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Metodologia Cientifica Copyright © 1974, 1978, 1983 da Editora McGraw-Hill do Brasil, Ltda. Copyright © 1996 MAKRON Books do Brasil Editora Ltda. Todos os direitos para a lingua portuguesa reservados pela MAKRON Books do Brasil Editora Ltda. Nenhuma parte desta publicagio poder ser reproduzida, guardada pelo sistema “retrieval” ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, seja este eletrénico, mecanico, de fotocépia, de gravacao, ou outros, sem prévia autorizagéo, por escrito, da Editora EDITOR: MILTON MIRA DE ASSUMPCAO FILHO Gerente Editorial: aisy Pereira Daniel Produtor Gréfico: José Rodrigues Editoracao e forolitos em alta resulugdo: JAG 95-3845 Dados de Catalogacao na Publicacéo (CIP) Internacional (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Cervo, Amado Luiz Metodologa cientifica / Amado Luiz Cervo, Pedro Alcino Bervian. — — So Paulo: MAKRON Books, 1996 Bibliografia. ISBN 85-346-0521-1 1. Cigncia - Metodologia 2. Pesquisa - Metodologia I. Bervian, Pedro Alcino. II. Titulo. indices para catdlogo sistemético: 1. Método cientifico 501.8 2. Metodologia cientifica 501.8 Capitulo 1 MAKRON Books NATUREZA DO CONHECIMENTO CIENTIFICO 1.0 -O CONHECIMENTO E SEUS NIVEIS © homem nao age diretamente sobre as coisas. Sempre hé um intermedidrio, um instrumento entre ele e seus atos. Isso também acontece quando faz cigncia, quando investiga cientificamente. Ora, nao € possivel fazer um trabalho cientifico, sem conhecer os instrumentos. E esses se constituem de uma série de termos e conceitos que devem ser claramente distingui- dos, de conhecimentos a respeito das atividades cognoscitivas que nem sempre entram na constituicao da cigncia, de processos metadol6gicos que devem ser seguidos, a fim de chegar-se a resultados de cunho cientitico e, finalmente, € preciso imbuir-se de espirito cientifico. “Nossas possibilidades de conhecimento sfio muito e até, tragicamente, pequenas. Cabemos pouquissimo, e aquilo que sabemos sabemo-lo muitas vezes superficialmente, sem grande certeza. A maior parte de nosso conhecimento somente € provivel. Exist certezas absolutas, incondicionais, mas estas so raras.”! © ome 6 conhecer? E uma relacao que se estavelece entre 0 SUIeITO GUE Cone « v objeto connecido. No processo de conhecimento 0 sujeito cognoscente se apropria, de certo modo, do objeto conhecido. 1 JM, BOCHENSKI. Diretrizes do nensamento filosdfico. = *” 6 Metodologia Cientifica_Cap.1 Se a apropriacao € fisica, sensivel, por exemplo, a representacio de uma onda Tuminosa, de um som, 0 que acarreta uma modificagio de um 6rgao corporal do sujeito cognoscente, tem-se um conhecimento sensivel. Tal tipo de conhecimento € encontrado tanto em animais como no homem. Se a representagdo nao é sensfvel, 0 que corre com realidades tais como con- ceitos, verdades, princfpios e leis, tem-se entéo um conhecimento intelectual. © conhecimento sempre implica uma dualidade de realidades: de um lado, 0 sujeito cognoscente e, de outro, 0 objeto conhecido, que esté possuido, de cerfa maneira, pelo cognoscente. O objeto conhecido pode, as vezes, fazer parte do sujeito que conhece. Pode-se conhecer a si mesmo, pode-se conhecer e pensar os seus pensamentos. Mas nem todo o conhecimento é pensamento. O pensamento € conhecimento intelectual. Pelo conhecimento 0 homem penetra as diversas dreas da realidade para dela tomar posse. Ora, a propria realidade apresenta niveis e estruturas diferentes em sua propria constituigao, Assim, a partir de um ente, fato ou fendmeno isolado, pode-se subir até