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RETRATO DE AMOR

Dreaming

Charlotte Lamb

Luisa estava disposta a esperar o tempo que fosse preciso para fazer esse
homem amá-la perdidamente!
"Não minta para mim", Zachary gritou. "Sei o que vejo no espelho! Nenhuma
mulher vai desmaiar ao me ver, exceto de susto, como aconteceu com você!" Zachary
West estava furioso e amargo. Aquele acidente automobilístico, além das cicatrizes na
face, deixara marcas profundas em seu coração. Luisa, porém, sabia que só o tempo
curaria todas as feridas. Enquanto isso, guardaria seu amor por Zachary fechado no
peito. Tudo teria seu tempo certo. E o tempo de amar e ser amada em breve faria
parte do presente.

Digitalização: Tinna
Revisão: Carola
Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

Copyright © 1993 by Charlotte Lamb

Originalmente publicado em 1993 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra

Todos os direitos reservados, inclusive o direito de reprodução total ou parcial,


sob qualquer forma.

Esta edição é publicada através de contrato com a Mills & Boon Ltd. Esta edição
é publicada por acordo com a Mills & Boon Ltd.

Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas
vivas ou mortas terá sido mera coincidência.

Título original: Dreaming


Tradução: Débora S. Guimarães

Copyright para a língua portuguesa: 1994

EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.


Alameda Ministro Rocha de Azevedo, 346 - 99 andar
CEP: 01410-901 - São Paulo - Brasil
Esta obra foi composta na Editora Nova Cultural Ltda.
Impressão e acabamento: Gráfica Circulo

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

Capítulo I

Zachary West colocou a última tela no furgão e certificou-se de que a carga


estava pronta para ser transportada com segurança. Não queria acidentes no caminho.
Por isso estava levando os quadros pessoalmente, em vez de enviá-los pelo serviço de
remessas que Leo havia sugerido.
— É mais seguro, Zac! — Leo dissera pelo telefone. — E menos trabalhoso para
você. Eles cuidam de tudo.
— Prefiro levar as telas pessoalmente.
— Mas isso é bobagem! E melhor utilizar um serviço especializado. Eles...
— Leo, já usei esse tipo de serviço, e perdi uma tela. O sujeito que fazia o
transporte tropeçou, derrubou um quadro e acabou pisando nele. Nunca mais. Prefiro
cuidar de tudo sozinho. Além do mais, Londres não é tão longe.
— Por que é sempre tão teimoso?
Apesar da insistência, Zac não mudara de idéia.
Pensava muito antes de fazer qualquer coisa, mas quando tomava uma decisão,
jamais voltava atrás, por mais que outras pessoas discordassem. Acreditava que, em
última análise, cada pessoa podia contar apenas com ela mesma, e a vida já havia
provado que estava certo.
O jeans e a jaqueta de couro negro davam um ar ameaçador ao homem de
estatura elevada, cabelos negros e rosto cuidadosamente barbeado, mas Zac parecia
não ter consciência da impressão que causava, nem mesmo quando era olhado com
receio pelas pessoas que passavam por ele na rua. Na verdade, raramente prestava
atenção a outras pessoas. Era obcecado pelo trabalho, e não tinha tempo para perder
com coisas menos importantes.
Ia a Londres com freqüência mínima, e não existira nenhuma mulher em sua vida
durante o último ano, desde que descobrira que a namorada estava saindo com outro
homem. Zac havia dito o que pensava sobre seu comportamento, e nunca mais voltara a
vê-la. Não pensava nela, exceto quando encontrava algum objeto em sua casa, coisas
como um lenço perfumado, um batom ou uma escova de cabelos.
Quando isso acontecia, livrava-se do objeto sem hesitar, mas, sabia que o chalé
guardaria marcas de sua passagem durante algum tempo; o sorriso radiante e os olhos
sedutores de Dana ainda flutuavam no ar, como na história de Alice no País das
Maravilhas, mas Zac os exorcizava mergulhando no trabalho.
Quando não estava pintando, cuidava do jardim, da horta e das galinhas que
criava, e que forneciam ovos frescos todos os dias. Quando paravam de botar, ele as
cozinhava para complementar a dieta. Vivia de maneira simples, e fazia todo o serviço
da casa sozinho.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

O chalé onde morava havia sido construído no tempo da Rainha Anne por um
capitão aposentado, um homem solitário que gostava de fingir que ainda estava no mar.
A casa situava-se no alto de uma colina, suspensa sobre o litoral quase selvagem de
Suffolk, e durante um temporal, o rangido das tábuas dava a impressão de se estar
realmente num barco, enfrentando a fúria da natureza. O cenário permanecia
inalterado há três séculos e meio, um lugar isolado e selvagem, com o mar estendendo-
se à frente da casa cercada por campos verdes.
O vilarejo, Tareton, ficava a dois quilômetros de distância, e a cidade mais
próxima, Whinbury, separava-se dele por uma viagem de vinte minutos de carro. O
isolamento atraíra Zachary para aquele lugar. Ali podia trabalhar em paz, sem
interrupções ou distrações. Quando precisava de alguma coisa, ia ao pequeno centro
comercial do vilarejo, e quando tinha de comprar telas e tintas, dirigia até Whinbury,
de onde pegava a estrada principal para Londres, como faria naquela tarde.
A luz desaparecia aos poucos e Zachary finalmente trancou a porta da casa,
lançando um olhar preocupado para o céu cinzento. Ainda era cedo para o crepúsculo, o
que significava que as nuvens estavam carregadas, não gostava de dirigir sob chuva
forte, especialmente à noite, mas, com um pouco de sorte, alcançaria seu destino por
volta das sete horas, e antes do temporal.
Enquanto dirigia, pensava na exposição e em toda a confusão que normalmente a
precedia e que Leo tanto apreciava. Ele adorava as entrevistas coletivas, as festas
oferecidas por membros da alta sociedade, os críticos de arte com suas revistas e os
visitantes ilustres, mas Zachary odiava tudo isso.
Na verdade, estava odiando a experiência, e arrependia-se por ter deixado Leo
convencê-lo. Não era sua primeira exposição, mas passara anos recusando os convites
de galerias justamente por ter odiado as duas experiências anteriores, e porque não
precisava conquistar compradores. Não era um pintor de retratos em busca de rostos
ricos ou famosos. Pintava paisagens, e as vendia com facilidade porque as pessoas
podiam interpretá-las sem pedir explicações. Leo pensava que...
Nesse instante, Zachary teve a impressão de ver um vulto branco e virou a
cabeça num gesto instintivo.
— Que diabo é isso?
Zac estreitou os olhos, tentando enxergar com mais nitidez, mas foi inútil.
Talvez fosse um pedaço de papel carregado pelo vento, ou um pássaro branco...
Intrigado, pisou no breque e diminuiu a velocidade do furgão, os olhos fixos no
estranho objeto do outro lado da estrada, sobre uma elevação do terreno. Não era um
pedaço de papel, nem um pássaro... Afinal, o que podia ser aquilo?
Não acreditava em fantasmas, e irritava-se com coisas que não conseguia
explicar racionalmente. Era um artista, e sabia que peças os olhos podem pregar em
conjunto com o cérebro, criando imagens irreais e até assustadoras. Tinha de haver
uma explicação para o que via, mas... Qual?
O furgão estava quase parando quando vislumbrou uma cerca à distância, perto
da junção com a rodovia de três pistas que alcançaria em breve. A cerca protegia um
grande jardim e, apesar da névoa e da penumbra, era possível distinguir a casa ampla e

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imponente recuada da entrada. Fixando os olhos, Zachary compreendeu tudo e riu da


própria imaginação.
Era só uma garota magra e pequena, com cabelos negros e longos. Estava de
costas para a estrada, e por isso não havia percebido que o vulto era apenas um ser
humano caminhando atrás da cerca protegida por arbustos. Vira apenas o vestido
branco e esvoaçante, mas agora ela alcançara o portão e estava virada de frente para
a estrada, observando a rodovia.
Se não estivesse com pressa, desceria do furgão para perguntar se era
realmente humana, ou uma fada espalhando encantamentos ao entardecer. Tinha uma
beleza estranha, quase sobrenatural, e gostaria de saber o que fazia sozinha naquele
jardim, sob as nuvens escuras que anunciavam uma tempestade. E por que havia parado
no portão, em vez de proteger-se do vento no interior da residência? Estaria
esperando alguém? Apesar da distância, Zac pudera perceber certa ansiedade em
seus movimentos.
Parecia realmente um ser de outra dimensão, um espírito ou uma entidade
qualquer.
Zac pensou em Dana e uma ruga profunda surgiu em sua testa. Como era
diferente da imagem que acabara de ver! Dana era...
Estava fazendo a curva para entrar na estrada principal, e de repente viu o carro
vermelho que vinha em sentido contrário... na sua pista! Pisou no breque, virou o
volante para a direita, mas não pôde evitar o choque.
Primeiro foi o estrondo, o som de vidros se quebrando e metais se retorcendo.
Depois o vôo impressionante do furgão, atirado do outro lado da estrada, e finalmente
o impacto violento do volante contra o tórax. O cinto de segurança puxou-o para trás,
e Zac bateu com a cabeça na coluna ao lado da porta. Confuso, meio tonto, sentiu um
cheiro forte e inconfundível que o fez recobrar a consciência.
— Meu Deus... — gemeu, reconhecendo o odor da gasolina.
Pálido, lutou para soltar o cinto de segurança e sair do automóvel, mas no
momento em que conseguiu acionar o fecho de metal, houve uma pequena explosão e o
mundo tingiu-se de vermelho. Uma parede de fogo surgiu do nada e, com um grito de
agonia, Zachary levou as mãos ao rosto, num esforço inútil de defender-se das
chamas.

O telefone tocou no momento em que Luisa preparava-se para começar a ronda,


adiada por uma série de problemas. E agora, o que mais poderia estar acontecendo?
Com o controle que aprendera no exercício da profissão, atendeu com voz calma:
— Unidade de queimados.
— Enfermeira Gilbey?
— Sim, doutor Hallows. — Já havia reconhecido a voz, mas preferiu manter a
formalidade com que sempre se tratavam no ambiente profissional.
David parecia cansado, o que não era nada surpreendente depois das horas que
passara no centro cirúrgico.
— Ele está na sala de recuperação, e deve descer em meia hora. Estou enviando

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os relatórios. Considerando a natureza das queimaduras, o paciente reagiu muito bem


à operação. É um homem forte, e o pós-operatório deve ser tranqüilo. No entanto,
devemos ficar atentos à possibilidade de um choque. Se não houver nenhum problema
nas próximas vinte e quatro horas, o prognóstico é favorável.
Luisa ouviu com a testa franzida e os olhos azuis cheios de compaixão.
Trabalhava naquela enfermaria há vários anos, e estava habituada a ver homens,
mulheres e até mesmo crianças com lesões horripilantes, mas o hábito não conseguira
endurecê-la; ainda ficava perturbada com o que via.
— Vou designar uma enfermeira para observá-lo em caráter permanente durante
a noite. Faremos tudo o que for possível, doutor.
— Eu sei. Vocês formam uma equipe muito eficiente — David Hallows disse com
sinceridade. Num tom mais baixo e pessoal, acrescentou: — E então? Vai poder ir ao
baile no sábado?
Ele há convidara algumas semanas antes, mas Luisa prevenira-o sobre a
possibilidade de ter de trabalhar no sábado, porque a enfermeira chefe estava de
férias e uma das garotas da equipe estava de licença, cuidando de uma perna
fraturada. Os horários da enfermaria tiveram de ser alterados, e ela ficara
responsável por parte da noite de sábado.
— Terei de vir para o hospital, David, mas a enfermeira Jenkins, da cirurgia,
aceitou dividir o plantão. Ela passou muito tempo na unidade de queimados antes de
ser transferida, e conhece toda a rotina. Ficará das oito as duas, e eu terei de vir
para terminar o horário.
— Então, poderemos ir ao baile!
Luisa podia imaginar o sorriso que ele tinha nos lábios. David Hallows não era um
homem bonito, mas era capaz de conquistar a simpatia das pessoas de imediato. Com
olhos castanhos e grandes, sempre iluminados por um brilho amistoso, um rosto calmo
e cabelos escuros e espessos, David era, sem dúvida, o membro mais popular da equipe
do hospital Whinbury.
— Sim, e obrigada pelo convite, David.
Luisa saíra para jantar com ele várias vezes nos últimos meses, mas os dois
sabiam que, desta vez, tudo seria diferente. O baile era um evento para os
funcionários do hospital, e seriam vistos juntos em público pela primeira vez. Numa
comunidade tão pequena, certamente seriam assunto para várias semanas.
— Pena que não tenha a noite toda! Ouvi dizer que todos irão para a casa de Mack
depois do baile.
Ela riu:
— É o que sempre fazem.
— Vão terminar a noite com ovos e bacon para o café da manhã.
— Pobre Sra. Mack! Ela é uma sofredora.
— Ela parece gostar das festas, e ser a esposa do chefe dos clínicos implica em
certos deveres. E em algum prestígio, também.
— Gosto dela. Sabe ser firme, sem deixar de ser gentil.
— Não sei... Ela é autoritária demais para o gosto.

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Luisa riu. A confissão não era nenhuma novidade. Sabia o quanto David ficava
irritado quando algum superior insistia em acompanhar seu trabalho, dando palpites e
fazendo críticas. Para ela, receber ordens era uma rotina com a qual se acostumara
desde o treinamento, e que não a incomodava. David bocejou e disse:
— Estou indo embora, mas estarei em casa, dormindo. Se precisar de mim, pode
telefonar.
— Pobre David! Deve estar exausto! Espero não ter de acordá-lo. Boa noite, e
durma bem.
David despediu-se e Luisa desligou o telefone, deixando o escritório em seguida.
A enfermaria estava silenciosa, as cortinas haviam sido baixadas em torno de algumas
camas e uma das enfermeiras mantinha-se ao lado de um paciente que ainda não havia
superado a fase de risco. Alguns leitos estavam vazios, cobertos por capas plásticas e
exalando o cheiro forte do desinfetante usado para limpar todas as dependências. Em
outros, os pacientes permaneciam quietos como múmias, os lençóis erguidos sobre
travas de metal para não tocarem em seus corpos.
Tinham medo de fazer qualquer movimento, e por isso permaneciam quietos,
aprisionados pela dor. Apenas o movimento dos olhos indicava que estavam vivos... e
sofrendo. Luisa caminhou por entre as camas com passos silenciosos e lentos,
sussurrando palavras reconfortantes para os que estavam acordados e observando os
que dormiam.
Gostava do trabalho noturno. Havia um sentimento especial na enfermaria
durante aquelas longas horas, quando o resto do mundo dormia. Era possível
aproximar-se mais dos pacientes do que durante o dia, quando estavam prevenidos e
podiam esconder melhor seus medos e ansiedades. Durante a noite, precisavam de
mais conforto e assistência para sentirem que não estavam sozinhos em sua dor.
Tomara-se uma enfermeira porque queria um trabalho que fosse mais que um
simples meio de ganhar dinheiro, e ajudar pessoas doentes a vencer as longas horas
escuras a fazia pensar que estava realizando algo importante.
— Acabei de voltar da cantina — uma voz suave anunciou às suas costas. — Torta
de peixe novamente, e havia mais batata e molho no recheio do que qualquer outra
coisa.
— Por favor, enfermeira Carter! — Luisa sorriu. — Está me fazendo sentir
enjôos.
— Posso dispensar as outras para o lanche, ou vai precisar delas?
— Pode dispensá-las. E depois aplique a injeção do Sr. Graham, está bem?
Minutos depois Luisa ouviu os passos silenciosos das duas enfermeiras dirigindo-
se à cantina. No escritório, preparou a costumeira xícara de chá de jasmim, um líquido
aromático que a acalmava e a ajudava a suportar os longos plantões. Jamais comia
utilizava-se da cantina do hospital, porque a comida era muito pesada e a deixava
sonolenta. Tentara reclamar com a nutricionista, mas fora inútil, porque o restaurante
dos funcionários tinha um orçamento apertado, e as cozinheiras recebiam ordens para
praticar a culinária alternativa. A base dos pratos era sempre a mesma: pão, massas e
batatas. Luisa preferia alimentar-se com frutas e iogurte, e deixava para fazer a

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única refeição do dia em sua casa, antes de sair para o trabalho.


O telefone tocou estridente, rompendo o silêncio profundo, e Luisa saltou sobre
a cadeira. Por que estava tão tensa?
Impaciente, apanhou o fone e disse:
— Unidade de queimados.
— Recuperação cirúrgica. Estamos levando o Sr. West neste momento.
— Estamos prontas para recebê-lo — ela respondeu, guardando os papéis na
gaveta e fechando-a com a chave.
Em seguida desligou e levantou-se, ajeitando o avental branco. Ao sair do
escritório, encontrou Anthea Carter arrumando as camas vazias e informou:
— Deixe isso para depois, Anthea. A enfermeira Brett voltará da cantina em
poucos minutos e cuidará das camas. Estão trazendo o novo paciente, e quero que o
observe durante todo o plantão. Ele vai precisar de acompanhamento constante, e você
sabe reconhecer os sinais de choque emocional. Neste caso, é o que mais nos preocupa.
Se notar qualquer coisa de anormal, não hesite em acionar o alarme de emergência.
— Sim, senhora — respondeu a outra, correndo para abrir a porta dupla e
facilitar a passagem da maca.
Enquanto Anthea acompanhava o paciente até seu leito, Luisa recebeu os
relatórios das mãos da enfermeira que o acompanhara. Ao mesmo tempo, olhou
rapidamente para a silhueta imóvel que passava por ela. Sabia que existiam técnicas
capazes de reconstruir um rosto e eliminar cicatrizes mas, mesmo assim,
impressionou-se com o que viu.
— Zachary West — murmurou, olhando para a pasta com seus dados. — Trinta e
quatro anos, vítima de acidente automobilístico. O Dr. Hallows disse que ele é forte, e
que vai superar... Só gostaria de saber que tipo de paciente vai ser.
— Difícil — disse a enfermeira que acompanhara a transferência. — Eu vi quando
chegou. Estava consciente, gritando todos os palavrões que conheço e alguns que nunca
ouvi.
— É comum — Luisa respondeu, os olhos fixos no rosto do recém-chegado.
— Eu sei, mas ele estava furioso. Tenho a impressão que seria capaz de
estrangular o sujeito que provocou o acidente.
Luisa respirou fundo e fechou a pasta com as anotações.
— Obrigada, enfermeira. Pode voltar para a sua ala — e foi supervisionar a
transferência do paciente da maca para a cama, uma operação delicada, apesar da
inconsciência e dos sedativos que o tornavam insensível à dor.
Assim que o viu instalado, voltou para o escritório e para a papelada que deixara
na gaveta. As vezes lamentava a promoção, porque preferia lidar com os pacientes a
ficar sentada naquela cadeira, cuidando de detalhes burocráticos.
Antes do amanhecer, Luisa percorreu a enfermaria novamente. Anthea Carter
permanecia ao lado da cama de Zachary West, e medira a temperatura e a pressão do
doente a cada hora, anotando os dados na prancheta de acompanhamento. Felizmente,
não havia nada de anormal.
— Ele não deu sinais de estar acordado? — Luisa perguntou.

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— Várias vezes, mas... — e parou, interrompida por um movimento do paciente.


Seus lábios moveram-se, ele abriu os olhos e, depois de alguns segundos, emitiu
um grito de agonia.
Luisa aproximou-se e, sem tocá-lo, murmurou algumas palavras de conforto,
tentando acalmá-lo.
Os olhos selvagens cravaram-se em seu rosto e Zac perguntou:
— O que fez comigo...?
— Estamos cuidando de tudo, Sr. West. Fique calmo.
— Saia de perto de mim!
— Enfermeira Carter, aplique a injeção de sedativo — ela ordenou.
Minutos depois o paciente dormia novamente e Luisa afastou-se do leito.
No escritório, ligou para outro andar e, preocupada, perguntou:
— Beth? Aqui é Luisa. Como ele está?
— Muito bem. Foram apenas ferimentos leves, e o susto já está passando. Acho
que ele será liberado ainda hoje. Virá vê-lo mais tarde?
— Sim, antes de ir para casa.
Desligou o telefone e, furiosa, limpou a lágrima que corria por seu rosto.

Zachary West estava preso num círculo de fogo. As chamas cresciam, e os vidros
estilhaçados o atingiam no rosto. O calor era insuportável, e não conseguia abrir os
olhos.
— Estou cego! —gritava em seu sonho. Mas ninguém o escutava.
Algumas vezes ela estava lá, flutuando a seu lado, leve como uma ave e pálida
como um fantasma. Uma presença silenciosa que o acalmava e aplacava suas dores.
Chamou-a de dentro do círculo de fogo, e viu que ela virava-se lentamente no ar para
olhar em sua direção. Cabelos longos e negros, um rosto gentil e olhos azuis, cheios de
bondade e compaixão. A dor diminuía e Zachary estendia a mão para tocá-la.
Mas então ela desaparecia, e o pesadelo o envolvia novamente.
Em uma das vezes conseguira abrir os olhos e gritar, mas não a encontrara. Havia
visto apenas rostos estranhos, cercados por uma luz amarela que o deixava tonto e
confuso.
Quem seriam? O que acontecera com a menina de branco?
Tentava perguntar, mas não conseguia articular as palavras.
Uma delas inclinara-se em sua direção e havia dito alguma coisa que ele não
pudera ouvir. Tinha um rosto calmo e pálido, e parecia ser uma enfermeira. Zachary
sentira uma antipatia imediata.
— Onde estou? O que aconteceu? — balbuciara, percebendo que a voz morria na
garganta. Com esforço, conseguira perguntar: — O que fez comigo?
Vira os lábios dela moverem-se, mas não conseguira escutar o que dizia. Só queria
que saísse dali e, apesar da dor, conseguira manifestar sua vontade.
A mulher erguera o corpo, dissera alguma coisa à outra jovem e em seguida ele
havia sentido uma pontada de dor em alguma parte do corpo. Que diabos era aquilo?
Mas elas haviam sumido novamente, e ele voltara para o centro do círculo de fogo.

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Queria gritar e não podia, porque a dor o dominava. Queria ver através das
chamas, do lado de fora, e de repente a viu flutuando em sua direção, sorrindo, e seus
temores desapareceram. Um anjo! A menina de branco era um anjo! Como não
percebera antes? Estava morto, e um anjo vinha buscar sua alma.
No final do plantão, Luisa foi até a enfermaria doze. Os pacientes já haviam
tomado o café da manhã e estavam lendo os jornais, ou conversando, enquanto os
funcionários começavam a rotina diária.
Seguindo as normas da cortesia, foi ao escritório da enfermeira chefe para
cumprimentá-la antes de atravessar o corredor de camas.
Beth Dawlish já havia partido há meia hora, substituída por uma colega que Luisa
só conhecia de vista.
— Sim, Dawlish me disse que você viria — informou a enfermeira Jacobs. — Fique
a vontade. Li os relatórios do plantão noturno, e parece que ele será liberado ainda
hoje, no final da tarde. Podia ter sido pior. Como vai o outro, aquele que receberam na
sua enfermaria? Ouvi dizer que sofreu lesões muito sérias. O carro pegou fogo? Não
sei como consegue trabalhar naquele lugar. Deve ter nervos de aço!
— Estou acostumada. Nosso paciente passou a noite sob o efeito de sedativos, e
está reagindo conforme o esperado.
— Melhor assim. Esse homem vai ter de ser muito corajoso para enfrentar todas
as conseqüências.
— É verdade. Bem, vou deixá-la trabalhar em paz.
Firme, Luisa dirigiu-se à última camada enfermaria. O paciente estava sentado,
recostado nos travesseiros e olhando para o nada, o rosto pálido marcado por
profundas olheiras. Ele virou-se ao ouvir o som de passos e, ao vê-la, estendeu a mão.
— Luisa! Ele... ele...?
— Está vivo — ela respondeu em voz baixa. — Não precisa ficar preocupado,
porque ele vai sobreviver, papai.

Capítulo II

Luisa dormiu apenas seis horas e teve um sono agitado. Ainda não conseguira
habituar-se com a inversão de horários. Levantou-se no meio da tarde, comeu uma
maçã e tomou uma xícara de chá, e concluiu que ficaria mais disposta se fizesse um
pouco de exercício ao ar livre. Morava num pequeno apartamento de dois dormitórios
perto do hospital e do centro comercial, cujas calçadas largas abrigavam cafés e
bares com vista para o parque.
O dia estava ensolarado, e muitas pessoas caminhavam pelas ruas. Luisa fez

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algumas compras no supermercado do bairro, e estava voltando para casa quando


quase colidiu com uma figura apressada, uma loira não muito mais velha que ela.
— Ah, é você — a loira disse com antipatia; na verdade seus olhos verdes
brilhavam com hostilidade.
— Olá, Noelle — Luisa cumprimentou, retribuindo a frieza. — Papai já saiu do
hospital?
— Sim, e eu tive de ir buscá-lo, porque não quiserem levá-lo de ambulância!
— O serviço de remoção está sobrecarregado e...
— Eles o levaram para o hospital numa ambulância. Por que não podiam devolvê-lo
da mesma maneira? Eu tinha uma reunião importante, e não posso sair do escritório
quando quero! Espero não perder um contrato por causa desse inconveniente. Não sei
por que aquela mulher insistiu na necessidade de alguém ir buscar seu pai. Ele podia
ter voltado de táxi, ou com você. Disseram que estava de folga, mas liguei para sua
casa e fui atendida pela secretária eletrônica.
— Estou no plantão noturno, e tenho de dormir durante o dia — Luisa explicou,
tentando manter a calma.
— E eu tenho de trabalhar, porque seu pai não quer mais saber dos problemas da
empresa! Se não fosse por mim, estaríamos falidos em menos de um ano!
— Esqueça a empresa. Quero saber como está meu pai. Você o deixou sozinho?
Ele está muito abalado, e precisa de...
— Não venha me dizer o que fazer! Não sou mais a secretária de seu pai! Agora
sou a esposa dele, e não vou admitir interferências em nossa vida!
— Eu não estou interferindo! Só acho que ainda não percebeu como um choque
pode ser perigoso, e como as conseqüências clínicas...
— Ah, pare com isso! Não sou uma de suas enfermeiras, e não tenho o menor
interesse no assunto!
Luisa sentiu que explodiria a qualquer momento. Noelle era uma mulher bonita,
mas a beleza era apenas superficial. Desde o dia em que a conhecera, quando ela fora
admitida como secretária de seu pai, sentia uma profunda antipatia por aquela mulher.
Jamais imaginara que Noelle estava interessada em seu pai... Afinal, vinte anos os
separavam! Mas, por alguma razão, havia pressentido alguma coisa, e quando seu pai
confessara que estava saindo com a nova secretária, não pudera esconder o choque e o
desgosto.
Agora, arrependia-se por não ter ocultado os verdadeiros sentimentos. Gostaria
muito de sentir alguma simpatia por Noelle e de ser sua amiga, pelo bem do pai.
Quando percebera que o relacionamento entre eles havia se tomado mais sério,
tentara aproximar-se e estabelecer uma trégua, mas havia sido inútil. Noelle a odiava,
e não estava disposta a aceitar acordos.
Os olhos verdes estavam fixos em seu rosto com um brilho metálico, como se ela
desejasse esganá-la.
— Se quer saber, seu pai não está sozinho. A Sra. North está limpando a casa, e
eu pedi que ficasse de olho nele. Harry não quis ir para a cama, e está deitado no sofá,
diante da televisão. Não há nada de errado com ele, e se está abalado, é bem feito!

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

Podia ter matado aquele homem!


