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EFEITOS DO VERBAL SOBRE O NAO -VERBAL Eni Puceinelli Orlandi Ha um momento na historia da reflexao sobre a linguagem em que o lingiifstico se identifica com a Lingiiistica, ou seja, se reduz diretamente © fato (de linguagem) & disciplina (que trata da linguagem). Concomitante a esta reducio, outra se sobrepde a ela: reduz-se a significagdo ao lingifstico, ou seja, ao fato de linguagem definido pela perspectiva da Lingiifstica. E assim se apagam as diferencas entre 0 verbal € 0 nao- verbal, ou entio se submete um (¢ nio-verbal) ao outro (a0 verbal). ‘A Andlise de Discurso (AD daqui para frente) restitui ao fato de linguagem sua complexidade e sua mulliplicidade (aceita a existéncia de diferentes linguagens) e busca explicitar os caracteres que o definem em sua especificidade, procurando entender o seu funcionamento. Isto porque a AD trabalha no sé com as formas abstratas mas com as formas ateriais da linguagem. E todo processo de produgao de sentidos se constitu em uma materialidade que Ihe é prdpria. Assim, a signifieancia nao se estabelece na indiferenga dos materiais que a constituem, a0 contrario, € na pratica material significante que os sentidos se atualizam, ganham corpo, significando particularmente. Desse modo, podemos dizer que a AD contraria fundamentalmente pelo menas dois autores, quanto a esta questio: a. E. Benveniste (1974), que coloca, no plano fundamental (¢ nao no hist6rico), a linguagem verbal humana (0 signo lingilistice) como Rua, Campinas, 1:35-47, 1995 36 Efeitos da verbal sobre 0 ndo-verbal interpretante, por execléncia, de qualquer sistema de signos e, b. R. Barthes (1978) que diz que todo sistema de signos repassa-se de linguagem (verbal humana). Essas sio posigdes que, segundo o que pensamos, produzem uma assepeia do no-verbal, um seu efcito de transparéncia, pela sua verbalizagia necesséria, Evita-se, pelo verbal (pela gregaridade, distintividade, eic, do verbal) produzido pela Lingiiistica, 0 corpo da linguagem em sua opacidade, espessura ¢ muitas vezes indistingao. Isso que aparece como sendo assim, como veremos mais adiante, na realidade j4 é um que se produz entre os diferentes sistemas significantes dentro de uma histéria social determinada. E é este efeito que procuraremos compreender aqui. Para tanto criticaremos os paradigmas que alinham o verbal, o cientifico, o sistemitico, a escrila etc. como tendo precedéncia sobre 0 nao-verbal, o heteréclito, 0 nao escrito ete, Este efeito se funda e da sustentacao a: A. De um lado, alguns "mitos" como o da linguagem como transmissio de informagio ou o da linguagem como comunicacio; mitos que definem a linguagem para o discurso social, para o senso comum. B. De outro, por alguns "preconceitos” teéricos que sustentam a mistificagio da prépria cigncia e, nela, o prestigia do cientismo positivista. ‘Tanto esses mitos, produzidos na relacio do senso comum com a linguagem, como a produ rntifica dos preconceitos, garantem © funcionamento dessa reducio, ou melhor, do apagamento da diferenga entre o verbal ¢ © nfo-verbal encurtando a distancia que vai de um a outro. Assim, se procede inicialmente a uma divisio - como se se fossem trabalhar as diferencas - mas se reabsorve a diferenca pelo encurtamento das distdncias, sobredeterminando 0 nio-verbal pelo verbal (como, em nossa formagao social se sobredetermina o rural pelo urbano € etc:). Na realidade, essas nossas consideragdes, ¢ as que s¢ seguirao, resultam de nosso trabalho sobre o siléncio. Esse tema, 0 do siléncio, visto no interior do quadro tedrico da ‘Andlise de Discurso, nos permitiu compreender, entre outros, a importincia da diferenga entre o verbal © 0 nao-verbal. Faremos uma digressio por questées que tocam especificamente o siléncio para depois retornarmos sobre a questio geral da relagio do verbal ¢ 0 