situd-lo dentro de um contexto mais complexo, ver seu significado ¢ funcao, sua natureza aparente e profunda, sua origem, sua finalidade, sua subordinagio a outros entes, enfim, sua estrutura fundamental com todas as implicacdes daf resultantes. Essa complexidade do real, objeto de conhecimento, ditaré, necessariamente, formas diferentes de apropriagao por parte do sujeito cognoscente. Essas formas dardo os diversos niveis de conhecimento segundo o grau de penetracao do conhecimento e conseqiiente posse ‘mais ou menos eficaz da realidade, levando ainda em conta a érea ou estrutura considerada. Com relagio ao homem, por exemplo, pode-se considerd-lo em seu aspecto externo e aparente e dizer uma série de coisas que 0 bom senso dita ou a experiéncia cotidiana ensinou; pode-se, também, estudé-lo com espirito mais sério, investigando expe- rimentalmente as relagdes existentes entre certos drgios e suas fungGes; pode-se, ainda, questioné-lo quanto & sua origem, sua realidade e destino e, finalmente, investigar 0 que dele foi dito por Deus através dos profetas e de seu enviado Jesus Cristo. Tem-se, assim, quatro espécies de consideragdes sobre a mesma realidade; 0 homem, conseqiientemente 0 pesquisador, est se movendo dentro de quatro niveis dife- rentes de conhecimento. O mesmo pode ser feito com outros objetos de investigagao. Tem-se, entao, conforme 0 caso: — conhecimento empirico, — conhecimento cientifico, — conhecimento filos6fico, — conhecimento teolégico. Cap. 1 _Natureza do conhecimento cientffico 7 1.1- 0 CONHECIMENTO EMPiRICO Conhecimento empirico, também chamado vulgar, é 0 conhecimento doipovo, obtido ao acaso, aps intimeras tentativas. E amet6dico e assistematico. Figural O conhecimento e seus niveis. a as sujeito conhecimento objeto — empirico — cientifico = filos6fico = teol6gico O homem comum, sem formacao, tem conhecimento do mundo material exterior, onde se acha inserido, ¢ de um certo nimero de homens, seus semelhantes, com os quais convive. Vé-0s no momento presente, lembra-se deles, prevé o que poderdo fazer ¢ ser no futuro. Tem consciéncia de si mesmo, de suas idéias, tendéncias e sentimentos, Cada qual se aproveita da experiéncia alheia. Pela linguagem os conhecimentos transmitem-se de uma pessoa 8 outra, de uma geracao a outra. Pelo conhecimento empirico, 0 homem simples conhece 0 fato ¢ sua ordem aparente, tem explicagdes concernentes & razio de ser das coisas ¢ dos homens. Tudo isso € obtido das experiéncias feitas ao acaso, sem método, € de investigagoes pessoais feitas ao sabor das circunstncias da vida ou entio sorvido do saber dos outros ¢ das tradigdes da coletividade ou, ainda, tirado da doutrina de uma religiio positiva. 1.2 - 0 CONHECIMENTO CIENTIFICO O conhecimento cientifico vai além do empirico, procurando conhecer, além do fendémeno, suas causas € leis. 8 Metodologia Cientifica Cap. 1 Para Arist6teles 0 conhecimento s6 se dé de maneira absoluta quando sabemos qual a causa que produziu o fendmeno € 0 motivo, porque nao pode ser de outro modo; é 0 saber através da demonstragao?, ‘A cciéncia, até a Renascenga, era tida como um sistema de proposigdes rigorosa- mente demonstradas, constantes e gerais que expressam as relagGes existentes entre seres, fatos e fendmenos da experiéncia. O conhecimento cientifico era caracterizado como: 1) certo, porque sabe explicar os motivos de sua certeza, 0 que nao acontece com ‘0 empirico; 2) geral, no sentido de conhecer no real o que hé de mais universal ¢ valido para todos os casos da mesma espécie. A ciéncia, partindo do individuo concreto, procura 0 que