcando sua
testa:
— Tive a impressão de que estava infeliz... — e parou, como se algum alarme o
chamasse de volta à realidade. Fitando-a, sorriu e disse: — Desculpe aborrecê-la com
isso, mas nunca tive coragem de falar sobre esse assunto com ninguém. Não tive
chance sequer de procurá-la, porque, minutos depois, seu pai surgiu do nada naquela
maldita curva e... E o resto você já sabe. Nunca mais tive coragem de dirigir, e não
posso sair por aí, num táxi, procurando uma garota sem nome. Não sei nem onde
estava... Algum lugar entre Tareton e Whinbury... Uma faixa de estrada que
compreende dezenas de quilômetros. E mesmo que a encontrasse... Olhe para mim!
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Capítulo VII
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— Meio dia e meia, sexta-feira, no Cherry Tree. Pode ir cuidar dos seus
pacientes — e desligou.
Luisa ouviu a voz de David do lado de fora e levantou-se apressada, querendo
saber o que ele estava fazendo na enfermaria dos queimados àquela hora da noite,
quando já devia estar em casa.
Ele estava falando com Anthea Carter, que afastou-se discretamente ao ver
Luisa na porta do escritório.
David sorriu e perguntou:
—Tem tempo para um chocolate quente? Preciso beber alguma coisa doce e
saborosa. Tive um dia horrível!
— Devia ir para casa — ela sugeriu.
Mesmo assim, serviu uma xícara de chocolate quente que sempre mantinham na
garrafa térmica do escritório, e apanhou alguns biscoitos da lata que guardavam no
armário.
— Estou cansado demais para dormir — David confessou. — Além do mais, vou
tirar alguns dias de folga a partir de sexta-feira. Também está livre na sexta, não é?
O que acha de um jantar no Cherry Tree?
Luisa hesitou, e David fitou-a com a testa franzida.
— Qual é o problema? Já tem algum compromisso?
Não queria marcar mais um encontro, mas também não podia romper um
relacionamento numa enfermaria, no meio do plantão. Precisava conversar com David
num lugar mais apropriado, longe do ambiente de trabalho.
— Não tenho nenhum compromisso, mas já marquei um almoço no Cherry Tree... e
justamente na sexta-feira.
— Com quem?
— Com meu pai — ela respondeu, irritada com o tom possessivo.
Jamais haviam discutido, e agora que pretendia pôr um ponto final no
relacionamento, David decidia ter um ataque de ciúmes!
— Pensei que tivesse um rival — ele riu, sentando-se para saborear o chocolate.
— Luisa... Se estivesse saindo com outro homem... Você me diria, não?
— É claro que sim. Se eu decidir sair com outra pessoa você será o primeiro a
saber.
— Espero que entenda minhas suspeitas. Você nunca aceita maiores intimidades
entre nós e...
— David! A enfermeira Carter está do outro lado da porta! Quer fazer o favor
de falar baixo?
— Desculpe. Precisamos falar sobre isso, Luisa. É claro que não esperava que
pulasse na minha cama no primeiro encontro, mas estamos namorando há quase um ano!
Será que não entende? Não quero ser seu irmão!
— David, por favor! Não pode esperar até sexta-feira para discutir esse
assunto?
— Você sempre encontra uma maneira de escapar! Quer saber de uma coisa?
Estou começando a achar que perdi meu tempo com você! Não vamos chegar a parte
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alguma, não é? Nosso relacionamento não tem a menor importância para você!
— Sinto muito, David — ela sussurrou, sentindo-se embaraçada. — Eu nunca tive
a intenção de magoá-lo e... Bem, acho que devemos pôr um ponto final em nossos
encontros.
— O quê? Está rompendo nosso relacionamento? Incapaz de falar, Luisa limitou-
se a afirmar com a cabeça. David fitou-a em silêncio durante alguns instantes, como se
quisesse agredi-la. Em seguida levantou-se e saiu, batendo a porta com força.
No dia seguinte, Luisa dormiu como se estivesse sob o efeito de calmantes,
embora houvesse tomado apenas um copo de leite ao chegar em casa. Saíra do hospital
tão cansada, que não tivera ânimo nem para comer. Como um robô, havia tirado as
roupas, vestira a camisola e adormecera assim que caíra na cama.
