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—__is—_—_ Subjetividace, marxismo e Servico Social: um ensaio critico* Subjectivity, Marxism and Social Services: a critical essay Marco José de Oliveira Duarte Resumo: A partir da polémica teérica e politica sobre a relacao entre marxismo e psicandlise, inauguradao pela perspectiva critica da Escola de Frankfurt, e tomando como referéncia o debate académico © 0 exercicio profissional do Servigo Social contemporaneo em que a temiética da subjetividade vem se apresentando com forte contesido psicologista, o artigo propde-se a contribuir na superagao do tradicio- nalismo colocando a temética na agenda ética, politica e académica no cenario profissional. Palavras-chave: Marxismo. Subjetividade. Psicandlise. Servigo Social. ‘Trabalho profissional Abstract: From the theoretical and policy debate about the relation between Marxism and psycho- analysis — debate that was inaugurated by the School of Frankfurt’s critical perspective — and taking the academic debate and the professional activity of the contemporary Social Services, in which subjectivity is presented with a strong psychological content, the article contributes to over- * Artigo apresentado originalmente na disciplina Trabalho e Servigo Social na América Latina, coorde- nada pela profa, dra Marilda Villela Tamamoto no curso de Doutorado em Servigo Social, no PPGSS-FSS- -UERI e, a0 obter nota maxima, indicado para publicagao. ** Assistente social, psicélogo e sanitarista, mestre em Servigo Social (UFRJ, 1993), especialista em Satide Coletiva (Unicamp, 2002) e doutorando em Servigo Social (UERJ). Professor, pesquisador e exten- sionista do Departamento de Fundamentos Teérico-Praticos do Servigo Social da Faculdade de Servigo Social da UERI e atualmente seu diretor. Coordenador do Niicleo de Estudos, Pesquisa e Extensio em Satide Mental e Atengio Psicossocial — Neps da UERJ; supervisor clinico-institucional do CAPS-UERJ (Centro de Atengio Psicossocial da UERD pela Geréncia da Atengio Psicossocial da Prefeitura Municipal do Rio de Janciro/RJ — Brasil, além de ministrar a disciplina de Estégio Supervisionado em Servigo Social nna dea da Satide Mental e desenvolver atividades de assessoria, consultoria e supervisio na Srea. E-mail: psicossocial.uerj @ gmail.com Serv. Soe. Soz., $40 Paulo, n. 101, p. 5-24, jan,/mar. 2010 come traditionalism by setting the theme in the ethical, academic and policy agenda in the profes- sional scene. Keywords: Marxism, Subjectivity. Psychoanalysis. Social Services. Professional work. Introdugao O inferno dos vivos nao é algo que ser4; se existe, € aquele que jé est4 aqui, 0 inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de nao sofrer. A primeira é fécil para a maioria das pessoas: aceitar © inferno e tornar-se parte dele, até o ponto de deixar de percebé-lo. A segunda é arriscada e exige atengao e aprendizagem continuas: tentar saber reconhecer, de dentro do inferno, o que nao € inferno, e preservé-lo, e abrir espago. (Calvino, 1990, p. 148) 0 tomarmos a problematica da subjetividade, tendo como referén- cia de andlise o marxismo para entendermos como se processa esse debate no ambito do Servigo Social, foi necessaria uma pequena incursao na revisao da literatura especializada nessas tematicas No entanto, entendemos que muito ainda deve ser investigado, dada a enverga- dura de tal andlise, mas que, para atendermos aos objetivos deste trabalho, apresentaremos alguns elementos introdutérios para um ensaio critico, crendo que muito dever4 ser aprofundado teérico-metodologicamente. Nesse proceso, nos deparamos e observamos que nao hé um trato analiti- co especffico em Marx sobre a tematica da subjetividade, ¢ isso nao 0 descarta ou invalida no debate académico, ao contrario. Por outro lado, dizer que ha uma redugao nos estudos marxistas sobre o tema ¢ decerto uma critica superficial da obra marxiana e da tradi io marxista, dada a importancia que tem sido dada a essa temética no debate que vem sendo travado no campo diverso e plural da teoria social critica, incluindo aia propria psicandlise com seus artigos de cunho social e no s6, destaque aqui para os autores da Escola de Frankfurt! 1. Adorno, Horkheimer, Fromm ¢ Marcuse (primeira geragao do Instituto de Pesquisa Social), Habermas (segunda geragdo) e Honneth, Benhabib, Cohen e Young como integrantes da terceira e itima geracao. Alguns 6 Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 5-24, jan/mar. 2010 Pretendemos desenvolver melhor algumas notas introdutérias neste quadro, que aqui se apresenta de forma extremamente simplificada, a fim de questionar a verso privada do tema da subjetividade no campo profissional do Servigo Social e propor que, por meio do significante usuario — cidadao (tao em voga na atualidade), a psicandlise retome scu lugar na tradi¢do do pensamento criti- co no Servigo Social no sentido de compreender o mal-estar individual como sintoma do mal-estar social. Marxismo ¢ psicanalise: a reafirmacao da tematica da subjetividade na teoria social critica Aqui, se faz necessario, nessas pequenas linhas, colocar no debate a rela~ g&o da psicandlise e o marxismo ¢ posteriormente ressaltar a interlocugao do Servico Social com essa perspectiva, que desde os seus primérdios de sistema- tizagdo em terreno americano, em particular, nao foi feito com a psicanélise freudiana, mas sim com 0 psicologismo americano, denominado psicologia do ego ou neopsicanélise. Por isso € claro entender certa refutago na produgao intelectual da profissao em sua génese, também a passos largos e bem distantes com 0 legado da teoria social critica no questionamento sobre a cultura e a ci- vilizagao burguesa. Esse mesmo saber profissional restringiu a sua fundamen- tacao na psicologizacao das relagées sociais, tendo em vista que seu paradigma se baseou no estrutural-funcional de T. Parsons. No entanto, em toda a tradigao critica do Servigo Social, a partir dos anos 1980, com a sua renovagio e rompimento com a perspectiva tradicional da profissao, esse mesmo Servigo Social relegou a interlocugao ¢ a introdugao da desses autores foram comumente identificados como freudo-marxistas, incluindo nesse W. Reich, que néo fex parte do referido instituto aleméo. Essa problematizagio a respeito da relagdo do marxismo e da psica- nilise freudiana, comesa quando os pensadores da teoria critica se interessam sobretudo pela “teoria freu- diana da cultura’, desenvolvida a partir dos anos 1920, quando Freud introduz © conceito de “pulsio de morte”, pois ela revela a profunda relagio que une o desenvolvimento social e a constituigio psiquica dos individuos. Mas é bem verdade que poderia ser estendida ao conjunto da teoria eritica, uma vez.que todos os seus integrantes trataram da questo em diversos textos. Esse empreendimento foi realizado no Brasil por S. P. Rouanet (1989). Serv. Soc. Soc., S40 Paulo, n. 101, p. 6-24, jan,/mar. 2010 7 psicanilise, entendendo-a ainda como um pensamento conservador que subsidiou te6rico-metodologicamente a perspectiva tradicional da profissio, traduzida como Servigo Social de caso, Servigo Social de grupo e até mesmo como Ser- vigo Social clinico, com seu enfoque nas relagdes humanas, no relacionamento com o cliente, na resolugao do problema social do cliente, para enumerar algu- mas nogoes. Mas cabe sinalizar que a tematica da subjetividade, mesmo no interior do proprio marxismo, também teve essa repulsa por parte de alguns teéricos ¢ criticos, como bem ressalva Silveira (2002, p. 7), a tematica da subjetividade no campo do marxismo tende a ser tratada com estra- nhamento, néo sé porque no ambito do senso comum difunde-se um antagonismo entre o campo da singularidade e 0 dos projetos coletivos, mas porque, igualmen- te, no interior da propria esquerda, a questao da produgao dos sujeitos vem sendo considerada de forma preconceituosa e/ou reducionista. A interpretago social da obra de Freud aqui realizada deve ser entendida no contexto da critica marxista da sociedade de massas contemporanea, mas de um marxismo nao ortodoxo. Com o desenvolvimento histérico, alguns autores repensaram ¢ questionaram os conceitos e concepgées do marxismo e, nesse processo, a teoria freudiana adquiriu um papel fundamental. A relagao entre o marxismo e a teoria freudiana deve ser entendida como sendo dois momentos que se completam e se refutam. Eles se completam na medida em que 0 marxismo apresenta 0 processo objetivo de exploragio e subjugagao do individuo, no modo de produgao capitalista, desmistificando esse processo social e econdmico por meio da “critica da economia politica”: en- quanto “linguagem do todo”, o marxismo representa o universal. Jé a psicand- lise representa esse processo social na perspectiva do sujeito, de seu efeito no processo de subjetivacao, que surge da relagio dialética com outros sujeitos, individuos, grupos, organizagées ¢ instituigGes: ela representa o particular, isto 6, a dimensio subjetiva do longo processo de dominagao e explorago denun- ciado por Marx. O marxismo e a psicanilise freudiana expressam os dois lados de um mes- mo “fato”, digamos assim, duas perspectivas de uma mesma realidade, a do 8 Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 5-24, jan./mar. 2010 individuo “cindido”, explorado, assujeitado, hierarquizado e alienado. Neste sentido, eles se completam. Enquanto o marxismo apresenta a base social deste processo, a psicandlise apresenta a base psiquica correspondente, que € por ele produzida, ao mesmo tempo em que o mantém e o reproduz. Assim, a psican: lise € a “linguagem do singular” na qual o todo é passivel de ser reconhecido. O marxismo e a psicandlise se refutam na medida em que nao podem ser unidos numa disciplina totalizante — “essas teorias so o limite negative uma da outta, so