nao-verbal. Rua, Campinas, 1:35-47, 1995 Eni Puccinelli Orlandi 37 Em meu trabalho sobre o siléncio (Orlandi, 1992) desenvolvi o entendimento de que o siléncio tem muitas formas. Dentre elas, considerei como mais importantes: 1. o siléncio fundador, pelo qual afirmo que nao hi significacio possivel sem siléncio: € o siléncio que existe nas palavras, que significa 0 nao-dito ¢ o que da espaco de recuo significant, produzindo as condigSes para signifiear; 2. a politica do silencio que se subdivide cm b1. siléncio constitutivo ou anti-implicito, © que nos indica que para dizer preciso nio-dizer (uma palavra apaga necessariamente as "outras") € b2. 0 siléncio local, que refere A censura propriamente, compreendida como aquilo que é proibido dizer em uma certa conjuntura, ou melhor, a interdicao para um sujeito de circular por certas regides de sentidos, portanto, por certas regides de constitutigio de sua identidade. Para completar essa fala sobre os diferentes siléncios, concluo assim que estar no sentido com palavras e estar no sentido sem elas, ou em siléncio, sio modos absolutamente distintos de significar, de nos relacionarmos com © mundo, com as coisas, com as pessoas © com és mesmos. Ressaltando no entanto, que esta diferenga deve ser tomada mesmo como uma difereng: nao se pode traduzir o siléncio em palavras sem modificd-lo pois a matéria significante do siléncio ¢ a das palavras diferem; além disso, 0 siléncio significa por si mesmo, ou seja, o siléncio nao fala, ele significa. A partir d desenvolvo toda uma reflexdo para mostrar que ha um ritmo no significar que supse o movimento entre siléncio e palavras, entre siléncio e linguagens. Sem apontar na diregao do inefavel, ou sem fazer 0 elogio do siléncio, proponho no entanto que se dé, tanto na reflexdo como nas priticas de linguagem, um lugar particular ao siléncio, pois a nossa formagéo social é povoada por uma abundancia excessiva de linguagens que, © tempo tado disponiveis ¢ amplificadas a0 infinito, acabam por transformar o que seria uma disponibilidade em uma indisponibilidade radical: ficamos cegos € surdos aos sentidos pois "a profusao dessas significagées as torna insignificantes" (Jenny, 1990). Por outro lado, cultivar o entendimento do siléncio é "aprofundar na fala um tempo de suspensio ¢ de contemplagio, de mudanga ¢ de vo, que esti af necessariamente implicada" (Jenny, idem), O que em meu estudo significa restituir uma temporalidade da palavra (um ritmo) que nao estamos mais podendo acolher. Fazer valer a diferenca entre linguagem e siléncio é fazer valer como constitutiva da prépria significagio a materialidade significante. A fala divide o siléncio, organiza-o. O Rua, Campi 1:35.47, 1995 38 Efeitos do verbal sobre 0 ndo-verbal siléncio ¢ disperso ¢ a fala é voltada para a unicidade e as entidades discretas. OQ modo de significar da linguagem j% ¢ domesticagio do sentido selvagem do siléncio com seus segmentos visiveis ¢ funcionais que tornam a significagio calculdvel. O silencio, a0 contrdrio, se apresenta como absoluto, continuo, disperso. A linguagem supée pois a transformagio da matéria significante por exceléncia (0 siléncio) em significados apreensiveis, verbalizaveis. Matéria ¢ formas. A significacio € um movimento, assim como a identidade é um movimento, Errincia do sujeito, errincia dos sentidos. Indo mais longe, a hipdtese de que partimos € a de que o siléncio € a prépria condigio de producio de sentidos. Evidentemente falamos do siléncio como matéria significante, como histéria (e néo apenas em sua qualidade fisica). E o siléncio, enquanto espaco diferencial que permite & linguagem significar, é uma das instiincias em que se produz 0 movimento. No siléncio, o sentido se faz em seu Percurso, a palavra segue seu curso, 0 sujeito cumpre a relacao de sua identidade e de sua diferenga, pois o trago comum entre a