— Mas não matou, graças a Deus.
— Sorte dele! E sua também. Se não tivesse telefonado para Harry e feito todo
aquele escândalo, ele não teria saído da festa como um maluco!
Luisa sabia que a madrasta estava dizendo a verdade, mas alimentar a culpa não a
ajudaria em nada. Se pudesse, voltaria atrás e mudaria o curso da história, mas era
impossível. As ocorrências ligavam-se umas às outras como um colar de contas,
estabelecendo uma relação de causa e efeito.
Havia telefonado para o pai e manifestara toda sua mágoa e decepção, e ele havia
corrido ao seu encontro. Não fosse por isso, o acidente jamais teria acontecido,
Zachary West não estaria numa cama de hospital, correndo risco de vida, e seu pai não
estaria sofrendo com a possibilidade de um processo por direção perigosa... Ou pior,
caso o Sr. West não sobrevivesse. Não queria nem pensar nessa hipótese.
— Você sempre foi mimada e egoísta! — Noelle acusou. Mais uma vez, Luisa
preferiu não responder. Errara ao agir de maneira explosiva só porque o pai esquecera
o dia de seu aniversário e saíra com a esposa, mas sentira-se tão magoada, que não
havia pensado nas conseqüências. Ele sempre fora distraído, e todo o ano tinha de
lembrá-lo sobre seu aniversário com alguma antecedência. Mas ultimamente o via
pouco, e não tivera uma oportunidade para refrescar sua memória.
Telefonara uma semana antes da data, pensando em convidá-lo para um almoço de
comemoração, mas não o encontrara e havia deixado um recado com Noelle que,
obviamente, não o transmitira. Em vez disso, convencera o marido a acompanhá-la num
almoço de negócios. Estava determinada a afastar Luisa da vida deles, e seu pai
parecia cego à batalha travada entre as duas mulheres.
Apesar de tudo, Luisa compreendia a posição de Noelle. Devia ser terrível
conviver com uma enteada quase de sua idade, uma presença incômoda que ressaltava a
diferença existente entre ela e o marido. Além do mais, sentia ciúmes do afeto que
Harry Gilbey dedicava à filha, fruto do amor que vivera com outra mulher.
Luisa era muito parecida com a mãe, e Noelle havia visto muitas fotos quando
visitara a casa pela primeira vez. Anna Gilbey havia sido uma mulher graciosa e
adorável, que morrera de um ataque cardíaco aos quarenta anos e deixara uma filha
pequena, lembrança viva do amor que Harry conhecera aos vinte anos de idade. Após a
morte de Anna, seu pai vivera solitário, e Luisa era capaz de entender porque decidira
casar-se novamente, apesar da escolha tê-la surpreendido e aborrecido. Entendia as
razões do pai, os sentimentos de Noelle, mas isso não tornava as coisas menos difíceis.
Sempre fora muito ligada ao pai, e ver estes laços cortados subitamente, por alguém
que mal conhecia, era algo que não conseguia aceitar.
Mesmo assim, fazia o possível para conviver com a nova situação, porque não
queria magoar seu pai. Sabia que ele sofria entre as duas oponentes, e gostaria de vê-
lo feliz novamente, apesar de não acreditar que o casamento com uma mulher vinte
anos mais nova pudesse ser o caminho para a felicidade.
Se pelo menos não houvesse ficado tão magoada com a história do aniversário...
Mas, no passado, a data sempre havia sido comemorada de maneira especial, com um

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

almoço em restaurantes maravilhosos e tardes inteiras em companhia do pai. Este fora


o primeiro ano depois de seu casamento, e havia sido doloroso passar a data sem a
presença do pai. Reagira de maneira infantil quando soubera que ele havia saído para
um almoço, e havia telefonado para a festa e o enchera de culpa.
Agora estava arrependida... Mas como podia imaginar que uma explosão emocional
teria conseqüências tão desastrosas?
— Seu pai vai perder a licença por dois anos, no mínimo, e os advogados estão
prevendo coisas bem piores. Não posso ficar a disposição dele o tempo todo, o que
significa que teremos de contratar um motorista. Ele vive dizendo que o orçamento
está apertado, mas sei que podemos pagar por isso. Aliás, seu pai não era tão pão duro
quando nos casamos. Se tivesse um motorista, nada disso teria acontecido. Ele não
tem mais idade para dirigir o próprio carro.
— Mas... Meu pai tem cinqüenta anos!
O que a fizera mudar de idéia? Antes do casamento, Noelle vivia repetindo como
o futuro marido era cheio de energia, e Harry acreditara nela a ponto de viver como
um jovem durante um ano. Trabalhava duro e estava sempre disposto a fazer as
vontades da jovem esposa, e quando não ia a festas, jantares e almoços de negócios,
estava jogando golfe no clube com algum cliente, ou com pessoas que Noelle julgava
importante impressionar.
— Seus reflexos não são mais os mesmos — insistiu a loira.
— Talvez ele tenha exagerado nas festas!
— Isso mesmo, jogue toda a culpa sobre os meus ombros! Você adoraria sair por
aí me acusando de tudo! Mas eu não sou culpada! Seu pai sempre gostou de festas,
mesmo antes de me conhecer!
Era verdade. Seu pai sempre havia apreciado a vida social intensa, e gostava da
companhia de pessoas mais jovens, como a loira que havia admitido como secretária e
por quem se apaixonara. Noelle o encorajara, e Harry Gilbey havia sido incapaz de
resistir ao ímpeto de ser jovem novamente.
Luisa suspirou, e fitou a madrasta com um brilho de apelo nos olhos azuis:
— Noelle, por que temos de brigar o tempo todo? Especialmente agora, quando
papai está vivendo uma fase tão difícil... Ele vai precisar de nós duas. Não podemos ser
amigas?
— Você já nos atrapalhou muito! Deixe-nos em paz! Harry é problema meu, não
seu — e virou-se para partir. Havia dado alguns passos, quando parou e retirou um
jornal da pasta que levava sob o braço. — Já viu isso? — e foi embora sem esperar
pela resposta.
Luisa ficou parada na calçada, olhando para a fotografia estampada na primeira
página do jornal. A manchete dizia: ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO IMPEDE A
EXPOSIÇÃO DE ZACHARY WEST.
Mais preocupada e deprimida que antes, olhou em volta em busca de um lugar
para sentar-se. Havia um café perto da esquina, e ela caminhou até lá e deixou-se cair
na cadeira mais próxima da porta.
— O que vai querer? — perguntou a garçonete.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Café, por favor.


— Vai comer alguma coisa?
— Um... Sanduíche de queijo.
A jovem afastou-se e ela abriu o jornal sobre a mesa. Já havia terminado de ler o
artigo quando a garçonete trouxe o sanduíche e o café que, por alguma razão, tinham
um gosto amargo em sua boca. Não conseguia deixar de pensar no que acabara de ler.
As conseqüências do acidente eram ainda piores do que havia imaginado. Zachary
West era um artista, um pintor talentoso e famoso, e já recebera pequenas fortunas
pelas telas que produzia.
No momento do acidente, Zachary viajava em seu furgão, transportando várias
telas para uma exposição que realizaria na mais famosa galeria de Londres. Não
expunha suas obras há muitos anos, e isso tornava o evento ainda mais comentado e
esperado. Mas, agora, o mundo jamais saberia como desenvolvera sua técnica desde a
última exposição, porque todos os quadros que ele produzira nos últimos quatro anos
haviam sido queimados no terrível incêndio que destruíra o veículo e desfigurara o
rosto do artista.
Abalada, Luisa pagou a conta e deixou o café. Foi para casa, guardou as compras
que fizera e o jornal que havia colocado em uma das sacolas, e depois telefonou para o
pai.
— Como vai indo, papai? — perguntou.
— Já viu os jornais?
— Sim, mas... Você não deve...
— Não devo o quê? Assumir a responsabilidade pelo que fiz? Meu Deus, quando
penso...
— Não pense. Não agora, papai. Você ainda está abalado, e precisa descansar
para recuperar-se dos ferimentos.
— E como posso deixar de pensar? Um homem como aquele... Um gênio, um artista
talentoso com um futuro brilhante....e eu o destruí.
— Não fale assim! Ele vai se recuperar, e poderá produzir outras obras quando
estiver bem novamente. Ainda é um homem jovem... Além do mais, a culpa é minha.
— Sua? Você enlouqueceu, Luisa? Era eu quem estava dirigindo aquele maldito
carro!
— Mas, se eu não houvesse telefonado para dizer todas aquelas bobagens...
— Isso não muda nada. Eu estava no volante, e havia bebido um pouco de vinho
branco. Felizmente bebi pouco, porque os policiais me fizeram soprar naquela coisa que
mede a dosagem alcoólica, e eu passei no teste. Mas sei que meus reflexos estavam
alterados, porque eu não tenho o hábito de beber. Meu cérebro estava mais lento que
o normal, e sei que estava dirigindo distraído. Entrei naquela curva como se a estrada
fosse minha, e fui parar na pista contrária. Estava nervoso, porque havia discutido com
Noelle e... Bem, isso não importa. A verdade é que eu sou o único culpado, filha, e você
não tem nada a ver com isso.
Naquela noite, quando assumiu o plantão, Luisa continuava tensa e deprimida.
Notando sua expressão preocupada, Mary Baker, a responsável pelo turno diurno,

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

perguntou:
— Algum problema? Você não parece nada bem.
Mary era uma mulher casada, com dois filhos adultos, e trabalhava no hospital há
mais de quinze anos. Doce e carinhosa, havia sido uma grande amiga durante o período
de treinamento, quando Luisa ainda assustava-se com as coisas que via naquela
enfermaria.
— Eu estou bem — mentiu, tentando sorrir e convencê-la. Por mais agradável que
fosse, Mary jamais conseguira conquistar sua confiança. — É só uma dor de cabeça...
— Tem dormido o suficiente? Sabe como é importante dormir algumas horas a
mais quando se está no plantão noturno, não é?
— Eu tenho dormido bem, não se preocupe. Como foi o dia? Alguma ocorrência
importante?
Mary fitou-a como se quisesse insistir no assunto, mas em seguida reuniu os
relatórios e deu todas as informações sobre os pacientes, até chegar em Zachary
West.
— Ele será liberado em pouco tempo — disse.
— Liberado? Como? — Luisa espantou-se.
— Na verdade, ele será transferido para um hospital de Londres, onde receberá
tratamento especializado. Parece que temos uma celebridade ocupando um de nossos
leitos. Passei o dia todo atendendo telefonemas de jornalistas em busca de
informações. Acredita que um deles queria vir até aqui para fotografá-lo?
— Mas... Por que vão transferi-lo?
— Parece que seu empresário não considera nosso hospital bom o bastante para o
astro, e quer levá-lo para um centro de cirurgia plástica e re-implante de pele, em
Londres. Queriam levá-lo hoje, mas o doutor Hallow não autorizou a remoção. Disse
que só permitirá a transferência quando o Sr. West puder suportar a viagem sem
correr riscos.
— Uma viagem até Londres! Que absurdo! Não sabem como esse tipo de lesão é
dolorida? Imagine o sofrimento desse homem.
Zachary estava sendo alimentado através de sondas intravenosas, e recebia
medicação constante para superar os primeiros dias, quando a dor era insuportável.
Luisa aproximou-se da cama do paciente e olhou para a máscara inflexível que ele
mostraria ao mundo por vários meses, até que pudesse enfrentar uma cirurgia
plástica. A foto que havia visto no jornal mostrava um homem atraente, e era terrível
vê-lo naquelas condições.
Conforme Mary havia dito, felizmente era forte, ou jamais teria sobrevivido ao
acidente, e nem estaria mostrando os primeiros sinais de recuperação.
Era possível perceber o quanto sua estrutura física era saudável, com músculos
típicos de alguém habituado a exercícios físicos ou trabalho constante. A metade
inferior do corpo escapara ao incêndio, e as pernas eram bronzeadas e bem torneadas.
De repente ele ergueu as pálpebras e Luisa descobriu-se fitando os olhos
cinzentos dominados quase que totalmente pelas pupilas, um sinal claro da ação das
drogas que recebia para suportar a dor.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

O espírito profissional dominou-a e ela inclinou-se em sua direção com um sorriso


confiante:
— Olá. Como está se sentindo?
Zachary West nem tentou responder. Lembrava-se vagamente daquela mulher, e
uma ruga surgiu entre suas sobrancelhas. Era a jovem com ar frio e seguro que vira ao
lado de sua cama antes, embora não soubesse precisar a quanto tempo isso
acontecera.
O tempo transformara-se num labirinto que ele percorria interminavelmente,
buscando uma saída. Não sabia há quantos dias estava naquele lugar; apenas que
continuava acordando e dormindo novamente, e que os momentos de consciência eram
dolorosos e breves, quase irreais.
Não conseguia descobrir onde estava ou o que havia acontecido, e a dor ameaçava
enlouquecê-lo cada vez que abria os olhos. Sempre escapava da própria consciência
com um sentimento de alívio porque, quando estava acordado, o corpo todo doía,
embora não soubesse por quê. Tudo o que sabia era que sua vida havia parado de
repente quando estava dirigindo ao longo de uma estrada e, desde então, a dor passara
a ser uma presença constante.
— Sou a enfermeira Gilbey — disse a mulher. — Como se sente, Sr. West?
Falava em voz baixa, com uma suavidade que devia acalmá-lo, mas que só servia
para irritá-lo ainda mais. Odiava ser tratado como criança!
Zachary tentou engolir e percebeu que estava com sede.
— Água... — balbuciou, apesar dos lábios secos.
Ela deve ter compreendido, porque inseriu um canudo entre seus dentes. Zac
sugou com dificuldade, sentindo o líquido frio na boca, e só parou quando saciou a
sede. Seus olhos fecharam-se em seguida.
— Está sentindo muito dor?
Como alguém capaz de perguntas tão estúpidas podia ser uma enfermeira?
Abriu os olhos e fitou-a com desprezo. Incapaz de responder como gostaria,
voltou a fechá-los e pouco depois mergulhava novamente em seus sonhos. A garota o
esperava com seu rosto pálido emoldurado por cabelos negros, um sorriso radiante que
o fazia sentir vontade de cantar. Zachary flutuou em sua direção, sorrindo e aliviado.
No dia seguinte, David Hallow encontrou o paciente acordado e, pela primeira
vez, pôde falar com ele.
— Seu empresário quer transferi-lo para um hospital especializado em cirurgia
plástica e re-implante de pele, em Londres, mas receio que... Apesar de já ter
melhorado bastante e da minha confiança num rápido processo de recuperação, no
momento não posso autorizar a transferência, porque ela implica numa viagem.
— Entendo... — Zachary sussurrou.
Não parecia preocupado com as notícias trazidas pelo médico.
— Vamos cuidar de tudo da melhor maneira possível, Sr. West, como estamos
fazendo desde que chegou.
— Tenho estado dopado demais para notar — Zac disse de repente, a voz mais
clara do que já estivera desde o acidente.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

David riu:
— Foi um procedimento necessário para que suportasse os primeiros dias.
Tínhamos de evitar movimentos excessivos e combater as possibilidades de um
choque, mas agora começaremos a diminuir as doses. Não queremos que se acostume
com a tranqüilidade da inconsciência...
O médico riu novamente, mas Zac respondeu com ar sombrio:
— Não existe a menor possibilidade de isso acontecer. Odeio perder o controle.
— É claro. Bem, estou feliz por ver que está se recuperando depressa. Virei vê-lo
novamente amanhã, um pouco mais cedo. Afinal, amanhã é sábado. Cruze os dedos para
que eu tenha um final de semana sossegado — brincou.
Desta vez os olhos de Zachary brilharam com um toque de humor:
— Sinto muito, doutor, mas não estou em condições.
— Tem razão — David respondeu encabulado.
O paciente sofrerá queimaduras graves nas mãos, e a dor ainda devia incomodá-lo
intensamente.
Naquela noite, conversando com Luisa. David comentou:
— Tenho um profundo respeito por aquele homem. Já vi pessoas com queimaduras
que não representavam nem a metade das dele fazendo escândalos impressionantes.
Zachary West é tão corajoso, que conseguiu até fazer piadas esta manhã. Eu não teria
tanta força. Tenho horror de sofrer esse tipo de lesão! Acho que por isso decidi me
especializar em cirurgia de pele. Meu pai sofreu queimaduras horríveis numa explosão
na indústria química onde trabalhava, e eu nunca esqueci de quando fui visitá-lo, uma
semana mais tarde. Eu tinha apenas dez anos de idade, e passei meses tendo
pesadelos. Sonhava que era eu quem estava naquela cama.
— Meu Deus! Deve ter sido uma experiência traumática, especialmente para uma
criança.
— Felizmente já passou. Bem, vou para casa. Tive um dia terrível no centro
cirúrgico, e preciso dormir um pouco. Vemos-nos amanhã. Animada para o baile?
— Muito! Não danço há anos, e é uma das coisas que mais gosto de fazer. Vou até
comprar um vestido novo!
— Para sair comigo? Quanta honra! — David riu, acentuando as linhas de cansaço
em torno dos olhos e da boca.
No dia seguinte, Luisa só conseguiu sair para fazer suas compras no final da
tarde, mas havia apenas uma loja de roupas finas em Whinbury, e não precisava de
muito tempo para analisar as possibilidades. Encontrou um vestido de seda azul de
cintura baixa, com as costas em renda e saia longa, que adquiria mais volume graças
aos três saiotes de renda que a sustentavam.
— Os clássicos sempre agradam — comentou a vendedora. — E seu corte de
cabelo combina com o ar vitoriano criado pelo estilista. Naquela época os cabelos eram
cacheados, mas acho que só as garotas usavam esse tipo de penteado. Na sua idade...
Luisa riu. A vendedora devia ter dezoito ou vinte anos e, para ela, uma mulher de
vinte e sete era uma velha. De repente, teve a sensação de ter envelhecido sem notar.
Vinte e sete anos não eram exatamente uma vida... Por que não podia usar os cabelos

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

cacheados, se quisesse acompanhar o estilo da roupa?


Satisfeita com a compra, voltou para casa, tomou um banho, lavou os cabelos e
passou algum tempo na frente do espelho, manejando o modelador elétrico que
ganhara há muitos anos e que jamais havia usado. Era ótimo para cachear os cabelos.
Quando terminou de vestir-se, parou na frente do espelho e mordeu o lábio. O
novo penteado era absolutamente diferente, e mudava sua aparência por completo. Por
que tivera uma idéia tão maluca? Sentia-se ridícula, e teria lavado os cabelos
novamente, se David Hallow não houvesse chegado há quinze minutos.
Respirando fundo, afastou-se do espelho e foi recebê-lo.
— Luisa! Meu Deus, você está irreconhecível! Seus cabelos...
— Estão horríveis, não? Não sei por que resolvi destruí-los desse jeito, mas...
— Você está linda!
— Eu... Estou?
— O penteado é perfeito para esse vestido! Escolheu uma roupa bastante...
Sensual.
Luisa ficou vermelha, e David aproximou-se para segurar sua mão com delicadeza:
— O rubor também é muito sensual.
— Não se atreva a rir de mim, David Hallow! — ela protestou, ainda mais
vermelha que antes.
— Não estou rindo. Esse rubor é tão feminino, que sinto vontade de protegê-la do
mundo.
— Nos dias de hoje, e na minha idade? — perguntou incrédula.
— Sei que são atitudes antiquadas. Puxar a cadeira, abrir a porta, levantar-se
quando uma mulher entra na sala... Mas eu gosto da diferença que existe entre os
homens e as mulheres, e não sei por que as pessoas insistem em negá-la.
— Também não sei — Luisa sorriu.
— Sabe o que mais me atraiu em você? Sua feminilidade. Luisa fitou-o com ar
surpreso. David jamais havia dito essas coisas antes, e várias vezes ela perguntara-se
como um homem como aquele conseguira chegar aos trinta e cinco anos de idade sem
casar-se. Talvez fosse por causa do trabalho, dos plantões e da dedicação que,
certamente, interpunham-se entre ele e as namoradas que havia tido.
— O que houve? Está aborrecida, ou ficou surpresa por eu ter admitido que gosto
de mulheres femininas?
Ela riu e balançou a cabeça. David puxou-a para mais perto e inclinou a cabeça,
mais antes que os lábios se encontrassem, o telefone pôs um ponto final no momento
de romantismo.
— Não atenda!
— Sabe que não posso fazer isso — ela sorriu. — Pode ser meu pai.
Mas não era Harry Gilbey. Era uma das enfermeiras do hospital e, com um
suspiro, Luisa estendeu o fone na direção do cirurgião.
— É para você.
— Está vendo? Eu disse que não devia atender! — e identificou-se ao aparelho.
Depois de ouvir durante alguns instantes, perguntou: — Há quanto tempo está

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

acontecendo?
Luisa o observava em silêncio, torcendo as mãos num gesto ansioso. Se David
tivesse de voltar ao centro cirúrgico, não poderiam ir ao baile.
Finalmente ele desligou e repetiu:
— Eu disse que não devia atender.
— Não sabia que estava na escala das chamadas de emergência.
— Não estou, mas um dos meus pacientes está aguardando uma cirurgia há três
dias, porque não está em condições de suportar os riscos da operação. A enfermeira
disse que ele está estável há vinte e quatro horas, mas o doutor Dawkins não quer
decidir sozinho. Ele pediu que eu fosse até lá para dar uma olhada no paciente.
— Ele vai tentar convencê-lo a fazer a cirurgia.
— Com certeza. Dawkins morre de medo de correr riscos.
— Isso significa que não iremos ao baile?
— É claro que não! Ele vai tentar me convencer, mas eu não disse que vou
concordar. Vamos passar pelo hospital a caminho do baile, e eu vou examinar o
paciente. Se ele estiver em condições de enfrentar a cirurgia, Dawkins terá de
assumir o comando. Afinal, o plantão é dele!
— Por que não esperam até amanhã para operá-lo?
— Porque não sei se ele pode esperar mais tempo. Vamos ver...
Quando chegaram ao hospital, David perguntou:
— Quer esperar no carro?
— Oh, não. Você pode demorar séculos! Vou tomar um café com a enfermeira
Jenkins.
— E mostrar o vestido novo...
— Também — ela riu.
Separaram-se no saguão do prédio, e Luisa dirigiu-se à unidade dos queimados.
Helen Jenkins estava supervisionando a enfermeira que distribuía a medicação
noturna, e Luisa aproximou-se das duas com passos silenciosos.
Ao vê-la, Helen espantou-se:
— O que houve? Não consegue ficar longe do trabalho? Rindo, Luisa explicou:
— David teve de vir examinar um paciente, e eu decidi tomar um café com você
enquanto espero.
— Sirva-se. Estarei no escritório em um minuto.
— Que vestindo lindo, Luisa — disse a mais jovem.
— Obrigada — ela sorriu. — É a primeira vez que o uso.
— Combina com você — a garota afirmou, erguendo os olhos para os cabelos
cacheados.
Helen também estava observando a aparência da colega:
— Nunca vi você usar os cabelos desse jeito — comentou.
— E nunca mais verá.
— Mas ficou ótimo! — a jovem exclamou.
— Eu também gostei — Helen concordou. — É diferente.
— Obrigada.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

Sentindo o rosto vermelho, Luisa virou-se para ir ao escritório, e havia


percorrido metade da distância, quando uma voz fraca a fez parar. Era Zachary West,
e parecia agitado.
Preocupada, Luisa aproximou-se do leito e perguntou:
— Chamou, Sr. West? Ele fitou-a em silêncio.
— Está sentindo alguma coisa?
Zac fechou os olhos e, mais agitado que antes, murmurou:
— Estou vendo coisas! Acho que estou ficando maluco... Louco! Meu Deus, me
ajude!
Seus olhos abriram-se subitamente e o corpo estremeceu, como se estivesse
dominado pelo pavor.
— Por favor, Sr. West, fique calmo e explique o que está sentindo.
— Saia daqui! Vá embora! Saia!
A reação foi tão inesperada que, sem dizer uma única palavra, Luisa obedeceu e
correu para o escritório.
Horrorizada, sentiu que os olhos estavam cheios de lágrimas, e apanhou um lenço
de papel para evitar que borrassem a maquiagem. Afinal, qual era o problema? O
homem estava sofrendo dores horríveis, e tinha o direito de estar mal humorado. Não
era a primeira vez que ouvia gritos como aqueles! Por que estava choramingando?
Encheu uma xícara com o café da garrafa térmica, mas não pôde sequer prová-lo
porque, no momento em que Helen entrou na sala, o telefone tocou.
Era David.
— Está pronta?
— Sim, é claro — respondeu, furiosa com o tom incerto da voz. — Como está o
seu paciente?
— Estável, mas não o bastante para ser operado. Espero você no carro em dois
minutos.
Luisa desligou e virou-se para a colega:
— Desculpe, Helen, mas David demorou menos do que eu esperava. Vamos ter de
deixar o café para mais tarde.
— Divirta-se. Mas, por favor, não chegue atrasada.
A caminho da saída, Luisa parou na enfermaria para observar Zachary West e,
mais tranqüila por vê-lo dormindo novamente, seguiu ao encontro de David.
Como já esperava, a chegada no salão de baile causou reações de todos os tipos.
Todos os colegas do hospital sabiam que estavam saindo juntos, mas uma aparição em
público era o mesmo que admitir a intenção de transformar o relacionamento em algo
mais sério.
No banheiro, uma das enfermeiras comentou:
— Quando estiver escolhendo as damas de honra, lembre-se de mim.
— Ah, por favor, Jane! — Luisa cortou com impaciência. — Estamos saindo há
alguns meses, e casamento nem passou pela minha cabeça.
— Aposto que sei o que passou pela cabeça dele! — Jane riu. — Vi como David
Hallow olha para você.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

Luisa ficou vermelha, e todas riram. Era irritante! Por que tinha de ruborizar
como uma adolescente? David podia achar gracioso e feminino, mas era um tipo de
charme que ela preferia não ter.
O baile foi encerrado à uma e meia, e David levou-a de volta ao hospital.
— Divertiu-se? — ele perguntou no estacionamento, depois de desligar o motor.
— Foi maravilhoso! Mas gostaria de não ter de trabalhar... Depois de apreciar o
jantar delicioso e o champanhe, rir e conversar com os amigos e dançar várias músicas,
não tinha a menor disposição para vestir o uniforme e enfrentar um plantão de seis
horas.
— Eu também — ele respondeu. — Se tivesse o resto da noite livre, poderíamos
aproveitar para fazer alguma coisa...
Foi o suficiente para que ela ficasse vermelha como um tomate. Sorrindo, o
doutor Hallow acariciou seu rosto e murmurou:
— Você é tão encantadora!
David inclinou-se para beijá-la e Luisa fechou os olhos. Por alguma razão, não
conseguia entregar-se ao beijo como gostaria, e seu corpo insistia em afastar-se como
se tivesse vontade própria.
Depois de alguns segundos, ele fitou-a nos olhos e perguntou:
— Escolhi o momento errado, não é?
— Desculpe, David, mas acho que não estou com a melhor das disposições. Deve
ser porque tenho de assumir o plantão e...
— Não precisa dar explicações. Teremos outras oportunidades, não? E agora,
trate de correr, ou vai se atrasar. Boa noite.
Luisa vestiu o uniforme, despediu-se de Helen Jenkins e foi dar uma olhada em
Zachary West.
Estava dormindo, e ela aproveitou para observá-lo, tentando compreender a
estranha compulsão que a dominara durante toda a noite. Queria vê-lo, e não havia
conseguido esquecê-lo nem por um minuto. O corpo estivera ao lado de David, mas a
cabeça não havia saído daquela enfermaria, invadida pelo homem hostil e agressivo por
quem sentia coisas tão estranhas.
Depois de alguns momentos, percorreu o restante da enfermaria e certificou-se
de que todos os pacientes dormiam tranqüilos. Voltou para o escritório e tentou
concentrar-se no trabalho burocrático, mas deixara a porta aberta e, a cada instante,
seus olhos buscavam o leito de Zachary West. Seriam às seis horas mais longas de sua
vida...
Zachary West permaneceu na enfermaria por mais uma semana, e mostrava sinais
de recuperação a cada dia. Só esperava que David Hallow o liberasse para a viagem a
Londres, onde seria tratado pelos maiores especialistas da área. Luisa também
esperava a liberação com ansiedade, pois sabia que tudo voltaria ao normal quando
Zachary partisse.
Era estranho... Queria que ele fosse embora, mas era invadida por um sentimento
estranho cada vez que David Hallow surgia para examiná-lo.
Doze dias após o acidente, Luisa entrou na enfermaria no início do plantão e

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

encontrou outro paciente no leito de Zachary West. Ele se fora.