dois modos de explicar a realidade da sociedade alienada, dois instrumentos de andlise cujo uso é determinado pelas exigéncias do objeto” (Rouanet, 1989, p. 76)? A “fusdo do marxismo e da psicandlise constituiria uma traigdo as intengdes criticas dos seus respectivos autores” (Rouanet, 1989, p. 74). A linha que separa apsicandlise do marxismo s6 poderia ser abolida por meio de uma transformagao social efetiva, que eliminasse 0 antagonismo entre o universal e © particular, entre as exigéncias da sociedade repressiva (de sua manutengdo ¢ perpetuagao) eas exigéncias e necessidades individuais — esta separacdo testemunha um fato empirico, o da real separagdo entre o individuo e a sociedade A relagao do marxismo e da psicandlise, na teoria eritica, deve ser com- preendida na relagdo dialética entre o universal (dimensao social) o particular (dimensao psiquica), entre o individuo e a sociedade. A relagao de Freud e Marx [na teoria critica] € dialégica e nao sistematica. No maximo, sao duas falas, que se confirmam, se refutam, se cancelam: dois motivos 2. Em 1921, na Rassia pés-revolucionstia, Vera Schmidt fundou um centro educative que recebeu 0 nome de Lar Experimental de Criangas. Era uma instituigo pedagégica que aplicava as criangas os principios do marxismo e da psicandlise, Nessa escola, o sistema tradicional de castigos corporais foi extinto, o antigo ideal de familia patriarcal foi severamente criticado em prol de valores educativos que privilegiavam @ ne- cessidade coletiva, As eriangas, criadas fora de qualquer influéncia religiosa, eram autorizadas a satisfazer sua curiosidade sexual. Os préprios educadores eram, por sua vez, instados a nio reprimir a masturbagio e a tratar as criangas em relagao de igualdade, Ademais, todos os participantes do programa deveriam ser analisados. Essa primeira experiéncia do freudo-marxismo durou até 1924, quando, em virtude completa falta de apoio da conservadora Associagdo Internacional de Psicanilise, e sabotada pela reag3o da burocracia do Estado, Vera Schmidt teve que abandonar o projefo. Esse recuo nao se deu s6 com essa experiéncia, mas com varias outras que podemos relatar ¢ em outros campos de intervenciio social que espago deste traballo no nos permite expor. Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 5-24, jan./mar. 2010 9 em contraponto, no interior de uma sinfonia, mais que duas teorias no interior de um sistema [...] sua esséncia est, justamente, nessa relagao dialégica entre Marx ¢ Freud, em que as duas doutrinas funcionam como limites negativos uma da outra, relativizando-se e relativizando qualquer pretensdo totalizante. (Rouanet, 1989, p. 76) Destaca-se aqui que esse entendimento acima é contrério o que defende a Psicologia do Ego, como uma neopsicandlise, com seu carter revisionista da prépria teoria psicanalista, pois climinou determinados conceitos ¢ enfocou outros, reforgando-os e revisando-os, como, por exemplo, o seu privilegiamento da fungdo do ego em oposigao ao inconsciente e com isso, a oposigao entre in- dividuo e sociedade. Seria de igual forma, se pensdssemos em um neomarxismo que climinaria substancialmente do marxismo a luta de classes, “privando tanto 0 freudismo quanto o marxismo de seu contetido” (Rouanet, 1989, p. 50). Assim, no revisionismo, a “questao politica” referente a transformagao da sociedade se torna em uma “questdo moral”, ou seja, “confrontados com o di- lema entre alterar o freudismo ou a realidade, preferiram alterar o freudismo” (idem, p. 222), recaindo, dessa forma, em um revisionismo psicologizante do ego, 0 que influenciou todo campo de outros saberes, como 0 Servigo Social. O “pessimismo” freudiano implica em uma recusa em compartilhar essa realidade opressiva e causadora de doengas psiquicas (neuroses, perversées etc.) e sofrimento humano (angustia, melancolia), elementos tao presentes para a teoria ea pratica psicanalitica, A andlise do individuo em Freud nao pressupde referenciais normativos, adaptadores e ajustadores, mas surge da prépria me- diagio social Apesar das transformagées histéricas que afetaram 0 objeto da psicanali- se — 0 sujeito do desejo —, mesmo assim os conceitos freudianos ainda se mantém relevantes na compreensio da realidade, uma vez, que sua acusagio civilizagio nao foi ultrapassada por um novo estagio de organizagao social: os processos e conflitos psiquicos que a teoria freudiana descreve nao desaparece- ram — eles continuam existindo, mas agora se dao de forma diferente e devem ser analisados tendo em vista esse fato. ‘A anilise da sociedade contemporanea por meio do instrumento da teoria freudiana implica assim uma critica deste instrumento (Rouanet, 1989). Nao somente a teoria freudiana, mas também o marxismo participa dessa l6gica. A 10 Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 5-24, jan/mar. 2010 teoria freudiana possui um “limite histérico”, enquanto instrumento de andlise e critica da sociedade. Esse limite refere-se 4 ambiguidade presente na psica- nalise freudiana, entre, de um lado, a critica avassaladora da civilizagao (cujas imposigées so fonte de sofrimento humano) e, de outro, a concluséo de que esse sofrimento € inevitavel: a psicandlise “dobra-se diante do prinefpio de realidade”, sendo, ao mesmo tempo, “critica da ilusdo” ¢ “perpetuadora da falsa consciéncia produto da cultura, Freud postula a infelicidade como condigao inerente a vida social” (Idem, p. 94). A teoria freudiana se refere a uma concepgio de individuo e de civilizago que possibilita seu uso enquanto instrumento de anilise e de critica da socieda- . Ao mesmo tempo em que mostra que a infelicidade de. Assim, 0 “pessimismo freudiano” reflete uma postura essencialmente criti- cade Freud para com o proceso civilizatério. Partindo da perspectiva individual, analisando o sofrimento, a angiistia, a infelicidade e as varias doengas psiquicas, Freud chega & conclusao de que esse sofrimento € causado por uma civilizagao que nega, pela sua prépria estrutura e organizagao, a satisfagio e a felicidade aos individuos. Ele descobriu, portanto, na andlise da “doenga individual”, a “doenga geral” da civilizago. Preserva em suas concepgdes e conceitos a realidade tal como ela se apresenta, e nao uma realidade idealizada. O individuo em Freud 6 infeliz, reprimido, nao possui autonomia, sendo determinado, tanto em nivel filogenético (hist6ria da espécie) quanto ontogenético (hist6ria individual). Esse “realismo pessimista” (ou “pessimismo eritico”) de Freud permite romper com a “cegueira” frente a uma realidade opressiva, que se apresenta das necessidades ¢ desejos individuais e as exigéncias da sociedade, Freud apresen- como harménica (Rouanet, 1989). Ao afirmar a oposigao entre a satisfa ta a realidade tal como ele a vé: em sua forma alienada. Entretanto, Freud accitou problematizar a oposig&o entre felicidade ¢ ci- vilizagdo burguesa — e aqui a teoria freudiana no seu conceito de mal-estar aponta criticamente para as contradigGes e transformagées da sociedade indus- trial moderna. Percebemos um contetido eritico presente em seus fundamentos, © que nos permite pensar sobre as novas politicas de subjetivacao assumidas hoje pela sociedade capitalista que cada vez mais reforgam essas contradigdes Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 5-24, jan./mar. 2010 11 nas possibilidades de libertagao e emancipagao do humano que lhe so intrin- secas e que ao mesmo tempo sao possiveis e reais. O termo politicas de subjetivagao se refere a um processo continuo de produgio social da subjetividade no que diz respeito criag4o, bem como A mortificagao, da vida humana em sua integralidade. Dito de outra forma, a subjetividade nao € uma instncia privada e estanque do meio, também nao é um recepticulo desse mesmo meio. Hi entre subjetividade e sociedade uma produgao que se dé em conjunto, Assim, determinadas condigdes de vida criam formas de se estar no mundo, Os aspectos econémicos e culturais, a cidade, o emprego e 0 desemprego, a escolaridade ¢ o analfabetismo, 0 medo, a violéncia, a miséria, os fundamenta- lismos religiosos, as guerras, as etnias, as diferengas, os preconceitos, a solidarie- dade, os projetos de vida, a falta de perspectiva, as politicas piblicas, dentre tantos outros aspectos, se misturam e dao corpo ao que se chama subjetividade. Todas as politicas que se encontram em curso no campo social produzem ¢ ex- pressam, ao mesmo tempo, modos de vida. (Machado, 2008, p. 191) Desta forma, a nosso ver, podemos afirmar criticamente que as categorias freudianas que definiam 0 psiquismo ¢ a sociedade em determinado momento hist6rico, assim como a relagao entre ambos, nao se sustenta mais na nova configuragdo da sociedade capitalista mundializada. Por outro lado, a nogdo de conflito é central em Freud’ — como a contra- digdo em Marx —, tanto no que se refere & formacao psiquica individual, quanto na relagdo entre as exigéncias de satisfacao pulsional e a sociedade. Esse conflito parece que foi contido pela sociedade “unidimensional”, pela sua ca- pacidade de integrar as forgas antagénicas e a negaco. Assim, podemos asse- gurar que as categorias freudianas tornaram-se “obsoletas” na realidade atual. Entretanto, esta “obsolescéncia” das categorias freudianas revela maior repres- so, ¢ nfo maior liberdade. Se a teoria freudiana ndo pode mais explicar, a partir de seus préprios conceitos, como se dé a relagdo entre o individuo e a sociedade, € porque essa sociedade se transformou. No entanto, vemos a possibilidade de repensar no seio do préprio marxis- mo, introduzindo neste uma preocupagio com o sujeito: aqui a teoria freudiana fornece o suporte teérico. Mas, para se tornar uma teoria “critica”, a teoria 3.A esse respeito ver Fontes, 2008, 12 Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 