E teve sonhos estranhos. Estava caminhando num jardim ao entardecer, e de
repente viu Zachary West correndo em sua direção. Com o coração aos saltos,
imensamente feliz, mantinha os braços abertos para recebê-lo, mas ele parou no meio
do caminho e gritou: Você não é ela!
Despertou sobressaltada, e entrou em pânico ao perceber que o quarto estava
mergulhado na mais profunda escuridão. Fora para a cama às nove da manhã! Teria
dormido o dia todo?
Acendeu o abajur e olhou para o relógio. Sete horas. Dez horas de sono
ininterrupto!
Normalmente dormia cinco, no máximo seis horas. Confusa, levantou-se e calçou
os chinelos. Preparou uma xícara de café e aproveitou para ler o jornal enquanto o
saboreava, e só depois foi tomar um banho e vestir-se.
Já era tarde demais para ir ao cinema ou a um restaurante, como costumava
fazer em suas noites de folga, e por isso decidiu fazer um prato especial para o
jantar. Um risoto. Só precisava de uma panela, e todas as sobras que encontrasse na
geladeira. Normalmente tinha um pouco de frango ou peixe, mas naquela noite só podia
contar com alguns legumes e vegetais.
Já havia começado a preparar a refeição, quando o telefone tocou. Por medida de
segurança, diminuiu a intensidade da chama do fogão antes de ir atender.
— Ah, você está em casa! — David exclamou. — Posso passar por aí? Precisamos
conversar, Luisa. Não podemos permitir que um relacionamento de um ano termine
assim.
— David, eu... Por que não amanhã? Podemos nos encontrar e...
— Agora! — ele cortou, desligando em seguida.
Luisa mordeu o lábio, perturbada pela raiva que percebera na voz dele. Não podia
censurá-lo por estar magoado, mas também não podia fazer nada para mudar o que
sentia! Gostava dele, mas não o suficiente... O que mais poderia dizer, além de deixar
claro que não havia nenhuma esperança de um futuro para eles? Nunca fizera
promessas. David jamais havia escondido o desejo que sentia por ela, mas também
nunca falara de amor e nem insinuara alguma pretensão mais séria.
Mesmo assim, preferia que ele não fosse procurá-la naquele estado. Sempre
tivera medo da violência masculina.
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— Por que saiu, se sabia que eu estava indo para sua casa? Que brincadeira é
esta?
Pálida, Luisa explicou:
— Desculpe, mas recebi um chamado de emergência.
— O quê? Do que está falando? — e olhou para o chalé isolado. Então a porta
abriu-se e, ao ver Zachary West, David surpreendeu-se: — Mas... eu conheço esse
homem! Ele foi um de meus pacientes... o artista... Como é mesmo seu nome?
— Zachary West.
David olhou para Zachary, que aproximava-se devagar, e em seguida fitou-a:
— O que está acontecendo? Ele telefonou e pediu que viesse? Por que não chamou
um médico? E como conseguiu o número do seu telefone? Está encontrando esse
sujeito desde que ele esteve em sua enfermaria?
Vermelha, Luisa parecia mais culpada do que realmente era, especialmente porque
gaguejava:
— Eu... Sim... Não... De certa forma, mas...
Zachary aproximou-se e ela o encarou com ar suplicante:
— Eu estava explicando...
— Explicando o quê? — ele perguntou, as sobrancelhas unidas compondo uma
expressão de desafio.
— Você, Sr. West — David disparou. — Luisa estava tentando explicar por que
telefonou para ela, e não para o seu médico. E não estava sendo muito convincente.
— Eu procurei o médico, mas ele está fora da cidade.
— E por que escolheu justamente e enfermeira Gilbey? Qual é a urgência? Você
não parece tão mal...
— Eu estava com dor de cabeça.
— Dor de cabeça? E por causa disso telefonou para a enfermeira Gilbey e a fez
vir correndo?
Devagar, David virou-se para encará-la. Luisa estava tão horrorizada com a cena,
que não conseguia pensar em nada que pudesse dizer para acalmá-lo, ou para justificar
sua presença. Por alguma razão, sabia que ele não acreditaria, principalmente porque
Zachary não parecia estar às portas da morte.
Depois de uma pausa prolongada, David disse com tom frio:
— Acho que isso explica tudo. Pena que não tenha dito a verdade, Luisa. Perdi
muito tempo interpretando o que havia entre nós como algo importante. Você deve ter
rido muito às minhas custas.