errincia do sentido, a itinerancia do sujeito ¢ 0 correr do discurso € justamente o movimento, Reproduzindo minhas palavras (Orlandi, idem, p. 161 ¢ segs.), eu diria que o siléncio tem uma funcao nas ilusGes constitutivas da linguagem (a do sujeito como origem e a da realidade do pensamento), enquanto condicao para o movimento, enquanto lugar do possivel para o sujeito e os sentidos. Assim € que entendo o sujeito discursive como "itinerante". Porque o sentido nio é um, € muitos. E isto esta dito na Anilise de Discurso quando se define o dizivel pelo ‘conjunto de diferentes formagées discursivas que se poem em jogo em cada gesto do dizer. Sendo o siléncio um dos componentes da relagao do sujeito com as formagées discursivas, ele (sujeito) percorre diferentes limites de sentidos (formacdes discursivas diferentes), a mao ser que af intervenha a censura. O eardter continuo do siléncio permite a0 sujeito se mover nas significagdes, percorrer sentidos. O siléncio é, em suma, a possibilidade do dizer vir a ser outro. No siléncio, o sentido ecoa no sujeito, E esse proceso que Ihe toma possfvel perpassar as diferengas dos diferentes processos de identificagio, sem no entanto perder sua unidade. Sendo, atravessado por miltiplos discursos (¢ é essa sua realidade), ele se desmancharia em sua ‘ua Campinas, 1:35-47, 1995 Eni Puccinelli Orlandi 3° dispersao. E isso que significa dizer que, assim como 0 sentido é erritico, 0 sujeito é itinerante: cle perpassa e € perpassado pela diferenca; habita e € habitado por muitos discursos, muitas formagoes discursivas. O que o mantém em sua "identidade” nao sio-os ¢lementos diversos de seus contetidos, de suas experiéncias diferentes de sentidos, nem uma sua configuragao prop! ‘seu estar no siléncio. Porque antes de ser palavra todo sentido ja foi siléncio. Dito de outro mado, todo sentido posto em palavra ji se dispés antes em siléncio, na relagio com o sujeito, Essa itinerancia do sujeito pode assim ser vista como o efeito de contradicao entre formagies discursivas ¢ da propria relagao de uma formagic discursiva com ela mesma, em sua heterogeneidade. O que tratamos sob a rubrica da incompletude ja que, como dissemos, incompletude ¢ possivel vém juntos no discurso. E é nesse passe, e sustentados pela reflexdo sobre o siléncio, que podemos compreender as relagdes que produzem, na in: do discurso, a indistingao, a instabilidade ¢ a dispersio. F nesse movimento, nessa errancia que situo a relagio do homem com as diferentes linguagens: horizontes, projetos de significar O sentido tem uma matéria propria, ou melhor, ele precisa de uma matéria especifica para significar. Ele nio significa de qualquer mancira. Entre as determinagoes - as condigdes de producio de qualquer discurso - esti a da propria matéria simbélica: 0 jgno verbal, 0 traco, a sonoridade, a imagem etc. ¢ sua consisténcia significativa. Nao sio transparentes em sua matéria, nao sao redutiveis ao verbal, embora sejam intercambiaveis, sob certas condigSes. Quando isso se faz, produz-se uma parifrase (5. Serrani, 1993), ‘Quando, na reflexiio sobre o siléncio, afirmei a diferenga entre a matéria significante dele ¢ a da linguagem verbal, ¢ alertei para © fato de que nio se traduz o sentido do siléncio em palavras sem modifici-lo, no estava, como disse, fazendo o elogio do inefavel. Nao é que ha sentidos que nao se possa significar. Ha, sim, uma necessidade do sentido que s6 significa pelo siléncio, ¢ no por palavras. Pois bem, ha uma necessidade no sentido, em sua materialidade, que sé significa por exemplo na mésica, ou na pintura cic. Nio se tor, musico, literate, indiferentemente, Sao diferentes relagdes com os sentidos que se instalam. Sao diferentes posicdes do sujeito, sio diferentes sentidos que se produzem. Rua, Campinas, 1:35-47, 1995 40 Efeitos do verbal sobre o néo-verbat ‘A nocSo de consisténcia