5-24, jan./mar. 2010 freudiana precisa ser questionada, e este processo se dé por meio da critica imanente aos seus conceitos, tendo em vista as transformagées hist6ricas ocor- ridas — essa critica elucida o “movimento” desses conceitos. A teoria freudiana possibilita 0 objetivo de “critica” somente decifrando a dialética hist6rica de seus conceitos. Assim, ela pode dar origem a algo de novo e sua critica & civilizagao pode se tornar construtiva — ao contrario da interpretagao revisionista da neopsicandlise americanista, que imobiliza a sua “fungao critica”. Essa “fungao critica” da teoria freudiana esta na dentincia do elo entre infelicidade e civilizagao: na medida em que os revisionistas afirmam a possi- bilidade da felicidade na civilizagao e nao questionam os seus fundamentos, eles se tornam ideolégicos. Freud foi um critico feroz da civilizagao, pois ele tinha consciéncia do vinculo que une progresso e infelicidade. Se ele afirma a infelicidade como uma condig&o necesséria da civilizacdo, € porque é muito mais humano do que aqueles que creem que € possivel a felicidade se realizar nessa sociedade. Se a felicidade for concebida apenas individualmente, ela é falsa. O programa de tornar-se feliz, que o prinefpio do prazer nos impée, nao pode ser realizado; contudo nao devemos — na verdade, ndo podemos — abandonar nos- sos esforgos de aproximé-lo da consecugao, de uma maneira ou de outra. (Freud, 1977, p. 146) A felicidade e a liberdade sao perspectivas, sfio condigdes que s6 podem ser concebidas quando todos os individuos tiverem acesso as riquezas produ- zidas (Heller, 1982) pela “sociedade da abundancia”, e nao apenas por um grupo restrito de pessoas de determinada classe, e, sobretudo, quando a pro- dugao dessa riqueza nao estiver mais vinculada ao aumento da exploragio ¢ da miséria, A destruigao e ao sucateamento do meio ambiente e dos seres humanos. Habermas (1987, p. 109) afirma que As deformagées de um mundo da vida regulamentado, analisado, controlado e protegido sao, certamente, mais refinadas do que formas palpaveis de exploragao Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 5-24, jan./mar. 2010 13 material ¢ empobrecimento. Mas nem por isso os conflitos sociais deslocados interalizados no psiquico ¢ no corpéreo so menos destrutivos, Servico Social e subjetividade: apontamentos desafiadores Nesse emaranhado de contradig6es e perspectivas, somos inclinados a observar que © Servico Social, como afirmamos anteriormente, caminhou a passos largos e bem distantes, tanto nos seus primérdios como na contempora- neidade, de uma interlocugao com a psicandlise em sua fonte original, mas vem tentando dialogar com alguns representantes do conjunto de obras e autores que constituem o que se convencionou chamar de teoria social critica, sejam elas modernas, pés-modernistas ¢/ou contemporaneas. Tamamoto (2007, p. 237) em sua pesquisa sobre 0 balango critico da lite- ratura profissional sobre os fundamentos do Servigo Social ¢ ao seu exercicio, nas duas iiltimas décadas, identifica um significativo avango no que concerne & critica te6rico-metodolégica tanto do conservadorismo quanto do marxismo vulgar [...]. Esse avango se expressa na ultrapassagem da mera dentincia do tradicionalismo profissional ao efetivo en- frentamento de seus dilemas tanto na construgio da critica te6rica quanto na elucidagao de seus limites socioculturais ¢ politicos na condugao do trabalho profissional; no empenho em superar os “metodologismos” a favor de uma pro- ximidade do Servigo Social com as grandes matrizes do pensamento social na modernidade, delas extraindo os fundamentos te6rico-metodolégicos para a ex- plicagao da profissao e para iluminar as possibilidades de sua atuagao. Cabe destacar que lamamoto aponta para a ampla e diversificada tradigio marxista nessa andlise da produgao académica no Servigo Social. Assim, a autora se debruga sobre as elaboragées teéricas que “matizam o debate teérico entre pares de um mesmo projeto profissional” e demonstra que grande parte das diferengas (mais que antagonismos) entre os autores decorre tanto da angulagao particular pela qual a profissao é abordada quanto da varieda- de das fontes tedricas — as quais se inspiram, centralmente, em Marx, Hegel, Lukécs, Gramsci, Hobsbawm e Thompson — que iluminam a formulagao das indagagdes que norteiam as pesquisas dos autores. (lamamoto, 2007, p. 331) 14 Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 5-24, jan/mar. 2010 Entretanto, as duas teorias gerais abordadas aqui, psicandlise e marxismo, em momentos diferentes, possuem o mesmo estatuto tedrico-metodolégico no Servigo Social. Se a interlocugao do Servigo Social com o marxismo, em suas primeiras leituras, foram de forma enviesada ¢ infiuenciada pelo positivismo, o mesmo pode-se dizer da psicandlise de cunho adaptador, ajustador, conservador e reformista que influenciou o mesmo Servigo Social Cabe, assim, nesse lastro dos tiltimos vinte anos no amadurecimento inte- lectual da profissao, inaugurar também um debate de ruptura com o resgate do tema da subjetividade no Servigo Social pelo viés da critica tedrica e metodo- l6gica presente no cenario profi onal. Neste sentido, é necessdrio registrar, neste texto, um esforgo de sistemati- zagio de determinados autores no Servigo Social que vém investigando e pro- duzindo sobre esse tema, e demarcando uma diferenga por dentro do campo profissional, como Bisneto (2007), Vasconcelos (2000) e Nicdcio (2008).* O nticleo comum com relagao & critica elaborada por eles e do qual com- partilho funda-se, principalmente, com o que jé introduzimos aqui, mas que tentamos sintetizar, pois concordamos que 0 Servigo Social, enquanto ramo do saber, nao tinha a capacidade intelectiva e eritica de fazer naquele momento 0 que pode fazer hoje, sem reprodugdo mecAnica do idealismo moral do ser social burgués na sua intervengdo profissional ¢ produgao cientifica, 0 que s6 esta sendo possivel no contexto da renovacio profissional em solo brasileiro. O Servigo Social nos Estados Unidos se muniu de varios referencias teéricos para pautar sua atuacdo, principalmente o funcionalismo, o estrutural-funcionalismo, © higienismo e as psicologias. As escolas psicolégicas americanas do Servigo Social (diagnéstica ¢ funcional) absorveram as teorias de varias linhas da psico- logia classica. Foi significativa a contribuicao da psicanélise no processo de ten- tativa de elaboragao de uma metodologia em Servi¢o Social [...], em especial na rea de satide mental. (Bisneto, 2007, p. 19) Vasconcelos (2000) afirma que a psicandlise absorvida pelo Servigo Social norte-americano identifica-se com a psicologia do ego, e foi influenciada por 4, No que se refere as referéncias profissionais, o primeiro ¢ assistente social ¢ os outros dois so psi- eélogos. Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 5-24, jan./mar. 2010 15 Otto Rank e Alfred Adler, bem como por Anna Freud e pelo triunvirato nova- -iorquino Kris, Hartmann e Loewenstein. Nicécio (2008, p. 3-4) afirma que, A psicandlise possui suas diferenciagées internas. A corrente psicanalitica que serviu de fundamento tedrico para 0 servigo social de casos foi a americana, au- todenominada psicologia do ego. Esta corrente psicanalitica advogava o fortale- cimento do ego para que ele fosse capaz de dominar suas pulses ¢, assim, se adaptar melhor a seu ambiente social, O ideal de cura para esses analistas era 0 adulto bem-sucedido na sua vida produtiva, vivendo em harmonia na sua familia no seu casamento. Em suma, um cidadio bem adaptado. Dentro do préprio movimento psicanalitico esta corrente foi objeto de duras criticas, desferidas pelo psicanalista francés Jacques Lacan. A psicologia do ego na sua concepgao teria posto de lado as descobertas fundamentais de Freud sobre o inconsciente [...] Lacan chegou mesmo a afirmar que esta versio americana da psicandlise se tomou uma “ideologia” adaptacionista ou mais uma técnica de “human engeneering”. Por outro lado, se a tematica da subjetividade no Servico Social tradicional, digamos assim, foi influenciada pelo conservadorismo, a sua reatualizagao pela fenomenologia por dentro da area profissional deixou a desejar, pois limitou-se a0 chamado “vivido” da situacao interna do “cliente” (ente) sem levar em con sideragao a transversalidade da politica no trabalho profissional, reduzindo a temitica da subjetividade que estamos fazendo & critica nesse momento. Cabe destacar que os que se alinham nessa perspectiva siio os mesmos que atualizam 0 Servigo Social de caso pela nomenclatura do Servigo Social clini- co, que em nada tem a ver com as atribuigdes privativas do assistente social definidas pelo conjunto da categoria profissional no Brasil. Assim para essa intervenedo profissional, para uma clinica stricto sensu, o referido profissional precisa de uma formagao apropriada em instituigdes especificas. Entio ele deixa de ser profissional de Servigo Social para ser profissional de outro tipo: terapeuta de familia, psicoterapeuta ou até mesmo psicanalista. No entanto, quando estamos introduzindo a discussao da temética da sub- jetividade nao estamos pretendendo o retorno a psicologizacio, como estamos criticando. Porém entendemos que o contetido da relagdo entre os sujeitos pro- duz valor de uso na medida em que 16 Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 5-24, jan/mar. 2010 sendo a forga criadora de trabalho condigao vital do trabalhador, alienada como meio de assegurar sua propria vida, nfo existe como coisa objetiva, mas como subjetividade, como capacidade de um ser vivo, cuja manifestacao nao se faz. real até que o capital a solicite, porque a atividade sem objeto nao é nada. Tao logo a forga de trabalho é colocada em movimento pelo capital, converte-se em ativida- de produtiva — o trabalho —, manifestagao de existéncia vital do trabalhador, orientada para um determinado fim, 0 que sé ocorre no processo produtivo. Essa 6 uma das caracteristicas distintivas da mercadoria forga de trabalho do ponto de vista de seu valor de uso. (Marx, apud Iamamoto, 2007, p. 180-181) Essa dimensao de valor é que estamos tentando problematizar, pois a critica ao psicologismo com a qual concordamos nao pode descartar por com- pleto toda a dimensao subjetiva do trabalho profissional, que Vasconcelos (2000) aponta no significante do recalque. Nesse sentido, Iamamoto (2007), afirma que nao existe um processo de trabalho do Servigo Social, sim trabalho do assistente social: O trabalho, forga de trabalho em ago, é algo temporal, que s6 pode existir no sujeito vivo. Enquanto gasto vital, é um movimento criador do sujeito —, que, no seu contexto de alienagio, metamorfoseia-se no seu contrério, ao subjugar seu préprio criador & condigao de criatura —, impregnando a totalidade de seu ser: capacidades, emogGes, ritmos do corpo, pensamento ¢ valores. Assim, 0 trabalho como elemento subjetivo do processo de trabalho & componente da humanidade dos sujeitos, em processo de realizagéo: objetivagdo do sujeito e, simultanea- mente, subjetivacao da realidade pelo sujeito. (p. 429; grifos nossos) Nesse contexto, podemos dizer que a conceituagio de subjetividade pre- sente na obra de Foucault, Guattari e Deleuze (Duarte, 2000) se coaduna com uma acepgao de histérica que estamos produzindo aqui: desnaturalizada, sem unidade e sem uniformidade, tendo em vista que os modos de subjetivacao colocam-se como subjetividades sempre em processo de mutacao. Modos de subjetivagao seriam antes maneiras, disposigdes, meios sempre diversos com que as configurag6es subjetivas se engendram no contexto sécio, histérico, politico, cultural e econémico para sua compreensio real, ¢ nao sé na esfera do trabalho, que, segundo Marx (1985, p. 148), “nao produz sé mercadoria, produz Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 5-24, jan./mar. 2010 17 a si mesmo e ao trabalhador como uma mereadoria, e isto na proporgao em que produz mercadorias em geral” Quando se fala “a minha subjetividade”, a “minha opiniao”, o “meu dese- jo”, nao se trata de algo interno que se revela ao exterior. As formas subjetivas so compostas socialmente.’ Todo sujeito € sempre coletivo. Assim, quando falo, muitas vozes falam em mim, muitas hist6rias atravessam a minha hist6ria, ¢ isso se torna mais complexo quando se pensa no terreno da intervengao e nos postos de trabalho profissional, Embora haja uma composigao singular em mim, que me difere dos demais, que difere cada um, somente a composigdo é singu- lar. Os pedagos de que ¢ feita so partilhados por muita gente Nesse sentido, um pressuposto que se impée diz respeito & consideragao de que a subjetividade é socialmente produzida, operando numa formagio social deter- minada, sob o crivo de um determinado tempo histérico e no ambito de um cam- po cultural [...] Marx vai organizar essa vinculaco a partir da anélise do homem inserido no processo produtivo e produzindo-se. (Silveira, 2002, p. 104) Percebe-se, assim, que os regimes de dominagao que esto em curso em nosso tempo produzem 0 “individualismo” como desejo e como necessidade.® Demarcar distingSes se parece como apélices de seguro de competéncias sucesso, deixando-se de ser solidario. Ao mesmo tempo, cada um de nés se perde em meio a uma massa homogénea de gente que pensa igual, se veste igual, deseja igual. As diferengas, ao contrério do que poderiamos supor, so pouco exercidas, raras sao as singularizagdes desse processo, tanto em grupo como em coletivos, socialmente institufdas (Duarte, 1999). Fontes, ao apontar para pontos comuns e diferengas importantes no didlogo entre Freud e Marx, coloca que o estatuto de conflito em um e outro é radical- mente diferente, embora ambos admitam a transformagao e o principio da his- toricidade radical, e esse principio, segundo a autora, “se encontra exatamente 5. Tamamoto (2001) aborda de outra forma essa questio entre individuo concreto e individualidade social 6. Rouanet (1993) afirma que uma das eiticas da esquerda ¢ chamar Freud de individualista, pois para joud o individuo foi sempre um inimigo potencial 18 Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 5-24, jan/mar. 2010 na forma pela qual os individuos sao constituidos pelo conflito” (2008, p. 120). No entanto, cabe sinalizar que um enfoca em sua praxis a transformagao sin- gularizada, enquanto 0 outro, o processo de transformagao dos modos de exis- téncia social — ou “das formas de modos de ser” (Marx, 1985) E importante destacar a compreensao de que 0 sujeito atual que intenta plasmar na sociabilidade do mundo contemporaneo € cada vez mais egoico, autocentrado, descrente das esferas coletivas, competitivo, eficiente, eximido das responsabilidades sociais e morais. Assim, o projeto societério hoje hege- mé6nico — o do capital — € aceilo e internalizado pelos sujeitos, através de mediagées institucionais, normatizagées ¢ legislagdes legitimadoras de uma igualdade anunciada, ainda que formal, para a qual se atribuem regulagées disciplinamentos democraticos que iro dar sustentabilidade legal a desigual- dade instituida. Assim, reproduz-se de outra forma, 0 modo de produgao capi- talista, Neste contexto, 0 sujeito mesmo, mercadoria, coisifica-se, se fragiliza e se fragmenta, desfigurando-se na qualidade de produtor de coisas e de sua pré- pria consciéncia. A concepgao de subjetividade’ com a qual 0 marxismo vai romper, e que esta presente no émbito da hegemonia burguesa, é a que supée o individuo na qualidade de ente abstrato e idealizado, por conseguinte, exterior as efetivas relaces sociais capitalistas. Por consequéncia, nessa abstragio, ele pode ser “modelado” (Silveira, 2002, p. 110-111), estratégia de controle e disciplina- mento do capital. Atualmente, nas sociedades ocidentais, cada vez mais observamos que a subjetividade é trocada pelo individualismo, pela privacidade, pela intimidade, pelo egocentrismo radical, causando a alienagdo da realidade, uma razdo des- colada da racionalidade emancipatéria ¢ social, e “uma apatia mais complexa com relagdo as grandes questées de interesse comum” (Rouanet, 1993, p. 22), que cada vez mais so tipicas do neoliberalismo em tempos de globalizagio: “intimismo individualista, imaginario introspectivo ¢ a fixagdo em razses fan- 7. Mantins (1992, p. 34) diz.que “por mais estranho que isso possa inicialmente soar, parece-nos que a definiga0 mais bisica de subjetividade em Marx € a sua jé citada formulagao direta e quase trufstica: a sub- jelividade 6 uma determinagio do sujeito, enunciado que se tomou necessério diante da pressuposicao hege- liana de uma subjetividade pura, que prescindia de qualquer suporte nos sujeitos humanos reais”. Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 5-24, jan./mar. 2010 19 tasmaticas e fantasiosas que proporcionam uma regressio psicolégica” (Bisne- to, 2007, p. 186). Eis 0 nosso desafio enquanto a ‘sistente social no trabalho profissional nas organizagées institucionais diversas: tomar a temética da subjetividade articula- da com as discussées da agenda politica da categoria profissional, tanto no seu exercicio quanto na formagao profissionais (Duarte, 2009), principalmente quando se trava um debate sobre as formas de emancipagéo humana. Tracando algumas consideracées (in)conclusivas... Como 0 profissional esta assujeitado nesse processo social, é parte inte- grante nessa engrenagem, pois é contratado como forga de trabalho especiali- zada para acionar essas mAquinas tecnolégicas que operam centralmente na légica direta da modelagem das subjetividades humana (Duarte, 2006) e vital dos sujeitos, j4 que lida no cotidiano profissional c institucional, ou seja, nas relagées sociais, Ora, a fabricagio social e histérica da subjetividade nao é um tema novo no campo das ciéncias sociais e humanas. Com certeza, no Servigo Social, ha muito que galgar, principalmente a partir desse novo patamar académico com a critica que se operou no passado recente. Mas se muito se fez, é verdade que 8. Semeraro (1999, p. 72-73) tratando do conceito de subjetividade como a contribuigéo de Gramsci ao marxismo contemporiineo, aponta que esse autor “ndo cansa de repetir que as concepgées que sustentam a iniciativa e o desenvolvimento da subjetividade so préprias de um grupo social que se propde a ser sujeito « protagonista da historia. A subjetividade, de fato, é a tipica maneira de ser das classes dirigentes, de quem exercita uma relagao ativa com a realidade. Nao se podia, portanto, pensar na emancipagao dos trabalhadores enguanto se mantinha a submisséo as regras e aos prine{pios da classe dominante. Para desenvolver no ope- ratio a ‘psicologia do produtor’ ¢ colocar a nova classe fundamental em condigio de dirigir © proceso his- LGrico, era necessario desenvolver posigées antitéticas & ordem existente, Mas a ruptura, a ‘cisio’, nfo era suficiente. Havia, principalmente, necessidade de elaborar e de concretizar um projeto de sociedade superior a0 da classe dominante [...] EntGo, o ponto central das reflexdes de Gramsci se prende A formago de novos sujeitos sociais que visam A construgo de um projeto de sociedade aberto & participagio de todos os traba- Ihadores. Nesse sentido, a consciéncia e a subjetividade representam uma dimensdo fundamental na agio politica, uma vez que se € verdade que no € a consciéncia que determina o ser social, é também verdade que 86 por meio da consciéncia o homem pode apropriar-se das fungdes da sociedade ¢ (er condigo de realizé-las Iutando contra as pressées externas que condicionam seu comportamento e neutralizam suas aspiragSes” 20 Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 