nela hé de comum com os demais da mesma espécie; 3) metédico e sistemético. O cientista nao ignora que os seres ¢ fatos estao ligados entre si por certas relagoes, O seu objetivo € encontrar ¢ reproduzir esse encadea- mento. Alcanca-o por meio do conhecimento ordenado de leis ¢ prinefpios. A essas caracteristicas acrescentam-se outras propriedades da ciéncia, como a objetividade, 0 desinteresse € 0 espirito critico A ciéncia, assim entendida, era o resultado da demonstragio ¢ da experimentagio, 36 aceitando o que fosse provado. Hoje a concepcao de ciéncia é outra. A ciéncia nao € considerada como algo pronto, acabado ou definitivo. Nao € a posse de verdades imutaveis. ‘Atualmente, a ciéncia é entendida como uma busca constante de explicagdes solugdes, de revisdo e reavaliagao de seus resultados ¢ tem a consciéncia clara de sua falibilidade e de seus limites. Nessa busca sempre mais rigorosa, a ciéncia pretende aproximar-se cada vez mais da verdade através de métodos que proporcionem um controle, uma sistematizagao, uma revisdo e uma seguranga maior do que possuem outras formas de saber nio-cientificas. Por ser algo dinimico, a ciéncia busca renovar-se e reavaliar- ciéncia é um processo de construcio. e continuamente, A 2 Apud C. LAHR, Manual de filosofia, p. 340. Cap. 1 Natureza do conhecimento cientifico 9 1.2.1 - HISTORICO DO METODO CIENT{FICO As ciéncias, no estado em que se encontram atualmente, séo 0 resultado de tentativas ocasionais, e de pesquisas cada vez mais met6dicas e cientificas nas etapas posteriores. A cciéncia é uma das poucas realidades que podem ser legadas as geragdes seguintes. Os homens de cada periodo histérico assimilam os resultados cientificos das geragdes ante- riores, desenvolvendo ¢ ampliando alguns aspectos novos. Do duplo elemento de uma época, 0 mutivel e 0 fixo, o ainda nao comprovado ¢ 0 estabelecido definitivamente, somente o Gltimo cumulativo e progressivo. Os elementos que constituem boa parte da € que sio a parte transitéria e efémera, como certas hipéteses ¢ teorias, perdem-se no tempo, conservando, quando muito, interesse historico. Cada época elabora suas teorias, segundo o nivel de evolucdo em que se encontra, substituindo as antigas, que passam a ser consideradas como superadas ¢ anacronicas que permitiu a ciéncia chegar ao nivel atual foi o micleo de técnicas de ordem pritica, seus fatos empiticos ¢ leis, que formam elemento de continuidade, que foi sendo aperfeigoado ¢ ampliado ao longo da histéria do homo sapiens. ‘A ciéncia, nos moldes em que se apresenta hoje, é relativamente recente. $6 na idade moderna da Hist6ria adquiriu 0 cardter cientifico que tem atualmente. Entretanto, desde 0 inicio da humanidade j4 se encontravam os primeiros tragos rudimentares de conhecimentos e técnicas que constituiriam a futura ciéncia. ‘A revolucio cientifica, propriamente dita, registra-se nos séculos XVI e XVII, com Copérnico, Bacon e seu método experimental, Galileu, Descartes ¢ outros. Nao surgiu, porém, do acaso. Toda descoberta ocasional e empirica de técnicas © conhecimentos referentes ao universo, & natureza ¢ ao homem, desde os antigos babildnios ¢ egipcios, a contribuigao do espirito criador grego sintetizado e ampliado por Aristoteles, as invengdes feitas na época das conquistas preparam o surgimento do método cientifico ¢ 0 espirito de objetividade que vai caracterizar a ciéncia a partir do século XVI, ainda de forma vacilante ¢ agora de modo rigoroso. ‘Aos poucos 0 método experimental € aperfeigoado e aplicado em novos setores. Desenvolve-se 0 estudo da quimica, da biologia, surge