Capítulo III

Meses se passaram antes que Luisa ouvisse falar Zachary West novamente.
Pensava nele de tempos em tempos, sempre quando menos esperava, como se invadisse
sua cabeça quando estava distraída com outras coisas.
Cada vez que isso acontecia, era como se levasse um choque. Seus nervos ficavam
tensos, e a garganta contraía-se subitamente.
Podia até compreender tais reações se estivesse apaixonada pelo homem, mas
nem gostava dele! Não havia sido um paciente fácil, e instintivamente, sabia que ele
era frio, duro e indiferente, mesmo quando perfeitamente saudável. A foto que vira no
jornal fora o bastante para compreender um pouco sobre sua personalidade. Não era
um homem de quem se podia gostar com facilidade, e o artigo comprovara suas
impressões.
Não sabia por que era tão difícil esquecê-lo, e isso a irritava.
Seu pai jamais o mencionara, como também não falava sobre o acidente. O caso
ainda não fora para os tribunais e, até que fosse intimado a depor, Harry Gilbey
preferia esquecer toda aquela história. Luisa podia compreender, porque queria a
mesma coisa. E por que não conseguia?
Saía com David sempre que estava de folga, o que significava muito pouco. Agora
podia entender porque ele não se casara. Como, se nunca tinha tempo para nada?
Dedicava-se totalmente ao trabalho, falava sobre ele quando não estava no hospital, e
agia com absoluta concentração durante as horas de plantão.
Mas isso não a incomodava. A relação calma e afetiva era satisfatória, tanto para
ela quanto para David. Nunca sonhara com uma paixão selvagem e avassaladora, e o
bom senso do doutor Hallow era justamente o que buscava num homem.
O que tornava a situação ainda mais estranha. Por que não conseguia esquecer
Zachary? Não era o tipo de homem calmo e sensato que preferia ter a seu lado.
Era puro instinto, como o vento e os trovões. Impossível prever ou controlar.
Luisa sempre tivera pavor de tempestades, e odiava o som do vento forte. E Zachary
West a perturbava e assustava da mesma forma.
Um pouco antes do Natal, Luisa recebeu um telefonema do pai em sua casa. Eram
pouco mais de três horas, e havia acabado de sair da cama.
— Acordei você, querida?
— Não, papai, eu já estava acordada.
— Vai trabalhar esta noite, ou podemos jantar juntos? Queria conversar sobre o
Natal. Já tem planos?

22
Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Vou trabalhar no dia de Natal, mas terei dois dias de folga depois dele.
Não tocara no assunto com o pai, porque suspeitava que Noelle não a quisesse por
perto, e preferia não embaraçá-lo forçando-o a dizer a verdade.
— Podemos nos encontrar para conversar?
— Seria maravilhoso, papai. Esta noite estou de folga.
— Ótimo! Quer jantar no Cherry Tree?
— Eu adoraria. — Era o mais novo restaurante de Whinbury, e estiva lá uma ou
duas vezes com David. — O Cherry Tree fica perto daqui, e podemos nos encontrar lá.
— Perfeito. Seremos só nós dois.
Luisa sorriu. Harry estava dizendo que Noelle não os acompanharia, o que não era
nada surpreendente. Sabia que a madrasta evitava sua companhia sempre que possível,
e sentia o mesmo por ela. Mesmo assim, preferiu não demonstrar o alívio que
experimentava.
— À que horas nos encontramos? — perguntou.
— Às sete e meia.
— Estarei lá.
Mais tarde, Luisa escolheu o vestido que o pai mais gostava, um traje azul e
simples de mangas compridas, gola alta e corte reto, que realçava seus olhos e
favorecia as formas harmoniosas.
Quando chegou, Harry já a esperava na porta. Era um homem alto e elegante,
apesar dos cinqüenta anos e dos cabelos grisalhos. Praticava esportes diariamente,
incluindo tênis e natação, e por isso mantinha a forma física.
As roupas também eram próprias para um homem mais jovem, acompanhando as
últimas tendências da moda, e qualquer pessoa poderia enganar-se a respeito de sua
idade, se não o observasse com muita atenção.
Fitando-o, Luisa sentiu uma onda de tristeza. Por que ele dava tanta importância
à juventude? Era seu pai e o amava intensamente, e era terrível vê-lo travando uma
batalha perdida contra uma entidade invencível.
— Você está linda, querida.
— Obrigada, papai. Você também está ótimo.
Não era verdade. O rosto alegre começava a mostrar sinais de cansaço e
preocupação e, desde o acidente, Harry Gilbey passara a aparentar sua verdadeira
idade.
— Quer ir para a mesa, ou prefere tomar um drinque primeiro? — ele perguntou.
— Vamos beber alguma coisa — Luisa respondeu, esperando distraí-lo de suas
preocupações. Parecia muito tenso, e estava começando a suspeitar que algo mais havia
acontecido.
Harry pediu um uísque e Luisa preferiu vinho branco. O garçom trouxe o
cardápio, e eles escolheram o que comeriam enquanto saboreavam suas bebidas.
Depois de pedirem os pratos, Harry disse:
— Luisa, eu queria conversar sobre o Natal por que... Bem, as coisas estão...
— Noelle não concorda com minha presença? — ela completou, apesar do
sofrimento intenso provocado pelas palavras.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Não é bem assim...


— Vamos ser honestos, papai. Ela gostaria que eu sumisse para sempre, e talvez
esta seja realmente a melhor solução. Sua vida seria muito mais fácil.
— Isso me tornaria absolutamente infeliz. Por que está dizendo coisas tão
absurdas?
— Desculpe, papai. Esqueça o que eu disse, está bem? E não se preocupe comigo,
porque estarei de plantão no Natal. Sabe como são esses feriados para quem trabalha
num hospital...
Era inútil tornar as coisas mais difíceis. Seu pai apaixonara-se por uma mulher
vinte anos mais jovem e casara-se com ela. Agora estava enfrentando as
conseqüências. Noelle era incansável, queria Luisa fora de suas vidas e estava
determinada a alcançar seu objetivo. Harry Gilbey não era capaz de enfrentá-la. Era
um homem muito bom, e só queria uma vida pacífica e agradável. Sempre que a esposa
começava uma discussão, ele a deixava vencer. E quanto mais cedia, mais ela exigia.
Não podia evitar. Era sua natureza e, percebendo seu ponto fraco, Noelle o explorava.
Com um suspiro triste, Harry comentou:
— Nossos Natais eram maravilhosos.
— Sim, eu me lembro, papai.
— Mas este ano... Noelle quer passar o Natal na Suíça, num hotel maravilhoso que
alguns amigos dela conheceram na última temporada. Decidiu que prefere passar o
feriado esquiando na neve.
— Parece fabuloso — Luisa opinou com sinceridade.
Já havia passado férias na Áustria e na Suíça, esquiando em companhia do pai, e
não podia negar o fascínio exercido pelo cenário, pelo esporte e pela vida social que o
cercava.
— Gostaria muito que você fosse conosco, mas...
— Quem sabe da próxima vez? — cortou, tentando mostrar indiferença.
O garçom aproximou-se para avisar que a mesa já havia sido preparada e, depois
de acomodarem-se, Luisa mudou de assunto. Contou várias histórias sobre uma nova
paciente da enfermaria dos queimados, uma senhora mal humorada e autoritária que
estava transformando a vida de todos num inferno.
— Sabe o que ela disse a Anthea Carter? Que seu trabalho não era da conta de
ninguém e que não pretendia responder a perguntas impertinentes. Anthea ficou tão
irritada, que fechou a pasta de dados e avisou que, enquanto não respondesse, os
médicos não poderiam operá-la. Não pode imaginar a cara da Sra. Abbot.
— E a operação é séria?
— Não, apenas uma pequena correção. A mulher é forte como um touro, e David é
um cirurgião muito competente.
— E isso é sério?
— A correção?
— Não, querida. Você e David.
Luisa ficou vermelha e abaixou a cabeça.
— Isso significa sim, ou não? — o pai insistiu, incapaz de conter o riso.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Não sei. Gosto muito dele, mas ainda não falamos sobre casamento, se é o que
quer saber.
— Qual dos dois está incerto? — ele perguntou, tentando interpretar sua
expressão.
Tinha certeza de que a filha estava apaixonada, mas havia algo de estranho que
não conseguia definir. Se David Hallow magoasse sua menina, teria de acertar contas
com ele!
Mas Luisa não parecia ter as mesmas preocupações.
— Papai, o problema é que somos ocupados demais para pensar em casamento —
riu. — E estamos mais preocupados com nossas carreiras, pelo menos por enquanto.
Quem sabe um dia...
— Querida, sei o quanto é séria sobre sua profissão, mas o casamento não a
impediria de trabalhar. Não quer ter filhos? Você sempre gostou de crianças. Podia
jurar que adoraria ter algumas.
— E é verdade. Mas... Não sei... Não sinto nenhuma urgência em me casar e ter
filhos, entende?
— Talvez David não seja a pessoa ideal para você. Quando estiver realmente
apaixonada pelo homem certo, sentirá vontade de casar-se o mais depressa possível e
começar uma família.
— Papai, que idéia mais antiquada! — ela riu. — Hoje em dia as mulheres têm o seu
trabalho e são capazes de viver por conta própria. Não precisam mais do casamento
como uma forma de obter segurança e proteção.
— Mas ainda precisam de amor.
O garçom veio servir o prato quente e, quando ele afastou-se, Harry perguntou:
— O que vai querer como presente de Natal? Finalmente Luisa relaxou, certa de
que, daquele momento em diante, poderiam divertir-se com assuntos menos delicados
e esquecer todos os problemas.
Uma hora mais tarde, quando já estavam saindo do restaurante, Harry Gilbey
decidiu livrar-se da carga que o oprimira durante toda a noite.
— Com relação ao acidente... Bem, o julgamento foi marcado. Pálida e assustada,
Luisa encarou-o e perguntou:
— Para quando?
— Final de janeiro.
— Ainda terá de esperar todo esse tempo?
— Parece mentira, não é?
— Isso é crueldade! Obrigar as pessoas há esperar tanto tempo alimentando uma
ansiedade que pode prejudicar a saúde e desorganizar suas vidas!
— Tive um ano terrível por causa desse maldito processo. O acidente aconteceu
na metade do primeiro semestre, e ainda não consegui encerrar essa história.
Felizmente passei no teste de dosagem alcoólica, ou estaria ainda mais encrencado.
— O que seu advogado diz a respeito de tudo isso, papai? O que pode acontecer?
Ele encolheu os ombros:
— Posso perder a licença de motorista por dois ou três anos, pagar multas... É

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

difícil dizer. Depende do tribunal — e olhou para o relógio. — Vou acompanhá-la até
sua casa. Posso usar seu telefone para chamar um táxi?
— É claro que sim! — ela riu, aceitando o braço que ele oferecia e caminhando a
seu lado. — É assim que está se locomovendo? De táxi?
— Não voltei a dirigir desde o acidente, e acho que nunca mais terei coragem de
segurar um volante. Não consigo esquecer aquele homem... Arruinei uma vida!
— Como pode saber? Ele já deve ter feito a cirurgia plástica, e é possível até que
já tenha se recuperado. Já vi lesões piores que as dele. Eram queimaduras de apenas
vinte por cento do...
— Pelo amor de Deus! Acha que isso é pouco?
— Não, mas não pode ficar se culpando pelo resto da vida. Foi um acidente!
— Um acidente que eu provoquei. Destruí todos os quadros de um artista famoso,
telas que ele levou quatro anos para concluir e que foram transformadas em cinzas.
Ele deve me odiar!
— Papai, ele sabe que foi um acidente! Quer fazer o favor de parar de se
torturar?
— Você não sabe, Luisa... Oh, meu Deus, preciso contar isso a alguém, ou vou
acabar enlouquecendo. Não posso dizer nada a Noelle, porque ela ficaria furiosa. Não
quero nem pensar no que ela vai fazer quando o caso for julgado e a verdade vier à
tona.
Estavam chegando, e Luisa tentou reconfortá-lo enquanto abria a porta do
apartamento:
— Não pode ser tão ruim, seja o que for. Vou fazer um café, e depois falaremos
sobre essa... Verdade.
Harry afirmou com a cabeça e Luisa percebeu que ele precisava confiar em
alguém para sentir-se melhor. Antes de ir para a cozinha, ela acendeu a lareira
elétrica para criar uma atmosfera mais agradável e aconchegante. Havia um sistema
de aquecimento central, mas o calor do fogo era mais envolvente, próprio para as
noites frias. Deixando o pai na sala, Luisa foi fazer o café.
Minutos depois voltou com uma bandeja, que deixou sobre a mesa ao lado da
lareira.
— Sente-se, papai, e tome o seu café em paz.
Ele obedeceu e segurou a xícara com as duas mãos, como se sentisse muito frio.
Sorrindo, esperando que ele voltasse a falar sobre a culpa que sentia, Luisa
sugeriu:
— Por que não desabafa?
— Eu... Não sei como... A verdade é que esqueci de pagar o seguro.
— Você... O quê?
— A apólice de seguro estava vencida, e eu vivia dizendo a mim mesmo que tinha
de renová-la o mais depressa possível, mas sempre esquecia de enviar o cheque e...
— Meu Deus!
— Se o tribunal decidir que eu fui o responsável pelo acidente, terei de arcar
com todos os prejuízos. Zachary West vai me processar e eu terei de pagar até o

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último centavo, Luisa!


— Oh, papai! — ela gemeu, horrorizada.
— E quando Noelle descobrir, certamente vai me abandonar.
— Que absurdo! De onde tirou essa idéia? É claro que sua esposa não vai
abandoná-lo por causa de um seguro vencido! — protestou, apesar de saber que ele
provavelmente estava certo. Desconfiava que Noelle havia se casado com seu pai por
razões financeiras, e quando soubesse que não havia mais dinheiro, poderia realmente
partir. — De qualquer maneira, o tribunal estipulará um prazo conveniente para que o
pagamento seja efetuado. Não vão forçá-lo a pagar tudo imediatamente!
— Talvez não, mas... Luisa, eu já hipotequei a casa. Precisei de uma quantia com
certa urgência... Para pagar a lua-de-mel. Noelle queria uma viagem ao redor do mundo,
e foi maravilhoso. Mas custou uma fortuna! Depois ela quis um carro novo, e eu achei
que era um desejo bem razoável.
— Chama um Porsche de desejo razoável?
— Ela é muito sensível, e tem alguns complexos por ter sido minha secretária.
Noelle achou que tinha de mostrar ao mundo que as coisas haviam mudado e, para isso,
precisava de roupas novas e um automóvel melhor que aquele sedan velho.
Luisa pensou no estilista que criava as roupas da madrasta e teve vontade de
esmurrá-la. Noelle adorava coisas caras, e nada lhe dava mais prazer do que gastar
dinheiro. Era normal para alguém que sempre vivera na mais absoluta pobreza. Se seu
pai fosse realmente rico, nada disso teria importância, mas se havia pedido
empréstimos para pagar pelas extravagâncias da nova esposa, então, tudo mudava de
figura. Gostaria de saber se Noelle tinha consciência da situação financeira de Harry
Gilbey.
— Também tive despesas com a empresa — ele prosseguiu. — Construímos o
anexo da fábrica quando estávamos tentando conquistar aquele contrato com os
espanhóis. Era necessário, Luisa! Noelle estava certa: quem não busca a expansão,
morre por estagnação. Portanto, hipotequei a fábrica para pagar a reforma.
— Eu não acredito! Afinal, qual é o total da dívida? Harry respirou fundo e
disparou:
— Um quarto de milhão de dólares.
— Papai!
— Eu sei que é uma fortuna, e sei que agi como um tolo.
— Não — ela sorriu, tentando amenizar o sofrimento que via em seu rosto. —
Você só se apaixonou por uma mulher bonita.
— Sim, ela é linda. E inteligente, também. Teve idéias maravilhosas para melhorar
os nossos negócios. Noelle me convenceu a ser mais arrojado, a fazer as alterações
necessárias para acompanhar o progresso. Acho que ela está certa... Não dei muita
atenção à empresa depois da morte de sua mãe. Perdi o interesse, e passei anos sem
me preocupar com os equipamentos e as instalações. Acabamos ficando para trás. Mas,
desde que Noelle assumiu, tudo mudou.
— Mas, se tiver de pagar os prejuízos de Zachary West, acabará esmagado sob o
peso das dívidas. Mesmo que consiga um prazo razoável, passará anos pagando contas.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Luisa, acho que ainda não entendeu a situação. Eu simplesmente, não posso
pagar! Quando fiz a hipoteca da casa não foi tão ruim, mas agora são duas hipotecas...
Mal posso pagar as dívidas que já tenho! E na minha idade, só consegui o empréstimo
com prazos reduzidos. O que significa que os juros são de tirar o fôlego.
— Quanto ainda falta para pagar? — ela perguntou, sentindo que a aflição
ameaçava dominá-la.
— A maior parte. Se tiver de arcar com os prejuízos de Zachary West, perderei
a casa e provavelmente a fábrica. Tudo depende da quantia que o tribunal fixar, e do
prazo que eles me darão para efetuar o pagamento.
— Mas... Não pode ser tão ruim. A empresa é sólida, tradicional, e nenhum banco
se negaria a emprestar dinheiro para cobrir suas dívidas.
— Luisa, o banco já liberou dois empréstimos! Se esse acidente não houvesse
acontecido, eu conseguiria resgatar as hipotecas com o lucro da empresa. Já estamos
conseguindo novos contratos... Noelle está fazendo milagres, e os rendimentos são
maiores a cada dia. Ela estava certa! Mas o acidente estragou tudo...
Quando Harry partiu, Luisa passou algum tempo sentada diante da lareira, os
olhos fixos no fogo. Aquele acidente causara danos irreparáveis a muitas pessoas, e
ela era a única culpada.
Se não houvesse se comportado como uma criança mimada. Se pelo menos
pudesse fazer alguma coisa para tirar aquela carga de cima dos ombros do pai! Mas o
único dinheiro que tinha era uma pequena importância que economizara para as férias,
uma soma irrisória, comparada ao total das dívidas que ele havia contraído.
Zachary West não era o tipo generoso, e jamais seria capaz de perdoar. Um
tremor sacudiu seu corpo ao lembrar-se dos olhos hostis e do rosto que vira na
fotografia daquele jornal. Era um homem duro.
Mas, e se soubesse que poderia arruinar a vida de seu pai? Talvez aceitasse um
acordo...
Luisa foi deitar-se e dormiu bem, apesar das preocupações. Na manhã seguinte
levantou cedo, comeu uma fruta e tomou uma xícara de chá, e em seguida foi procurar
o número de Zachary West na lista telefônica.
O endereço era Captains's Cottage, Tareton Road, Tareton. Conhecia o vilarejo,
e sabia que apenas meia hora de carro o separava da cidade. Antes que perdesse a
coragem, apanhou o telefone e discou o número de Zachary West.
Estava quase desligando quando alguém atendeu do outro lado. Uma voz seca,
imperiosa e firme.
— Alô?
Era ele! Conhecia aquele tom!
Nervosa, Luisa desligou sem responder. Agora sabia que ele estava em casa.
Vestiu uma jaqueta vermelha sobre o suéter branco e a calça preta, e pegou as
chaves do carro que havia comprado dois anos antes, com o dinheiro das férias.
Em pouco tempo a cidade ficou para trás, substituída pela paisagem litorânea ao
longo da estrada. O mar estendia-se infinito à sua esquerda e, à direita, campos
verdes e produtivos, cobertos pela névoa fina das primeiras horas da manhã,

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

lembravam um tapete macio. As árvores haviam perdido as folhas, e a área toda


estava repleta de gaivotas que vinham para o continente fugindo das tempestades de
inverno em alto mar.
Luisa atravessou o vilarejo de Tareton, vazio naquela época do ano. No verão, os
turistas transformavam as ruas estreitas em passarelas coloridas e movimentadas,
mas nos dias mais frios, nem os habitantes aventuravam-se a sair de suas casas.
O chalé de Zachary West ficava dois quilômetros além do vilarejo, recuado da
estrada e cercado por um jardim bem cuidado. A casa havia sido construída no alto de
uma pequena colina sobre a enseada e, do portão, Luisa observava o cenário e tinha a
impressão de poder ouvir o vento numa noite de tempestade.
Não existiam outras casas por perto, apenas acres de campos verdes, onde
alguns carneiros alimentavam-se de vegetais colhidos por algum fazendeiro que, no
caminho, deixara cair folhas e raízes. Impossível imaginar um lugar mais solitário e
mais adequado ao que ainda lembrava de Zachary West.
Saiu do carro e bateu a porta, espantando algumas gaivotas. O ruído de suas asas
deviam funcionar como uma espécie de campainha, porque em seguida ela ouviu o som
de passos no alto da colina e Zachary surgiu junto à porta. Imponente, parou e ficou
olhando para o portão por alguns segundos, antes de disparar
— Quem é você? O que quer aqui?
Havia feito cirurgia plástica, mas o rosto ainda mostrava sinais do acidente; a
pele em tomo das cicatrizes era mais clara, de um branco leitoso que podia ser visto
mesmo à distância. Era óbvio que teria de submeter-se às novas operações. Luisa sabia
que, mesmo competente, um cirurgião de pele não conseguia milagres em uma única
sessão, e que o corpo precisava de tempo para recuperar-se a ponto de suportar novas
intervenções.
Estava acostumada a ver coisas até piores, mas sabia que, para um leigo, a visão
daquele rosto podia ser assustadora.
Seu silêncio o fez pensar que reagia com horror, como todas as outras pessoas
que vira desde que havia deixado o hospital.
Sarcástico, Zachary sorriu e disparou:
— Vá embora!
Já vivera esta cena. Perturbada, lembrou-se da noite em que fora visitá-lo antes
do baile. Também a mandara embora naquela ocasião e, por alguma razão inexplicável,
a fúria existente em sua voz a fizera chorar.
Desta vez também reagiu de maneira instintiva, mas diferente. Zachary sabia
qual era sua aparência, e odiava que as pessoas o vissem como estava. Sentia a dor
dele como se fosse sua, e era impossível não ter pena de um homem naquelas
condições.
— Não se lembra de mim, Sr. West?
— Deveria? — ele perguntou, olhando-a de cima a baixo de maneira ofensiva.
Não podia sentir-se insultada, porque conhecia todo o sofrimento que ele
enfrentava. Mantendo os olhos azuis fixos em seu rosto, Luisa identificou-se:
— Sou a enfermeira Gilbey, do hospital Whinbury. Esteve sob meus cuidados na

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

semana seguinte ao acidente.


— É mesmo? — e encolheu os ombros. — Não me lembro de quase nada do que
aconteceu nesse período.
— Estava muito doente...
— Isso eu ainda me lembro.
Estava dificultando as coisas de propósito, e Luisa respirou fundo para manter a
calma. Não era fácil lidar com um homem como aquele. E por que acreditara que seria?
O que a fizera crer que poderia convencê-lo a ser generoso e razoável com seu pai?
Fitou-o nos olhos, e o orgulho que viu neles a fez esquecer as próprias
preocupações.
— Parece que está bem melhor, Sr. West — comentou com gentileza.
Ele riu, os olhos cinzentos cheios de amargura:
— Acha que estou melhor? — e deu alguns passos em sua direção.
Ao vê-lo parado à sua frente, Luisa percebeu, pela primeira vez, o quanto era
alto, dominante e forte. Mesmo mantendo o corpo ereto, sua cabeça chegava apenas
aos ombros dele, e sentia-se ameaçada pela força que aquele homem emanava.
Assustada, encarou-o e retrocedeu dois passos.
— Sim... — gaguejou. — Parece... Muito melhor.
— Encantador, não? Percebi como ficou fascinada por minha beleza irresistível.
Ficou tão maravilhada, que não conseguia sequer falar.
De repente ele segurou-a pelos braços, os dedos enterrados em sua pele, e Luisa
sentiu-se dominada pelo pânico.
— Sr. West, por favor...
— Não precisa implorar. Vou dar aquilo que você deseja... Apavorada, os olhos
azuis arregalados e chocados, Luisa ouviu a gargalhada assustadora que enchia o ar
como um trovão.
Afinal, de que diabos ele estava falando? Tentou livrar-se das mãos que a
seguravam, mas os dedos apertaram seus braços com força ainda maior. Zachary
puxou-a com violência, colando o corpo ao dela, e beijou-a com agressividade.
Tremendo, os olhos abertos e espantados, Luisa teve a sensação de que o mundo saía
de foco.
Naquele momento tomou consciência do próprio corpo pela primeira vez,
percebendo sensações estranhas e poderosas que jamais experimentara. O coração
batia depressa, o ar não chegava aos pulmões e a visão ficava mais turva a cada
instante.
Jamais havia acontecido nada parecido, e não conseguia acreditar que estava
acontecendo naquele momento.
Um único beijo, e o queria desesperadamente.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

Capítulo IV

Zachary passara metade da noite acordado, como sempre, temendo adormecer e


mergulhar-nos mesmos pesadelos. Revivera o acidente centenas de vezes nos últimos
meses. O choque de ver o outro carro vindo em sua direção, à agonia de não poder
evitar a colisão, o som de vidros se quebrando, as chamas envolvendo seu rosto...
Para afastar da mente as lembranças penosas, ficava deitado em sua cama
pensando na garota que vira segundos antes do desastre, nos cabelos negros e no
vestido branco que flutuava no jardim como um sonho doce. Jamais a esquecera.
Durante todos aqueles meses de dor e sofrimento, a lembrança daquela menina havia
sido o único consolo que tivera nas horas mais difíceis. Gostaria de encontrá-la, mas
nunca mais tivera coragem de dirigir um carro. Sempre que precisava sair, usava o
serviço de táxi do vilarejo.
Quando estivesse forte o bastante para superar o trauma iria procurá-la, e tinha
certeza que um dia a encontraria; por alguma razão, era como se soubesse que ela o
esperava.
Havia saído da cama pouco antes e, com uma xícara de café, ficou parado ao lado
da janela da cozinha, vendo o sol surgir como uma bola de fogo no horizonte.
Meia hora depois foi para o estúdio, onde uma tela o esperava sobre o cavalete
desde o dia em que voltara do hospital.
Vazia. Nunca mais pintara desde o desastre.
Mas obrigava-se a acreditar naquela farsa, dizendo a si mesmo que naquele dia
pintaria novamente e tudo voltaria ao normal.
De costas para a tela branca, começou a preparar as tintas e escolher as cores,
movendo-se com lentidão premeditada.
Depois reviu todos os esboços, tentando encontrar algo que pudesse reproduzir e
transformar num quadro. Alguns haviam sido terminados, outros se limitavam a alguns
traços sem sentido espalhados na folha de papel. Uma tempestade no mar, uma gaivota
no campo, árvores nuas sob o sol de inverno... Paisagens que faziam parte de seu dia a
dia.
Não sabia qual deles escolher e, frustrado, carregou o pincel com tinta vermelha,
como se pudesse retratar a fúria que o dominava.
Com movimentos bruscos, atacou a tela vazia até que ela estivesse coberta de
manchas vermelhas.
Ofegante, largou o pincel e caminhou até a janela, abrindo-a para respirar o ar
frio que talvez pudesse acalmá-lo.
Uma ave pousou num galho da árvore mais próxima e ele observou-a. Em outra
época teria tentado desenhá-la numa folha de papel para depois transformá-la em
quadro, mas agora era como se simplesmente olhar representasse um grande esforço.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

Finalmente saiu do estúdio, sem sequer olhar para a tela coberta de tinta
vermelha, e foi para a cozinha, onde se serviu de mais uma xícara de café. Estava
tomando o primeiro gole, quando o telefone tocou.
— Alô?
— Zachary? E então? Virá na próxima semana, ou não? Era Flora, sua irmã
autoritária e impositiva. Morava em Provence com o marido francês, Yves, um homem
tolerante e paciente a ponto de viver dez anos ao lado de uma mulher como ela.
— Já disse que... — Zac começou.
Mas Flora não o deixou terminar. Era sempre assim. Por ser cinco anos mais
velha, julgava-se no direito de ditar ordens e interrompê-lo sem a menor cerimônia.
— Não pode passar o Natal nesse lugar! O chalé deve estar congelando, e duvido
que tenha comida armazenada para o feriado. O comércio estará fechado, e ninguém
pode passar o Natal longe da família. O que é um Natal sem crianças?
— Uma maravilha — ele sussurrou.
— Vou providenciar sua passagem em Marseille, e você poderá pegá-la em
Heathrow quando passar por lá. É melhor marcar viagem para o dia vinte e três, ou não
estará conosco na ceia da véspera.
— Flora, já disse que não vou. Não gaste seu dinheiro numa passagem que não
usarei.
— Escute aqui, Zac...
— Eu não vou! — O tom furioso a silenciou por alguns instantes e, mais
controlado, ele prosseguiu: — Sei que só está querendo ajudar, mas não serei boa
companhia. Não estou com disposição para ser um tio divertido e carinhoso, e Sammi e
Claude não têm culpa dos problemas que estou enfrentando. Não quero estragar o
Natal de ninguém. Portanto, divirtam-se e aproveitem o feriado. Mande um abraço
para Yves e um beijo para as crianças.
— Dana vai passar o Natal com os pais — Flora disse apressada, sentindo que ele
estava prestes a desligar. — Eu disse a ela que você viria. A pobrezinha está louca
para vê-lo, apesar das grosserias que fez quando ela foi visitá-lo no hospital. É uma
garota tão doce! Ela disse que entendeu sua atitude, e que está disposta a perdoar e
esquecer. Você precisa vir!
— Flora, pare de interferir em minha vida! Por favor, me deixe em paz, está bem?
— e bateu o telefone.
Em seguida pegou a xícara de café e voltou para o estúdio, disposto a apreciar a
obra prima que acabara de criar e que retratava tão bem seu humor explosivo. Uma
mancha vermelha...
Flora insistia em promover encontros entre ele e Dana. Interferia em sua vida há
tanto tempo, que era incapaz de parar para pensar no que ele preferia. Julgava saber
o que era melhor para o irmão, e naquele momento Dana estava entre as prioridades.
Flora não conseguia entender por que haviam rompido o namoro.
Uma loira exuberante. Dana era uma excelente cantora e ganhava muito dinheiro
com seu talento. Prática e direta, Flora vivia repetindo o quanto a admirava.
— Por que rompeu com ela? — repetia sempre que o encontrava.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

Mas Zachary jamais respondia.