— Não! Não é nada disso! Eu não queria magoá-lo, David! Precisa acreditar em
mim!
—Eu acredito. Muitos homens duvidariam do que está dizendo, mas sei que você
tem um bom coração. Só gostaria que houvesse dito a verdade. — Sem esperar por
maiores explicações, entrou no carro e partiu.
Luisa sentiu ódio de si mesma porque, no fundo, sabia que ele estava certo. Devia
ter dito que estava apaixonada por outro homem, mas permitira que o relacionamento
se arrastasse por meses, quando sabia que não havia a menor possibilidade de um
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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb
futuro em comum.
— Era seu namorado? Exasperada, Luisa fitou-o e perguntou:
— Sr. West, eu gostaria de saber como conseguiu livrar-se daquela terrível dor
de cabeça.
— Parece que ela desapareceu.
— Desapareceu?
— Sim. Estranho, não acha? Era uma dor horrível e eu estava quase
enlouquecendo, mas então ouvi o som de seu carro, abri a porta e a vi discutindo com
aquele sujeito. Não sabia o que estava acontecendo, mas imaginei que ele houvesse
batido no seu automóvel. Pensei em ajudá-la, mas logo compreendi que o assunto era
pessoal. Ele estava furioso, e você gaguejava como uma criança pega em flagrante,
tentando explicar o que fazia aqui.
— E você não fez nada para esclarecer a situação! Podia ter dito que havia me
dado a impressão de estar realmente passando mal!
— Eu tentei, mas ele me interrompeu e começou a gritar com você. Além do
mais... minha dor de cabeça já havia passado, e eu tive a impressão de que o seu amigo
não acreditaria em uma palavra do que eu dissesse.
Era verdade. David não acreditaria, porque Zachary não tinha a aparência de
alguém doente. Os olhos brilhavam, e a pele tinha uma cor até saudável.
— Eu mesma estou começando a duvidar — ela acusou. — Não sei se acredito
nessa cura milagrosa, Sr. West.
— Mas é verdade. Não sei o que aconteceu, mas a dor passou de repente. Talvez
tenha sido a descarga de adrenalina provocada pela discussão... Estava mesmo
precisando.
— Ah, estava? E o que acha de outra? Não sabe como estou inclinada a discutir
com você!
— Parece promissor.
Incapaz de encará-lo, Luisa murmurou:
— Você me fez perder tempo.
— Desculpe. Passei os últimos dias na mais absoluta inatividade, e acho que acabei
provocando essa maldita dor de cabeça. Antes do acidente, eu ocupava todas as horas
do dia com o meu trabalho, mas sou incapaz de produzir algo de útil desde que voltei
do hospital. Talvez haja alguma relação.
— Talvez tenha exagerado ao descrever seus sintomas.
— Não, a dor era realmente insuportável!
Luisa sabia que ele estava dizendo a verdade, mas isso não a fazia sentir-me
menos furiosa.
— Não consigo entender por que não disse a verdade a David, mesmo correndo o
risco de não ser levado a sério! Não acha que devia me ajudar? Afinal, a culpa foi sua!
— Eu teria tentado explicar a situação, mas percebi que você não estava
preocupada com a possibilidade de um rompimento.
Vermelha, Luisa exclamou:
— Você não sabe nada sobre esse assunto!
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— Mas tenho olhos e ouvidos, e percebi que não estava interessada em impedir a
separação.
Luisa mordeu o lábio, preocupada com a capacidade de observação de Zachary
West. Podia perceber certas coisas a seu respeito, e seria terrível se ele soubesse as
coisas que sentia quando estava a seu lado. Não suportaria a humilhação.
— Bem, de qualquer forma, é óbvio que não precisa de mim — ela anunciou,
virando-se para partir.
— Não, por favor — Zachary pediu, segurando-a pelo braço e sorrindo com
simpatia. — Não converso com ninguém há dias. Já comeu? Não tenho muita coisa na
geladeira, mas posso improvisar um omelete, ou ovos com bacon... Não me deixe
sozinho, Luisa.
Era a primeira vez que ele a chamava pelo primeiro nome, e isso provocou uma
reação imediata e irracional:
— Preciso ir embora.