um conhecimento mais objetivo da estrutura e das fungées dos organismos vivos no século XVIII. Jé no século seguinte, verifica-se uma modificagio geral nas atividades intelectuais ¢ industriais. Surgem novos dados relativos & evolugio, ao dtomo, a luz, 3 eletricidade, ao magnetismo, & energia. Enfim, no século XX, a ciéncia, com seus métodos objetivos exatos, desenvolve pesquisas em todas as frentes do mundo fisico e humano, atingindo um grau de precisdo surpreendente nio s6 na area das navegagoes espaciais e de transplantes, como nos mais variados setores da realidade. 10 Metodologia Cientifica Cap. 1 Essa evolucdo das cigncias tem, sem davida, como mola propulsora os métodos ¢ instrumentos de investigagio aliados ao espfrito cientifico, perspicaz, rigoroso e objetivo. Esse espirito, que foi preparado ao longo da Historia, impde-se agora, de maneira inexordvel, a todos quantos pretendem conservar 0 legado cientifico do passado, ou, ainda, propéem-se a ampliar suas fronteiras. 1.3 - 0 CONHECIMENTO FILOSOFICO © conhecimento filoséfico distingue-se do cientifico pelo objeto de investigagio ¢ pelo método. O objeto das ciéncias sio os dados préximos, imediatos, perceptiveis pelos | sentidos ou por instrumentos, pois, sendo de ordem material fisica, sio por isso suscetiveis de experimentagao (método cientifico = experimental). O objeto da filosofia ¢ constituido de realidades mediatas, imperceptiveis aos sentidos € que, por serem de ordem supra-sensiveis, ultrapassam a experiéncia (método racional). ‘A ordem natural do procedimento 6, sem divida, partir dos dados materiais ¢ sensiveis (ciéncia) para se elevar aos dados de ordem metempirica, nao sensiveis, razio {iltima da existéncia dos entes em geral (filosofia). Parte-se do concreto material para 0 concreto supramaterial, do particular ao universal. Na acepgio clissica, a filosofia era considerada a ciéncia das coisas por suas causas supremas, Modernamente, prefere-se falar em filosofat. O filosofar € um interrogar, ¢ um continuo questionar a si ¢ & realidade. A filosofia nao ¢ algo feito, acabado. A filosofia é uma busca constante do sentido, de justificacio, de possibilidades, de interpretagio a respeito de tudo aquilo que envolve o homem e sobre o proprio homem em sua existéncia concreta. Filosofar é interrogar. A interrogacio parte da curiosidade. Esta inata, Ela € constantemente renovada, pois surge quando um fenémeno nos revela alguma coisa de um objeto e ao mesmo tempo nos sugere 0 oculto, o mistério. Este impulsiona 0 homem a buscar o desvelamento do mistério. Vé-se, assim, que a interrogagéo somente nasce do mistério, que € 0 oculto enquanto sugerido. Jaspers, em sua Introducdo a Filosofia, coloca a esséncia da filosofia na procura do saber e nao em sua posse. A filosofia trai a si mesma e degenera quando € posta em formulas. 3. Apud Denis HUISMANN, André VERGEZ, Curso moderno de filosofia, p. 8. Cap. 1 Natureza do conhecimento cientifico I A tarefa fundamental da filosofia resume-se na reflexdo. A experiéncia fornece uma multiplicidade de impressoes ¢ opinides. Adquirem-se conhecimentos cientificos & técnicos nas mais variadas areas. Tem-se aspiragdes e preocupagées as mais diversas. A filosofia procura refletir sobre esse saber, interroga-se sobre ele, problematiza-o. Filosofar 6 interrogar principalmente sobre fatos e problemas que cercam 0 homem concreto, inserido em seu contexto histérico. Esse contexto muda através dos tempos, 0 que explica 0 deslocamento de temas de reflexdo filoséfica. E claro que alguns temas perpassam a hist6ria como o proprio