A verdade era que, quando descobrira que Dana estava saindo com outro homem,
Zachary explodira e dissera que nunca mais queria vê-la... E estava cumprindo a
promessa.
Flora tentara interceder por ela várias vezes e, pouco depois da primeira cirurgia
plástica de Zac, ela telefonará para Dana, que estava se apresentando num elegante
clube de Londres, e fornecera o endereço do hospital.
Ela havia ido visitá-lo, e tentara disfarçar o choque ao vê-lo. Mas Zachary
percebera o horror em seus olhos e lera a repugnância no sorriso falso que bailava em
seus lábios.
— Como vai indo, querido? — ela perguntara com sua voz melodiosa. — Gostaria
de ter vindo antes, mas Flora disse que você não queria receber ninguém. Vim assim
que ela autorizou.
Zachary a fitara em silêncio, odiando o sorriso patético com o qual ela tentava
esconder os verdadeiros sentimentos.
— Que quarto encantador! E você está realmente ótimo! Em quanto tempo acha
que poderá voltar para casa?
— Não sei, e é melhor ir embora, Dana. Flora não devia ter mandado você aqui. Eu
disse que não queria receber visitas.
Era uma mulher estonteante, com grandes olhos verdes e cabelos loiros e longos
que brilhavam como o ouro. Valorizava o corpo escultural com roupas justas e
insinuantes, e costumava usar saias curtas que deixavam à mostra as pernas perfeitas.
Mas a beleza de Dana já não o perturbava. Descobrira a verdadeira mulher sob
aquela casca fascinante, e passara a ser absolutamente indiferente aos falsos
encantos.
Dana permanecera parada junto à cama, ignorando a frieza de Zac e brindando-o
com um de seus sorrisos, os olhos verdes parcialmente velados pela sombra escura dos
cílios.
— Querido, não está contente com minha visita? Não acha que mereço ao menos
um beijo?
E inclinara-se, fechando os olhos como se, só assim, pudesse suportar o sacrifício
de tocá-lo. Pálido, Zachary havia gritado:
— Você é surda? Saia daqui! Já disse para sair!
A porta abrira-se de repente e uma enfermeira dissera:
— Sr. West, por favor, pare de gritar! O hospital inteiro está assustado!
— Então, tire essa mulher daqui!
E Dana havia partido apressada, jogando os cabelos para trás e fingindo-se
ofendida. Sozinho, Zachary havia explodido em gargalhadas, assustando a enfermeira
que, julgando-o em estado de choque, fora chamar o médico de plantão.
— Não se preocupe, doutor — Zachary o tranqüilizara. — Eu estou bem. Recebi
uma visita desagradável, e tive de tomar uma atitude drástica para obrigá-la a ver a
realidade. Ela ainda acredita que um beijo pode transformar sapos em príncipes.
Conseguira fazer piadas, mas a reação de Dana o marcara profundamente. Desde

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

o acidente, as únicas mulheres que vira haviam sido Flora, algumas tias e as
enfermeiras, treinadas para não reagirem diante de lesões como as suas, e Dana o
fizera ver o que as mulheres normais sentiriam quando o vissem.
E esta era outra razão pela qual ainda não fora procurar a garota de branco.
Tentando esquecer tudo isso, Zachary vestiu uma jaqueta e foi rachar lenha no
quintal.
Alguns minutos mais tarde ouviu um carro aproximando-se. Não costumava
receber visitas e, irritado, contornou o chalé e encontrou uma mulher parada no
portão.
Por um segundo, teve uma estranha sensação de familiaridade, mas em seguida
observou a visitante com atenção e concluiu que jamais a havia visto.
A última visita que recebera no chalé havia sido de um jornalista interessado em
escrever sobre o acidente, mas o mandara embora e garantira que quebraria seu
pescoço se o visse rondando a casa novamente.
Seria outra jornalista? Irritado com a possibilidade, gritou:
— Quem é você? O que quer aqui?
Quando ela disse que era uma enfermeira do hospital Whinbury, conseguiu
lembrar-se vagamente de seu rosto, apesar de meses terem se passado desde que
saíra de lá, após uma semana de inconsciência quase completa.
Não gostara dela desde o início. Era uma mulher estranha, fria e controlada,
capaz de caminhar sem fazer o menor ruído e sorrir o tempo todo. Era o tipo de
mulher que mais detestava. Autoritária, como sua irmã, perfeitamente organizada,
detalhista e controlada. E o pior era que insistia em falar com ele com voz melosa, e os
olhos azuis estavam sempre cheios de compaixão.
Zachary não suportava esse tipo de atitude. Não queria que as pessoas sentissem
pena dele. Preferia insultá-las, porque assim provocava raiva em lugar da piedade.
Portanto, fingiu acreditar que havia ido visitá-lo por julgá-lo irresistível, e porque
não conseguira ficar longe dele.
Divertia-se com a brincadeira de mau gosto. Atração era a única coisa que a
levaria a procurá-lo, e bastava olhar para seu rosto pálido e assustado para imaginar o
que sentia diante de um homem com sua aparência.
Também demonstrava certa surpresa, porque devia ter imaginado que, após a
cirurgia plástica, seu rosto voltara a ser quase normal. Mas Zachary sabia o quanto
estava longe disso. Ó cirurgião o prevenira sobre a necessidade de outras operações
antes que voltasse a ter um rosto parecido com o que tinha antes.
Sendo assim, divertiu-se às custas dela, beijando-a e abraçando-a, e acabou
tendo de carregá-la para dentro de sua casa... Desmaiada!
E agora lá estava ela, deitada no sofá da sala, esperando o conhaque.que havia ido
buscar na cozinha.
Quando voltou, a enfermeira já conseguira sentar-se e estava vermelha de
vergonha.
— Eu sinto muito... O que vai pensar de mim? Não sei o que aconteceu.
— A culpa foi minha — ele cortou, colocando o copo de conhaque nas mãos dela. —

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

Não devia ter beijado você.


Olhando para a bebida como se fosse veneno, ela balançou a cabeça e gemeu:
— Não quero, obrigada.
— Não seja teimosa! Beba isso de uma vez. Vai lhe fazer bem.
Relutante, Luisa bebeu um pequeno gole, arrepiou-se e fez uma careta, sentindo a
garganta queimar e o estômago arder.
Zachary puxou uma cadeira e sentou-se perto do sofá. Os olhos fixos em seu
rosto:
— O que veio fazer aqui, enfermeira...?
— Gilbey. Eu sou... Filha de Harry Gilbey — e parou, esperando que ele
reconhecesse o nome e reagisse.
— E eu o conheço? Sinto muito, mas não me lembro...
— Ele estava no outro carro — Luisa sussurrou temerosa. Por um segundo, foi
como se ele não soubesse a que estava se referindo, mas em seguida franziu a testa e,
incrédulo, repetiu:
— No outro carro?
— Sim.
— Ele... Era o outro motorista?
Luisa afirmou com a cabeça, pálida, os olhos fixos no copo que segurava com mãos
trêmulas.
— Eu não acredito — Zachary gemeu.
— Sr. West, meu pai não costuma... Ele não estava bêbado, e não é um motorista
irresponsável. Ele... Estava sob forte tensão e... Bem, não estou tentando pedir
desculpas por ele, mas...
— Se não está pedindo desculpas, que diabos está fazendo? — Zachary explodiu.
Luisa mordeu o lábio e só então ele notou a boca perfeita e carnuda,
contrastando com os cabelos presos na nuca e com as maneiras austeras.
— Eu só queria explicar — murmurou. — Queria que entendesse o que aconteceu.
— Estava no carro com ele?
— Não, e lamento muito. Tudo teria sido diferente.
— Seu pai fez aquela curva na contramão, e estava correndo como um louco! Eu
não tive tempo nem para pensar numa forma de escapar! Sabia disso?
— Sim, ele me contou. Meu pai assumiu toda a culpa, e lamenta amargamente o
que aconteceu.
— Ah, quanta bondade — Zachary riu. — Ele machucou-se?
— Um pouco...
— O que isso significa exatamente?
— Escoriações leves e choque — respondeu em voz baixa, notando o sorriso cínico
em seus lábios.
— E quanto tempo seu pai ficou no hospital?
— Apenas uma noite.
— Pois eu não tenho feito outra coisa senão entrar e sair de hospitais!
— Eu sei, e sinto muito, Sr. West. Meu pai também sente profundamente. Por

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

favor, acredite em mim; ele sabe o que fez, e está sofrendo muito.
— Não mais que eu! Afinal, o que veio fazer aqui? O que você quer?
Luisa levantou-se e deixou o copo sobre a mesa ao lado do sofá:
— Eu vim implorar... sei que meu pai é culpado, e ele não discute sua
responsabilidade no caso, mas... Sr. West, vai se recuperar completamente em algum
tempo. Tenho uma larga experiência com casos como o seu e sei que vai voltar ao
normal, embora o processo seja lento.
— Meu rosto nunca mais voltará a ser o que você chama de normal!
Estava tão furioso, que mantinha os punhos cerrados para não agredi-la.
A enfermeira insistiu:
— Está enganado, Sr. West. Posso entender porque pensa que tudo está perdido,
mas está enganado. Talvez o processo se arraste por mais um ano, mas a cirurgia
plástica é capaz de realizar verdadeiros milagres, principalmente quando o caso está
nas mãos de um especialista. Conheço o médico que está cuidando do seu rosto, e ele é
reconhecido como o melhor cirurgião do país.
— E nem ele teve coragem de afirmar que meu rosto voltará ao normal —
Zachary sorriu com amargura, lembrando-se de Dana. — Devia ter visto a cara da
minha ex-namorada quando foi me visitar, depois da cirurgia. Pensei que ela fosse
desmaiar!
A enfermeira Gilbey empalideceu ainda mais:
— Tenho certeza de que ela estava apenas preocupada com sua saúde. Não vou
negar que o processo é lento, mas garanto que, com o tempo, seu rosto voltará ao
normal.
— Não minta para mim! Eu sei o que vejo no espelho! Estou feio como o diabo, e
nunca mais terei o rosto que tinha antes do acidente! Nenhuma mulher vai desmaiar ao
me ver, a não ser de susto, como aconteceu com você.
— Sr. West, eu não...
— Vai negar? Desmaiou quando eu a beijei, e tive de carregá-la para dentro de
casa!
— Mas não foi por causa do...
A gargalhada dele a interrompeu:
— Não perca tempo fingindo! Sei muito bem porque desmaiou. Era inútil tentar
convencê-lo e, confusa, Luisa permaneceu em silêncio.
Ele a fitava com ar divertido, como se houvesse aprendido a rir da própria
amargura.
Finalmente disse:
— Não vou culpá-la por isso. Vejo meu rosto no espelho todos os dias, e entendo
perfeitamente o que sentiu quando percebeu que eu ia beijá-la.
— Não é nada disso! — ela explodiu, cansada de defender-se de um crime que não
havia cometido. — Por favor, acredite em mim! Eu não senti nada do que está dizendo!
Zachary também estava cansado de insistir no mesmo assunto. Queria esquecer
aquele maldito acidente, e estava fazendo tudo o que podia para retomar sua vida
normal.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Vamos esquecer tudo isso, está bem? — sugeriu com impaciência. — O que quer
de mim, enfermeira Gilbey?
— Não sei se... Seus advogados disseram que...?
— Pelo amor de Deus, fale de uma vez!
— Meu pai esqueceu de renovar o seguro.
Zachary fitou-a em silêncio. Havia passado muito tempo em hospitais, e deixara a
questão legal nas mãos dos advogados, recusando-se a discutir o problema, exceto
quando tivera de dar a sua versão dos fatos. Portanto, jamais pensara no seguro de
Harry Gilbey.
— Está brincando! — exclamou incrédulo.
Luisa balançou a cabeça e sentiu-se tonta, incapaz de coordenar os pensamentos.
Zachary a fitava com insistência, e de repente notou o azul profundo daqueles
olhos. Lembravam a sombra da neve dos Alpes, profundos e brilhantes em contraste
com o tom pálido do rosto. Azul e branco... Sempre gostara dessa combinação.
Retomando a lógica, censurou-se por ser tão tolo. Estava pálida porque
desmaiara, e porque estava preocupada com o pai. Que tipo de homem seria esse
Harry Gilbey? Por que mandara a filha para implorar em seu lugar, em vez de ir
pessoalmente ou mandar um advogado?
— Como alguém pode ser tão irresponsável? — disse, mais para si mesmo que para
ela.
— Como eu disse antes, papai estava sob forte tensão, e está enfrentando
dificuldades financeiras que não sabe como solucionar. Por isso ele esqueceu do
seguro. Pretendia renová-lo logo após o vencimento da apólice, mas... Sei que parece
estúpido, mas...
— Explicações não vão cobrir meu prejuízo!
— Não estou pedindo que libere meu pai do pagamento...
— Ótimo, porque eu jamais faria isso!
Luisa abaixou a cabeça e respirou fundo. Não podia permitir que ele a
intimidasse, ou sairia daquela casa sem uma resposta positiva.
Ignorando as lágrimas que queimavam seus olhos, fitou-o e disse:
— Meu pai ficará arruinado se tiver de pagar o prejuízo de imediato. Ele já
hipotecou a casa e a fábrica, e vai perdê-las se tiver de arcar com mais esta dívida
agora.
— Isso é problema dele, não meu! Ele causou o acidente, e terá de arcar com
todas as conseqüências. Deve ser muito ingênua, enfermeira Gilbey, ou não teria vindo
até aqui esperando que eu abrisse mão dos meus direitos, só porque me contou uma
história triste sobre um pai falido!
— Eu só pensei que...
— A única coisa que me interessa agora é minha vida, enfermeira! A vida que o sei
pai destruiu!
— Sei que sofreu ferimentos muito graves, mas garanto que vai se recuperar. Em
um ano seu rosto estará como antes!
— Aquele acidente destruiu o trabalho de anos, sou obrigado a conviver com

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

dores terríveis e sei que ainda terei de suportá-las durante muito tempo. Não
consegui pintar novamente desde o desastre. É como se batesse com a cabeça na
parede a cada dia, olhando para as telas vazias e dizendo a mim mesmo que tenho de
recomeçar. Eu tento, mas estou começando a acreditar que meu talento também foi
destruído pelo incêndio. Tem idéia do que sinto? Para mim, não poder pintar é como
estar paralisado! Ou morto!
Luisa estava pálida como uma estátua, e Zachary a fitava com olhos cheios de
raiva. Todo o ressentimento havia crescido dentro dele desde o acidente, e um
estranho sentimento de alívio o invadia após a explosão.
Aquela mulher não era responsável por tudo o que acontecera, mas seu pai era e,
ao tentar defendê-lo, ela o enfurecera ainda mais.
— Não me peça para sentir pena de seu pai! — ele continuou. — Se eu fosse um
santo, talvez pudesse perdoar, mas não sou! O caso será levado aos tribunais e o valor
do prejuízo será decidido por outras pessoas, que levarão em conta as evidências. E
seu pai vai ser obrigado a acatar a decisão das autoridades.
— Mas se você pudesse...
— Está tentando me convencer a desistir de uma coisa que me pertence? — Zac
sorriu com sarcasmo. — Ou será que entendi mal? Por acaso está me oferecendo outra
coisa em troca desse dinheiro?
Luisa fitou-o com ar confuso, incapaz de compreender a que tipo de acordo ele
referia-se.
Zachary riu alto e, lentamente, deixou os olhos passearem pelo corpo esbelto e
bem feito, detendo-se alguns segundos nos seios e na curva dos quadris.
Finalmente ela compreendeu o que se passava na cabeça, do pintor e sentiu o
rosto queimar. O rubor o fez rir ainda mais.
— Sinto muito, mas você não é meu tipo — Zachary disparou. — Prefiro loiras
curvilíneas. Você é muito magra, e duvido que tenha experiência suficiente para me
seduzir.
Se um olhar tivesse o poder de matar, ele estaria estendido a seus pés. Zachary
continuava sorrindo com ar vitorioso, especialmente depois de perceber o quanto a
ofendera, mas, de repente, surpreendeu-se com a própria reação. Por que havia
perdido o controle a ponto de sentir vontade de feri-la? Ela não tinha culpa do
sofrimento que estava enfrentando! Que diabos estava acontecendo? Não tinha o
direito de insultar uma mulher só porque era filha do homem que destruíra sua vida!
Não havia nenhuma razão lógica para o que acabara de fazer. Exceto... Tinha de
admitir que, ao observar aquele corpo esguio e proporcional, sentira uma pontada de
desejo. Era isso! Havia mentido ao dizer que ela não era seu tipo. Na verdade, nem
tinha um tipo definido. Gostava de mulheres. Ponto final. E esta podia ser seu tipo.
Mas, sabia que ela preferia a morte a ser tocada por alguém como ele. Se havia
desmaiado só porque a beijara... Se soubesse em que estava pensando, sairia correndo
e só se atreveria a parar quando estivesse muito longe dali.
— Eu não estou oferecendo nada do que insinuou! — ela disse, recobrando o poder
de reação.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Não? — Zachary riu com amargura. Como se precisasse dizer!


— Só queria sugerir um... acordo.
— Entre nós?
— Entre você e meu pai. Se o deixasse pagar o prejuízo em prestações durante
alguns anos, ele não perderia a casa e a fábrica.
Estava tão tensa, que Zachary experimentou uma onda de compaixão.
— Não se preocupe, enfermeira. Tenho certeza que a corte não exigirá um
sacrifício tão grande.
— E de onde tirou essa certeza?
— Os juízes sempre levam em consideração a situação de cada pessoa quando
fixam o valor e a forma de pagamento de uma ação, e é óbvio que não exigirão que seu
pai perca tudo o que tem.
— Talvez não, mas acho que ainda não entendeu. Ele já tem dívidas pesadas, e
seria impossível pagar qualquer coisa imediatamente. Além do mais, a esposa dele o
deixará, se souber o que está acontecendo.
— Eu não tenho culpa das dificuldades financeiras de seu pai!
— Não, mas se concordar em esperar um ano para receber seu dinheiro, ele
conseguirá encontrar uma saída. A empresa está reagindo, e os lucros devem duplicar
num espaço de dois anos.
— E eu tenho de esperar?
— Seria muito difícil? Também está com problemas financeiros?
— Não. Estou enganado, ou a esposa de seu pai não é sua mãe?
— Minha mãe morreu há alguns anos.
— E seu pai se casou novamente?
— Isso mesmo.
— E você não é exatamente apaixonada por sua madrasta...
— Nós... temos algumas diferenças.
— Entendo. Por que não gosta dela?
— Porque ela não gosta de mim!
— Ah... E o que veio primeiro? A antipatia dela... ou a sua?
— Eu teria tentado aceitá-la se ela houvesse dito que não me queria por perto.
Não quer que as pessoas nos vejam juntas, porque acha que pensarão que somos irmãs.
Eu sou apenas dois anos mais nova que ela.
— É mesmo? Quantos anos tem seu pai?
— Cinqüenta. Ele e mamãe casaram-se jovens.
— E sua madrasta?
— Vinte e nove.
— O que significa que tem vinte e sete. Você parece mais jovem — comentou
surpreso. Podia apostar que ela ainda não havia passado dos vinte e dois. — Deve ser o
ar virginal.
Luisa ficou vermelha e, notando o rubor, Zachary riu:
— Ei, virginal não é um termo ofensivo.
— Mas você fala como se fosse.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— É impressão sua. Deve ser sensível ao assunto. Por acaso é?


— Sou o quê?
— Virgem.
Luisa fitou-o incrédula, mais vermelha que antes:
— Não vou responder a perguntas desse tipo!
— Então deve ser — ele insistiu, divertindo-se com o embaraço que provocava. —
Embora seja pouco provável, na sua idade. Não me lembro de ter conhecido uma
virgem nos últimos dez anos. Virgindade saiu de moda na década de sessenta. Por
acaso faz parte de uma dessas tribos que tenta resgatar hábitos do passado? Ou é
apenas esquisita?
— Não vou ficar aqui ouvindo suas piadas estúpidas! — ameaçou.
— Oh, por favor! — Zachary riu. — Vamos mudar de assunto, está bem? Fale mais
sobre sua madrasta...
Furiosa, Luisa virou-se e caminhou em direção à porta. Vendo que ela pretendia
realmente ir embora, Zachary insistiu:
— Ainda não ouviu a minha resposta.
— Já se divertiu bastante, Sr. West. Não quero mais ouvir seus comentários
grosseiros e ofensivos.
— O acidente deve ter alterado meu senso de humor.
— Eu já percebi.
— De qualquer forma, estou preparado para discutir um acordo com seu pai. Não
quero que ele perca a casa, a fábrica e a esposa.
Luisa voltou sobre os próprios passos e encarou-o com ar sério:
— Está falando sério, ou essa é mais uma de suas piadas de mau gosto?
— Estou falando sério... mas tenho uma condição.
— Que condição?
— Aceito qualquer tipo de acordo, desde que você venha morar aqui.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

Capítulo V

—Eu já devia imaginar! Sente-se melhor me agredindo, Sr. West? Sinto muito por
você. Não queria estar em seu lugar nem por um minuto. Não por causa das
queimaduras, mas porque as piores cicatrizes estão em sua alma!
Luisa não esperou pela reação. Furiosa, virou-se e saiu do chalé. Estava abrindo a
porta do carro, quando o viu parado na porta e escutou a voz clara e potente:
— Se decidir aceitar a oferta, entre em contato comigo antes que o caso chegue
ao tribunal. Depois disso, será tarde demais.
Sem responder, ela entrou no carro e partiu. O encontro com Zachary West a
perturbara de tal forma, que estava dirigindo mal, e quase provocou um acidente na
saída do vilarejo. Nervosa, parou o carro além dos limites de Tareton tentou acalmar-
se.
As coisas que ele havia dito ecoavam em seus ouvidos, provocando reações
confusas. Deduzira que era uma virgem, e havia conseguido acertar no alvo! Como podia
saber? Estaria escrito em seu rosto?
Nem ela mesma sabia por que nunca entregara-se a alguém. Sentira desejo por
alguns homens, mas nunca conseguira ultrapassar a barreira da virgindade. Passara os
primeiros anos da carreira em alojamentos de enfermeiras, e isso tornava impossível
um relacionamento mais íntimo com alguém que não tivesse um lugar próprio, com um
mínimo de privacidade. Mas a maioria de seus namorados haviam sido médicos, que
também residiam em alojamentos. É claro que a maior parte deles havia tentado.
Em carros, apartamentos de amigos, depois de festas... mas Luisa nunca
conseguira relaxar o suficiente para dar o grande passo.
Havia algo de furtivo e apressado nesses encontros, e queria que a primeira vez
fosse especial, romântica e inesquecível.
Quando terminara o curso e o treinamento, voltara a viver na casa de seu pai e
passara a conviver com barreiras diferentes das anteriores. Não podia correr o risco
de levar um namorado para sua casa e ser surpreendida pelo pai!
Droga! Afinal, a quem estava tentando enganar? A verdade era que nunca havia
sentido desejo por alguém a ponto de decidir entregar-se. Gostara da companhia de
alguns rapazes, sentira-se atraída por eles, mas nunca experimentara uma necessidade
imperiosa a ponto de exigir satisfação imediata.
Até meia hora atrás, não conhecera o desejo ardente e intenso... até Zachary
West a beijar.
Era difícil acreditar que estava vivendo algo tão espantoso.
Sempre soubera que ele a atraía, desde a primeira vez em que o vira naquela
cama de hospital com o rosto deformado pelo fogo.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

E não era apenas uma sensação física. Havia uma espécie de força emocional,
como se cada movimento dele, cada palavra, cada olhar fosse importante para ela.
Irritada, obrigou-se a parar de pensar em coisas tão ridículas e ligou o carro
novamente. Não diria a seu pai que fora procurar Zachary West, porque ele ficaria
horrorizado. E sabia que Zachary também não comentaria aquela estranha visita com
quem quer que fosse.
O dia de Natal era perfeito para se passar no hospital. Havia uma atmosfera
agradável em todas as enfermarias, embora alguns pacientes choramingassem por não
estarem em casa. A ala infantil era a mais comovente e, de maneira surpreendente, os
adultos ficavam mais tristes que as crianças, mimadas com presentes e atenção dos
familiares e da equipe médica.
Na enfermaria de Luisa, alguns sequer sabiam que era Natal. Seu dia foi mais
quieto que nas outras alas, mas ela e as colegas haviam providenciado uma decoração
especial que incluía uma árvore com laços vermelhos e pequenos sinos prateados.
Seu pai já havia lhe dado o presente um dia antes de partir para a Suíça com
Noelle e, mais uma vez, demonstrara bom gosto ao escolher um lindo vestido de veludo
azul. Só tiveram tempo para tomar um drinque enquanto trocavam os presentes,
porque ele precisava voltar para casa e arrumar as malas.
No dia seguinte ao Natal, Luisa ofereceu-se para dar plantão na emergência,
onde o movimento era sempre maior depois de um feriado prolongado. Havia um
homem com um anzol enterrado na mão, uma mulher que quase arrancara metade do
dedo fatiando peru, e um garoto que caíra da bicicleta nova e fraturara o braço. Os
pacientes entravam e saíam o tempo todo, e a equipe reduzida mal conseguia dar conta
dos casos mais urgentes.
— Obrigada pela ajuda — disse a jovem médica encarregada do setor, assim que
conseguiram parar para tomar um café.
— Não precisa agradecer. Eu estou gostando — Luisa sorriu. — É sempre bom
mudar a rotina, especialmente num feriado.
— Pois eu preferia aproveitar o feriado!
— Aqui entre nós, eu também. Mas minha família viajou para a Suíça, e eu teria
de passar o Natal sozinha.
A médica, uma indiana de olhos grandes e negros, sorriu com simpatia e
confessou:
— A minha família também viajou. De qualquer maneira, nós não comemoramos o
Natal.
— Também foram para a Suíça?
— Não, para Delhi — Indira Kumar respondeu, virando-se para observar a
entrada de mais um paciente. — Lá vamos nós outra vez!
Luisa levantou-se mais devagar, surpresa e encabulada ao identificar o homem
que acabara de entrar. Que diabos Zachary West estava fazendo ali?
Indira foi para o consultório, certamente para preparar os instrumentos a fim de
atender mais um paciente, e a enfermeira Gilbey atravessou o corredor para alcançar
Zachary West.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— O que está fazendo aqui? — perguntou com tom hostil.