5-24, jan./mar. 2010 ainda ha muito o que fazer, tomando como foco que lidamos com sujeitos reais € concretos, que sentem, pensam, agem e sofrem os efeitos da desigualdade social, expressées da questao social, do sucateamento das politicas sociais e das redes de protego social operadas pelo Estado. Diriamos, didaticamente, que hé uma corporeidade no usuario dos servigos sociais, como: etnias, géneros, ragas, sexualidades, sexos, religiosidades enfim, um todo complexo que no se reduz mas que atravessa as classes sociais, sem, contudo, desmerecé-las na realidade social brasileira. Nesse bojo, o usuario que procura ¢ que demanda ajuda ou orientagao ao assistente social tem sempre uma relagdo “problematica ¢ ambigua com sua situagao de fragilidade, de softimen- to, em fungao de alguma perda ou fragilidade que ele enfrenta, e isso esta marcado no seu psiquismo” (Nicécio, 2008, p. 17). © que queremos sinalizar nestas linhas ¢ que nao € porque o assistente social tem uma abertura para o outro, quando atende e escuta’ essas problema- ticas ¢ conflitos apresentadas pelo sujeito que ele recebe, seja no plantao social, na entrevista social, na visita domiciliar, e que sao sociais, que ele est psico- logizando as relagées sociais, ou mesmo tendo uma atitude de psicoterapia — atribuigdo privativa dos psicélogos. Isso tem sido mais um reducionismo do raciocinio dualista de uma critica que nao dialoga nem mesmo com a sua propria cultura profissional, 4 que boa parte de nossas técnicas ou ferramentas inter- ventivas foi “sequestrada” de outros saberes técnico-cientificos socialmente reconhecidos originalmente. Afinal, quando lidamos com uma dimens%o que nao se limita as ages burocraticas e mesmo idealizadas no cotidiano do trabalho profissional, seja individualmente ou em grupo, somos afetados nessa relagao de intersubjetivi- dades, como bem demarcou os pensadores freudo-marxistas. Nao se pode manter a neutralidade cientifica, o distanciamento asséptico da racionalidade técnica ou recalcar todos os sentimentos, impulsos e emogdes que sao imanen- tes. Ao contrério, isso demonstra que ha um hiato entre o que se tem produzido 9. Segundo Nicécio (2007), “ato que nao € privativo de nenhuma profissio”. No entanto, é necessario registrar que segundo Freud, definido em sua originalidade, é um ato de atengo flutuante, rompido com a ordem médica do ouvir pelo ouvir, sentido biolégico. Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 5-24, jan./mar. 2010 21 sobre essa realidade dos usuarios das politicas socais e até mesmo sobre esas politicas sociais e esse lidar no cotidiano do trabalho profissional. Muito em- bora digamos que podemos ocupar — e ocupamos — os lugares de planeja- mento e gestdo das politicas sociais, isto nao significa que nesses postos de exercicio profissional, ou na execucao dessas mesmas politicas nao sejam afe- tos a essa dimensao conereta e social que é a subjetividade humana. S6 a titulo de exemplo, o sofrimento e o adoecimento nao sao entidades abstratas, e em quase todos os espagos institucionais e organizacionais em que se opera a interlocugao entre saberes, priticas, politicas, agenciamentos enfim, racionais e tecnolégicos, elas se materializam por intermédio dos sujeitos reais, no caso, do profissional. E por essa raz4o que, segundo dados colhidos sobre satide mental e satide do trabalhador, 0 profissional de Servigo Social é a cate- goria de trabalhadores que mais sofre na relagao de trabalho, no conjunto de outras categorias profissionais, no campo social e da satide, com psicopatologia do trabalho, de fadiga crénica, e nao s6, Percebe-se, sem muito aprofundamen- to, por meio de observagao empirica ainda, de outros tipos de sofrimento psi- quico, como em particular a depressao, ou mesmo de doengas psicossomaticas, como 0 cancer. Ou seja, somos afetados em todas as atividades humanas e, em particular, no trabalho produtivo, pelas consequéncias econémicas e histéricas do modo de produgao capitalista que cada vez mais afetam subjetividades e corporeidades, como expropriagao da mais-valia. ‘A contribuigao deste ensaio nao se limita as linhas aqui escritas, mas se far4 presente no debate teérico e politico sobre o trabalho profissional e nas organizages em que esse trabalho se encontra, pois no cotidiano profissional ¢ institucional no contexto das politicas piiblicas e privadas, na esfera publica ¢ privada dos sujeitos em relagao, estamos implicados com outros, na disputa, na politica, na correlagao de forgas e nos modos de a(fe)tivagao e de produgao de subjetividades contempordneas. Nao estamos perdidos. Pelo contrario, venceremos se nio tivermos desaprendido a aprender. (Rosa de Luxemburgo, 1983, p. 116) Artigo recebido em out/2009 = Aprovado em jan./2010 22 Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 5-24, jan/mar. 2010 Referéncias bibliograficas BISNETO, J. A. Servigo Social e saiide mental: anélise profissional da pratica. Sao Paulo: Cortez, 2007. Andlise institucional, Servigo Social e subjetividade: uma introdugao. Trans- vers6es I (1), Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 132-168, 1999. CALVINO, I. As cidades invistveis. Sao Paulo; Companhia das Letras, 1990. DUARTE, M. J. de O. Por uma cartografia do cuidado em savide mental: repensando a micropolitica do processo de trabalho do cuidar em instituig6es. In: BRAVO, M. I. S et al. (Orgs.). Satide e Servigo Social. 4. ed. Sao Paulo: Cortez, 2009. . Assessoria na drea de Servico Social e satide mental: conversagoes, In: BRA- VO, M. I. S.; MATOS, M. C. (Orgs). Assessoria, consultoria & Servigo Social. Rio de Janeiro: Faperj, 7 Letras, 2006. Da anélise institucional & micropolitica: contribuigées para um estudo. Em Pauta, Rio de Janeiro, n. 16, p. 121-135, jan /jul. 2000. 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Soc., So Paulo, n. 101, p. 5-24, jan/mar. 2010 Estado ¢ sociedade civil no pensamento de Marx State and civil society in Mary's thinking Jamerson Murillo Anunciacao de Souza* Resumo: Este ensaio objetiva realizar um resgate critico acerca da construgio das categorias Estado e sociedade civil no pensamento de Karl Marx. Para tanto, debruca-se sobre as linhas mestras das elabo- rages dos contratualistas, assim como sobre o significado e o alcance do crivo hegeliano na remodelagao tedrica destas mediagées funda- mentais da vida social. Esta operagao € requisito para explicitar a es- pecificidade revolucionéria do pensamento marxiano, Palavras-chave: Estado, Sociedade civil. Contratwalismo, Emancipagto politica. Emancipacao humana. Abstract: This article presents a critical rescue of the construction of the categories State and Civil Society in Karl Marx’s thinking. To do so, it focuses on the guidelines of the elaboration of contr: tualism, as well as on the meaning and scope of Hegel's thinking to the theoretical remodeling of this essential mediation of the social life. This is required to express clearly the revolutionary specificity of Marx’s thoughts, Keywords: State. Civil society. Contractualism, Political emancipation. Human emancipation * Assistente social graduado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) — Recife/PE— Brasil; mestre em Servigo Social pelo Programa de Pés-Graduagao em Servigo Social da UFPE; membro do GET — Grupo de Estudos ¢ Pesquisas sobre o Trabalho, coordenado pela Profa. Dra. Ana Elizabete Mota. E-mail: Jjamersonsouza@ gmail.com. Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 25-39, jan./mar. 2010 25 Introdugao nveredar na discussao acerca da relagio entre as categorias Estado e sociedade civil no pensamento de Marx significa apreender a pro- funda inflexao que o filésofo alemao imprimiu na concepgao teérico- -politica desses que so, utilizando uma expresso lukacsiana, dois complexos sociais fundamentais. Esta inflexdo € 0 resultado da ampla revisio teérico-critica operada por Marx ante as principais claboragdes do pensamento social produzido na mo- dernidade. Sendo assim, a discussao levantada por Marx sobre a relagao entre Estado e sociedade civil esta intimamente vinculada 3 critica da filosofia do direito de Hegel, obra que consubstanciava o ponto alto da produgao filoséfica alema. Hegel, por sua vez, é 0 representante da ruptura decisiva para com a cor- rente contratualista. No pensamento hegeliano nao ha espago para a concepgao de um eventual contrato, estabelecido de forma voluntaria ou compulséria, entre individuos que viveriam, hipoteticamente, um estado de natureza, que fosse constantemente ameagado — como para Hobbes —, ou pacifico — como para Locke e Rousseau. Acessa altura, convém estabelecer a importancia das produgdes contratua- listas, uma vez que expressavam 0 confronto, no plano teérico, das relages entre as classes sociais no interior do regime feudal. O periodo histérico que abarca o fundamento social da filosofia contratualista, nos séculos XVI e XVIII, coincide com a época do que Marx, em O capital, denominou de acumulagao primitiva de capital (1985, p. 261). Segundo Marx, essa é a quadra hist6rica na qual a burguesia, como classe social, comega a adquirir um enorme potencial econdmico e politico. Para que a burguesia pudesse gozar livremente desse potencial seriam necessérias profundas alteragées nas relagdes sociais do perfodo feudal, Essas alteragdes teriam como objetivo livrar as relagdes mercantis das amarras da politica do antigo regime Os contratualistas estavam comprometidos com 0 estabelecimento de um ordenamento social que garantis direitos & burguesia, direitos esses cerceados pelo absolutismo feudal: de vida em Hobbes, de propriedade pri- 26 Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 25-39, jan/mar. 2010 vada em Locke, e de liberdade em Rousseau. Assim sendo, é legitimo afirmar que os contratualistas reclamavam