homem; qual o sentido do homem e da vida? Existe ou nao existe 0 absoltito? Hé liberdade? Entretanto, o campo de reflexéo ampliou-se muito em nossos dias. Hoje, os filésofos, além das interrogagdes metafisicas tradicionais, formulam novas ques- tées: 0 homem seré dominado pela técnica? A maquina substituird o homem? Também o homem sera produzido em série, em tubos de ensaio? As conquistas espaciais comprovam 6 poder ilimitado do homem? O progresso técnico € um beneficio para a humanidade? Quando chegaré a vez do combate contra a fome e a miséria? O que € valor, hoje? A filosofia procura compreender a realidade em seu contexto mais universal, Nao ha solugdes definitivas para grande mimero de questées. Entretanto, habilita 0 homem a fazer uso de suas faculdades para ver melhor o sentido da vida concreta, 1.4- 0 CONHECIMENTO TEOLOGICO Duas sao as atitudes que se podem tomar diante do mistério. A primeira ¢ tentar penetrar nele com 0 esforgo pessoal da inteligéncia. Mediante areflexdo e 0 auxilio de instrumentos, procura-se obter um procedimento que seja cientifico ou filoséfico. ‘A segunda atitude consiste em aceitar explicagdes de alguém que jé tenha desven- dado o mistério e implica sempre uma atitude de f€ diante de um conhecimento revelado. Esse conhecimento revelado ocorre quando ha algo oculto ou um mistério, alguém que o manifesta e alguém que pretende conhecé-lo. Entende-se por mistério tudo o que € oculto enquanto provoca a curiosidade e leva a busca. O mistério € 0 oculto enquanto sugerido. Pode estar ligado a dados da natureza, da vida futura, da existéncia do absoluto, para mencionar apenas alguns exemplos. . Aquele que manifesta 0 oculto € o revelador. Pode ser 0 proprio homem ou Deus. ‘Aquele que recebe @ manifestagio tem fé humana, se o revelador for algum homem, ¢ tem f€ teolégica, se Deus for o revelador. 12 Metodologia Cientifica Cap. 1 ‘A fé teol6gica sempre esté ligada a uma pessoa que revela a Deus. Para que isso aconteca, € necessdrio que tal pessoa que conhece a Deus e que vive o mistério divino 0 tevele 20 homem. Afirmar, por exemplo, que tal pessoa € o Cristo, equivale a explicitar um conhecimento teol6gico. 0 conhecimento revelado — relativo a Deus ~ aceito pela fé teoldgica. constitui 0 conhecimento teol6gico. E aquele conjunto de verdades a que os homens chegaram, no com o auxilio de sua inteligéncia, mas mediante a aceitagio dos dados da revelacao divina. Vale-se de modo especial do argumento de autoridade. Sio os conhecimentos adquiridos nos Livros Sagrados € aceitos racionalmente pelos homens, depois de terem passado pela critica historica mais exigente. O contetido da revelacao, feita a critica dos fatos af narrados © comprovados pelos sinais que a acompanham, reveste-se de autenticidade ¢ de verdade, Passam tais verdades a ser consideradas como fidedignas e por isso so aceitas. Isso € feito com base na lei suprema da inteligéncia: aceitar a verdade, venha donde vier. contanto que seja legitimamente adquirida. 2.0 - O TRINOMIO: VERDADE - EVIDENCIA - CERTEZA Jé foi visto que o problema do conhecimento é, em grande parte, enigmatico. O homem € cheio de limitagGes ¢ a realidade que pretende conhecer ¢ dominar ¢ miiltipla ¢ complexa, Diante disso surge a questo: o homem pode conhecer a verdade? O que €verdade? 