Queria ficar, mas temia ferir-se ainda mais profundamente. Zachary estava
apaixonado por outra mulher, e só precisava de companhia. Era horrível saber que,
naquele momento, estaria pedindo a mesma coisa a qualquer outra pessoa.
— Não pode ficar por uma ou duas horas? — ele insistiu, retirando a sacola das
mãos dela. — O que traz aqui? Instrumentos de tortura?
— Equipamento médico. Vim preparada para examinar suas condições gerais.
— E por que não faz o exame? Só para ter certeza de que está tudo bem. Eu
ofereça o jantar.
— Eu trouxe comida — Luisa confessou embaraçada. — Estava terminando de
fazer um risoto quando você telefonou, e pensei que poderia esquentá-lo no caso de
termos de esperar uma ambulância, por exemplo.
— Pensou que a coisa fosse tão séria assim?
— E sempre bom estar preparada para qualquer emergência, e você falou como se
estivesse às portas da morte.
— Era o que eu sentia naquele momento. O risoto também está aqui? — e mostrou
a sacola.
Luisa afirmou com a cabeça. Sabia que ele queria que ficasse porque estava
aborrecido e sozinho, mas que preferia estar em companhia de outra mulher. Isso a
perturbava, mas, mesmo assim, sentia-se comovida diante de sua solidão, e ainda não
conseguira livrar-se da culpa por ter provocado o acidente que destruíra sua vida.
Mas todas as desculpas eram insignificantes, comparadas à verdade. Queria
estar com ele porque era maravilhoso ouvir o som de sua voz e senti-lo perto. Por que
não podia estender os momentos de felicidade, mesmo sabendo que era apenas ilusória
e passageira?
— O risoto é suficiente para nós dois — disse, obrigando-se a banir a ansiedade
da voz.
Zachary brindou-a com um sorriso e, com o coração aos saltos, Luisa espantou-se
com a mudança no rosto marcado e sempre tão sombrio. Se soubesse o que fazia com
suas emoções quando a fitava daquele jeito, perceberia o quanto estava enganado ao
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— Não faz mal. Acho que sua dor de cabeça pode ter sido realmente causada por
tédio e inatividade. Devia voltar ao trabalho, Sr. West.
— Zachary. Esqueça a formalidade, Luisa.
Embaraçada, examinou os controles do microondas e manteve-se de costas para
Zac, tentando esconder a confusão que a dominava. Em silêncio, pôs o risoto no forno e
pediu:
— Pode arrumar a mesa, por favor? A comida estará quente em quatro minutos.
Tem alguma coisa para uma salada?
Preparam a salada juntos, sem falar muito, e pouco depois terminavam a refeição.
— Delicioso — Zachary elogiou, colocando os pratos na máquina de lavar louça, o
único eletrodoméstico de valor que os ladrões não haviam levado. — Nunca havia
comido um risoto de legumes. A receita é sua?
— Não existe nenhuma receita. Apenas juntei um pouco de cada coisa que
encontrei na geladeira.
— Devia ter imaginado que era uma boa cozinheira. Com o seu treinamento...
— Qual é a relação entre um treinamento de enfermagem e conhecimentos de
culinária? — ela riu.
— Calma, paciência, boa vontade... Características essenciais, tanto para a
cozinha, quanto para a profissão que escolheu.
— Sinto muito, mas acho que está enganado. Já cuidei de um dos mais famosos
chefes de cozinha de Londres, e ele era bastante temperamental. Sabe por que foi
para o hospital? Porque discutiu com um cozinheiro chinês, e os dois se agrediram com
pratos e panelas. Ele foi atingido por uma tigela de louça e sofreu cortes no rosto e no
braço.
Zachary riu:
— Você está brincando!
— Não — Luisa respondeu, vendo-o descascar uma laranja e notando o quanto
suas mãos eram grandes e fortes.
— Não quer uma fruta?
— Oh, sim... Obrigada — para mudar de assunto e esconder o embaraço
provocado pelas próprias emoções, perguntou: — Já pensou em tentar hipnose?
Conheço um profissional que pode ajudá-lo a vencer o bloqueio mental que o impede de
trabalhar.
— Acha mesmo que isso funciona? Não sei se gosto da idéia de alguém invadindo
meus pensamentos.