— Certamente não vim procurar por você — e estendeu a mão.
Havia um corte profundo na base do dedo polegar e, apesar de não haver mais
vestígios de sangue, o ferimento parecia sério e doloroso.
— Como fez isso? — ela quis saber, inspecionando a área com atenção.
A ferida havia sido limpa, e parecia ter sido provocada por uma faca. Por isso não
surpreendeu-se quando ele respondeu:
— Rachando lenha. O machado escapou.
— Devia ter mais cuidado! Teve muita sorte, sabe? Podia ter perdido a mão!
— Sim, mamãe.
Irritada, Luisa fitou o rosto divertido e respondeu:
— Na sua situação, qualquer ferimento pode provocar complicações mais sérias,
como infecções, por exemplo. Quando tomou uma vacina contra tétano pela última vez?
— Não sei. Já faz tanto tempo, que não consigo me lembrar.
— É melhor ir ver a doutora Kumar. Depois eu providenciarei a vacina e limparei a
área do ferimento para a sutura.
— Sim, mamãe.
Em silêncio, sentindo que a irritação crescia a cada instante, Luisa levou-o para o
consultório da médica.
Como já esperava, Indira deu instruções para que fosse aplicada a vacina, pediu
que ela desinfetasse o corte e o trouxesse de volta para os pontos. Luisa podia cuidar
da sutura sozinha, mas não havia nenhum outro paciente no momento, e Indira decidiu
atender o caso pessoalmente.
— Odeio injeções — Zachary reclamou no ambulatório, vendo-a preparar a vacina.
— Ninguém gosta.
— Acontece que ninguém tomou tantas quanto eu. Enquanto fazia seu trabalho,
Luisa o observava pelo canto dos olhos e admirava sua coragem. Aplicou a vacina e, em
seguida, anestesiou a área do corte para facilitar o trabalho de sutura. Sabia o quanto
uma anestesia local podia ser dolorida, especialmente quando aplicada diretamente
sobre o ferimento, mas ele não emitiu o menor gemido. De olhos fechados, respirou
fundo e prendeu o fôlego, e só soltou o ar quando ela removeu a agulha que inserira em
sua mão.
Depois de alguns minutos, Zachary perguntou:
— Quando foi transferida para a emergência?
— Não fui. Só me ofereci para ajudar porque hoje é um dia movimentado, e o
Natal sempre prejudica as escalas normais de plantão. Como eu não tinha nada mais
importante para fazer, me ofereci como voluntária.
— Abriu mão da sua folga? — ele espantou-se. Afirmando com a cabeça, Luisa
indicou:
— Venha, vou acompanhá-lo até o consultório da doutora Kumar. Ela vai cuidar da
sutura.
Seguindo-a pelo corredor, Zachary insistiu:
— Trabalhou ontem e se ofereceu para trabalhar hoje, na sua folga? E sua

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

família?
— Meu pai foi para a Suíça com a esposa.
— E você não tinha para onde ir no Natal...
— Isso mesmo — admitiu, lutando para esconder a tristeza. Luisa bateu na porta
do consultório e abriu-a, afastando-se um pouco para que o paciente entrasse.
Mais uma vez, Zachary comportou-se como um bravo. Sério, acompanhou todos os
movimentos da médica, que manejava a agulha com habilidade.
— Você devia aproveitar esse talento para bordar — brincou. Com um sorriso
divertido, Indira respondeu:
— Mas eu sou uma excelente bordadeira. Minha mãe me ensinou a costurar assim
que eu cresci o bastante para segurar uma agulha. Queria que eu fosse costureira.
— E como ela reagiu quando soube que você seria médica?
— Minha mãe é antiquada, e acha que as mulheres não precisam estudar.
— Aposto que queria vê-la casada.
— É verdade. Venderia os dentes para conseguir um futuro melhor para os filhos,
mas sempre achou que educar uma menina era jogar dinheiro fora. Na verdade, ela
temia que eu tivesse idéias ocidentais sobre igualdade e acabasse me casando com
alguém que a família não aprovasse.
— E como conseguiu tornar-se médica? — Zachary admirou-se.
— Meu pai sempre quis ser médico, e ele dizia que eu devia ir para a universidade,
se tivesse realmente vocação. É claro que me esforcei para demonstrar que merecia o
voto de confiança.
— E sua mãe aceitou?
Indira sorriu:
— Minha mãe sempre aceita as decisões de meu pai. Ela tenta persuadi-lo quando
não concorda com alguma coisa, mas sempre faz o que ele diz. Mamãe acha que este é
o segredo para um casamento feliz.
— E você concorda com ela?
— Acho que as decisões devem ser tomadas pelo casal, e que deve haver muita
compreensão e companheirismo.
— Seu pai deve sentir muito orgulho de você — disse Zachary, sorrindo ao
examinar o trabalho concluído. — Ei, essa é a melhor sutura que já vi, e sou um
especialista no assunto! Já fui operado pelos melhores cirurgiões do país.
Indira riu:
— Obrigada pelo elogio. E quanto ao meu pai, ele realmente sente orgulho por ter
uma filha médica. É como se pudesse realizar o seu sonho através do meu trabalho.
Quando eu fui admitida neste hospital, ele vinha me visitar todos os dias, e ficava na
recepção dizendo aos pacientes que era pai da médica que os atenderia.
— Acho que vou fazer a mesma coisa. Vou ficar lá fora, mostrando a todos o
trabalho perfeito que fez na minha mão.
— Pare de flertar, Sr. West — Indira riu. — Sou noiva de um cirurgião deste
hospital, e vou me casar em breve. Ele é muito ciumento, e um médico tem
instrumentos perfeitos para uma vingança. Injeções, bisturis...

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Pelo amor de Deus! Nem diga ao seu noivo que me conheceu — Zachary riu. —
Seu pai também aprova o casamento?
— Oh, sim! A família dele é de Delhi, como a minha. Na verdade, meus pais estão
na casa dos pais dele neste exato momento, discutindo os detalhes do casamento.
Luisa, que havia ficado na sala para o caso de ser necessária, fitou a médica com
expressão surpresa. Conhecia Indira há quase um ano, e nunca a ouvira falar com tanta
desenvoltura sobre si mesma, sobre a família e sua vida pessoal. Por que sentia-se tão
pouco a vontade perto de Zachary West, quando era óbvio que a maioria das pessoas
experimentava por ele uma simpatia imediata?
Sabia sobre o noivado de Indira com Girish, um cirurgião da equipe de
otorrinolaringologia muito querido por todos os colegas, mas não imaginava que
tivessem planos para um casamento imediato.
Zachary levantou-se para partir e a médica preveniu-o:
— Tome cuidado para não usar muito esta mão nos próximos dias. Os pontos
podem se soltar, e ainda existe risco de infecção.
— Prometo que vou tomar cuidado.
Luisa acompanhou-o e avisou:
— Vou marcar um dia para que venha tirar os pontos, Sr. West.
Verificou o livro de consultas, sugeriu um dia e um horário na semana seguinte, e
escreveu o nome de Zachary no espaço vazio. Depois preencheu o cartão de retomo e
entregou-o, como fazia com todos os pacientes.
— Não se importa por ter de trabalhar no Natal? — ele perguntou, guardando o
cartão no bolso.
Luisa balançou a cabeça e virou-se para a recepcionista, que tentava acalmar uma
mulher aflita com uma criança nos braços. A jovem encaminhou a mãe para a sala de
radiografia, e ela virou-se para Zachary:
— Estou acostumada. As funcionárias casadas e com filhos têm prioridade nos
feriados, e o Natal pode ser muito especial num hospital. Principalmente para quem
vive sozinho.
— Como você. E como eu...
— Não tem família?
— Minha irmã queria que eu fosse passar o Natal em sua casa, mas achei que não
conseguiria sobreviver aos meus sobrinhos. São terroristas domésticos! Eles quebram
tudo o que tocam, e precisam de atenção constante. Gostam de música barulhenta e
jogos eletrônicos, e passam horas na frente da televisão. Quando chegam da escola, a
casa se transforma num inferno!
—. E onde eles moram?
— Provence.
— Na França?
— Na última vez em que consultei o mapa, ainda era lá.
— Que sorte! — Luisa comentou com ar sonhador. — Por mais terríveis que sejam
seus sobrinhos, eu não teria recusado o convite. Adoraria conhecer Provence.
— É mesmo? Eu irei, se você também for.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Muito engraçado!
— Eu não estava brincando.
Confusa e irritada, Luisa desviou os olhos dos dele:
— Sinto muito, Sr. West, mas não tenho tempo para suas brincadeiras. Estou
trabalhando.
A emergência estava ficando movimentada novamente. A recepcionista verificava
a natureza de cada novo caso, e uma jovem enfermeira pedia aos pacientes que
esperassem para serem examinados pela doutora Kumar.
Whinbury não era um hospital grande, e nem sempre era tão movimentado.
Localizado numa pequena cidade na área rural, tinha um pronto-socorro bem diferente
daqueles encontrados nos grandes centros urbanos. Ali, um paciente podia ser
atendido e dispensado em menos de meia hora, e Luisa gostava de trabalhar num
ambiente tranqüilo e bem organizado, embora tivesse a intenção de passar um ou dois
anos em Londres, só para adquirir mais experiência.
Da recepção, podia ouvir Zachary West pedindo ao porteiro que chamasse um
táxi. E por que estava tão surpresa? Era óbvio que não podia dirigir com aquela mão
ferida.
— O que temos agora? — perguntou à recepcionista. Depois de receber as fichas
das mãos da jovem, olhou mais uma vez para a porta, onde Zachary ainda esperava, e
disse a si mesma que tinha de concentrar-se no trabalho e esquecê-lo.
Não voltou a erguer os olhos da ficha, mas soube o momento exato em que o táxi
partiu, levando o pintor, e experimentou uma estranha mistura de alívio e tristeza.
Horas depois, Luisa foi despedir-se da doutora Kumar.
— E então, o que achou de passar o dia na emergência? — a médica perguntou.
— Havia me esquecido de como era cansativo. Estou exausta!
— A unidade de queimados é menos movimentada.
— Pelo menos consigo passar algum tempo sentada — ela riu.
— Aqui nós nunca temos tempo para isso. Mas você foi brilhante, Luisa. Gostaria
muito de poder contar com alguém tão competente na equipe. Se algum dia quiser
transferir-se, será recebida de braços abertos. Pense no peso que vai perder!
Luisa riu:
— Obrigada, Indira, mas não quero emagrecer. Além do mais, gosto de onde
estou. O trabalho é duro, mas é maravilhoso poder fazer alguma coisa para amenizar o
sofrimento daquelas pessoas.
— Imagino. Bem, aproveite o dia de folga. Vai sair com David?
— Não. Ele foi passar o Natal com os pais, em Gales.
— E não a convidou? Desculpe, acho que estou sendo indiscreta. Mas eu pensei
que... bem, você e David estão saindo há meses, e imaginei que o relacionamento fosse
sério.
— Ainda não.
David havia sugerido que o acompanhasse, mas na época ela ainda esperava passar
o Natal com a família. Quando o pai contara que iria para a Suíça com Noelle, havia
preferido não dizer nada a David para não forçá-lo a repetir o convite. Na verdade,

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

não queria conhecer a família dele, porque isso implicaria em compromissos e


envolvimentos mais sérios.
Ainda o via com freqüência, mas o relacionamento não progredira nos últimos
meses. Os dois dedicavam muito tempo ao trabalho, mas sabia que David estava
ficando impaciente e que desejava uma intimidade maior entre eles. Estava frustrado
e magoado com suas recusas constantes, e era terrível ferir os sentimentos de um
homem tão bom. Mas não podia entregar-se só para deixá-lo mais contente! Não queria
ser um prêmio de consolação para um namorado com crises de insegurança.
Naquela noite, enquanto preparava o jantar, Luisa continuava pensando em como
reagira ao ver Zachary West.
Era a primeira vez que desejava um homem com tanta intensidade, e só.agora
entendia o que David sentia quando a tinha nos braços. O que sentiria se soubesse que
Zachary a inflamava com um simples olhar, coisa que ele jamais conseguira fazer,
apesar de todos os esforços?
Zachary West divertira-se às suas custas, e soubera disso mesmo quando
queimara de desejo com aquele beijo. Tinha de parar de pensar nele!
O dia era claro e brilhante, apesar do frio, e Luisa decidiu dar um passeio de
carro para acalmar-se. Pegou a estrada que levava ao mar, além de Whinbury,
pensando em encontrar um lugar agradável onde pudesse almoçar. Conhecia alguns
hotéis na costa que serviam uma comida leve e saudável.
O vilarejo de Tareton estava quieto e silencioso, e as estradas estavam vazias.
Muitas pessoas ainda estavam recuperando-se do Natal, e outras deviam estar na
cidade vizinha, onde o centro comercial cumpria a antiga tradição das liquidações de
fim de ano.
Quando Luisa viu o chalé de Zachary West, foi obrigada a reconhecer que
sempre soubera que acabaria ali.
Tinha até uma desculpa pronta para oferecer, mas quando ele abriu a porta e
fitou-a com aqueles olhos profundos, as palavras embaralharam-se em sua mente como
cartas de um jogo.
Com um sorriso divertido, Zachary disparou:
— Olá outra vez. Mudou de idéia sobre aquela viagem a Provence?

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

Capítulo VI

Luisa ficou furiosa ao sentir o rosto vermelho. Por que tinha de ruborizar cada
vez que o via? Por isso ele continuava divertindo-se à sua custa.
— Vim ver se precisa de ajuda com a casa. A médica disse que não devia usar a
mão, lembra-se?
— Você é enfermeira, ou assistente social?
— Eu estava passando por aqui e... — olhando além da soleira, Luisa notou a
bagunça que dominava o interior do chalé. Livros espalhados pelo chão, gavetas
abertas e objetos jogados em todos os lugares. Horrorizada, exclamou: — Meu Deus!
O que andou fazendo? Está se mudando?
Na primeira visita, notara que a casa estava limpa e arrumada, mas não podia
esquecer que ele era um artista. Talvez fosse excêntrico, e gostasse de um pouco de
confusão para quebrar a rotina.
Zachary surpreendeu-a com a resposta:
— Eu fui assaltado. Ontem, quando voltei do hospital, encontrei a casa toda
revirada.
— Mas isso é terrível! Roubaram alguma coisa de valor?
— A tevê, o vídeo, o equipamento de som e o forno microondas. Em outras
palavras, tudo o que pode ser vendido com facilidade.
— A polícia já veio registrar a ocorrência?
— Estiveram aqui há pouco mais de meia hora, e não ficaram muito tempo.
Disseram que as equipes estavam desfalcadas por causa do Natal, e que minha casa
não havia sido a única assaltada durante o feriado. Não encontraram impressões
digitais ou pistas, e tenho a impressão de que eles não têm esperança de capturar os
ladrões e recuperar minhas coisas.
— Tem uma faxineira, ou alguém que possa vir arrumar toda essa bagunça?
— Sim, mas ela foi passar o Natal em Harrogate, e só voltará na próxima semana.
Eu estava me preparando para começar a limpeza, quando você chegou.
— Então vou aproveitar que estou aqui para ajudá-lo.
— Eu já esperava que dissesse isso — Zachary sorriu, afastando-se para que ela
pudesse entrar. — Se terminarmos a tempo, iremos almoçar no Black Swan. E o melhor
restaurante de Tareton. Mas você terá de dirigir até lá.
Luisa tirou a jaqueta e sugeriu:
— Se tiver alguma coisa na geladeira, eu posso fazer o almoço quando
terminarmos a arrumação. Como está o resto da casa?
— Melhor que a sala. Os ladrões subiram aos quartos, mas acho que estavam mais
interessados nos objetos que encontraram aqui em baixo. Deviam estar com pressa, e

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

não perderam tempo revirando outros armários e gavetas. A polícia disse que meu
prejuízo foi pequeno, em vista do que estão acostumados a ver.
— Que consolo!
Apesar do cansaço provocado pelos plantões dos últimos dias, Luisa tinha o hábito
de terminar tudo o que começava, e só parou para respirar quando viu que o chalé
estava voltando ao normal. Notando a palidez de Zachary, ordenou que ele fosse
descansar um pouco, enquanto ela cuidava dos últimos detalhes.
— Eu estou bem — ele protestou.
— Não está. Sente-se, e não seja teimoso. O que vai ganhar ficando doente outra
vez?
—Não gosto de mulheres autoritárias!
— Não pedi para gostar de mim — ela respondeu, apesar da pontada de dor. — Só
quero que use o bom senso e sente-se, antes que acabe desmaiando.
Encolhendo os ombros, Zachary sentou-se em uma das cadeiras da sala e Luisa
voltou ao trabalho. Nem percebeu quando ele foi para a cozinha, alguns minutos depois.
Mais uma vez ele a surpreendeu, desta vez com um bule de café fresco e um
prato de sanduíches.
— O restaurante já deve estar fechado — explicou. — O que prefere? Queijo, ou
maionese?
— Qualquer um — Luisa respondeu, concentrada no trabalho.
— Pare de gastar a superfície da minha mesa com esse pano e vá lavar as mãos
para comer!
Passando os dedos sobre os riscos feitos pelos ladrões, ela comentou:
— Por que algumas pessoas fazem coisas tão horríveis? A mesa está arruinada, e
parece muito antiga.
— Estilo Gregoriano. Não é uma peça de valor, mas pertence à minha família
desde 1820, e eu não gostaria de perdê-la. Espero poder reparar o estrago. Conheço
alguém que recupera mobília antiga, e sei que ele é capaz de fazer milagres.
— Que bom — e olhou em volta. — Bem, acho que terminamos.
— Sim, já terminamos! Quer fazer o favor de ir lavar as mãos? O banheiro fica lá
em cima, à esquerda.
Luisa encontrou-o sem dificuldade. Os azulejos amarelos pareciam aumentar a
luminosidade, e as toalhas e acessórios eram da mesma cor, como se ele tivesse o
cuidado de combinar as peças. O sabonete perfumado ainda não havia sido usado, mas
seu odor delicado pairava por todo o ambiente.
Quando voltou para a sala, Zachary já havia arrumado as xícaras e pratos na
mesa menor, ao lado da janela. Estava servindo o café, e de repente Luisa percebeu o
quanto estava faminta.
— Sente-se e coma — Zachary comandou, colocando um sanduíche de queijo no
prato.
— Você sempre almoça sanduíches?
— Só quando estou trabalhando. Não posso perder tempo cozinhando, ou saindo
para comer em restaurantes. Só vou ao vilarejo quando não estou pintando.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— E trabalha todos os dias?— perguntou, antes de morder o sanduíche e


surpreende-se com seu sabor.
O queijo cheddar fora enriquecido com ervas finas, e o molho de tomate tinha
todas as características do tempero caseiro.
Estranhando o silencio prolongado, ergueu os olhos e viu que ele tinha uma
expressão perturbada no rosto. O que o estaria aborrecendo? Era um homem muito
suscetível, mas qualquer um reagiria da mesma maneira diante das dificuldades que
estava enfrentando. O acidente, as cicatrizes no rosto e na alma, e agora um assalto.
Quem não ficaria nervoso?
— Eu costumava trabalhar todos os dias — ele finalmente respondeu.
Notando a alteração no tom de voz, Luisa compreendeu o que havia por trás
daquelas palavras e foi invadida por uma onda de compaixão.
— Ainda não conseguiu pintar?
— Não. Não existe nenhum impedimento físico, e tenho certeza que conseguiria
produzir quadros com a mesma qualidade de antes... se eu tivesse vontade. E esse é o
problema. Perdi a inspiração. Não consigo me interessar por nada, e passo horas
olhando para a tela vazia, tentando escolher uma paisagem qualquer, mas... — e parou,
visivelmente transtornado.
— Desculpe. Acho que toquei num assunto delicado.
— Meu Deus! — ele explodiu. A potência de sua voz e o brilho furioso em seus
olhos a assustaram e, sobressaltada, Luisa derrubou o sanduíche no prato. —
Delicado? Acha que o assunto é apenas delicado? Eu sou um pintor! Preciso pintar, e
não consigo entender o que me impede de trabalhar! Quanto mais eu tento, maior é a
frustração de não conseguir!
Respirando fundo para conter a pulsação acelerada, ela murmurou:
— Por que não experimenta esquecer o assunto por uma semana? Não tente...
— Já fiz isso. Já experimentei tudo o que consegui imaginar, mas nada funcionou
— e encarou-a com raiva. — Termine o sanduíche e tome o seu café antes que esfrie!
Luisa obedeceu, esperando que a submissão o acalmasse. Dez minutos mais tarde,
Zachary perguntou:
— Terminou?
— Sim, obrigada. Os sanduíches estavam deliciosos. Ele levantou-se e, com
expressão séria, ordenou:
— Venha comigo.
— Para... onde?
— Quero que conheça o estúdio.
Curiosa, ela o seguiu sem protestar. Nunca estivera no estúdio de um artista, e
não queria perder a oportunidade de conhecer um ambiente que sempre havia julgado
mágico.
O estúdio era um anexo nos fundos do chalé, e duas de suas paredes tinham
janelas imensas que iam do teto ao chão, garantindo uma iluminação perfeita durante
todo o dia.
O cavalete ficava bem no centro da sala, e havia uma tela sobre ele.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Este é todo o trabalho que consegui fazer desde o dia do acidente — Zachary
disse, apontando para os borrões vermelhos que cobriam toda a extensão do quadro.
— Ah... Infelizmente não conheço muito sobre arte moderna.
— Isso não é arte! É o resultado de uma explosão! Estava tão furioso e
frustrado, que decidi desabafar através do pincel,
— Entendo. Eu... sinto...
— Não diga que sente muito, ou vou acabar tendo outro ataque! Nervosa, Luisa
aproximou-se de uma das imensas janelas e perguntou:
— E o que mais posso dizer?
De repente o sol venceu o bloqueio das nuvens e incidiu sobre seu corpo, criando
uma luz dourada em tomo do vestido azul que estava usando.
Como se alguma coisa importante estivesse acontecendo em seu cérebro,
Zachary ergueu a mão e sussurrou:
— Fique quieta.
— Por quê?
Sem responder, ele aproximou-se da escrivaninha e apanhou um lápis e uma folha
de papel. Depois de observar seus movimentos durante alguns instantes, ela
perguntou:
— Está me desenhando? l
— O que mais eu poderia estar fazendo?
Finalmente voltara a trabalhar, e ela havia sido sua inspiração!
Feliz, Luisa permaneceu imóvel, fazendo o possível para ajudá-lo.
Depois de alguns minutos ele deixou o lápis sobre a escrivaninha e estudou o
esboço com ar crítico.
— Posso ver? — ela pediu.
Zachary hesitou, mas decidiu mostrar o desenho. Impressionada com a
semelhança obtida com alguns traços rápidos, Luisa exclamou com sinceridade:
— É maravilhoso! Seu talento é realmente invejável, Sr. West! Deve ser uma
espécie de dom divino.
— Você também é muito competente na profissão que escolheu... mas eu
reconheço o esforço que fez para aprender tudo o que sabe.
— Oh, desculpe... — apressou-se, sentindo o rosto vermelho. — Não quis dizer
que não se esforça. Mas é diferente, não acha? Existem milhares de boas
enfermeiras, mas artistas talentosos... Quando vai transformar o esboço em quadro?
— O quê? De onde tirou essa idéia? Desenhar é um gesto automático. Só preciso
copiar o que vejo. Mas pintar é algo bem diferente, que exige semanas e até meses de
dedicação. Preciso de inspiração, e tenho de saber exatamente o que estou buscando
através daquela obra em particular. E é exatamente isso que está faltando... o impulso
criativo.
Sentindo-se tola e humilhada, Luisa abaixou a cabeça para esconder mais um de
seus incômodos rubores. Ele devia julgá-la vaidosa, e sem dúvida a desprezava por ter
tido a ousadia de imaginar-se capaz de inspirá-lo.
Zachary deixou o desenho sobre a escrivaninha e aproximou-se da janela:

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— O que achou do jardim? Eu mesmo fiz o projeto. Não está muito bonito porque
o inverno acaba com as flores, mas plantei arbustos altos que bloquearão o vento do
mar. Já estão crescendo, e na próxima primavera finalmente terei o jardim como
sempre quis.
— Também é bom jardineiro?
— Cuidar das plantas é uma maneira de passar o tempo. Está vendo aquele
arbusto, à direita? — apontou. — É minha magnólia preferida. Em breve ela estará
coberta de flores brancas.
Luisa tentou concentrar-se no assunto, mas sentia-se cada vez mais perturbada
pela proximidade. Assustada com as próprias reações, virou-se para afastar-se, mas
ele moveu-se no mesmo instante e a colisão foi inevitável.
— Desculpe — murmurou, rezando para que ele não interpretasse o vermelho que
tingia seu rosto como uma demonstração da resposta física que aquele contato
provocara.
Mas o rosto cheio de cicatrizes estava contorcido pelo cinismo, e um brilho
metálico transformava os olhos cinzentos numa arma mortal.
— Devia ter mais cuidado — ele sorriu. — E pare de tremer, porque eu posso
tomar sua agitação por um convite, e nosso último beijo não foi sua melhor
experiência. Na verdade, foi tão repulsivo que você desmaiou. Não quer que aconteça
de novo, quer?
Luisa estava chocada, não com as palavras, mas, com o tom que ele havia usado
para pronunciá-las. Talvez achasse realmente que era repulsivo a ponto de fazê-la
desmaiar!
— Eu não... — começou, sem saber como articular uma negação que não soasse
como um convite. — Quero dizer, não desmaiei por... Não pense que... Bem, você não
deve pensar que deixou de ser um homem atraente...
— Não? Nesse caso... — e abraçou-a, aproximando-se até que os corpos se
tocassem.
Luisa sentiu o coração disparar assim que as mãos a tocaram, uma em suas costas,
firme e determinada, e outra em sua nuca, acariciando a pele sensível e provocando
arrepios.
A resposta era tão intensa e incontrolável, que começou a tremer de maneira
quase convulsiva. Era como ser arrastada por uma onda, puxada para dentro de um
oceano profundo que poderia esmagá-la com o peso de sua fúria.
Fechando os olhos, deixou-se levar pela avalanche de sensações que ele estava
provocando. O bom senso dizia que estava sendo ingênua e tola, mas recusava-se a
ouvir os avisos. Naquele momento, só queria experimentar os prazeres que havia
conhecido em sonhos. Ao sentir os lábios quentes que tocavam os seus, ela emitiu um
gemido abafado e passou os braços em torno do pescoço de Zachary West.
As mãos dele tornaram-se ainda mais firmes, puxando-a de encontro ao peito, e a
boca dominava a sua como se lhe pertencesse desde sempre. Ele a queria!
Mas... seria realmente por ela que ardia, ou passara tanto tempo sozinho que,
agora, qualquer mulher seria capaz de despertar aquele desejo incontrolável?