significativa , que introduzimos mais acima, é fundamental para se entender a necessidade material das diferentes linguagens. Ha sentidos que precisam ser trabalhados na musica, outros, na pintura, outros na literatura. Para que signifiquem consistentemente. E isto tem um efeito sobre o "autor". Ele se constitui diferentemente como pintor, como miisico, ou como literato. Talvez, 0 modo da pritica do Renascimento, com as miltiplas autorias do mesmo "mesire", seja melhor compreendida por esta reflexdo, em que levamos em conta a necessidade da distinta matéria significante e a incompletude dos sentidos (¢ dos sujcitos). A significacio 6 um movimento, um trabalho na histéria ¢ as diferentes linguagens com suas diferentes matérias significantes sio partes constitutivas dessa histéria. Mais uma vez se reafirma © cardter de incompletude da linguagem (melhor seria dizer das linguagens). O miltiplo ¢ o incompleto se articulam materialmente: a fa pluralidade se tocam ¢ sio funcio do nao fechamento do simbdlico!. Dai os "outros' sentidos que sempre sio possiveis. Ea existéncia, ou a necessidade histérica das muitas inguagens parte dessa incompletude ¢ desse possivel. E no conjunto heterdclito da diferentes linguagens que o homem significa. As varias linguagens sio necessidade histérica. 1A niio fechamento da questi semantics, por ser uma questio filosdfiea, coma afirma P. Henry (1993), acrescento a do nic fechamento do simbélico, senda, a meu ver, a necessidade das miéltiplas fis das distintas matérias significantes, um dos elementos que atestam esse ndo fechamento. Rua, Campinas, 1:35-47, 1995 Puccinelti Orlandi 4 A Midia Em seu texto Discurso: Estrutura ou Acontecimento? (1990) M. Pécheux faz uma anilise do enunciado politico "On a gagné" (Ganhamos!), tal como ele atravessou a Franca nodia 10 de maio de 1981, por ocasiao da vitéria de Mitterand. Falando sobre © meio de circulacdo-confronto de formulagées que vio acompanhar esse acontecimento ¢ que nao param de aparecer na tela da TV durante toda a noite, esse autor observa que a "materialidade discursiva desse enunciado coletivo é absolutamente particular: ele nfo tem nem o contedde, nem a forma, nem a estrutura enunciativa de uma palavra de ordem, de uma manifestagio ou de um comicio. politico. "On a gagné" (Ganhamos!) cantado com um ritmo e uma melodia determinados (on-a-ga-gné/d6-d6- sol-dé) constitui a retomada direta, no espaco do acontecimento politico, do grito coletivo dos torcedores de uma partida esportiva cuja equipe acaba de ganh: Continuando a explorar, em sua ani idade desse enunciado, Pécheux nos convida a aprofundar a reflexdo sobre as relagdes entre o funcionamento da midia ¢ o da classe politica, sobretudo depois dos anos 70. Pela anilise que Pécheux faz (idem) do jogo metaférico em tome de um enunciado politico, fica claro que, no campo do esporte, o resultado do jogo pade ser objeto de comentitios mas, enquanto tal, seu resultado deriva de um universo logicamente zado. Nia é este o caso de um acontecimento politico em que jogam fortemente equivocos, interpretagoes. polémic: De fato, a0 aproximar 0 enunciado politico do esportivo, marca-se um efeito de proposicio estabilizada (X ganhou) onde nao ha esta estabilidade. No politico interroga-se 0 que ¢ ganhar, quem ganhou realmente (nés, quem? a esquerda, a direila, 0 centro?, 0 povo franets? os socialistas? etc.). 