— Ninguém diz ou faz aquilo que não quer, nem mesmo sob efeito de hipnose. E
funciona, como a acupuntura e outras técnicas parecidas. Tenho uma amiga que sofre
de asma, e que era obrigada a tomar doses maciças de medicamentos fortes. Os
remédios estavam prejudicando seu organismo, e um dos médicos do hospital
aconselhou a acupuntura. Em dois meses, minha amiga já havia conseguido abolir toda a
medicação tradicional. Ainda tem algumas crises quando está sob tensão, mas sempre
resolve o problema com as agulhas.
— Jamais pensei que uma enfermeira pudesse me dar esse tipo de conselho!
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Capítulo VIII
A luz da lua cheia penetrava pela janela do quarto e incidia sobre o rosto de
Zachary, perturbando o sono povoado por sonhos estranhos.
Estava em seu carro, dirigindo ao longo de uma estrada escura, sem saber para
onde ia, mas certo de que algo estava para acontecer. De repente, lá estava ela... a
garota de branco. Longe o bastante para que não pudesse tocá-la, flutuando pelo
jardim dominado pelas sombras do entardecer, silenciosa como as folhas que caem das
árvores.
Na lógica absurda dos sonhos, Zachary descobriu-se no jardim, chamando por ela,
aborrecido por não saber seu nome. Como a jovem poderia imaginar que gritava por
ela?
Enquanto corria, tinha a sensação de saber seu nome e de tê-lo esquecido naquele
momento; estava na ponta da língua! Vasculhava a memória, mas o nome lhe escapava.
De repente não podia mais vê-la. Continuava procurando, olhando em volta e
chamando... Sua voz ecoava e era devolvida pelas árvores numa imitação perfeita do
canto de um pássaro, mas a garota de branco havia desaparecido. Tinha de encontrá-
la! Continuava correndo e gritando, procurando por todos os recantos. Uma ou duas
vezes viu os cabelos negros entre as árvores e ouviu o farfalhar do tecido leve de seu
vestido longo, mas não conseguia alcançá-la.
Saiu de trás de uma árvore e viu-se perto da casa, que brilhava sob a luz
prateada da lua como uma miragem. Zachary parou e olhou para a fileira de janelas
brancas.
A lua as transformava em espelhos que refletiam o jardim e ele mesmo. Estava
prestes a retomar a busca, quando uma silhueta surgiu em uma das janelas, atrás das
cortinas. Um rosto encantador, com lindos olhos azuis que o fitavam. Era ela!
Podia vê-la claramente; os cabelos negros, os olhos claros, o formato do rosto e a
parte superior do vestido branco. Ela estendeu as mãos e Zachary correu em direção à
casa.
Mas, antes que a alcançasse, houve uma violenta explosão e todas as janelas se
fecharam.
Correu até a porta e bateu com desespero, mas então teve a sensação de que
uma força poderosa o arrastava para longe daquela casa. Estava acordando.
Por alguns segundos, sentiu-se tão confuso que não pôde sequer lembrar-se de
onde estava, mas em seguida ouviu os sons das ondas quebrando na praia, dos gritos
das gaivotas e do vento de inverno, e virou-se para examinar o relógio. Sete horas. A
noite havia terminado, mas sentia-se cansado como se a houvesse passado em claro. O
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problema, e por isso estava trabalhando duro para garantir a estabilidade da empresa.
Pensou que, assim, seria mais fácil conseguir um bom preço para a fábrica, caso
tivéssemos de vendê-la. Na opinião dela, é melhor livrar-se de uma preocupação do que
perder dinheiro tentando encontrar soluções.
— Sou obrigada a admitir que ela está certa — Luisa disse, percebendo que teria
de rever sua opinião a respeito da madrasta.
— Mas ela não quer aceitar a oferta de que lhe falei. Está fazendo negócios com
um sujeito de Birmingham, dono de uma cadeia de lojas espalhadas por todo o norte da
Inglaterra. Nós produzimos vários itens para essas lojas, e Noelle acha que o sujeito
pode estar interessado em injetar algum capital na fábrica através de uma sociedade.
Ele quer expandir seus negócios para o sul e também está interessado em participar
da produção de alguns produtos que comercializa, diminuindo os custos de operação.
— E você gostou da idéia?
— Estou pensando em cuidar da minha aposentadoria, Luisa. Trabalhei duro
durante a vida toda, e agora quero relaxar e descansar.