2.1-A VERDADE ‘Todos falam, discutem e querem estar com a verdade. Nenhum mortal, porém, é 0 dono da verdade. Isso porque o problema da verdade radica na finitude do homem, de um lado, e na complexidade e ocultamento do ser da realidade, de outro lado. O ser das coisas ¢ objetos que o homem pretende conhecer oculta-se © manifesta-se sob multiplas formas, ‘Aquilo que se manifesta, que aparece em dado momento, nao é, certamente, a totalidade do objeto, da realidade investigada, O homem pode apoderar-se e conhecer aquele aspecto do objeto que se manifesta, que se impde, que se desvela ¢ isso ainda de modo humano, isto é, imperfeito, pois nao entra em contato direto com o objeto, mas apenas com sua repre- seritacdo e impressdes que causa. Mas a realidade toda jamais poder ser captada por um investigador humano, quigé, nem todos juntos alcancaréo um dia desvendar todo esse Cap. 1 Natureza do conhecimento cientfico 13 mistério. Isso, porém, nao invalida 0 esforgo humano na busca da verdade, na procura incansavel de decifrar os enigmas do universo. O ser se desvela aqui ¢ acolé, numa ¢ noutra rea, com mais ou menos intensidade, mais para uns que para outros... Pode-se dizer que, em certas reas, o homem jé entendeu bastante daquilo que o ser é ¢ manifesta: a conquista tecnolégica, as viagens espaciais mostram quanto jé foi aprendido, ¢ isso gracas, certa~ mente, aos instrumentos cientificos de que 0 homem se serviu para perceber e ver que os sentidos jamais teriam visto, Mas essa é apenas uma faceta da realidade, do ser. © que se conhece sobre o homem, sobre a vida e a morte, sobre o futuro, sobre a responsabilidade dos marginais, sobre os mil problemas que afligem a cada um e a todos? O desvelamento do ser das coisas supse, ¢ isso é inegivel, a capacidade do homem de perceber as mensagens; isso implica atencdo, bons sentidos, bons instrumentos. Indtil lembrar que os instrumentos sio a alma de toda pesquisa cientifica rumo & abertura do ser, a manifestaco do ser, ao conhecimento da verdade. O que 6, pois, a verdade? E 0 encontro do homem com o desvelamento, com 0 desocultamento e com a manifestacao do ser. O ser das coisas se manifesta, torna-se transhici- do, visivel ao olhar, & inteligéncia e & compreensio do homem. Pode-se dizer que ha verdade quando o homem (inteligéncia) percebe e diz o ser que se desvela, que se manifesta. Ha uma certa conformidade entre 0 que o homem julga e diz ¢ aquilo que do objeto se manifesta. > Figura lO problema da verdade. Estados —_— a, de espirito sujeito conhecimento objeto. —_manifestacdo — ignorincia nada — diivida ‘um pouco — opiniao sem clareza —certeza ‘com evidéncia 0 objeto, porém, nunca se manifesta totalmente, nunca é inteiramente transparente. Por outro lado, © homem nao € capaz de perceber tudo aquilo que se manifesta ¢ nem Ihe possivel estar de posse plena do objeto de conhecimento; quando muito, pode conhecer os objetos por suas representagoes ¢ imagens. Por isso o homem nunca conhece toda a verdade, a verdade absoluta e total. 14 Metodologia Cientffica Cap. 1 Muitas vezes ocorre, ainda, que o homem, levado por certas aparéncias e sem © auxilio de instrumentos adequados, emita juizos precipitados que nao correspondam aos fatos e & realidade: temos entao o erro. E os erros sio freqientes através da Historia; temos, por exemplo, as afirmagées do geocentrismo, da geracao espontanea etc. 2.2-A EVIDENCIA Tais afirmagées erradas decorrem muito mais da atitude precipitada e da ignoran- cia do homem, com relagio & natureza do ser que se oculta e se desvela fragmentariamente, do que da propria realidade. A verdade s6 resulta quando houver evidéncia. Evidéncia € manifestacao clara, € transparéncia, € desocultamento e desvelamento do ser. Arespeito daquilo que se manifesta do ser, pode-se dizer uma verdade. Mas, como nem tudo se desvela de um ente, nao se pode falar arbitrariamente sobre 0 que nao se desvelou. A evidéncia, o desvelamento, a manifes- taco do ser é, pois, o critério da verdade. 