o que posteriormente fora denominado de Estado de Direito, isto é, uma forma determinada de relagao entre Estado e sociedade civil que garantisse a todos os homens direitos naturais fundamen- tais inalienaveis. Posteriormente, em um texto de 1843 intitulado A questdo judaica, Marx deixaria clara a articulagdo do pensamento liberal-contratualista, presente na chamada Declaragao Universal dos Direitos do Homem, com os anseios priva- dos da burguesia como classe social (2009, p. 49). Afirmar a conexdo da produgdo contratualista com o Ambito mais geral dos anseios da burguesia como classe social ndo significa escamotear as con fluéncias e diferengas especificas entre cada um dos seus representantes. O contetido do pensamento de Hobbes, por exemplo, que defendia o fortalecimen- to maximo do Estado, difere significativamente do que postulava os tragos ni- tidamente demoeraticos da filosofia de Rousseau. Para clarificar 0 pensamento de Marx acerca das categorias Estado e so- ciedade civil vamos resgatar as linhas mestras da filosofia politica jusnaturalis- ta. Este resgate visa acompanhar a construgdo teérica claborada por Hobbes, Locke ¢ Rousseau. Do mesmo modo, vamos nos debrugar sobre a guinada operada por Hegel. Em seguida reconstruiremos a andlise eritico-revoluciondria realizada por Marx. 0 legado da filosofia jusnaturalista na elaboracao das categorias Estado e sociedade civil A continuidade de nossa exposigao requer, como referido, a explanagao do miicleo do pensamento dos contratualistas, visando estabelecer a contribuigao que eles forneceram para o debate em torno da relagdo entre Estado e socieda- de civil. Para tanto, seguiremos a consecugao hist6rica na qual aparece, em primeiro lugar, a filosofia hobbesiana. Em seguida, o liberalismo politico de John Locke. Por fim, as tendéncias democraticas do francés Rousseau, fechan- do o leque dos principais pensadores jusnaturalistas. Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 25-39, jan./mar. 2010 27 O inglés Thomas Hobbes pensava o estado de natureza, ou seja, a condigao social em que era inexistente um Estado politico institufdo, como uma constan- te ameaga a vida dos individuos. Embora nao fossem selvagens, os homens no estado de natureza representavam iminentes ameagas uns aos outros. Para Hobbes, os homens seriam “opacos” aos olhos uns dos outros. Esta opacidade tende a gerar suposigSes reciprocas sobre as possiveis agdes dos individuos, 0 que culminaria, para 0 autor, em ataques visando a autopre- servagio, isto é, agressio preventiva, mediante possivel ofensiva externa. Em qualquer das situagdes, a condigao bélica esta necessariamente posta. A partir dessas ameagas constantes decorreria a generalizacao incontrolé- vel de um estado de guerra de “todos contra todos”, para utili zar uma expresso hobbesiana. No estado de natureza 0 “homem é lobo do homem”. Isto porque a atitude mais adequada para assegurar a autopreservacao seria a climinagao suméria da ameaga, a aniquilagdo do outro (Hobbes, 2006, p. 56). Hobbes rompe com a visao antropolégica de Aristételes, segundo a qual o homem seria um animal social por natureza, tendo suas potencialidades ma- ximizadas dentro de uma ordem natural imutdvel, no interior de um Estado. Para Hobbes, que se aproxima da vis4o maquiaveliana de natureza humana, esta socialidade natural nao permite visualizar os verdadeiros conflitos decorrentes da vida em sociedade, seja no estado de natureza, seja no estado fundado a partir do contrato. No estado de natureza nao haveria limites aos direitos naturais. Cada in- dividuo seria 0 arbitro absoluto de suas ages, 0 que resultaria num caético conflito constante que ameagaria a preservagao da vida humana. A solugao que Hobbes aponta para esta situacao insustentavel de guerra constante é a alienagao, por parte dos individuos, aos seus absolutos direitos naturais em fungéo do estabelecimento de uma instdncia que seria a0 mesmo tempo o guardiéo da soberania absoluta ¢ o sujeito responsavel pela preservagao da vida dos indivi- duos. Esta esfera, que surge no momento da alienagao, é 0 Estado. Somente a partir da instauragao do Estado € que os homens abandonam 0 estado de natureza e passam a viver em sociedade. Nao ha, na perspectiva hobbesiana, uma anteces 40 cronoldégica do Estado ou da sociedade. Ambas nascem no momento do contrato social, mas a sociedade civil ¢ fundada a par- 28 Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 25-39, jan,/mar. 2010 tir do Estado, o que representaria, em linguagem lukacsiana, uma primazia ontolégica (nao necessariamente cronolégica) do Estado em relagao & socieda- de civil. O Estado, fundado a partir do contrato precisa, na visio de Hobbes, gozar de absoluta soberania; ser inquestiondvel e ter a liberdade para arbitrar, inclu- sive, sobre a vida ou morte dos cidadaos. Nao pode haver espago para 0 ques- tionamento do Estado por um motivo cristalino: questionar o Estado significa- ria questionar sua soberania. Por conseguinte, esta soberania deixaria de ser absoluta, resultando no retorno do estado de natureza, ou seja, um estado de guerra constante. Nesse estado, os individuos nao mais reconheceriam autori- dade absoluta, salvo a sua prépria. A tinica possibilidade efetiva, nao de questionamento do Estado, mas de rebelido individual, ocorre quando o Estado nao cumpre sua fungao primordial, ou seja, quando nao consegue preservar a vida dos cidaddos. Somente nessa ocasiao o individuo que se sente prejudicado pode reservar-se quanto & obedi- éneia ao soberano. Esta possibilidade é dada apenas ao individuo em sua sin- gularidade, nao sendo tolerada, portanto, a unido de cidadaos em prol de qual- quer reivindicagao. Este individuo lesado recuperaria, entéo, sua liberdade natural, Na esfera da vida privada sao permitidas relagdes mercantis desde que a soberania do Estado permanega intacta. Isto significava, no tempo de Hobbes, 0 dircito ao comércio de bens méveis c iméveis, desde que controlado pelo Estado. Neste particular, nota-se a tensao entre a realidade da burguesia da época, avida por obter autonomia nas relagdes de mercado, e o absolutismo feudal, que limi- tava a propriedade dos bens iméveis em poder dos aristocratas. O Estado pensado por Hobbes compromete a propriedade privada dos cidadaos, pois s6 a0 Estado cabe a propriedade final sobre todos os bens. Ob- servado em perspectiva histérica, 0 micleo do pensamento hobbesiano nao conquistou um desdobramento sociopolitico efetivo. Sem embargo, as necessi- dades sociais da burguesia viriam a se identificar de forma explicita com as elaboragGes tedricas de um autor que produziu sua obra pouco tempo depois de Hobbes: John Locke. como anterior ao surgimento do Estado, o que a tornaria, portanto, inviolével ste tiltimo defenderia o direito & propriedade privada Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 25-39, jan./mar. 2010 29 sob quaisquer circunstdncias. Para a burguesia da época, Locke representava o ponto alto da teoria politica liberal moderna. A obra de Locke intitulada Segundo tratado sobre 0 governo civil, escrito por volta do final da década de 1670, é considerada como o marco da formula- ¢40 te6rico-politica liberal. A época, o pensamento de Locke estava sendo in- fluenciado pelas tensées sociopoliticas que antecederam a chamada Revolugao Gloriosa. O Segundo tratado, publicado décadas depois de sua concepgio — 1690 — viria a se constituir como fundamentagao teérica da deposigao de Jaime II. A formacao em familia burguesa e crista puritana, aliada & influéncia ide- olégica de um politico liberal inglés de destacada atuagdo, favoreceram a defe- sa do autor em prol da liberdade individual ¢ da tolerdncia religiosa, Em conformidade com os demais contratualistas, Locke concebe a supe- ragdo do estado de natureza mediante 0 estabelecimento de um contrato social, que fundaria, entdo, a sociedade civil. Entretanto, ao contrério do constante estado de guerra hobbesiano, Locke afirma a vigéncia da liberdade e igualdade entre os individuos, que resultaria numa relativa harmonia das relacées sociais. Essa harmonia seria quebrada apenas por eventuais inconvenientes, como a violagdo da propriedade alhei . Para Locke, essa seria uma etapa concreta da histéria dos homens, muito embora vivenciada em momentos distintos. No estado de natureza jé estariam presentes a Razio ¢ a Propriedade Pri- vada como direitos naturais dos individuos. Isto significa que a passagem ao estado civil conservaria essas faculdades precedentes dos individuos. O Estado seria a instancia privilegiada de defesa desses direitos naturais. Os individuos antecedem o Estado e a sociedade civil (Locke, 2005, p. 69). Locke ficou conhecido como 0 tedrico do individualismo justamente por atribuir essa primazia sociopolitica aos individuos frente ao Estado e & propria sociedade civil. Nesta medida, nota-se a profunda diferenga terica com relagao a Hobbes, que concebia o Estado como soberano absoluto, inclusive arbitrando nas relagdes de propriedade. O Estado lockiano tem o dever fundamental de conservar e proteger a propriedade privada, tanto nos cas 1s de violagao interna e singular, quanto com 30 Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 25-39, jan/mar. 2010 relacdo a ameagas estrangeiras. Ao contrario da submissao absoluta dos stidi- tos ao Leviata hobbesiano, Locke pensa 0 contrato social como um consenti- mento coletivo em favor da instauragao de um corpo politico que pudesse, de maneira mais efetiva, garantir a inviolabilidade dos direitos naturais. A questo da melhor forma de governo, se monarquia, oligarquia ou democracia, & se- cundaria ante o papel fundamental do Estado: proteger a propriedade privada dos individuos. Porém, uma vez firmado 0 contrato, a vigéneia da sociedade civil nao estaria garantida