— Não acha que vai ficar aborrecido?
— Estou aborrecido com os negócios há alguns anos, e se não gostar da vida de
aposentado, posso retomar minhas atividades. Mas duvido que isso aconteça, querida.
Sou forte, saudável, e quero aproveitar os anos que ainda me restam sem ter de
enfrentar seis dias de trabalho por semana.
— Então não está pensando apenas em levantar dinheiro para pagar os prejuízos
de Zachary West?
— Não. Perdi o interesse pelos negócios, e estou feliz por poder assumir uma
posição secundária na fábrica. Noelle poderá assumir a direção ao lado do novo sócio, e
parece até que já discutiram o assunto. Ela cuidará da rotina diária, e ele tomará
conhecimento de tudo através de relatórios e balanços.
— Tenho certeza de que Noelle conseguirá vencer o desafio.
— Eu também tenho, querida.
Trabalhar com David tornou-se bastante difícil. Ele era sempre educado, mas a
tratava com uma frieza tão evidente, que todos os colegas do hospital notaram a
mudança de atitude.
Com esforço, Luisa conseguia manter o sorriso calmo, apesar das fofocas. Odiava
saber que as pessoas estavam comentando sua vida pessoal, e odiava saber que David
estava magoado e ressentido.
Se pudesse, gostaria de explicar que também era uma vítima da situação. Não
apaixonara-se por outro homem por opção própria, e sentia que os sentimentos haviam
invadido sua vida como um trem desgovernado, esmagando seu auto-controle. David
reagira de acordo com as expectativas. Como o cirurgião que era, cortou-a de sua vida
imediatamente, sem anestesia, e não havia nada que ela pudesse fazer além de
respeitar sua decisão.
Na verdade, ele já havia encontrado outra namorada, uma jovem loira e
sorridente, enfermeira do centro cirúrgico.
Nunca estivera apaixonada por David, mas foi impossível evitar uma pontada de
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Capítulo IX
Luisa não conseguiu esquecer aquele momento nem mesmo durante as horas de
trabalho. Ficara tão perplexa, que sequer pedira uma explicação, limitando-se a
encarar Zachary com ar confuso.
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folhas, mas a primavera os encheria novamente de vida, impedindo uma visão clara do
interior da propriedade.
— Aquela cerca... eu a vi flutuando atrás dela, no jardim. E a casa... Está vendo? É
branca, e fica atrás das árvores. Meu Deus! Deve ser sua casa! Ela pode estar lá
dentro, e pode sair a qualquer momento!
Pálida como um fantasma, Luisa mantinha os olhos fixos na propriedade, como ele.
— Tem certeza de que foi exatamente neste lugar? — insistiu.
— Certeza absoluta! Você viu o quadro! Não reconhece os detalhes?
— Agora reconheço, mas não pude identificar muita coisa quando vi a tela pela
primeira vez. Não podia imaginar...
— O que está dizendo? Conhece essa casa? Quem é ela? Sabe qual o nome
daquela garota?
Com lágrimas nos olhos, ela respondeu:
— Conheço...
— Pelo amor de Deus, fale de uma vez!
— Era meu aniversário... e meu pai havia ido a uma festa com Noelle.
— Você enlouqueceu? Do que está falando?
— Estava deprimida, e decidi vir visitar a casa onde nasci e cresci, e de onde me
mudei logo depois do segundo casamento de papai. Havia comprado um vestido novo
para a comemoração... branco e longo, de tecido leve...
— Luisa...
— Havia conseguido descobrir o número do telefone do local onde papai estava e,
ao chegar aqui, decidi ligar e dizer o quanto estava magoada. Ele havia esquecido o
meu aniversário e, perturbado, disse que eu devia esperá-lo aqui, e que viria em
seguida. Então eu fui para o jardim... e fiquei caminhando ao longo da cerca,
observando o movimento da estrada.
— Você mantinha a cabeça baixa. Os cabelos caíam em torno do rosto e o vestido
flutuava ao vento. Parecia tão pequena e indefesa, que tive a impressão de estar vendo
uma menina!
— Eu sinto muito, Zachary! A culpa foi minha! Meu pai estava dirigindo como um
louco porque eu havia me comportado como uma menina mimada! A culpa foi minha!