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

Furiosa, Luisa recusou-se a alimentar a dúvida. Que importância tinha o motivo?


Zachary sentia desejo, e só isso importava.
A verdade era que sempre o quisera, desde o primeiro instante, e não
reconhecera os sentimentos que brotavam em seu peito porque jamais os
experimentara antes.
Tentara convencer-se de que estava comovida com seu sofrimento, e que sentia
apenas compaixão por vê-lo gemer de dor cada vez que despertava. Sempre fora
sensível à dor dos pacientes, e várias vezes havia dito a si mesma que seus
sentimentos por Zachary West eram apenas os de todas as enfermeiras por seus
doentes, alimentados pela culpa que ainda sentia sempre que pensava no acidente.
Mas havia mentido para si mesma. Aos poucos, fora forçada a reconhecer a
verdade e admitir que seus sentimentos não tinham nenhuma relação com piedade. As
sensações haviam criado raízes profundas em seu corpo, e agora o queria com
desespero.
Sempre imaginara-se incapaz de experimentar as coisas que os poetas
descreviam em suas histórias de amor, e Zachary West acabara de provar o quanto
estivera enganada a respeito de si mesma.
Os lábios afastaram-se dos seus com relutância, mas ele não ergueu a cabeça.
Traçando uma trilha de fogo, Zac ia depositando beijos suaves e sensuais em seu
rosto, no pescoço, na orelha e nos ombros, até que uma das mãos começou a manejar
os pequenos botões do vestido azul que ele havia retratado pouco antes.
Dominada pelas sensações físicas, Luisa enterrou os dedos nos cabelos negros e
espessos, inclinando o corpo num gesto de rendição.
Zachary emitiu um gemido abafado e enterrou o rosto entre seus seios,
provocando um prazer tão intenso, que ela teve a impressão de que ia desmaiar.
A carícia estendeu-se por alguns segundos, cada vez mais erótica, até que,
finalmente, incapaz de conter o entusiasmo, Luisa gritou.
E como se o som quebrasse o encanto que os envolvia, Zachary ergueu o corpo e
parou, respirando ofegante, o rosto vermelho e perturbado.
Não queria voltar à terra depois de ser levada ao céu, mas não podia manter os
olhos fechados para sempre. Relutante, abriu-os e sentiu que a luz do dia a ofuscava,
banindo gradualmente a cegueira produzida pela paixão, até que, trêmula, conseguiu
fitá-lo.
Estava tenso e pálido, e de repente as mãos caíram ao longo do corpo num gesto
de desânimo.
— Eu sinto muito. Por favor, não olhe para mim desse jeito! Você está tremendo
como um coelho assustado — e estendeu a mão como se pretendesse tocá-la,
deixando-a cair em seguida. — Fique calma, está bem? Já recuperei o bom senso, e
prometo que isso nunca mais voltará a acontecer. Pare de tremer, por favor. Eu não
tive a intenção de... Sei que é difícil de acreditar, mas não estava pensando em sexo.
Isso começou como uma brincadeira e...
Humilhada, sentindo o rosto queimar de vergonha, Luisa virou-se e olhou para o
jardim. Brincadeira?

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Você é enfermeira, e deve saber alguma coisa sobre psicologia. Talvez possa
entender o que aconteceu. Num minuto eu estava furioso, e beijei você porque sabia
que estava sentindo pena de mim, e isso me aborrecia. Mas então fechei os olhos e
pensei em outra coisa... em outra pessoa...
Pensara em outra pessoa enquanto a beijava? Sentia-se tão humilhada, que não
podia mais conter as lágrimas.
— Por isso perdi o controle — ele continuou. — Sei que é estupidez pensar nisso...
nela...
Luisa estava travando uma batalha acirrada contra o pranto, mas não perdia uma
única palavra do que Zachary dizia. Ela? Em quem estava pensando?
— Ela nem é real! Na verdade, eu nem a conheço. Não sei seu nome, nem onde
mora, e só a vi uma vez, de passagem, mas... — e suspirou. — Mas a imagem dela me
persegue. Pode entender uma coisa dessas?
— Acho que sim — Luisa respondeu, obrigando-se a vencer a dor.
Entendia melhor do que ele era capaz de imaginar. Desde o dia em que o vira pela
primeira vez, também era perseguida por sua imagem, e a obsessão tornava-se mais
forte a cada instante.
— Entende? — Zachary duvidou. — Eu gostaria de poder dizer o mesmo. Se
alguém me dissesse que um dia eu ficaria obcecado por uma mulher que nem conheço,
certamente teria rido até perder o fôlego. É como uma doença, e sinto que não posso
curá-la sozinho. Sei que tudo isso é só um produto da minha mente, como uma
miragem, e vivo dizendo a mim mesmo que não posso estar apaixonado por alguém com
quem sequer falei. É loucura!
Luisa havia virado para observá-lo, e tinha de fazer um esforço cada vez maior
para não romper em lágrimas.
Depois de alguns instantes de silêncio, Zachary riu com amargura:
— O que sei sobre essa mulher? Nada! Ela pode ser casada, mãe de cinco filhos,
ou uma psicopata, ou uma fugitiva da polícia... qualquer coisa! Por que não consigo
esquecê-la? Sonho com ela todas as noites, e acordo pensando nela todos os dias.
Luisa jamais imaginara que fosse possível sentir uma dor tão intensa.
Zachary também estava sofrendo, dominado por uma angústia que contorcia seu
rosto e o transformava numa máscara de desespero.
— E o mais estranho... O mais estranho é que a vi justamente naquela tarde. Acha
que é só uma coincidência, ou que, por isso, não consigo esquecê-la?
Reunindo toda a força que ainda lhe restava, Luisa conseguiu sussurrar:
— Que tarde? — e, como se recebesse uma mensagem telepática, concluiu: — No
dia do acidente?
Ele afirmou com a cabeça:
— Eu estava em algum lugar entre Tareton e Whinbury, e dirigia com cuidado
para não arruinar as telas que transportava no furgão. Estava pensando na exposição,
e é claro que sentia uma grande ansiedade. Seria a maior de todas... Estava
escurecendo, e eu acendi os faróis para compensar a falta de iluminação pública.
Quando comecei a atravessar a área rural, um objeto branco chamou minha atenção...

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

alguma coisa que flutuava sobre uma colina, ou um muro... Não consigo me lembrar com
nitidez, mas fiquei curioso. Pisei no breque, e o carro começou a perder velocidade...
Do que ele estava falando? Confusa, Luisa mantinha os olhos fixos em seu rosto
e, ao notar que ela o encarava com aquele ar atônito, Zachary comentou:
— Sei que parece loucura, mas... Por um segundo, pensei que fosse um fantasma.
— Um fantasma? Não pensei que fosse o tipo de pessoa que acredita nessas
coisas!
— Não sou. Mas sabe como a imaginação humana pode pregar peças,
especialmente ao entardecer, quando o mundo parece mudar de forma para esperar a
noite. Mas é claro que não levei essa história de assombração a sério, e acabei rindo
de mim mesmo. Eu havia visto uma garota caminhando atrás de uma cerca... sim, agora
me lembro. Era uma cerca em torno de um jardim, e acho que também havia uma casa
no terreno. Mas eu só tinha olhos para ela. Era como se houvesse passado todo o
tempo do mundo naquele lugar, caminhando pelo jardim ao entardecer, e usava um
vestido branco e longo que flutuava ao vento como um traje de gala.
— Um traje de gala? Ela estava passeando no jardim usando um vestido a rigor?
— Eu não disse que era. Só que parecia. E é esse o grande problema. Era tudo
muito estranho, como se eu estivesse sonhando... Mas não estava. Sei que tudo aquilo
realmente aconteceu.
Luisa não disse nada. Era difícil seguir o raciocínio confuso de um homem incapaz
de distinguir sonhos da realidade, mas, de qualquer forma, talvez pudesse
compreender alguma coisa se o deixasse prosseguir.
— De uma coisa eu tenho certeza. Ela era muito jovem, tanto que, a princípio,
pensei tratar-se de uma criança.
Sua expressão era tão sonhadora, que Luisa sentiu a dor crescer como se alguém
cravasse uma faca em seu peito. Por que não podia fitá-la com aquele brilho nos olhos?
Por que vivia obcecado por alguém que sequer conhecia, e que talvez nem existisse?
Mas Zachary estava isolado em seu mundo, dominado pelas próprias emoções.
— Ela era magra e delicada, com cabelos negros e longos emoldurando o rosto
pálido. Parei o carro e fiquei imóvel, olhando para ela, e mesmo tendo virado o rosto
em minha direção, acho que ela nem notou minha presença. Senti que estava
totalmente distraída, mergulhada num mundo onde só ela existia...
A ironia a fez sentir vontade de rir. A garota estava distraída, perdida num
mundo de sonhos, e nem olhou para ele? Agora havia uma ruga profunda marcando sua
testa:
— Tive a impressão de que estava infeliz... — e parou, como se algum alarme o
chamasse de volta à realidade. Fitando-a, sorriu e disse: — Desculpe aborrecê-la com
isso, mas nunca tive coragem de falar sobre esse assunto com ninguém. Não tive
chance sequer de procurá-la, porque, minutos depois, seu pai surgiu do nada naquela
maldita curva e... E o resto você já sabe. Nunca mais tive coragem de dirigir, e não
posso sair por aí, num táxi, procurando uma garota sem nome. Não sei nem onde
estava... Algum lugar entre Tareton e Whinbury... Uma faixa de estrada que
compreende dezenas de quilômetros. E mesmo que a encontrasse... Olhe para mim!

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Você não é esse horror que...


— Por favor, não comece com isso outra vez! Muito bem, você é da área médica.
Qual é o diagnóstico? Estou maluco? Tenho alucinações?
— Você deve ter visto uma garota caminhando por um jardim, e sem dúvida ela é
tão bonita quanto diz... mas só a fixou na mente porque tudo aconteceu segundos antes
do desastre. Passou muito tempo na cama, sem nada para fazer além de pensar, e vai
esquecer tudo isso assim que retomar seu trabalho e a vida normal — e olhou para o
relógio, fingindo surpresa. — Meu Deus, como é tarde! Preciso ir embora, Sr. West.
Espero que a polícia encontre os ladrões e recupere seus aparelhos eletrônicos.
Ele a acompanhou até a porta e, ao abri-la, sorriu:
— Obrigado por me ajudar na limpeza da casa.
— Por nada. Adeus, Sr. West.
A palavra tinha um sabor amargo em sua boca. Tentara usar um tom de voz suave,
mas estava falando absolutamente sério, e era difícil esconder a dor provocada pela
idéia de nunca mais voltar a vê-lo.
Tranqüilo, Zachary acenou e disse:
— Até qualquer dia.
Mas ela sabia que jamais haveria outro dia.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

Capítulo VII

O feriado de Ano-Novo movimentou o hospital Whinbury novamente, a maior


parte dos pacientes sofrendo as conseqüências do abuso de bebidas alcoólicas nas
comemorações. A maioria era encaminhada ao setor de emergências, mas também
havia movimento extra na unidade de queimados. Naquele ano, Luisa sentia-se grata
pela sobrecarga de trabalho, porque não podia choramingar por Zachary enquanto
estava cuidando de pessoas feridas. Mas o esforço necessário para afastá-lo da mente
abalava seu sistema nervoso, e as subordinadas já estavam começando a tratá-la de
maneira temerosa.
Numa tarde de janeiro, Luisa notou a expressão de receio no rosto de Anthea
Carter e percebeu que estava repetindo o comportamento que tanto detestara no
início da carreira.
— Já aplicou aquelas injeções, enfermeira? — perguntou com a voz mais gentil
que já usara.
— Ainda não. Estava tão ocupada que...
— Então faça isso o mais depressa possível. E, se quer um conselho, aproveite o
Ano-Novo para organizar seu tempo, ou vai acabar com uma estafa.
— Sim, enfermeira. Também aproveitou o Ano-Novo para tomar decisões
importantes?
Luisa sorriu:
— Sim, mas nunca falo sobre decisões desse tipo. Se não conseguir cumpri-las,
não terei de ouvir as críticas e censuras. E vá aplicar as injeções, enfermeira, porque
seu trabalho já está atrasado.
Anthea virou-se e saiu apressada, como um rato fugindo do gato. Não gostava de
chamar a atenção das subordinas, mas o trabalho precisava ser feito, e aquela jovem
tinha de aprender a cumprir suas tarefas sem que os superiores tivessem de lembrá-la
a todo instante.
Luisa voltou para sua sala, onde uma pilha de papéis a esperava. Havia tomado
apenas uma decisão de Ano-Novo: esquecer Zachary West. Mas não podia falar sobre
isso com a enfermeira Carter!
Olhou para os formulários que estava preenchendo e lembrou-se de David.
Gostava de sua companhia, mas sabia que jamais apaixonar-se-ia por ele e, portanto,
nunca poderia aceitar suas propostas de um relacionamento mais íntimo. Esperara
muito tempo para aceitar um prêmio de consolação, mesmo que esse prêmio fosse
David.
Desde que conhecera Zachary, descobrira-se capaz de desejar um homem
ardentemente, e por isso sabia que nunca poderia entregar-se ao namorado. Porque

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

jamais sentiria as mesmas coisas com ele.


O telefone tocou e Luisa pulou na cadeira, assustada. Mais uma internação? Ainda
havia um leito vago, mas sempre ficava nervosa quando era obrigada a trabalhar com a
enfermaria lotada.
Cruzando os dedos e apelando para a sorte, apanhou o fone e identificou-se:
— Unidade de queimados, enfermeira Gilbey falando.
— Luisa?
Reconhecendo a voz, ela suspirou aliviada.
— Papai! Como vai?
— Nem me pergunte! — O Natal na Suíça não havia contribuído para melhorar sua
disposição. Pelo contrário. Harry Gilbey dava a impressão de estar ainda mais abatido.
— E você, querida? Como tem passado?
— Ocupada, como sempre. Todos os anos a história se repete. Primeiro o Natal,
depois o Ano-Novo e uma avalanche de novos pacientes. Minha enfermaria só tem um
leito disponível. A propósito, papai, não posso falar muito. Tenho de supervisionar a
distribuição dos medicamentos.
— É claro. Só liguei para convidá-la para um almoço. Quando terá uma folga?
— Terei dois dias a partir de amanhã — respondeu desanimada.
Planejara dormir o dia todo, porque ultimamente andava sofrendo de insônia e o
organismo já começava a dar os primeiros sinais de exaustão.
— Perfeito. Podemos marcar para sexta-feira? Recebi uma proposta, e gostaria
de discutir o assunto com você.
— Proposta?
— Alguém quer comprar a fábrica — ele explicou em voz baixa. — Talvez seja
uma saída, mas a oferta é muito baixa, e acho que o interessado pode ter ouvido
alguma coisa sobre as dificuldades financeiras que estou enfrentando. Sabe como são
essas coisas...
— Papai, não sei nada sobre os seus negócios. O que Noelle disse sobre o
assunto?
— Ela ainda não sabe de nada.
— Entendo.
Quantos outros segredos o afastavam da esposa? Que tipo de casamento era
esse, que permitia tantas mentiras e omissões? A esposa devia ser alguém em quem
seu pai pudesse confiar e que o ajudasse nos momentos difíceis, e não alguém cujas
reações o amedrontassem a ponto de esconder coisas importantes.
— Eu sei o que ela vai dizer. Noelle não quer que eu venda a fábrica — Harry
comentou. — Quero conversar com você. porque sei que não vai me atacar com um
machado quando eu falar sobre o assunto. Sei que vai me ouvir com atenção, opinar
com honestidade e... Luisa, preciso desabafar! Em quem mais posso confiar, além de
minha própria filha?
— Tudo bem, papai. Sexta-feira. Onde?
— No Cherry Tree?
— Perfeito. Meio e dia e meia?

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Meio dia e meia, sexta-feira, no Cherry Tree. Pode ir cuidar dos seus
pacientes — e desligou.
Luisa ouviu a voz de David do lado de fora e levantou-se apressada, querendo
saber o que ele estava fazendo na enfermaria dos queimados àquela hora da noite,
quando já devia estar em casa.
Ele estava falando com Anthea Carter, que afastou-se discretamente ao ver
Luisa na porta do escritório.
David sorriu e perguntou:
—Tem tempo para um chocolate quente? Preciso beber alguma coisa doce e
saborosa. Tive um dia horrível!
— Devia ir para casa — ela sugeriu.
Mesmo assim, serviu uma xícara de chocolate quente que sempre mantinham na
garrafa térmica do escritório, e apanhou alguns biscoitos da lata que guardavam no
armário.
— Estou cansado demais para dormir — David confessou. — Além do mais, vou
tirar alguns dias de folga a partir de sexta-feira. Também está livre na sexta, não é?
O que acha de um jantar no Cherry Tree?
Luisa hesitou, e David fitou-a com a testa franzida.
— Qual é o problema? Já tem algum compromisso?
Não queria marcar mais um encontro, mas também não podia romper um
relacionamento numa enfermaria, no meio do plantão. Precisava conversar com David
num lugar mais apropriado, longe do ambiente de trabalho.
— Não tenho nenhum compromisso, mas já marquei um almoço no Cherry Tree... e
justamente na sexta-feira.
— Com quem?
— Com meu pai — ela respondeu, irritada com o tom possessivo.
Jamais haviam discutido, e agora que pretendia pôr um ponto final no
relacionamento, David decidia ter um ataque de ciúmes!
— Pensei que tivesse um rival — ele riu, sentando-se para saborear o chocolate.
— Luisa... Se estivesse saindo com outro homem... Você me diria, não?
— É claro que sim. Se eu decidir sair com outra pessoa você será o primeiro a
saber.
— Espero que entenda minhas suspeitas. Você nunca aceita maiores intimidades
entre nós e...
— David! A enfermeira Carter está do outro lado da porta! Quer fazer o favor
de falar baixo?
— Desculpe. Precisamos falar sobre isso, Luisa. É claro que não esperava que
pulasse na minha cama no primeiro encontro, mas estamos namorando há quase um ano!
Será que não entende? Não quero ser seu irmão!
— David, por favor! Não pode esperar até sexta-feira para discutir esse
assunto?
— Você sempre encontra uma maneira de escapar! Quer saber de uma coisa?
Estou começando a achar que perdi meu tempo com você! Não vamos chegar a parte

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

alguma, não é? Nosso relacionamento não tem a menor importância para você!
— Sinto muito, David — ela sussurrou, sentindo-se embaraçada. — Eu nunca tive
a intenção de magoá-lo e... Bem, acho que devemos pôr um ponto final em nossos
encontros.
— O quê? Está rompendo nosso relacionamento? Incapaz de falar, Luisa limitou-
se a afirmar com a cabeça. David fitou-a em silêncio durante alguns instantes, como se
quisesse agredi-la. Em seguida levantou-se e saiu, batendo a porta com força.
No dia seguinte, Luisa dormiu como se estivesse sob o efeito de calmantes,
embora houvesse tomado apenas um copo de leite ao chegar em casa. Saíra do hospital
tão cansada, que não tivera ânimo nem para comer. Como um robô, havia tirado as
roupas, vestira a camisola e adormecera assim que caíra na cama.
E teve sonhos estranhos. Estava caminhando num jardim ao entardecer, e de
repente viu Zachary West correndo em sua direção. Com o coração aos saltos,
imensamente feliz, mantinha os braços abertos para recebê-lo, mas ele parou no meio
do caminho e gritou: Você não é ela!
Despertou sobressaltada, e entrou em pânico ao perceber que o quarto estava
mergulhado na mais profunda escuridão. Fora para a cama às nove da manhã! Teria
dormido o dia todo?
Acendeu o abajur e olhou para o relógio. Sete horas. Dez horas de sono
ininterrupto!
Normalmente dormia cinco, no máximo seis horas. Confusa, levantou-se e calçou
os chinelos. Preparou uma xícara de café e aproveitou para ler o jornal enquanto o
saboreava, e só depois foi tomar um banho e vestir-se.
Já era tarde demais para ir ao cinema ou a um restaurante, como costumava
fazer em suas noites de folga, e por isso decidiu fazer um prato especial para o
jantar. Um risoto. Só precisava de uma panela, e todas as sobras que encontrasse na
geladeira. Normalmente tinha um pouco de frango ou peixe, mas naquela noite só podia
contar com alguns legumes e vegetais.
Já havia começado a preparar a refeição, quando o telefone tocou. Por medida de
segurança, diminuiu a intensidade da chama do fogão antes de ir atender.
— Ah, você está em casa! — David exclamou. — Posso passar por aí? Precisamos
conversar, Luisa. Não podemos permitir que um relacionamento de um ano termine
assim.
— David, eu... Por que não amanhã? Podemos nos encontrar e...
— Agora! — ele cortou, desligando em seguida.
Luisa mordeu o lábio, perturbada pela raiva que percebera na voz dele. Não podia
censurá-lo por estar magoado, mas também não podia fazer nada para mudar o que
sentia! Gostava dele, mas não o suficiente... O que mais poderia dizer, além de deixar
claro que não havia nenhuma esperança de um futuro para eles? Nunca fizera
promessas. David jamais havia escondido o desejo que sentia por ela, mas também
nunca falara de amor e nem insinuara alguma pretensão mais séria.
Mesmo assim, preferia que ele não fosse procurá-la naquele estado. Sempre
tivera medo da violência masculina.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

Havia acabado de olhar o risoto, quando o telefone tocou novamente. Talvez


David houvesse mudado de idéia.
Mas não era ele.
— Enfermeira Gilbey? Aqui é Zachary West.
Zachary West? Com o coração disparado, Luisa respondeu: l
— Oh, olá... Como vai?
— Não sei. Meu médico viajou e não consigo localizá-lo em parte alguma. Preciso
de ajuda. Passei o dia todo com uma dor de cabeça terrível, e o analgésico que costumo
tomar não fez efeito. Sabe se existe algum remédio mais forte? Ou acha que devo
tomar uma dose dupla de sonífero e dormir até esta maldita dor me deixar em paz?
— Não faça isso! — Uma dor de cabeça forte e constante, que o analgésico não
pudera aliviar. — Não faça isso, Sr. West. Se o problema for mais sério, o sonífero
pode causar uma reação perigosa. Estou indo para aí. Não faça nada enquanto eu não
chegar, está bem?
— Sabia que diria algo parecido. Por isso telefonei. Desculpe incomodá-la, mas
não sabia realmente o que fazer. Muito obrigado.
— Não precisa agradecer.
Felizmente o risoto já estava pronto. Preocupada, Luisa colocou a comida numa
vasilha plástica com tampa hermética e decidiu levá-la para a casa de Zachary West.
Rápida, aplicou um pouco de batom nos lábios, prendeu os cabelos negros no coque
habitual, vestiu a jaqueta vermelha e saiu. Cruzou com o carro de David a alguns
quarteirões de sua casa e fingiu não tê-lo visto, esperando que ele não houvesse
reconhecido seu automóvel, mas em seguida olhou pelo espelho retrovisor e viu que ele
estava fazendo o retomo.
E essa agora! O movimento era intenso, e não havia um único espaço por onde
pudesse fugir. Felizmente o motorista do automóvel ao lado decidiu fazer uma
conversão inesperada e:ela o imitou, entrando à direita.
Momentos depois, olhou pelo retrovisor novamente e não viu mais o carro de
David.
Mais relaxada, lembrou-se de Zachary e da estranha dor de cabeça que o
incomodava. O que poderia ser? Ele sofrerá lesões no acidente, mas nenhuma delas
grave o bastante para deixar seqüelas.
Talvez não houvesse nenhuma relação entre a dor de cabeça e o desastre. Podia
ser um fator psicológico, algum distúrbio produzido pela insatisfação de não poder
pintar, ou uma maneira do inconsciente lidar com as sucessivas tentativas fracassadas.
Luisa levou meia hora para chegar ao chalé. Numa sacola, carregava o
equipamento que reunira durante anos de trabalho, coisas como termômetro, aparelho
de pressão arterial e alguns medicamentos básicos, e estava saindo do carro, quando
ouviu o som de um motor e olhou em volta, assustada.
Por um segundo, chegou a pensar que David fosse jogar o automóvel em cima dela,
mas felizmente ele brecou a tempo e parou centímetros antes de atingir a traseira de
seu carro.
Furioso, bateu a porta e caminhou em sua direção:

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Por que saiu, se sabia que eu estava indo para sua casa? Que brincadeira é
esta?
Pálida, Luisa explicou:
— Desculpe, mas recebi um chamado de emergência.
— O quê? Do que está falando? — e olhou para o chalé isolado. Então a porta
abriu-se e, ao ver Zachary West, David surpreendeu-se: — Mas... eu conheço esse
homem! Ele foi um de meus pacientes... o artista... Como é mesmo seu nome?
— Zachary West.
David olhou para Zachary, que aproximava-se devagar, e em seguida fitou-a:
— O que está acontecendo? Ele telefonou e pediu que viesse? Por que não chamou
um médico? E como conseguiu o número do seu telefone? Está encontrando esse
sujeito desde que ele esteve em sua enfermaria?
Vermelha, Luisa parecia mais culpada do que realmente era, especialmente porque
gaguejava:
— Eu... Sim... Não... De certa forma, mas...
Zachary aproximou-se e ela o encarou com ar suplicante:
— Eu estava explicando...
— Explicando o quê? — ele perguntou, as sobrancelhas unidas compondo uma
expressão de desafio.
— Você, Sr. West — David disparou. — Luisa estava tentando explicar por que
telefonou para ela, e não para o seu médico. E não estava sendo muito convincente.
— Eu procurei o médico, mas ele está fora da cidade.
— E por que escolheu justamente e enfermeira Gilbey? Qual é a urgência? Você
não parece tão mal...
— Eu estava com dor de cabeça.
— Dor de cabeça? E por causa disso telefonou para a enfermeira Gilbey e a fez
vir correndo?
Devagar, David virou-se para encará-la. Luisa estava tão horrorizada com a cena,
que não conseguia pensar em nada que pudesse dizer para acalmá-lo, ou para justificar
sua presença. Por alguma razão, sabia que ele não acreditaria, principalmente porque
Zachary não parecia estar às portas da morte.
Depois de uma pausa prolongada, David disse com tom frio:
— Acho que isso explica tudo. Pena que não tenha dito a verdade, Luisa. Perdi
muito tempo interpretando o que havia entre nós como algo importante. Você deve ter
rido muito às minhas custas.
— Não! Não é nada disso! Eu não queria magoá-lo, David! Precisa acreditar em
mim!
—Eu acredito. Muitos homens duvidariam do que está dizendo, mas sei que você
tem um bom coração. Só gostaria que houvesse dito a verdade. — Sem esperar por
maiores explicações, entrou no carro e partiu.
Luisa sentiu ódio de si mesma porque, no fundo, sabia que ele estava certo. Devia
ter dito que estava apaixonada por outro homem, mas permitira que o relacionamento
se arrastasse por meses, quando sabia que não havia a menor possibilidade de um

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

futuro em comum.
— Era seu namorado? Exasperada, Luisa fitou-o e perguntou:
— Sr. West, eu gostaria de saber como conseguiu livrar-se daquela terrível dor
de cabeça.
— Parece que ela desapareceu.
— Desapareceu?
— Sim. Estranho, não acha? Era uma dor horrível e eu estava quase
enlouquecendo, mas então ouvi o som de seu carro, abri a porta e a vi discutindo com
aquele sujeito. Não sabia o que estava acontecendo, mas imaginei que ele houvesse
batido no seu automóvel. Pensei em ajudá-la, mas logo compreendi que o assunto era
pessoal. Ele estava furioso, e você gaguejava como uma criança pega em flagrante,
tentando explicar o que fazia aqui.
— E você não fez nada para esclarecer a situação! Podia ter dito que havia me
dado a impressão de estar realmente passando mal!
— Eu tentei, mas ele me interrompeu e começou a gritar com você. Além do
mais... minha dor de cabeça já havia passado, e eu tive a impressão de que o seu amigo
não acreditaria em uma palavra do que eu dissesse.
Era verdade. David não acreditaria, porque Zachary não tinha a aparência de
alguém doente. Os olhos brilhavam, e a pele tinha uma cor até saudável.
— Eu mesma estou começando a duvidar — ela acusou. — Não sei se acredito
nessa cura milagrosa, Sr. West.
— Mas é verdade. Não sei o que aconteceu, mas a dor passou de repente. Talvez
tenha sido a descarga de adrenalina provocada pela discussão... Estava mesmo
precisando.
— Ah, estava? E o que acha de outra? Não sabe como estou inclinada a discutir
com você!
— Parece promissor.
Incapaz de encará-lo, Luisa murmurou:
— Você me fez perder tempo.
— Desculpe. Passei os últimos dias na mais absoluta inatividade, e acho que acabei
provocando essa maldita dor de cabeça. Antes do acidente, eu ocupava todas as horas
do dia com o meu trabalho, mas sou incapaz de produzir algo de útil desde que voltei
do hospital. Talvez haja alguma relação.
— Talvez tenha exagerado ao descrever seus sintomas.
— Não, a dor era realmente insuportável!
Luisa sabia que ele estava dizendo a verdade, mas isso não a fazia sentir-me
menos furiosa.
— Não consigo entender por que não disse a verdade a David, mesmo correndo o
risco de não ser levado a sério! Não acha que devia me ajudar? Afinal, a culpa foi sua!
— Eu teria tentado explicar a situação, mas percebi que você não estava
preocupada com a possibilidade de um rompimento.
Vermelha, Luisa exclamou:
— Você não sabe nada sobre esse assunto!