0 modo de instalagao do acontecimento na TV ganha determinagdes do discurso esportive, com suas particularidades. Nao vamos discorrer sobre este fato em si. O que pretendemos, lembrando essa andlise de Pécheux, € trazer para a reflexio a questio da midia. A nosso ver, esse mesmo proceso, em que 0 mao-verbal € sobredeterminado pelo verbal, produz efeitos fundamentais sobre a concepgio da midia. Por esse efeito ideolégico, também a midia funciona através da redugio do nio-verbal ao verbal, Rud, Campinas, 1:35-47, 1998 a2 Efeitos do verbal sobre a ndo-verbat produzindo © efeito da transparéncia, da informagia, do estivel (ou, pelo menos, do diretamente decodificavel). A prépria concepcio da midia fica a afetada pelo efeito de continuidade homogénea do nio-verbal ao verbal. A complexidade do conjunto de signos de distintas nalurezas se reduz a um processo de interpretacio uniforme. Tudo se interpreta do mesmo jeito. E 0 efeito literal se reproduzindo em cadeia continua em todas as linguagens. Se o que diz Pécheux nos mostra que perceber a midia é perceber 0 politico de outra maneira, nés propomos a outra face desta mesma questo: perceber © fato de linguagem na perspectiva do discurso, que € politica, € perceber a midia de outra mancira. Hi uma ideologia da comunicagio social que faz com que se use a midia verbalmente, isto ¢, de modo a que as outras linguagens que constituem a midia nao funcionem sem o verbal. Para nés, nao é assim. Ista é um efeito. A mfidia tem seu dominio especifico de significdncia eo verbal nfo ¢ sobredeterminante quando restituimos a midia a esse seu dominio proprio. Como dissemos anteriormente, si0 algumas mistificaghes que a funcionam. Vamos aqui nos deter sobre alguns desses mecanismos mistificadores: 1.0 mito da informagio. O prestigio do cientifico, da ciéncia, 3. O modo de relagio do falante com a midia, numa formagio social como a nossa que € dominada pela ideologia da interpretagio verbal (mundo civilizado, letrado, ocidental, cristao). 1. O mito da informagao. No verbal, © nas anilises lingiifsticas em geral, se trata o signo sob a ilusio referencial, ou seja, a ilusio da literalidade. Uma das conseqi jas, no viés conteudistico, € pensar a linguagem como producio de inforniacio (0 que "x" quer dizer), Por seu lado, o tratamento da midia tem acentuado este aspect: 0 conjunto de Rua, Campinas, 1:35-47, 1995 Eni Puccinelli Orlandi B meios de comunicagio serve (ou devia servir) para informar. Um dos argumentos favoriveis a implementagio da midia é, aliés, a "riqueza” de informagbes que ela produz. Se a informagio pode vir através de diferentes "canais” (leia-se "linguagens"), € mesmo simullaneamente, no entanto a sua formulagio, para consumo, é verbal. Tem-se um suporte verbal dispontvel - produzido pela ideologia do discurso social ja estabilizado - ¢ reduz-se qualquer processo de significacio produzido pelas outras linguagens a este processo. E assim que a multimidia ganha unidade em sua representacao: pelo verbal. Garantia da legibilidade, da interpretacao, lingiisticamente organizada. 2. A Ciéncia, Do ponto de vista da produgio cienlifica desse efeito de reducio do nio-verbal x0 verbal ja falamos do principal, ou seja, da dominincia da produgio do conhecimento lingiifstico que se tora paradigmatico, tendo como seu fator constitutive 0 feito de literalidade, em torno do qual se juntam os outros efeitos. Devo ainda acrescentar, nesse sentido, que o fata da Lingiiistica ter, em primeiro, conseguido formalizar adequadamente seu objeto ¢ caracteriza-lo (e caracterizar-se) em sua aulonomia, nao € sem importincia nesse seu proceso de dominancia, A este ganho real ¢ fecundo & que se juntaram os efeitos de exclusio e de redugio sobre os quais estamos refletindo. Mas ha um aspecto que considero relevante para a construcio dessa centralidade do lingitistico (¢ da Lingilistica). Trata-se do fato de que, em relagdo 4 linguagem verbal humana, hd uma longa histéria de construcio de objetos que sio ao mesmo tempo instrumentos do seu conhecimento (isto é, da linguagem verbal humana) ¢ também se institucionalizam como instrumentos da relagao do falante com sua lingua. Sio os *instrumentos lingiiisticos” de que fala S. Auroux (1992): as gramiticas, os vocabularios, os dicion4rios ete. E, com toda certeza, consideracos soba determinagao da