2.3 -A CERTEZA Finalmente, a certeza € 0 estado de espirito que consiste na adesao firme a uma verdade, sem temor de engano. Esse estado de espirito se fundamenta na evidéncia, no desvelamento do ser. Relacionando o trinémio, poder-se-ia concluir dizendo: havendo evidéncia, isto é, se 0 objeto se desvela ou se manifesta com suficiente clareza, pode-se afirmar com certeza, {sto é, sem temor de engano, uma verdade. Quando nio houver evidéncia ou suficiente manifestago do objeto, 0 sujeito encontrar-se-4 em outros estados de espirito, o que deve transparecer também na expresso ow na linguagem. Sao os casos da ignorancia, da divida ¢ da opiniao. Ignorfincia € um estado puramente negativo, que consiste na auséncia de todo conhecimento relativo a qualquer objeto por falta total de desvelamento. A ignordncia pode ser: 1) _vencivel: quando pode ser superada; 2) invencivel: quando ndo pode ser superada; 3) culpdvel: quando ha obrigagio de fazé-la desaparecer; Cap. 1 Natureza do conhecimento cientifico 15 4) desculpével: quando nao hi obrigacdo de fazé-la desaparecer. A divida é um estado de equilibrio entre a afirmacao ¢ a negagio. A diivida € espontinea quando 0 equilfbrio entre a afirmagio ¢ a negagao resulta da falta do exame do pré e do contra. ‘A davida refletida é um estado de equilfbrio que permanece apés 0 exame das raz6es pré e contra. ‘A diivida met6dica consiste na suspensio ficticia ou real, mas sempre provis6ria, do assentimento a uma assercio tida até entéo por certa para Ihe controlar o valor. A diivida universal consiste em considerar toda assergao como incerta. Ba divida dos céticos. A opinido caracteriza-se pelo estado de espitito que afirma com temor de se enganar. J4 se afirma, mas de tal maneira, que as razées em contrério nao dio uma certeza, O valor da opinido depende da maior ou menor probabilidade das razées que fundamentam a afirmagio. A opiniio pode, as vezes, assumir as caracteristicas da probabilidade matemé- tica, Essa pode ser expressa sob a forma de uma fragao, cujo denominador exprime 0 niimero de casos possiveis e cujo numerador expressa 0 mimero de casos favoraveis. Por exemplo, havendo numa caixa 6 bolas pretas € 4 brancas, a probabilidade de se extrair uma bola branca ser4, matematicamente, 4/10. S6 haverd certeza quando 0 numerador se igualar a0 denominador. ‘A preocupagao do cientista ¢ chegar a verdades que possam ser afirmadas com certeza. 3.0 - FORMACAO DO ESPiRITO CIENTIFICO Feita a distingdo entre os niveis de conhecimento, esclarecidas as condigdes da verdade ¢ do erro e aprendidas as técnicas da investigagio cientifica (veja mais adiante), ainda no ser4 possivel realizar um trabalho cientifico. E necessario, além disso, ter uma reserva de outras qualidades que so decisivas para desencadear a verdadeira pesquisa. De pouco adiantaria o conhecimento e o emprego do instrumental metodol6gico, sem aquele rigor e seriedade de que o trabalho ciemtifico deveré estar revestido. Essa atmosfera de seriedade que envolve e perpassa todo o trabalho s6 aparece € transparece se 0 autor estiver imbuido de espirito cientifico. 