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Mas tenho olhos e ouvidos, e percebi que não estava interessada em impedir a
separação.
Luisa mordeu o lábio, preocupada com a capacidade de observação de Zachary
West. Podia perceber certas coisas a seu respeito, e seria terrível se ele soubesse as
coisas que sentia quando estava a seu lado. Não suportaria a humilhação.
— Bem, de qualquer forma, é óbvio que não precisa de mim — ela anunciou,
virando-se para partir.
— Não, por favor — Zachary pediu, segurando-a pelo braço e sorrindo com
simpatia. — Não converso com ninguém há dias. Já comeu? Não tenho muita coisa na
geladeira, mas posso improvisar um omelete, ou ovos com bacon... Não me deixe
sozinho, Luisa.
Era a primeira vez que ele a chamava pelo primeiro nome, e isso provocou uma
reação imediata e irracional:
— Preciso ir embora.
Queria ficar, mas temia ferir-se ainda mais profundamente. Zachary estava
apaixonado por outra mulher, e só precisava de companhia. Era horrível saber que,
naquele momento, estaria pedindo a mesma coisa a qualquer outra pessoa.
— Não pode ficar por uma ou duas horas? — ele insistiu, retirando a sacola das
mãos dela. — O que traz aqui? Instrumentos de tortura?
— Equipamento médico. Vim preparada para examinar suas condições gerais.
— E por que não faz o exame? Só para ter certeza de que está tudo bem. Eu
ofereça o jantar.
— Eu trouxe comida — Luisa confessou embaraçada. — Estava terminando de
fazer um risoto quando você telefonou, e pensei que poderia esquentá-lo no caso de
termos de esperar uma ambulância, por exemplo.
— Pensou que a coisa fosse tão séria assim?
— E sempre bom estar preparada para qualquer emergência, e você falou como se
estivesse às portas da morte.
— Era o que eu sentia naquele momento. O risoto também está aqui? — e mostrou
a sacola.
Luisa afirmou com a cabeça. Sabia que ele queria que ficasse porque estava
aborrecido e sozinho, mas que preferia estar em companhia de outra mulher. Isso a
perturbava, mas, mesmo assim, sentia-se comovida diante de sua solidão, e ainda não
conseguira livrar-se da culpa por ter provocado o acidente que destruíra sua vida.
Mas todas as desculpas eram insignificantes, comparadas à verdade. Queria
estar com ele porque era maravilhoso ouvir o som de sua voz e senti-lo perto. Por que
não podia estender os momentos de felicidade, mesmo sabendo que era apenas ilusória
e passageira?
— O risoto é suficiente para nós dois — disse, obrigando-se a banir a ansiedade
da voz.
Zachary brindou-a com um sorriso e, com o coração aos saltos, Luisa espantou-se
com a mudança no rosto marcado e sempre tão sombrio. Se soubesse o que fazia com
suas emoções quando a fitava daquele jeito, perceberia o quanto estava enganado ao

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

julgar-se repulsivo e horrível.


— Tenho algumas frutas para a sobremesa — ele ofereceu, levando-a para o
interior do chalé. — A cozinha fica logo ali. Fiz um acordo com o dono do mercado do
vilarejo, e recebo minhas compras duas vezes por semana. É claro que ele cobra uma
taxa pela pequena conveniência, mas vale a pena. Assim não preciso enfrentar a
piedade e o horror no rosto das pessoas quando ando pelas ruas.
— Está imaginando todas essas coisas. Seu rosto ainda está marcado, mas não é
tão ruim quanto pensa.
Zachary segurou sua mão e levou-a ao rosto:
— Sinta, e depois tente me convencer de que não é tão ruim.
Trêmula, deslizou os dedos pelas cicatrizes espalhadas por seu rosto, sentindo a
tensão da mandíbula forte e a aspereza da pele profundamente marcada. Não o fitava
nos olhos, porque temia que ele percebesse o desejo que sentia ao tocá-lo.
Rouca, murmurou:
— As cicatrizes dão um ar perigoso, e o fazem parecer um pirata.
Sorrindo, tentou fitá-lo nos olhos e arrependeu-se em seguida. Ele a encarava
tão intensamente! Talvez suspeitasse das sensações que experimentava naquele
momento...
Sentindo o rosto vermelho, abaixou a cabeça e ouviu-o dizer:
— Mas eu não quero parecer um pirata. Prefiro ser sexy. Como gostaria de dizer
o quanto o considerava sexy!
— Está vendo? Você não disse que sou!
Irritada com ele e consigo mesma, Luisa afastou-se e disse:
— Estou morrendo de fome. Acho melhor ir cuidar do risoto — e olhou em volta,
tentando localizar-se na cozinha bem equipada. — Oh, vejo que comprou outro
microondas! Ou a polícia encontrou os ladrões?
— Infelizmente não. Eu telefonei para a loja de Whinbury, onde havia comprado o
primeiro, e pedi que trouxessem outro idêntico. Já estava acostumado com aquele, e
não queria passar dias lutando para entender os comandos dessa coisa.
— Vamos precisar de alguns minutos para aquecer o risoto no microondas.
— Por isso decidi comprar outro. Não sei como alguém consegue viver sem um
desses em casa — Zachary riu. — Podemos comer na cozinha, ou prefere a mesa da
sala?
— Oh, não! Na cozinha é mais prático. Mas, primeiro, quero verificar sua pressão
arterial, os batimentos cardíacos e a temperatura. Ficarei mais tranqüila quando tiver
certeza de que está tudo bem.
Zachary sentou-se em uma das cadeiras, ao lado da mesa, e Luisa realizou os
exames. O pulso estava ligeiramente acelerado, mas nada que pudesse preocupar. A
pressão também havia subido um pouco, mas a temperatura era normal e, de maneira
geral, o quadro não inspirava cuidados.
— Está tudo bem — ela anunciou, guardando os equipamentos.
— Desculpe ter feito você vir até aqui por nada. Enquanto lavava as mãos na pia,
de costas para ele, Luisa respondeu:

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— Não faz mal. Acho que sua dor de cabeça pode ter sido realmente causada por
tédio e inatividade. Devia voltar ao trabalho, Sr. West.
— Zachary. Esqueça a formalidade, Luisa.
Embaraçada, examinou os controles do microondas e manteve-se de costas para
Zac, tentando esconder a confusão que a dominava. Em silêncio, pôs o risoto no forno e
pediu:
— Pode arrumar a mesa, por favor? A comida estará quente em quatro minutos.
Tem alguma coisa para uma salada?
Preparam a salada juntos, sem falar muito, e pouco depois terminavam a refeição.
— Delicioso — Zachary elogiou, colocando os pratos na máquina de lavar louça, o
único eletrodoméstico de valor que os ladrões não haviam levado. — Nunca havia
comido um risoto de legumes. A receita é sua?
— Não existe nenhuma receita. Apenas juntei um pouco de cada coisa que
encontrei na geladeira.
— Devia ter imaginado que era uma boa cozinheira. Com o seu treinamento...
— Qual é a relação entre um treinamento de enfermagem e conhecimentos de
culinária? — ela riu.
— Calma, paciência, boa vontade... Características essenciais, tanto para a
cozinha, quanto para a profissão que escolheu.
— Sinto muito, mas acho que está enganado. Já cuidei de um dos mais famosos
chefes de cozinha de Londres, e ele era bastante temperamental. Sabe por que foi
para o hospital? Porque discutiu com um cozinheiro chinês, e os dois se agrediram com
pratos e panelas. Ele foi atingido por uma tigela de louça e sofreu cortes no rosto e no
braço.
Zachary riu:
— Você está brincando!
— Não — Luisa respondeu, vendo-o descascar uma laranja e notando o quanto
suas mãos eram grandes e fortes.
— Não quer uma fruta?
— Oh, sim... Obrigada — para mudar de assunto e esconder o embaraço
provocado pelas próprias emoções, perguntou: — Já pensou em tentar hipnose?
Conheço um profissional que pode ajudá-lo a vencer o bloqueio mental que o impede de
trabalhar.
— Acha mesmo que isso funciona? Não sei se gosto da idéia de alguém invadindo
meus pensamentos.
— Ninguém diz ou faz aquilo que não quer, nem mesmo sob efeito de hipnose. E
funciona, como a acupuntura e outras técnicas parecidas. Tenho uma amiga que sofre
de asma, e que era obrigada a tomar doses maciças de medicamentos fortes. Os
remédios estavam prejudicando seu organismo, e um dos médicos do hospital
aconselhou a acupuntura. Em dois meses, minha amiga já havia conseguido abolir toda a
medicação tradicional. Ainda tem algumas crises quando está sob tensão, mas sempre
resolve o problema com as agulhas.
— Jamais pensei que uma enfermeira pudesse me dar esse tipo de conselho!

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Ultimamente os profissionais da área de saúde estão aprendendo a respeitar a


medicina alternativa.
— Vou pensar no assunto — Zachary prometeu. — Por que não vai sentar-se na
sala, enquanto eu faço o café?
Luisa fez como ele dizia e foi para a sala. A lareira estava funcionando e um
aroma delicioso de madeira espalhava-se pelo ar. Acomodou-se no sofá e, surpresa,
apanhou um livro que Zachary deixara aberto sobre uma almofada. Era um diário de
viagem de um aventureiro da época vitoriana.
— Espero que não tenha desmarcado a página — ele brincou ao entrar com a
bandeja, minutos depois.
— Setenta e três. Está gostando do livro?
— Muito. Os desbravadores antigos eram muito corajosos. Faziam viagens longas,
arriscando-se a encontrar doenças terríveis e todos os perigos em locais
desconhecidos.
— Eles enfrentavam riscos parecidos mesmo quando estavam em suas casas.
Naquela época, a febre tifóide e o cólera eram ameaças sérias, e nem o marido da
Rainha conseguiu escapar.
— Devia ter imaginado que estava conversando com uma especialista em história
da medicina — ele riu.
— Está exagerando outra vez!
— O quê? Está insinuando que sou mentiroso, enfermeira? — Zachary perguntou,
fingindo-se ofendido e aproximando-se para entregar a xícara de café.
A luz do fogo incidiu sobre seu corpo, criando sombras escuras que chegavam ao
teto. Vendo-as, Luisa compreendeu que ele dominava a sala com sua presença,
exatamente como havia dominado sua vida e seus pensamentos. Desde que conhecera
Zachary West, nada mais tinha importância.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

Capítulo VIII

A luz da lua cheia penetrava pela janela do quarto e incidia sobre o rosto de
Zachary, perturbando o sono povoado por sonhos estranhos.
Estava em seu carro, dirigindo ao longo de uma estrada escura, sem saber para
onde ia, mas certo de que algo estava para acontecer. De repente, lá estava ela... a
garota de branco. Longe o bastante para que não pudesse tocá-la, flutuando pelo
jardim dominado pelas sombras do entardecer, silenciosa como as folhas que caem das
árvores.
Na lógica absurda dos sonhos, Zachary descobriu-se no jardim, chamando por ela,
aborrecido por não saber seu nome. Como a jovem poderia imaginar que gritava por
ela?
Enquanto corria, tinha a sensação de saber seu nome e de tê-lo esquecido naquele
momento; estava na ponta da língua! Vasculhava a memória, mas o nome lhe escapava.
De repente não podia mais vê-la. Continuava procurando, olhando em volta e
chamando... Sua voz ecoava e era devolvida pelas árvores numa imitação perfeita do
canto de um pássaro, mas a garota de branco havia desaparecido. Tinha de encontrá-
la! Continuava correndo e gritando, procurando por todos os recantos. Uma ou duas
vezes viu os cabelos negros entre as árvores e ouviu o farfalhar do tecido leve de seu
vestido longo, mas não conseguia alcançá-la.
Saiu de trás de uma árvore e viu-se perto da casa, que brilhava sob a luz
prateada da lua como uma miragem. Zachary parou e olhou para a fileira de janelas
brancas.
A lua as transformava em espelhos que refletiam o jardim e ele mesmo. Estava
prestes a retomar a busca, quando uma silhueta surgiu em uma das janelas, atrás das
cortinas. Um rosto encantador, com lindos olhos azuis que o fitavam. Era ela!
Podia vê-la claramente; os cabelos negros, os olhos claros, o formato do rosto e a
parte superior do vestido branco. Ela estendeu as mãos e Zachary correu em direção à
casa.
Mas, antes que a alcançasse, houve uma violenta explosão e todas as janelas se
fecharam.
Correu até a porta e bateu com desespero, mas então teve a sensação de que
uma força poderosa o arrastava para longe daquela casa. Estava acordando.
Por alguns segundos, sentiu-se tão confuso que não pôde sequer lembrar-se de
onde estava, mas em seguida ouviu os sons das ondas quebrando na praia, dos gritos
das gaivotas e do vento de inverno, e virou-se para examinar o relógio. Sete horas. A
noite havia terminado, mas sentia-se cansado como se a houvesse passado em claro. O

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

que significava aquele sonho? Por que as janelas haviam se fechado?


Porque aquela garota não era para ele. Tinha de esquecê-la, e era essa a
mensagem que o inconsciente tentava passar através do sonho confuso. Podia procurar
quanto quisesse, mas jamais conseguiria encontrá-la.
Furioso, levantou-se e sentiu o frio do amanhecer. Sonhos! Que importância
tinham? Um dia sairia para procurá-la, e tinha certeza de que a encontraria.
Ao aproximar-se do guarda-roupas, nu, viu o reflexo do próprio corpo no espelho
e concluiu que, exceto pelo rosto, havia voltado à normalidade. As cicatrizes que o
fogo deixara em seus ombros e braços haviam desaparecido, e o peito ainda mostrava
os músculos que sempre fortalecera com exercício físico regular. Nem mesmo o
período que passara inativo, na cama de um hospital, havia destruído sua boa forma.
Passara algum tempo com a irmã no último outono, e aproveitara o clima agradável
de Provence para nadar, jogar tênis e caminhar, e o bronzeado ainda podia ser notado,
mesmo após i todos aqueles meses de inverno. Até o rosto estava melhor. Sé o
cirurgião plástico acertasse em seu prognóstico, a próxima operação seria a última, e
finalmente poderia olhar-se no espelho sem estremecer.
Mas, como podia esperar que uma garota muitos anos mais jovem aceitasse...?
Não! Era impossível! Tenso, afastou-se do espelho e foi tomar um banho. Alguns
minutos depois, vestindo a velha calça jeans e um suéter branco que combinava com o
par de tênis, Zachary tomou uma xícara de café e foi para o estúdio.
Agora sabia o que gostaria de pintar.
Luisa também era perturbada por sonhos estranhos.
Estava numa praia deserta com Zachary que, deitado a seu lado, dormia tranqüilo
sobre a areia branca. A camisa preta estava aberta sobre o peito, e o jeans velho
acentuava a sensualidade que parecia emanar de cada poro. De repente ele abriu os
olhos e sorriu, e preparava-se para dizer algo importante e maravilhoso, quando ela
acordou.
Três horas da manhã. Ficou acordada durante algum tempo, pensando em
Zachary, até que adormeceu outra vez.
Estava novamente na mesma praia, mas desta vez ele usava apenas um calção de
banho e um par de óculos escuros com lentes espelhadas. O sol banhava o corpo
bronzeado, fazendo-a tremer de desejo.
— Toque-me, Luisa — ele murmurou, provocando uma reação intensa e imediata
que lembrava um choque elétrico.
Assustada, acordou outra vez e sentiu uma imensa frustração por não tê-lo
tocado. Pôr que tinha de despertar justo nos melhores momentos?
Desta vez passou mais tempo acordada, pensando nas imagens criadas por seu
inconsciente. Quando conseguiu adormecer novamente, viu-se deitada sobre a areia
molhada da praia, a água morna banhando seu corpo.
Sentiu que alguém a observava, e só então notou que estava nua. Rindo, virou a
cabeça e viu que Zachary havia se deitado a seu lado, e também estava nu.
Ele a abraçou e o contato com a pele quente e macia a fez estremecer. Sentindo
o peso do corpo musculoso sobre o seu, ofereceu os lábios e fechou os olhos,

69
Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

antecipando o prazer que estavam prestes a experimentar.


Mas, antes que ele pudesse beijá-la, Luisa acordou, trêmula e ofegante. Sentia
vontade de chorar de raiva!
O dia já estava amanhecendo e, cansada, decidiu levantar-se e preparar uma
xícara de café, que saboreou ao lado da janela da cozinha, de onde podia testemunhar
o início de mais um dia de inverno. Quanto antes voltasse ao trabalho, melhor. Era mais
fácil deixar de pensar em Zachary West durante as horas que mantinha-se ocupada.
Quando desceu do carro na porta do Cherry Tree, onde almoçaria com o pai,
Luisa espantou-se com a intensidade do frio e correu para dentro do restaurante. O
bar estava cheio, e Harry Gilbey a esperava em uma das mesas. Ele acenou ao vê-la e,
enquanto entregava o casaco ao garçom, Luisa teve de tempo de observar o rosto
cansado e marcado por linhas de preocupação. Envelhecera anos desde o acidente!
Tentando disfarçar a apreensão, sorriu e foi ao encontro dele.
— Olá, papai. Desculpe o atraso, mas o trânsito está infernal. O que está
bebendo? Uísque? Não, obrigada. Prefiro um copo de vinho branco.
O garçom foi buscar a bebida e ela apanhou o cardápio.
— Que dia horrível, não? — comentou. — Perfeito para uma sopa quente e
deliciosa. O que vai comer?
— Qualquer coisa.
— O que houve, papai? Você está bem?
— Sim, é claro.
— E Noelle, como vai?
Ele suspirou:
— Ocupada. Ela é uma boa administradora, sabe? Também já tive aquele
entusiasmo, mas agora...
O garçom trouxe o vinho e Luisa adiantou-se ao pai, fazendo os pedidos.
Finalmente Harry respirou fundo, como se precisasse reunir forças, e abordou o
assunto que o incomodava.
— Lembra-se daquela oferta de que lhe falei?
— Sobre a venda da fábrica?
— Sim. Pode não ser uma quantia fabulosa, mas duvido que surja outra melhor na
situação atual. Seria uma injeção imediata de capital, e tenho de pensar na questão do
acidente. O tribunal pode fixar uma soma extraordinária.
— Não acha melhor esperar pelo julgamento? Assim, teria mais tempo para
esperar por propostas melhores.
— É pouco provável que eu receba outras propostas.
— Papai, não seja pessimista! Se quer mesmo saber minha opinião, acho que devia
consultar Noelle e seus contadores antes de tomar uma decisão. Além do mais, se
receber algum dinheiro agora, o juiz pode concluir que sua situação financeira é
melhor do que está querendo mostrar.
Harry fitou-a com ar surpreso:
— Sabe de uma coisa? Devia ter ido administrar o negócio da família, em vez de
seguir a carreira de enfermeira.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Você nunca disse que gostaria de me ver na direção da fábrica. Quando eu


decidi ser enfermeira, você apoiou minha escolha.
— Porque é uma profissão admirável, querida. E eu estava brincando. Nunca tive
esperança de vê-la administrando meus negócios. Na verdade, acho que sempre tive
uma noção antiquada sobre mulheres empresárias. Esperava que se casasse cedo, e que
seu marido quisesse ingressar na empresa. Mas aprendi muito desde então,
especialmente depois de me casar com Noelle. Ela era eficiente como secretária,
humilde e consciente de seus limites, mas mudou radicalmente depois de tomar-se
minha esposa. Agora sei o quanto é ambiciosa.
Então, já estava desiludido com Noelle. Luisa jamais havia sentido simpatia pela
madrasta, mas seria capaz de qualquer coisa para ver o pai feliz e satisfeito com o
casamento.
Com ar aborrecido, Harry prosseguiu:
— Para ser bem franco, tenho receio de conversar com ela sobre a venda da
fábrica. Ela vai me infernizar quando souber sobre nossa real situação financeira.
— Papai, se ela é realmente uma boa administradora, como acabou de dizer, já
deve ter percebido alguma coisa. Ponha as cartas na mesa. Ela é sua esposa, e tem o
direito de estar a par das coisas que acontecem com o marido.
Passaram o resto do tempo discutindo o mesmo assunto, e Luisa conseguiu
convencê-lo a ter uma conversa séria com Noelle.
— E não diga que já falou comigo sobre esse assunto — ela aconselhou.
— Você tem razão — Harry sorriu. — Não vou nem mencionar seu nome. Sei que
Noelle é uma pessoa difícil. Na verdade, o casamento é muito difícil. Por isso, quando
chegar sua vez, pense bem antes de tomar uma decisão.
— Ah, pode ter certeza disso — ela respondeu no mesmo tom.
— Ainda está saindo com aquele médico?
— Não, papai. David e eu rompemos.
— Eu sinto muito, querida. Ele parecia ser um bom homem.
— E é, mas nós... eu não...
— Esqueça — Harry sorriu. — Um dia seu príncipe encantado vai aparecer.
Mais tarde, quando voltou para casa, Luisa ainda pensava nas palavras do pai.
Príncipe encantado...
Zachary West não era nenhum príncipe, mas gostaria de poder falar sobre ele
com o pai. Gostaria de poder falar com alguém a respeito das coisas que sentia, mas
não tinha coragem. Por mais que amasse Noelle, seu pai assumira um ar infeliz ao falar
sobre a esposa, e não queria incomodá-lo com problemas referentes à sua vida pessoal.
Especialmente porque, nas circunstâncias atuais, Zachary era seu maior
aborrecimento.
Harry telefonou para a filha no dia seguinte, e parecia bem menos preocupado:
— Eu contei tudo a Noelle na noite passada, e você estava certa. Ela não ficou
surpresa.
— Eu disse que ela já devia ter alguma idéia sobre sua situação financeira.
— Não sei por que não falei antes. Ela contou que já sabia que tínhamos algum

71
Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

problema, e por isso estava trabalhando duro para garantir a estabilidade da empresa.
Pensou que, assim, seria mais fácil conseguir um bom preço para a fábrica, caso
tivéssemos de vendê-la. Na opinião dela, é melhor livrar-se de uma preocupação do que
perder dinheiro tentando encontrar soluções.
— Sou obrigada a admitir que ela está certa — Luisa disse, percebendo que teria
de rever sua opinião a respeito da madrasta.
— Mas ela não quer aceitar a oferta de que lhe falei. Está fazendo negócios com
um sujeito de Birmingham, dono de uma cadeia de lojas espalhadas por todo o norte da
Inglaterra. Nós produzimos vários itens para essas lojas, e Noelle acha que o sujeito
pode estar interessado em injetar algum capital na fábrica através de uma sociedade.
Ele quer expandir seus negócios para o sul e também está interessado em participar
da produção de alguns produtos que comercializa, diminuindo os custos de operação.
— E você gostou da idéia?
— Estou pensando em cuidar da minha aposentadoria, Luisa. Trabalhei duro
durante a vida toda, e agora quero relaxar e descansar.
— Não acha que vai ficar aborrecido?
— Estou aborrecido com os negócios há alguns anos, e se não gostar da vida de
aposentado, posso retomar minhas atividades. Mas duvido que isso aconteça, querida.
Sou forte, saudável, e quero aproveitar os anos que ainda me restam sem ter de
enfrentar seis dias de trabalho por semana.
— Então não está pensando apenas em levantar dinheiro para pagar os prejuízos
de Zachary West?
— Não. Perdi o interesse pelos negócios, e estou feliz por poder assumir uma
posição secundária na fábrica. Noelle poderá assumir a direção ao lado do novo sócio, e
parece até que já discutiram o assunto. Ela cuidará da rotina diária, e ele tomará
conhecimento de tudo através de relatórios e balanços.
— Tenho certeza de que Noelle conseguirá vencer o desafio.
— Eu também tenho, querida.
Trabalhar com David tornou-se bastante difícil. Ele era sempre educado, mas a
tratava com uma frieza tão evidente, que todos os colegas do hospital notaram a
mudança de atitude.
Com esforço, Luisa conseguia manter o sorriso calmo, apesar das fofocas. Odiava
saber que as pessoas estavam comentando sua vida pessoal, e odiava saber que David
estava magoado e ressentido.
Se pudesse, gostaria de explicar que também era uma vítima da situação. Não
apaixonara-se por outro homem por opção própria, e sentia que os sentimentos haviam
invadido sua vida como um trem desgovernado, esmagando seu auto-controle. David
reagira de acordo com as expectativas. Como o cirurgião que era, cortou-a de sua vida
imediatamente, sem anestesia, e não havia nada que ela pudesse fazer além de
respeitar sua decisão.
Na verdade, ele já havia encontrado outra namorada, uma jovem loira e
sorridente, enfermeira do centro cirúrgico.
Nunca estivera apaixonada por David, mas foi impossível evitar uma pontada de

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

ciúmes quando, pela primeira vez, os viu atravessando o estacionamento de mãos


dadas. Ela e David haviam caminhado de mãos dadas muitas vezes, até que conhecera
Zachary West e descobrira a diferença entre carinho e paixão.
De qualquer maneira, gostava muito de David, e queria que ele fosse feliz.
Dois dias depois, Harry Gilbey telefonou para informar que a data do julgamento
havia sido marcada.
— Você não terá de prestar depoimento, e se não quiser ir... Luisa oferecera-se
para depor, mas o advogado havia dito que não era necessário, porque não estavam
discutindo quem causara o acidente. Harry Gilbey assumira a responsabilidade desde o
início, e só estavam disputando a questão dos prejuízos. O advogado esperava baixar a
soma de maneira considerável, alegando que Zachary West estava distraído e que, por
isso, não conseguira evitar a colisão.
Luisa não contara a ninguém sobre os devaneios de Zachary, e agora imaginava se
não devia revelar tudo sobre a garota de branco e as visões que ele havia mencionado.
Talvez pudesse ajudar o pai...
Não! Zachary estava na pista certa e numa velocidade bastante reduzida. Se
estava pensando numa jovem que talvez nem existisse, isso não mudava os fatos.
Harry Gilbey causara o desastre.
E ela! Se não houvesse se comportado como uma menina mimada...
— Vamos mudar de assunto — Harry Gilbey disse com entusiasmo surpreendente.
— Noelle está progredindo nas negociações com aquele sujeito de Birmingham. Ainda
não estipulamos uma quantia, porque ele quer que seus contadores examinem os
balanços dos últimos anos, mas parece ser um homem justo. Duro, mas justo. Portanto,
o que quer que aconteça naquele tribunal, tenho certeza de que o futuro não será tão
negro quanto eu imaginava.
— Fico feliz por você, papai — Luisa afirmou, apesar da culpa ainda incomodá-la.
Em seguida despediram-se. Ao desligar, ela olhou para o relógio e viu que ainda
eram três horas da tarde. Só teria de apresentar-se para o trabalho às oito da noite.
Dez minutos mais tarde estava dirigindo rumo ao litoral. O clima sofrerá uma
alteração súbita, e a chuva da noite anterior havia derretido a neve sobre as árvores e
telhados. Em pouco tempo, a primavera estaria chegando.
Quando estacionou o carro diante do chalé de Zachary West, viu que ele a
observava através da janela do estúdio. Decidida, aproximou-se da porta da frente,
onde ele já a esperava com um sorriso sarcástico.
— Aposto que sei o que veio fazer aqui — comentou.
— Sinto muito, mas duvido que saiba.
— Quer apostar?
— Não ganho o bastante para isso — Luisa disse com tom frio. — Soube que o
julgamento foi marcado para amanhã, e vim perguntar se quer uma carona até o
tribunal. Sei que ainda não está dirigindo, e isso evitaria o trabalho de conseguir um
táxi.
— Quanta bondade! Acha que vou demonstrar minha gratidão livrando seu pai dos
prejuízos?