— Talvez a dor tenha sido o preço da minha felicidade. Afinal, encontrei você, e
estou pintando melhor. Sempre pintei paisagens, mas agora sou capaz de retratar um
ser humano. Só consegui sobreviver, porque passei meses agarrado à lembrança
daquela menina... ela... você... — e abraçou-a, retirando os grampos que mantinham
presos seus cabelos. — Prometa que vai deixá-los soltos sempre que estiver fora do
hospital. Não sabe como parece mais jovem quando os deixa sobre os ombros.
— Não? E por acha que os mantenho presos? Quando me tornei enfermeira, os
pacientes riam de mim e os médicos não confiavam na minha competência, porque eu
parecia uma criança. Um belo dia prendi os cabelos e descobri que, assim, parecia mais
velha.
— Não faça mais isso — ele riu. — Sabe de uma coisa? Mal posso esperar para vê-
la nua, com os cabelos soltos sobre os ombros e... — e parou, notando que ela tinha o
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rosto vermelho. — Desculpe. Estou indo muito depressa, não é? Mas já nos
conhecemos há quase um ano, e hoje em dia isso representa um tempo mais que
suficiente.
Luisa sentia o rosto quente e, encabulada, não sabia o que dizer.
— Está vermelha outra vez — Zachary riu. — Eu devia ter imaginado! Esse rubor
não combina com a imagem controlada da enfermeira Gilbey, o iceberg! Por outro lado,
tinha certeza de que a garota do jardim ruborizava com freqüência. Apaixonei-me por
ela no instante em que a vi, mas esqueci que o entardecer nos prega peças. Pensava ter
visto uma menina, e fui incapaz de reconhecê-la naquele uniforme de enfermeira. Mas
o meu inconsciente percebeu tudo, e por isso eu fiquei tão confuso. Por isso juntava
seu rosto ao corpo daquela garota, e misturava afeto e ressentimento. Era como se
sua presença pudesse trazer de volta o momento do acidente, a dor e o medo... Meu
Deus, como não percebi isso antes? Eu a associava ao acidente porque, de forma
inconsciente, sabia quem você era, e tudo aconteceu momentos antes...
— Zachary, você está me deixando tonta! — ela riu.
— Talvez seja porque estou absolutamente tonto! Mas não vou mais perturbá-la
com minhas idéias confusas. O que importa é que... Amo você, Luisa. Amo você desde o
primeiro instante, quando não sabia sequer o seu nome!
— Zachary! Oh, meu amor! Por que perdemos tanto tempo? — e abraçou-o.
— Perdemos tempo? Está querendo dizer que também...
— É claro que sim! Ainda não percebeu? Também amo você, como nunca amei
ninguém!
— Luisa... — ele sussurrou, afastando-se para fitá-la nos olhos. — Eu não estou
sonhando, estou? Isto está realmente acontecendo?
Zachary ergueu a mão para tocá-la no rosto e, vendo seu relógio de pulso, ela
exclamou:
— Meu Deus! Esquecemos a hora! Vamos nos atrasar para o julgamento! — e
segurou a mão dele, correndo para o carro.
Quando finalmente conseguiu encontrar um lugar para estacionar, o julgamento
já havia começado e Luisa teve de contentar-se com uma cadeira na última fileira.
Ansiosa, olhava para o pai e para o homem que amava, sofrendo com a aflição que
percebia nos dois.
O sol de inverno penetrava pelas janelas, acentuando as linhas do rosto de Harry
Gilbey que, naquele momento, parecia vinte anos mais velho. A luz intensa também não
favorecia o rosto de Zachary, acentuando as cicatrizes que tanto o incomodavam. As
pessoas o olhavam com insistência e ele mantinha a cabeça baixa, consciente da
atenção que despertava.
Amava aqueles dois homens, e era horrível vê-los num tribunal, ocupando cadeiras
opostas e enfrentando-se por uma causa que não poderia trazer de volta tudo o que
haviam perdido naquele maldito acidente. A vitória de Zachary seria a ruína de seu
pai... E depois, como poderia dizer que amava o homem que o levara à falência?
O julgamento arrastava-se com lentidão irritante, hora após hora. Depois dos
depoimentos das testemunhas, Zachary foi chamado para dar sua versão dos fatos, e
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surpreendeu a todos com uma revelação. Estava distraído, e por isso não pudera evitar
a colisão.