definitivamente. Se 0 poder dos governantes fosse exercido para além do direito, o governo entraria em degeneragio tiranica. Isto posto, aos cidadaos estava reservado o direito de resisténcia e a contestagao da legiti- midade do governo. Seria o que Locke denominou como direito de resisténcia. Nesse momento haveria 0 retorno ao estado de natureza, onde a justiga divina seria 0 Arbitro decisivo. Novo contrato seria necessrio ao retorno da sociedade civil. Esta acepgao lockiana de um direito de resistencia seria impensavel na filosofia hobbesiana. O pensamento de Locke, ao contrério do de Hobbes, exerceu profunda influéncia na constituigao de governos civis europeus. Suas ideias foram resga- tadas pela Revolugao Americana e pela decisiva Revolugao Francesa. Contem- poraneamente, o nucleo duro da filosofia liberal lockiana esta presente na constituigao politica da maior parte dos Estados liberais. E possfvel afirmar, a essa altura, que o pensamento de Hobbes e Locke a respeito do contrato tiveram ampla penetragao no seio da filosofia politica clas- sica. Por considerarem, cada um a seu modo, a positividade do contrato como momento fundador da sociedade civil, confluiram na acepgao do pacto social como ultrapassagem de um estado de natureza para um estado civil-politico, onde a lei e a ordem, garantidos pelo Estado, assegurariam a vida, em Hobbes, ea propriedade privada, em Locke, como direitos naturais. Essa concepgao positiva do contrato social encontraria sua primeira criti- ca nas formulagées de um francés, filho de um relojoeiro: Jean-Jacques Rous- seau, Esse pensador, apesar de nao romper fundamentalmente com a ideia de um contrato social, estabelece uma série de problemas nas formulagdes de Hobbes e Locke, o que resulta numa visao negativa do pacto social. Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 25-39, jan./mar. 2010 31 Se nos contratualistas anteriores o pacto social cumpriria a fungao positi- va da garantia de direitos naturais, em Rousseau esse pacto representa a aliena- gao desses direitos, ou seja, ocorre em prejuizo dos individuos. Para superar a negatividade do pacto pensado por Hobbes e Locke, Rous- seau empreende algumas reformulagées conceituais com que trabalhavam seus antecessores. A primeira delas diz respeito a legitimidade do corpo politico. Essa legitimidade s6 est assegurada mediante a realizacao efetiva dos interes- ses do soberano. A soberania, para Rousseau, esta localizada no povo. O Esta- do precisa estar a servigo do soberano. Isto significa uma inversao com relagao 4 soberania absoluta do Leviata hobbesiano, Para o iluminista francés, o Estado deveria ser limitado e agir em fung&o do soberano, ou seja, seria uma instancia subordinada ao soberano. Para Rousseau, assim como para Locke, a forma efetiva do governo civil seria uma questo secundéria, desde que garantida a soberania do povo (no caso de Locke, desde que garantido o direito natural da propriedade privada). Outra questao latente no pensamento de Rousseau ¢ a da representagéo politica, Segundo o autor, a soberania do povo é inaliendvel (Rousseau, 2001, p. 39). No entanto, existe a necessidade concreta de representantes politicos. Estes tiltimos tenderiam, em larga medida, a agir em beneficio préprio, usu pando a soberania da sociedade civil. Rousseau aponta como possivel saida desse impasse a constante rotatividade dos representantes, minimizando os riscos de degeneragao dos governos ‘As noges de soberania da sociedade civil, de um Estado a servigo da comunidade, da rotatividade representativa e da participagao popular na elabo- da legislagao colocaram Rousseau na vanguarda do contratualismo. Suas ideias influenciaram a Revolugao Burguesa de 1789. O contratualismo, originario da Inglaterra do século XVI, vai encontrar uma primeira reformulago na Franga do século XVIII. Nesse momento, as concepgdes de Estado ¢ sociedade civil assumem importante papel na consti- tuigdo conereta do governo civil e na efervescéncia das lutas de classe entre a burguesia nascente — mas j4 poderosa tanto politica quanto economicamente — com a aristocracia feudal em decadéncia, que limitava a plena liberdade mercantil burguesa. 32 Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 25-39, jan/mar. 2010 Apés a queda da Bastilha e a concretizagao da Revolugao Burguesa, tendo sua continuidade no periodo napoleénico, os conceitos de Estado e sociedade civil seriam profundamente reformulados, prescindindo, inclusive, da ideia de um contrato social. Essa reformulagao seré levada a cabo a partir de um pais que nao experimentou um processo revolucionério tfpico da Europa do século XVIII, mas que no ambito da filosofia estava conectado com os principais con- tornos sociais do periodo revolucionario: a Alemanha (ainda nao unificada). O crivo hegeliano £ a filosofia alema que imprimir uma reviravolta na concepgao da relagao entre Estado e sociedade civil. Em primeiro lugar, na filosofia idealista de Hegel; posteriormente, no pensamento revoluciondrio de Marx. Hegel rejeita a ideia de um contrato social que viabilizasse a passagem do estado de natureza para a sociedade civil-politica. Para ele, a sociedade pré- -politica, sem a existéneia do Estado, € mareada por contradig6es e conflitos entre diferentes grupos (neste particular, Hegel se aproxima de Hobbes, muito embora evite a concepgao estado de natureza). A presenga do Estado na socie- dade civil representa, no entender hegeliano, a entrada para a sociedade politi- ca, regida pelos principios fundamentais da racionalidade e da universalidade. Esses princfpios permitiriam a superacao dos conflitos de interesse entre grupos particulares, sendo efetivados pelo Estado. Assim, 0 Estado abriria a passagem do que Hegel chamava de reino da necessidade (busca egoista dos individuos e grupos pela satisfagdo de necessi- dades particulares) para 0 reino da liberdade (sociabilidade regida pela racio- nalidade ¢ universalidade). O reino da liberdade teria na burocracia estatal seu elemento material, ou seja, o corpo coletivo de individuos que ocupasse a esfe- ra estatal seria considerado por Hegel a “classe universal”, capaz de materiali- zar os princfpios fundamentais do Estado. Justamente por incorporar o principio universalizante do Estado, a burocracia estatal estaria alheia aos conflitos de interesses particulares (conflitos de classe, inclusive) e representaria, dessa forma, os interesses de toda a sociedade. Serv. Soe. Soe., $40 Paulo, n. 101, p. 25-39, jan,/mar. 2010 Hegel considera o Estado como instancia responsdvel por evitar a desa- gregacao social. Sem a presenga do Estado, a sociedade civil ruiria ante 0 efeito devastador das lutas de classes. Tomado nessa acepgao, o Estado teria a fungao de imprimir racionalidade & sociedade civil, fundando a sociedade po- litica. E importante salientar que o termo sociedade civil, em Hegel, € idéntico a sociedade civil-burguesa, ou seja, o reino da necessidade. Isto significa que apenas o Estado pode racionalizar as relagées da sociedade civil, marcadas por disputas de interesses particulares. Essas disputas terminam por prejudicar a moralidade dos individuos, levando-os & pritica de métodos de corrupgao que comprometeriam suas relagdes. Desse modo, o Estado teria a atribuigao adicio- nal de moralizar relag6es individuais e reprimir praticas imorais. Em termos hegelianos, é possfvel afirmar que 0 Estado € 0 sujeito da his- t6ria, cabendo & sociedade civil o papel secundario de predicado. Ora, se 0 sujeito da histéria ¢ o Estado, ¢ licito afirmar que a histéria s6 tem inicio a partir do surgimento do Estado e no interior dele. Desta maneira, nao haveria hist6ria humana na auséncia do Estado. Se o Estado é o momento fundante da hist6ria em Hegel, é também seu limite tiltimo. Sem o Estado nao haveria his- t6ria humana possfvel. Mais tarde, Marx inverter4 esses termos, demonstrando que a hist6ria autenticamente humana ocorrera apenas com a supressio do Estado e do modo de produgao capitalista. Para Hegel, a ideia de um contrato (onde individuos, voluntariamente ou no, livres e com direitos absolutos, pactuam alienar sua soberania em prol da manutengao e defesa da coletividade) seria uma abstragao irreal em seu funda- mento. Apesar da confluéncia hegeliana com os contratualistas acerca da ne- cessidade do Estado, este tiltimo nao seria institufdo mediante um pacto, e sim como principio racional e universalizante Hegel fora adepto dos ideais da Revolugdo Burguesa de 1789. Até entio, partilhava das principais ideias democrético-burguesas. A ascensao de Napoleao a0 poder, pouco tempo depois da queda da Bastilha, influenciaria diretamente © pensamento do filésofo. Hegel enxergava a figura de Napolego como a per- sonificagao do que ele chamava de espirito do mundo, ou seja, 0 principio que move a histéria dos homens. 