escrita, que € das invengdes mais fortes, determinantes definidoras no Ambito da linguagem verbal humana. Pois bem, a producio cientifica desses instrumentos contribui para que circule socialmente a imagem do verbal como onipresente j4 que esses instrumentos dio a0 Rua, Campinas, 1:35-47, 1995 A Efeitas da verbat sobre o-ndo-verbal falante uma representacio inequiveca de sua lingua, sustentando-se assim na certeza, na estabilidade, ¢ no efeito de evidéncia do funcionamento da linguagem verbal. ‘$6 ha um pequeno passo a dar para que este modo de relagio com os sentidos, fornecido pelo verbal, passe a monitorar a relacio com as outras linguagens. Em conseqiiéncia, esse paradigma de producto de conhecimento sobre as linguagens passa a "engordar" com as tentativas de criar "gramiticas" para tudo: para a imagem, para o cinema, para a miisica ete, Nio é apenas a produgio de uma forma de conhecimento que af se objetiva mas sobretudo uma mancira de organizar a relagio do homem com os sentides. Como diria Pécheux, siio procedimentas para se admi a interpretagao (M. Pécheux, 1991). 3. O Modo de Relagdo do Falante com a Midia, Paralelamente, isto também se da na relacio do falante com a midia, pois esta é “instrumentalizada” pela relagio com a linguagem verbal (c seus artefatos Diante de qualquer objeto simbélico, © homem, enquanto ser histérico, € impelido a interpretar, ou em outras palavras, a produzir sentidos Os modos de realizagio dessa injun que interessam i AD, em que, no proprio gesto de interpretacdo, apaga-se para o homem as condigdes que o levam a realizi-lo. E 0 sentido aparece como naturalmente produzido pelo homem para as coisas. Sujeito ¢ sentido se produzem ao mesmo tempo (de alguma maneira, eu sou o(s) semtido(s) que eu produzo) e, por um efeito ideolégico elementar, que € 0 que articula a ordem da linguagem a ordem do mundo, imprime-se, no sujeito, a impressdo de estar sempre jé-ld, como origem, €, para 0 sentido, 0 efeito de evidéncia (da realidade do pensamento, ou da relagiio termo-a-termo entre pensamento/linguagem/mundo). Neutraliza-se 0 fato de que {anto os sujeitos quanto os sentidos tem uma Nessa histéria de conslituicio, os signos de diferentes naturez: diferentemente. Embora seja este o real, v modo como os sentidos circulam no social (cf. Angenot, 1984), os remete ao cédigo verbal, ou seja, ao discurso cotidiano, Rua, Campinas, 1:35-47, 1995 Eni Puccinetli Ortandi 45 representado como as palavras do dia-a nso-comum. Assim, mesmo que essex modos de significar sejam diferentes pelas suas diferentes condigdes de producio (¢ st diferentes materialidades) eles si0 interpretades pelos mesmos procedimentos da significagdo verbal. E isso que aparece como uma necessidade (todo sistema de signos repassa-se de linguagem) ao contrario o resultado da produgiio imagindria da relagao do falante com as diferentes linguagens, historicamente determinada. Também esse mecanismo ideolégico repousa no que tenho chamado de conteudismo. Com efeito, na ilusio de que se pode separar forma ¢ contetido, toma-se, nesse caso, 0 conieiido das diferentes linguagens como equivalentes. Na realidade, se somos eriticos a0 conieudismo (como € a proposta da AD), sabemos que 0 modo de significar e a matéria significante sio constitutivos do sentido produzido de tal forma que nao ha equivaléncia signica do ponto de vista s6 dos contelidos. Nao separamos formas ¢ conietidos. Trabalhamos com 4 forma material. Sendo assim, analisamos 0 ando as relagdes que se dao entre formagacs nio tém sentido em si mas nas construgdes que integram a relacio entre diferentes formagoes discursivas. Essa € sua materialidade. Na relacao do falante com a midia, 0 que podemos observar € pois 0 calculo do sentido pelo verbal, em procedimentos como os que acabamos de caracterizar. Nesse proceso, o verbal ocupa, como a ilusio do discusso