Incrédulo, Harry sorriu para o oponente com expressão agradecida.
A decisão do júri foi a que todos esperavam. Harry Gilbey foi considerado
culpado pelo acidente, e teria de pagar todos os prejuízos de Zachary West, não só
pelo carro e pelos quadros que haviam sido destruídos, mas por lesões corporais e
incapacitação temporária para o trabalho. A quantia exata seria estipulada pelos
peritos e divulgada em outra data.
Todos começaram a deixar a sala e Luisa parou na porta, esperando que o pai
saísse em companhia de Noelle e do advogado que o representava.
— Felizmente acabou — ele disse, depois de beijá-la.
— Mas eles ainda não fixaram o valor dos prejuízos, papai!
— Eu sei, querida, mas isso ainda vai demorar algum tempo. Zachary West terá
de submeter-se a uma espécie de auditoria para que os peritos possam determinar a
quantia exata.
— E é claro que ele vai dobrar o valor dos quadros e do carro — Noelle interferiu
com tom furioso.
Nesse momento Zachary aproximou-se e Harry recebeu-o com um aperto de mão
cheio de gratidão.
— Sr. West, não sei nem o que dizer. Eu sinto muito... e obrigado pelo que disse
ao juiz. Foi muito honesto e generoso.
— Eu disse apenas a verdade — Zachary sorriu. — E, para ser franco, eu tive um
motivo muito forte para ser tão honesto.
— Um motivo...? — Harry estranhou.
— Eu quero me casar com sua filha — e passou um braço em torno da cintura da
enfermeira.
Todos ficaram em silêncio, olhando-o com espanto, e Luisa teve a impressão de
que ia desmaiar. Assustada, ergueu os olhos azuis para fitá-lo e viu o sorriso
encantador que iluminava o rosto marcado pela tragédia que os unira.
— Estou indo depressa outra vez? — ele riu.
— Luisa! — Harry exclamou, deixando claro que esperava alguma explicação.
É claro que as teria, mas primeiro...
— Não, você não está indo muito depressa — ela sorriu, os olhos fixos nos dele. —
Eu me casaria amanhã, mas não acha que precisamos de algum tempo para discutir os
detalhes?
— Cuidadosa e prática como sempre! — ele riu. — Você está certa. Eu só queria
informar seu pai sobre a situação e deixar claro que minhas intenções são as melhores
possíveis.
— Luisa, eu não estou entendendo... — Harry queixou-se. — Você nunca disse
nada sobre ele...
— Eu sei, papai, mas é que... Bem, era difícil...
— Por que não vamos para a sua casa, Harry...? Posso chamá-lo de Harry, não?
Ótimo. Como eu estava dizendo, por que não vamos para a sua casa e conversamos
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sobre o assunto? Ah, sim... E esqueça essa história de indenização. Não posso começar
a vida de casado aceitando dinheiro do meu sogro!
Incrédulo, Harry Gilbey gaguejou:
— Está... falando sério?
— É claro que sim! — Noelle interferiu apressada, lançando um olhar impaciente
na direção do marido. — E muito generoso de sua parte, Zachary, e muito inteligente.
Afinal, agora você vai fazer parte da família.
— Obrigado, Noelle.
Apesar do sorriso, Luisa percebeu um brilho cínico nos olhos dele. Noelle era uma
mulher bonita, mas Zachary não se deixava enganar por seus encantos superficiais.
— Podemos ir? — ele perguntou, beijando-a rapidamente na testa. — Temos
muito o que conversar com seu pai e sua madrasta, e vamos precisar de algum tempo
para as explicações.
Luisa afirmou com a cabeça e sorriu, mas sabia que jamais seriam capazes de
explicar aquela história. Diriam que estavam apaixonados, mas omitiriam muitas outras
coisas, detalhes íntimos demais para serem discutidos com quem quer que fosse. Como
explicar que Zachary apaixonara-se antes de saber que estava apaixonado por ela?
Como explicar que Luisa fora invadida pela paixão quando ele ainda estava
inconsciente, com o rosto desfigurado e a alma marcada? Quem poderia entender? Ela
mesma era incapaz de compreender, e sabia que Zachary também estava bastante
confuso. Mas, algum dia, ele criaria quadros que iluminariam o mistério para ambos, e
então o mundo inteiro saberia do amor que os unira para sempre.
fim
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