34 Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 25-39, jan/mar. 2010 A filosofia hegeliana sofreria a primeira critica fundamental a partir de 1843-44, momento em que Marx, influenciado pelo pensamento de Feuerbach, pela complicada situagao politica da Rendnia e pelo inicio da leitura da econo- mia politica classica, tomaria a filosofia do direito de Hegel como objeto de investigagao. Estado e sociedade civil em Marx: as categorias submetidas a historicidade A obra de Marx inaugura um novo referencial tedrico sobre a relagdo entre as categorias Estado e sociedade civil. Marx se debruga sobre este tema influenciado pelo materialismo de Feurbach (que se pretendia uma critica ao idealismo hegeliano), pela filosofia do direito de Hegel, pelas leituras dos eco- nomistas politicos classicos e pela situagao politica concreta dos alemaes do século XIX, O pensamento de Marx em torno do Estado e da sociedade civil pode ser encontrado no decorrer de sua vasta produgao, desde 1843-44 até a publicagao de O capital. Entretanto, os textos produzidos em Paris, conhecidos como Ma- nuscritos Econémico-Filos6ficos, juntamente com a Critica da filosofia do di- reito de Hegel — Introdugao ¢ A questao judaica, podem ser considerados os marcos iniciais da critica marxiana A produgao da filosofia idealista e politica da época. Nesses escritos, Marx j4 demonstra que as contradigdes e os fetiches da sociedade capitalista impregnam a filosofia idealista e politica, marcadas pela nao ultrapassagem do nivel aparente da realidade. Para Marx, era preciso alcan- gar 0 contetido essencial da sociedade burguesa. Sua critica dizia respeito as operagoes da filosofia idealista que insistia em tomar o Estado, a populagao, 0 dinheiro e assim por diante, categorias descoladas da totalidade social. Marx chamou a atengao para a necesséria reconstrugao histérica das cate- gorias, Estado, sociedade civil, mercadoria, capital e assim por diante, nao possuem uma esséncia a-histérica, nao fazem parte de uma “natureza humana” imutavel ¢ eterna. Sao construgées histéricas e precisam ser analisadas nessa perspectiva. Nesse momento, Marx descarta toda a heranga contratualista, que Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 25-39, jan./mar. 2010 35 pressupunha a existéncia abstrata de uma “natureza humana”. Para ele, mesmo a esséncia das relagées entre os homens € construida historicamente e precisa ser explicada pela histéria. Para demonstrar que o Estado nao é um “principio de universalidade e racionalidade”, nem uma instancia para além dos “interesses particulares”, como queria Hegel, nem uma esfera instituéda a partir da elaboragao de um suposto ¢ abstrato pacto (que nunca fora comprovado), como queriam os contratualistas, Marx recorre ao estudo do Estado burgués concreto e dos principios ideolégicos que o orientam — a Declaragao dos Direitos do Homem. Todo o texto de A questdo judaica esté construido no sentido de critica aos valores burgueses edificados na Revolugao de 1789. Ali, pode-se observar que homem abstrato coincide com a figura do burgués capitalista— é um individuo proprietario privado, preocupado com seus interesses particulares e com a am- pliagao de seus negécios. Na Declaragao esto ausentes consideragées que pu- dessem ser o suporte A emancipagaio de todas as classes sociais. A Declaragao como marco ideal e a Revolugao Burguesa como marco hist6rico-concreto asse- guram 0 inicio do que Marx chama de emancipagdo politica, ou seja, a garantia ido liberal. Ambos os marcos favoreceram largamente a burguesia enquanto classe social, pois ela incorporava o imenso actimulo de riquezas econémicas e poder de um, de direitos invioléveis para a burguesia e a instaura politico, reunidos durante © perfodo que Marx chamaria, em O capital, de acumulagao primitiva de capital. Esse periodo decorre entre os séculos XV ¢ XVIII, quando a burguesia adquire um papel fundamental nas relagdes mer- cantis internacionais. Ora, o Estado politico e a sociedade civil-burguesa, diré Marx, nao encer- ram o “reino da necessidade” hegeliano. Ao contrério, intensifica-o. Marx de- monstra que as disputas entre os interesses particulares se materializam na anarquia dos mercados, onde a mercadoria sera a mediagio universal das rela- Ges sociais. Longe de ser o “reino da liberdade”, a socicdade civil-politica burguesa, regida pela légica da acumulagao de capital, langa milhares de seres humanos em uma situagao de pobreza extremada — ser criada uma superpo- pulagdo relativa que sera sistematicamente expulsa do mercado de trabalho, tinica via de manutengao de sua sobrevivéncia. 36 Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 25-39, jan,/mar. 2010 Dito de outra maneira, a sociedade civil-politica inaugurada a partir da revolugdo de 1789 liberta a burguesia das amarras da aristocracia feudal. A burguesia, de posse da propriedade privada dos meios de produgao, passa a requerer, ou descartar, a forca de trabalho necesséria As suas atividades de acumulagio de capital. Isto implica a incorporagao e a expulsao sistemética de trabalhadores do mercado de trabalho. Os trabalhadores, por sua vez, foram expropriados de suas terras, destitu- {dos dos meios de produgio, no perfodo de acumulagdo primitiva, restando apenas a venda da capacidade de trabalho, em um mercado dominado por bur- gueses enriquecidos, como forma de reprodugao de sua vida. O Estado burgués, observa Marx, vai ter seu principal papel na regulagao dessas que so as relagdes fundamentais da sociedade civil-politica burguesa —as relagdes de produgao. Sendo assim, o Estado € sempre uma instancia em desfavor dos trabalhadores, j4 que pode regular, mas nunca extinguir, essa me- diagdo fundamental: a exploragao do trabalho pelo capital. O Estado € uma esfera a favor das classes dominantes desde seus primérdios, nas sociedades escravistas da Antiguidade. Surgiu para proteger os interesses da classe dominante e controlar as revoltas dos escravos. Inicialmente, havia apenas alguns tragos essenciais do Estado modero, como a presenga de um corpo po- licial-militar, de uma burocracia hierarquica, cobradores de impostos, escribas ¢ mensageiros, em suma, um corpo de funcionérios piblicos. Posteriormente, novas configuragGes vao se aglutinando a esses tragos essenciais Esses contornos do Estado pré-burgués desautorizam as idealizagées dos contratualistas, que viam o Estado como esfera positiva da sociabilidade. O Estado burgués incorpora essas caracterfsticas. Do mesmo modo, caracteristicas inéditas ganham espago — a incorporagao de interesses organiz: dos pela forga de trabalho, por exemplo. Assim, em Marx, 0 Estado nao inaugura a sociedade civil. Antes, se ergue a partir dela no interesse de determinada classe social. A recuperagao histérica do surgimento do Estado permite que Marx demonstre a vinculacio orgnica entre Estado e capital. A emancipagdo politica garantida pela Revolugao de 1789 nao Para dar esse passo seria necessario extinguir o Estado como esfera alienada ssegura o préximo passo no avango da emancipagao da humanidade. Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 25-39, jan./mar. 2010 37 das relagdes sociais, extinguir o capital como forga centrifuga que domina as relagdes humanas. Temos assim os principios revolucionérios marxianos que deveriam ser levados a cabo pelo proletariado, tinica classe social que nada teria a perder com a radical alteragao da sociabilidade burguesa. Consideracées finais Apesar de Marx nao ter elaborado em todas as consequéncias uma teoria geral do Estado, sua postura critica em relagdo ao jogo formal do poder politi- co, sob a condugao de classe da burguesia, bem como sua concepgao histérica acerca das categorias sociais, certamente autorizam sustentar que o Estado nao se constitui uma esfera social eterna, nem necesséria. Estas indicagdes segura- mente nao esgotam as determinacées quanto a questo do Estado e de seu papel na totalidade social. Contudo, ganham especial relevo no debate com as con- cepgGes ingénuas do Estado, que costumam retomar, conscientemente ou nao, os arguments liberais, idealistas, ou funcional-positivistas, sobre a universali- dade e imparcialidade do Estado em relagdo aos interesses da sociedade civil burguesa. Para Marx, tanto quanto as formagées econdmicas pré-capitalistas, o siste- ma do capital, bem como 0 poder politico que Ihe corresponde, sao particulari- dades histéricas do desenvolvimento do género humano. A contragosto dos idedlogos da burguesia, esta abordagem sustenta que o sistema do capital e 0 Estado nao refletem a “natureza humana”, forma abstrata de concepgao da es- séncia humana hipostasiada pela consciéncia de classe da burguesia; antes, reflete apenas os imperativos irreformaveis de um sistema autoimpulsionado pela acumulagio centralizada de capital. Segundo o pensamento marxiano, a esséncia humana € historicamente determinada pelas relagées sociais de pro- dugdo vigentes. Nas palavras de Lukécs, que sustenta também neste particular argumento marxiano; “o desenvolvimento essencial do homem é determinado pela maneira como ele produz” (Lukécs, 1979, p. 73) Ao contrario das criticas fugazes que apontam Marx como um “teérico da economia”, o alemao redigiu textos brilhantes em que analisava minuciosamen- 38 Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 25-39, jan/mar. 2010 te as relagdes eminentemente politicas da Europa do século XIX, a exemplo do texto classico, As lutas de classe na Franca de 1848 a 1850, onde demonstra que o intercmbio entre as personificagdes do capital e o direcionamento poli- tico da gestao da res publica tem uma longa hist6ria. Todo o esforgo marxiano esta ancorado na irredutivel historicidade de seu método ¢ no horizonte social e politico da emancipagao humana, ncoras que demonstram sua vitalidade relevancia nesses tempos de crénica contrarrevolugao e anacrénica vigéncia do ‘tema do capital. Artigo recebido em out./2009 m Aprovado em jan./2010 Referéncias bibliograficas HOBBES, Thomas. Leviatd. Paulo: Atica, 2006. v. I. WE] FORT, Francisco. Os cldssicos da politica. Sio LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. S40 Paulo: Martin Claret, 2005. LUKACS, Georg. Ontologia do ser social: os principios ontolégicos fundamentais de Marx. Sao Paulo: Ciéneias Humanas, 1979. MARX, Karl. O capital: critica da economia politica. 2. ed. Sio Paulo: Nova Cultural, 1985. Livro I. tomo II. As lutas de classe na Franca de 1848 a 1850, Si0 Paulo Alfa-Omega, s/d (Obras Escolhidas, v. I.) . A questao judaica, Sao Paulo: Expressio Popular, 2009. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. $20 Paulo: Martin Claret, 2001. Serv. Soc. Soc., So Paulo, n. 101, p. 25-39, jan./mar. 2010 39

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