cotidiano, o lugar do neutro, do natural, do universal. O centro de que derivam as outros. Rua, Campinas, 1:35-47, 1995 46 Efeitos do verbal sobre © néo-verbal Conelusio A nossa proposta € pois a de que se restitua a historicidade aos fatos de linguagem. Para tal, propomos que se acentue a importincia da nacho de pritica discursiva. Nessa nogio, pode-se aproximar, no funcionamento das. diferentes linguagens, aquilo que constitu uma relagio produtiva na semelhanga entre elas, ¢ distinguir 0 que ¢ lugar de particularidade irredutivel e de diferengas constitutivas da especificidade dos tos. processos significantes dessas diferentes linguagens. Em Anilise de Discurso, a nocdo de pritica tem um lugar bastante particular, Ja na definicio do proprio discurso, preferimas nio traté-lo camo seqiiéncia de frases, texto, ou sistema de representagdes, mas como pritica, O discurso € uma pritica, No sentido de que é uma mediacao necessaria, um trabalho (no caso, simbélico) entre 0 homem e sua realidade natural e social. Pratica significando, pois, agio transformadora. Dando um enfoque tedrico-analitico mais forte a essa nacho (ja trabalhada por Foucault, na Arqueologia do saber, em termos tedricos), D. Maingueneau (1984) vai dar maior alcance analitico a ela, vinculando-a 4 questiio da relagao entre exterioridade (condicdes de produgio) no discurso. Ele dird que toda pritica discursiva tem duas faces: uma social ¢ outra linguajeira, Desse modo, ele dird que hi uma intrincacho radical entre grupos sociais ¢ formag6es discursivas, ou seja, os grupos $6 existem por € na enunciacio, na gestio de "seus" textos e, por outro lado, esses textos devem necessariamente ser referidos a "seus" grupos de enunciagio, para que facam sentido. Esse autor dir entio que a pritica discursiva designa essa reversibilidade essencial entre as duas faces, a social ¢ a textual, do discurso. A partir dai, ele trabalha nio sé com textos verbais mas com a pintura, a musica ete. como priticas discursivas, saindo, como ele mesmo diz, da orbita da estrita textualidade. Acreditamos que a nogio de pritica permite que se estenda a reflexio sobre os processos de produgio de sentidos sem o efeito da dominancia do verbal, j4 que por ela nao trabalhamos mais com textos mas com priticas discursivas (sejam verbais ou nio). E preciso, pois, reconhecer que o verbal tem uma fun aginiria crucial na construcio da legibilidade, da interpretabilidade das outras linguagens. Se isto nao é uma Rua, Campinas, 1:35-47, 1995 Eni Puccinelli Orlandi 47 funcio de dircito é, no entanto, uma funcao de fato € nlio podemos ser indiferentes a i Entretanto, nao sermos indiferentes, néo significa nos embalarmos nos efeitos dessa ilusio" mas procurarmos atravessé-la, desrefratando o jogo de seus reflexos, de suas ulagdes. Em uma palavra: compreendé-Ia. Desse modo, e¢ para finalizar, diria que ao apontar para a nocao de pritica estamos buscando restitui iguagens a comprecnsia de scus pracessos especificos icdincia, ao mesmo tempo em que lembramos que também as palavras néio siio apenas nomes (almas) que se dissolvem, Elas sfio corpo (materialidade) ¢ t&m 0 peso da historia. BIBLIOGRAFIA Angenot, M. (1984) "Le Discours Social: Problématique d'Ensemble", em Le Discours Social et Ses Usages. Quebe Auroux, S. (1992) A revolucdo tecnoldgica da gramatizagda. Ed. da Uni Campinas. Barthes, R. (1978) Lecon. Seuil, Paris. Benveniste, E. (1974) Problémes de Linguistique Générale 1. Gallimard, Pari Foucault, M. (1971) L'Archéologie du Savair. Gallimard, Paris, Henry, P. (1993) "Sujeito, Sentido, Origem", em Q discurso fundador. E. P. Orlant (org.). Ed. Pontes, Campinas. Jenny, L. (1990) La Parole Singuliere. Belin, Paris. Maingueneau, D. (1984) Genése du Discours. Mardaga, Bruxelas. Orlandi, E. (1992) As formas do siléucio. 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