73
Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Não sou tão otimista.


— Sorte sua, porque teria uma grande decepção— e afastou-se para deixá-la
entrar. Depois de fechar a porta, acrescentou com sinceridade: — Eu não me
recusaria a ajudá-lo, Luisa, mas não posso. Tenho de relatar os fatos como
aconteceram, e seu pai estava dirigindo em alta velocidade na pista contrária. Esta é a
verdade, e não posso mentir num tribunal.
— Eu jamais pediria que mentisse — ela respondeu, seguindo-o até o estúdio.—
Vai dizer ao juiz que estava distraído?
— O quê?
— Bem, você disse que não poderia mentir, e estava dirigindo distraído.
— Do que está falando?
— Da garota que disse ter visto na estrada.
— Luisa, eu estava do meu lado da estrada, e numa velocidade bastante reduzida.
Seu pai provocou aquele acidente!
— Reconheço que ele é o maior culpado... mas não o único. Se estivesse atento
poderia ter evitado a colisão, mas estava sonhando acordado...
— Não sei onde estava com a cabeça quando comentei essas coisas com você —
Zachary disse entre dentes, segurando-a pelos braços e obrigando-a a encará-lo.
Tremendo, Luisa sentiu que não podia fitá-lo. Não por medo, embora estivesse
apavorada com sua reação, mas porque temia revelar seus sentimentos através dos
olhos claros e expressivos.
Havia oferecido duas justificativas para aquela visita. Oferecer uma carona e
dizer que ele também tivera uma parcela de culpa no acidente que quase o destruíra.
Mas havia um terceiro motivo, mais verdadeiro e comprometedor. Fora procurá-lo
porque não o via há algum tempo, e já não suportava mais a saudade que a atormentava
sem trégua. Mas não podia revelar a verdade e, por isso, insistiu:
— Pois é uma informação importante. Não acha que devia dizer a verdade no
julgamento, em vez de jogar toda a culpa nas costas de meu pai?
— Por isso veio até aqui? — ele explodiu, sacudindo-a com violência assustadora.
— Para descobrir coisas e usá-las contra mim no tribunal? Eu já devia ter imaginado!
Apesar da aparência fria e calma, você é uma mulher, e as mulheres são criaturas
demoníacas, falsas e...
— Eu não sou nada disso, Zachary, e você sabe que não está dizendo a verdade!
Não pode me acusar... — e parou, temendo não poder conter as lágrimas que brotavam
em seus olhos.
— Por favor, não faça isso! — Zachary exclamou com raiva. — Por que as
mulheres sempre choram quando sentem que estão perdendo uma batalha? É um
truque muito baixo, sabe? — e levou uma das mãos ao seu rosto, limpando as lágrimas
que corriam livres.
— Odeio você — ela soluçou com amargura, sentindo uma raiva quase tão intensa
quanto o amor que ele havia conquistado.
— Pare de chorar! Você venceu. Vou admitir diante do juiz que não estava
concentrado no momento do acidente. Faço qualquer coisa, desde que pare de chorar.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

Não suporto esse ar frágil e indefeso.


Luisa sorriu radiante e Zachary teve a impressão de poder ver um arco-íris atrás
das lágrimas.
— Está falando sério? Vai mesmo admitir que...
— Já disse que sim. Não acha que mereço uma recompensa? Ele inclinou a cabeça
e feliz, Luisa atirou-se em seus braços, beijando-o com paixão.
Desejava aquele beijo desde que o vira parado na porta, e não podia mais adiar a
satisfação de uma necessidade tão imperiosa.
Zachary deslizava as mãos por suas costas, como se quisesse gravar o formato de
seu corpo na memória. De repente ele interrompeu o beijo e, com um gemido
angustiado, enterrou o rosto em seus cabelos.
— Você me confunde, Luisa. Uma aparência tão fria, e um interior tão
apaixonado... Você é como um iceberg. Só se pode ver uma pequena fração na
superfície, mas existe muito mais além das aparências. Acho que é capaz de destruir
qualquer pessoa que se atreva a colocar-se em seu caminho.
— Como pode dizer coisas tão horríveis? Você não sabe nada a meu respeito...
— Não — e ergueu a cabeça para fitá-la. — Não tenho a menor idéia do que se
passa em sua cabeça, e quando estou com você, sinto que sou incapaz de entender até
a mim mesmo. Por exemplo, por que tenho sempre de beijá-la?
— Está insinuando que eu me atiro em seus braços?
— É claro que não. Você é uma mulher de classe, e eu não tenho a menor atração
por garotas oferecidas. O que significa que não estaríamos abraçados, se fosse você
uma delas. Gosto de tomar a iniciativa.
— Então, por que está fazendo perguntas? Se sabe que sempre toma a iniciativa,
descubra as respostas sozinho!
Zachary soltou-a e deu alguns passos pelo estúdio.
— Não consigo — confessou. — E também não estava esperando que tivesse uma
resposta para as minhas dúvidas. Na verdade, estava apenas pensando alto. Tenho
refletido sobre tudo isso há dias, e não consigo encontrar uma resposta satisfatória.
Talvez meu cérebro tenha sofrido alguma lesão séria naquele acidente.
— Não há nada errado com sua cabeça, Zachary. Eu vi as radiografias e o eletro
encefalograma. Não houve nenhuma lesão.
— Eu sempre esqueço que é uma enfermeira. Bem, então deve haver outra
explicação. Acho que passo muito tempo sozinho, pensando, e ultimamente penso em
você.
Luisa experimentou uma alegria súbita e intensa, mas em seguida lembrou-se da
outra mulher, a jovem que ele vira pouco antes do acidente e com quem sonhava todas
as noites.
— E a garota do jardim? Não pensa mais nela?
— O tempo todo. Ainda sonho com ela, mas as vezes...
— Continue.
Zachary não disse nada. Estava parado no centro do estúdio, diante de uma tela,
e Luisa deu alguns passos em sua direção

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Está pintando alguma coisa? — perguntou, tentando ver a tela.


— Não quero que ninguém veja este quadro! — explodiu, colocando-se entre ela e
o cavalete.
Mas era tarde demais, porque Luisa já havia visto as cores e formas.
Ainda não estava terminado, mas as linhas gerais eram claras. Árvores, cercas, o
céu escuro de um entardecer cinzento e uma figura feminina cercada de branco, os
cabelos negros caindo sobre os ombros e o rosto levemente inclinado.
A garota que ele havia visto antes do acidente. Havia uma espécie de mágica
naquele quadro, como se um grande mistério insistisse em esconder-se atrás das
árvores daquele jardim.
De repente Luisa olhou novamente para a tela e dedicou mais atenção ao rosto da
jovem, levemente inclinado para o lado. Só então compreendeu porque Zachary reagira
de maneira tão explosiva quanto aproximara-se do cavalete.
O rosto na tela era o seu!

Capítulo IX

Luisa não conseguiu esquecer aquele momento nem mesmo durante as horas de
trabalho. Ficara tão perplexa, que sequer pedira uma explicação, limitando-se a
encarar Zachary com ar confuso.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— Não consigo lembrar o rosto dela — ele murmurara. — Eu o vejo em sonhos,


mas quando fiz o esboço, tive de deixá-lo em branco. Depois, quando comecei o quadro,
pensei que o efeito poderia ser até interessante. O mundo da arte gosta de coisas
polêmicas. Mas, de repente, descobri que estava pintando os olhos, o nariz, a boca... e
quando terminei, vi seu rosto na tela. Ficou aborrecida?
Ela negara com a cabeça, incapaz de imaginar por que ele havia juntado seu rosto
ao corpo da garota que ocupava seus sonhos.
— Talvez agora entenda porque disse que você me confundia. É como se duas
imagens se misturassem em minha cabeça!
Luisa não soubera o que dizer. Podia falar com um dos psiquiatras do hospital,
mas o médico insistiria em vê-lo pessoalmente, e Zachary jamais concordaria.
No dia seguinte, foi até o chalé para buscá-lo para o julgamento, conforme
haviam combinado.
— Você chegou cedo — ele comentou.
— O estacionamento do tribunal é pequeno, e pensei em deixá-lo na porta antes
de procurar um lugar para o carro.
— Entendo. Assim, evita que alguém a veja entrando comigo no prédio da corte.
Tentando mudar de assunto, ela recomendou:
— Não esqueça o cinto de segurança, está bem?
Mas ele a ignorou:
— Sei que as pessoas vão olhar para mim com aquele ar horrorizado. Acha que eu
devia usar um saco plástico na cabeça?
— Não diga bobagens! Você ainda tem algumas cicatrizes...
— Algumas?
— Zachary, as pessoas vão olhar, mas só no início. Depois vão se acostumar com
sua aparência.
— Você diz isso porque está habituada a ver coisas piores.
— Não. Estou dizendo isso porque sei que, com o tempo, os pacientes aprendem a
conviver com um rosto desfigurado. As pessoas acostumam-se com tudo! Todos nós
temos uma expressão facial que se torna conhecida, e só os estranhos olham para um
rosto marcado.
— E hoje vou ter de enfrentar uma sala cheia de estranhos — ele resmungou.
Luisa notou que ele mantinha as mãos fechadas e, com voz calma, aconselhou:
— Tente relaxar um pouco! Se não os conhece, não tem porque preocupar-se com
o que pensam a seu respeito. Entre naquela sala de cabeça erguida, e deixe as pessoas
olharem quanto quiserem. Afinal, já devia estar acostumado com os olhares. Você é um
homem muito atraente...
— Oh, eu sei! Vi como Dana olhou para mim quando foi me visitar no hospital.
— E quem se importa com o que ela pensa? — explodiu.
— Tem razão. Quem se importa com Dana? — Num movimento súbito, Zachary
tocou-a no rosto e a fez encará-lo. — Se não está preocupada com minha aparência,
por que não quer entrar comigo no tribunal?
Luisa hesitou.

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

— O namorado ciumento? — Zac insistiu.


— E claro que não!
— Ele não vai estar lá?
— E por que estaria? David não tem nada a ver com o caso!
— Ainda encontra aquele sujeito?
— Nós trabalhamos juntos, e os encontros são inevitáveis.
— Sabe muito bem o que quis dizer. Ainda está saindo com ele?
— Não, não estou! Posso saber por que está fazendo todas essas perguntas sobre
David?
— Porque sou curioso, ele ainda está interessado em você?
— Se quer saber, ele está saindo com uma enfermeira do hospital.
— E isso a incomoda?
— Zachary, você é persistente como um cobrador. Nunca desiste?
— Só quando consigo o que quero. E então? Está aborrecida porque David está
saindo com outra mulher?
— Não. Ele não era importante para mim, e eu não era a mulher certa para ele.
Sentíamos carinho e amizade um pelo outro, mas era só isso. Está satisfeito?
— Ainda não. Se não era importante para ele, por que David fez aquela cena no
dia em que a seguiu até aqui?
— Porque ele ainda acreditava que estava apaixonado por mim, mas logo
descobriu que estava enganado e aceitou a realidade.
— Quem rompeu o relacionamento?
— Fui eu, e naquele dia em que ele me seguiu, já havíamos terminado tudo. Por
isso ele estava tão irritado. Havíamos discutido sobre o rompimento, e ele queria
conversar.
— Alguma vez achou que o amava?
Surpresa com a pergunta direta, Luisa limitou-se a negar com a cabeça.
— Já esteve apaixonada por alguém?
— É claro que sim! Sou uma pessoa normal, e passei toda a adolescência me
apaixonando por rapazes diferentes.
— E depois da adolescência? Ela permaneceu em silêncio.
— Se não tem nenhum envolvimento sério, por que não quer ser vista comigo no
tribunal? Tem medo que as pessoas pensem que estamos tramando alguma coisa?
— Não seja ridículo! O problema é que meu pai... Bem, eu não disse a ele que o
conhecia.
— Não disse? Então... Não foi idéia dele...?
— De que idéia está falando?
— Quando veio me procurar para falar sobre os problemas financeiros de Harry
Gilbey...
— É claro que a idéia não foi dele! Meu pai nem sabe que vim procurá-lo! E
também não sabe nada sobre a garota de branco.
— Entendo. Bem, podemos ir? Estamos aqui há mais de dez minutos, e vamos nos
atrasar.

78
Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

Aliviada, Luisa suspirou e ligou o motor.


— Fique tranqüilo. Estaremos em Whinbury em menos de meia hora, e eu tomei o
cuidado de vir buscá-lo com bastante antecedência.
— Você é sempre muito cuidadosa — ele riu.
Seguiram em silêncio durante algum tempo, até que, num determinado ponto da
estrada, Zachary comentou:
— As flores estão surgindo novamente nos jardins, e o acidente aconteceu na
última primavera... há quase um ano. Pelo menos consegui voltar a pintar. Se soubesse
como é maravilhoso entrar no estúdio a cada manhã e ver meu trabalho sobre aquele
cavalete!
— Nunca pintei, mas posso imaginar como deve ser terrível não poder trabalhar.
— Acha que sentiria falta de sua profissão, se tivesse de abandoná-la por algum
motivo?
— É claro que sim! É o que sei fazer, e é bom poder desenvolver um trabalho no
qual somos competentes.
— Tem razão. Você é uma boa enfermeira. É estranho, mas... ainda lembro de
você naquela enfermaria, apesar de ter passado a maior parte do tempo inconsciente.
Tenho recordações nítidas do seu rosto sobre a minha cama no meio da noite, calma e
firme como um anjo protetor. Eu sentia tantas dores! Tinha um medo terrível de
morrer, ou de ficar eternamente desfigurado, e odiava seu ar controlado e seguro.
Sentia vontade de gritar!
— Ah, mas você gritou — ela riu.
— Gritei? Com você? Meu Deus, Luisa. Me perdoe. Eu não sabia...
— É normal. A maior parte dos pacientes não sabe o que está fazendo, e não
podemos esperar que alguém mantenha a calma e o controle quanto está enfrentando
dores terríveis.
— Mesmo assim, acho que... Pare! Assustada com o grito, virou-se para fitá-lo.
— Pare o carro! — ele insistiu.
Tomando todas as precauções, ela desviou para o acostamento e pisou no breque.
— Qual é o problema? — perguntou.
Mas Zachary não respondeu. Abriu a porta, desceu do carro e caminhou
apressado pelo acostamento, voltando alguns metros.
Que diabos estava acontecendo?
Assustada com o comportamento estranho, Luisa seguiu-o e perguntou:
— Zachary, o que houve? O que está fazendo?
— Foi aqui?
— Aqui...? Do que está falando? Do acidente? Sinto muito, mas está enganado. A
curva fica alguns quilômetros à frente.
— Não estou falando sobre o acidente. Será que não entende? Foi aqui que a vi!
— Aqui? — ela murmurou, sentindo o sangue gelar nas veias. — Você viu a garota
de branco aqui?
Ele mantinha os olhos fixos no outro lado da estrada, onde uma cerca de estacas
brancas de um metro de altura cercava um jardim. Os arbustos estavam secos e sem

79
Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

folhas, mas a primavera os encheria novamente de vida, impedindo uma visão clara do
interior da propriedade.
— Aquela cerca... eu a vi flutuando atrás dela, no jardim. E a casa... Está vendo? É
branca, e fica atrás das árvores. Meu Deus! Deve ser sua casa! Ela pode estar lá
dentro, e pode sair a qualquer momento!
Pálida como um fantasma, Luisa mantinha os olhos fixos na propriedade, como ele.
— Tem certeza de que foi exatamente neste lugar? — insistiu.
— Certeza absoluta! Você viu o quadro! Não reconhece os detalhes?
— Agora reconheço, mas não pude identificar muita coisa quando vi a tela pela
primeira vez. Não podia imaginar...
— O que está dizendo? Conhece essa casa? Quem é ela? Sabe qual o nome
daquela garota?
Com lágrimas nos olhos, ela respondeu:
— Conheço...
— Pelo amor de Deus, fale de uma vez!
— Era meu aniversário... e meu pai havia ido a uma festa com Noelle.
— Você enlouqueceu? Do que está falando?
— Estava deprimida, e decidi vir visitar a casa onde nasci e cresci, e de onde me
mudei logo depois do segundo casamento de papai. Havia comprado um vestido novo
para a comemoração... branco e longo, de tecido leve...
— Luisa...
— Havia conseguido descobrir o número do telefone do local onde papai estava e,
ao chegar aqui, decidi ligar e dizer o quanto estava magoada. Ele havia esquecido o
meu aniversário e, perturbado, disse que eu devia esperá-lo aqui, e que viria em
seguida. Então eu fui para o jardim... e fiquei caminhando ao longo da cerca,
observando o movimento da estrada.
— Você mantinha a cabeça baixa. Os cabelos caíam em torno do rosto e o vestido
flutuava ao vento. Parecia tão pequena e indefesa, que tive a impressão de estar vendo
uma menina!
— Eu sinto muito, Zachary! A culpa foi minha! Meu pai estava dirigindo como um
louco porque eu havia me comportado como uma menina mimada! A culpa foi minha!
— Talvez a dor tenha sido o preço da minha felicidade. Afinal, encontrei você, e
estou pintando melhor. Sempre pintei paisagens, mas agora sou capaz de retratar um
ser humano. Só consegui sobreviver, porque passei meses agarrado à lembrança
daquela menina... ela... você... — e abraçou-a, retirando os grampos que mantinham
presos seus cabelos. — Prometa que vai deixá-los soltos sempre que estiver fora do
hospital. Não sabe como parece mais jovem quando os deixa sobre os ombros.
— Não? E por acha que os mantenho presos? Quando me tornei enfermeira, os
pacientes riam de mim e os médicos não confiavam na minha competência, porque eu
parecia uma criança. Um belo dia prendi os cabelos e descobri que, assim, parecia mais
velha.
— Não faça mais isso — ele riu. — Sabe de uma coisa? Mal posso esperar para vê-
la nua, com os cabelos soltos sobre os ombros e... — e parou, notando que ela tinha o

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Sabrina 791 – Retrato de amor – Charlotte Lamb

rosto vermelho. — Desculpe. Estou indo muito depressa, não é? Mas já nos
conhecemos há quase um ano, e hoje em dia isso representa um tempo mais que
suficiente.
Luisa sentia o rosto quente e, encabulada, não sabia o que dizer.
— Está vermelha outra vez — Zachary riu. — Eu devia ter imaginado! Esse rubor
não combina com a imagem controlada da enfermeira Gilbey, o iceberg! Por outro lado,
tinha certeza de que a garota do jardim ruborizava com freqüência. Apaixonei-me por
ela no instante em que a vi, mas esqueci que o entardecer nos prega peças. Pensava ter
visto uma menina, e fui incapaz de reconhecê-la naquele uniforme de enfermeira. Mas
o meu inconsciente percebeu tudo, e por isso eu fiquei tão confuso. Por isso juntava
seu rosto ao corpo daquela garota, e misturava afeto e ressentimento. Era como se
sua presença pudesse trazer de volta o momento do acidente, a dor e o medo... Meu
Deus, como não percebi isso antes? Eu a associava ao acidente porque, de forma
inconsciente, sabia quem você era, e tudo aconteceu momentos antes...
— Zachary, você está me deixando tonta! — ela riu.
— Talvez seja porque estou absolutamente tonto! Mas não vou mais perturbá-la
com minhas idéias confusas. O que importa é que... Amo você, Luisa. Amo você desde o
primeiro instante, quando não sabia sequer o seu nome!
— Zachary! Oh, meu amor! Por que perdemos tanto tempo? — e abraçou-o.
— Perdemos tempo? Está querendo dizer que também...
— É claro que sim! Ainda não percebeu? Também amo você, como nunca amei
ninguém!
— Luisa... — ele sussurrou, afastando-se para fitá-la nos olhos. — Eu não estou
sonhando, estou? Isto está realmente acontecendo?
Zachary ergueu a mão para tocá-la no rosto e, vendo seu relógio de pulso, ela
exclamou:
— Meu Deus! Esquecemos a hora! Vamos nos atrasar para o julgamento! — e
segurou a mão dele, correndo para o carro.
Quando finalmente conseguiu encontrar um lugar para estacionar, o julgamento
já havia começado e Luisa teve de contentar-se com uma cadeira na última fileira.
Ansiosa, olhava para o pai e para o homem que amava, sofrendo com a aflição que
percebia nos dois.
O sol de inverno penetrava pelas janelas, acentuando as linhas do rosto de Harry
Gilbey que, naquele momento, parecia vinte anos mais velho. A luz intensa também não
favorecia o rosto de Zachary, acentuando as cicatrizes que tanto o incomodavam. As
pessoas o olhavam com insistência e ele mantinha a cabeça baixa, consciente da
atenção que despertava.
Amava aqueles dois homens, e era horrível vê-los num tribunal, ocupando cadeiras
opostas e enfrentando-se por uma causa que não poderia trazer de volta tudo o que
haviam perdido naquele maldito acidente. A vitória de Zachary seria a ruína de seu
pai... E depois, como poderia dizer que amava o homem que o levara à falência?
O julgamento arrastava-se com lentidão irritante, hora após hora. Depois dos
depoimentos das testemunhas, Zachary foi chamado para dar sua versão dos fatos, e

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surpreendeu a todos com uma revelação. Estava distraído, e por isso não pudera evitar
a colisão.
Incrédulo, Harry sorriu para o oponente com expressão agradecida.
A decisão do júri foi a que todos esperavam. Harry Gilbey foi considerado
culpado pelo acidente, e teria de pagar todos os prejuízos de Zachary West, não só
pelo carro e pelos quadros que haviam sido destruídos, mas por lesões corporais e
incapacitação temporária para o trabalho. A quantia exata seria estipulada pelos
peritos e divulgada em outra data.
Todos começaram a deixar a sala e Luisa parou na porta, esperando que o pai
saísse em companhia de Noelle e do advogado que o representava.
— Felizmente acabou — ele disse, depois de beijá-la.
— Mas eles ainda não fixaram o valor dos prejuízos, papai!
— Eu sei, querida, mas isso ainda vai demorar algum tempo. Zachary West terá
de submeter-se a uma espécie de auditoria para que os peritos possam determinar a
quantia exata.
— E é claro que ele vai dobrar o valor dos quadros e do carro — Noelle interferiu
com tom furioso.
Nesse momento Zachary aproximou-se e Harry recebeu-o com um aperto de mão
cheio de gratidão.
— Sr. West, não sei nem o que dizer. Eu sinto muito... e obrigado pelo que disse
ao juiz. Foi muito honesto e generoso.
— Eu disse apenas a verdade — Zachary sorriu. — E, para ser franco, eu tive um
motivo muito forte para ser tão honesto.
— Um motivo...? — Harry estranhou.
— Eu quero me casar com sua filha — e passou um braço em torno da cintura da
enfermeira.
Todos ficaram em silêncio, olhando-o com espanto, e Luisa teve a impressão de
que ia desmaiar. Assustada, ergueu os olhos azuis para fitá-lo e viu o sorriso
encantador que iluminava o rosto marcado pela tragédia que os unira.
— Estou indo depressa outra vez? — ele riu.
— Luisa! — Harry exclamou, deixando claro que esperava alguma explicação.
É claro que as teria, mas primeiro...
— Não, você não está indo muito depressa — ela sorriu, os olhos fixos nos dele. —
Eu me casaria amanhã, mas não acha que precisamos de algum tempo para discutir os
detalhes?
— Cuidadosa e prática como sempre! — ele riu. — Você está certa. Eu só queria
informar seu pai sobre a situação e deixar claro que minhas intenções são as melhores
possíveis.
— Luisa, eu não estou entendendo... — Harry queixou-se. — Você nunca disse
nada sobre ele...
— Eu sei, papai, mas é que... Bem, era difícil...
— Por que não vamos para a sua casa, Harry...? Posso chamá-lo de Harry, não?
Ótimo. Como eu estava dizendo, por que não vamos para a sua casa e conversamos

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sobre o assunto? Ah, sim... E esqueça essa história de indenização. Não posso começar
a vida de casado aceitando dinheiro do meu sogro!
Incrédulo, Harry Gilbey gaguejou:
— Está... falando sério?
— É claro que sim! — Noelle interferiu apressada, lançando um olhar impaciente
na direção do marido. — E muito generoso de sua parte, Zachary, e muito inteligente.
Afinal, agora você vai fazer parte da família.
— Obrigado, Noelle.
Apesar do sorriso, Luisa percebeu um brilho cínico nos olhos dele. Noelle era uma
mulher bonita, mas Zachary não se deixava enganar por seus encantos superficiais.
— Podemos ir? — ele perguntou, beijando-a rapidamente na testa. — Temos
muito o que conversar com seu pai e sua madrasta, e vamos precisar de algum tempo
para as explicações.
Luisa afirmou com a cabeça e sorriu, mas sabia que jamais seriam capazes de
explicar aquela história. Diriam que estavam apaixonados, mas omitiriam muitas outras
coisas, detalhes íntimos demais para serem discutidos com quem quer que fosse. Como
explicar que Zachary apaixonara-se antes de saber que estava apaixonado por ela?
Como explicar que Luisa fora invadida pela paixão quando ele ainda estava
inconsciente, com o rosto desfigurado e a alma marcada? Quem poderia entender? Ela
mesma era incapaz de compreender, e sabia que Zachary também estava bastante
confuso. Mas, algum dia, ele criaria quadros que iluminariam o mistério para ambos, e
então o mundo inteiro saberia do amor que os unira para sempre.

fim

CHARLOTTE LAMB nasceu em Londres, na época da Segunda Guerra Mundial, e


passou muito tempo percorrendo as casas dos parentes para fugir dos bombardeios.
Educada em um convento, casou-se com um jornalista e teve cinco filhos. A família
mora em Isle of Man. Charlotte Lamb escreveu cerca de uma centena de livros, e
pretende não encerrar sua carreira tão cedo.

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