16 Metodologia Cientifica_Cap. 1 3.1 - NATUREZA DO ESPiRITO CIENTIFICO © espirito cientifico é, antes de mais nada, uma atitude ou disposicao subjetiva do pesquisador que busca solugdes sérias, com métodos adequados, para 0 problema que enfrenta. Essa atitude ndo é inata na pessoa. E conquistada ao longo da vida, & custa de muitos esforgos e exercicios. Pode e deve ser aprendida, nunca, porém, transmitida. espirito cientifico, na pratica, traduz-se por uma mente critica, objetiva e racional. A consciéncia critica levaré o pesquisador a aperfeigoar seu julgamento € a desenvolver o discernimento, capacitando-o a distinguir e separar 0 essencial do acidental, ‘© importante do secundario. Criticar ¢ julgar, distinguir, discernir, analisar para melhor poder avaliar os cle- mentos componentes da questao. A critica, assim entendida, nao tem nada de negativo. E, antes, uma tomada de posicdo, no sentido de impedir a aceitacao do que € facil e superficial. O critico s6 admite 0 que € suscetivel de prova. A consciéncia objetiva, por sua vez, implica o rompimento corajoso com todas as posicdes subjetivas, pessoais ¢ mal fundamentadas do conhecimento vulgar. Para conquis- tar a objetividade cientifica, € necessério libertar-se de toda a visdo subjetiva do mundo, arraigada na propria organizacio biol6gica e psicolégica do sujeito e ainda influenciada pelo meio social. A objetividade € a condigo basica da ciéncia. O que vale nio é o que algum cientista imagina ou pensa, mas aquilo que realmente €. Isso porque a ciéncia nao é literatura A objetividade toma o trabalho cientifico impessoal a ponto de desaparecer, por exemplo, a pessoa do pesquisador. $6 interessam 0 problema ¢ a solugio. Qualquer um pode repetir a mesma experiéncia, em qualquer tempo, ¢ o resultado sera sempre o mesmo, porque independe das disposigdes subjetivas. A objetividade do espirito cientifico nao aceita meias-solugdes ou solugdes apenas pessoais. O “eu acho”, 0 “creio ser assim” nao satisfazem a objetividade do saber. Finalmente, o espirito cientifico age racionalmente. As tinicas razes explicativas de uma questo s6 podem ser intelectuais ou racionais. As “raz6es” que a razdo desconhece, as “razdes” da arbitrariedade, do sentimento e do coracao nada explicam nem justificam no campo da ciéncia. Cap.1Natureza do conhecimento cientifico 17 3.2 - QUALIDADES DO ESP{RITO CIENTIFICO ‘Além das propriedades fundamentais, j4 referidas, poder-se-iam acrescentar outras tantas qualidades de ordem intelectual e moral que 0 espirito cientifico implica. Como virtude intelectual, ele se traduz no senso de observagio, no gosto pela precisao e pelas idéias claras, na imaginacao ousada, mas regida pela necessidade da prova, ‘na curiosidade que leva a aprofundar os problemas, na sagacidade e poder de discernimento. Moralmente, 0 espitito cientifico assume a atitude de humildade ¢ de reconhe- cimento de suas limitagoes, da possibilidade de certos erros e enganos. O espirito cientifico é imparcial. Nao torce os fatos. Respeita escrupulosamente a verdade. O possuidor do verdadeiro espirito cientifico cultiva a honestidade. Evita o plagio. Nao colhe como seu o que outros plantaram. Tem horror as acomodagées. E corajoso para enfrentar os obstaculos e os perigos que uma pesquisa possa oferecer. Finalmente, o espirito cientifico nao reconhece fronteiras. Néo admite nenhuma intromissao de autoridades estranhas ou limitagdes em seu campo de investigacao. Defende o livre exame dos problemas. A honestidade do cientista est4 relacionada, unicamente, com a verdade dos fatos que investiga. 3.3 - CONQUISTA LENTA E DIFICIL ‘Todas essas qualidades e virtudes intelectuais e morais existem, indubitavelmen- te, desde que ha homens sobre a face da Terra, ao passo que a ciéncia é uma aventura do espfrito bem recente. Aristételes, certamente, nao sentia falta de nenhuma das virtudes supracitadas e, no entanto, sua Fisica nada tem de cientifico, no sentido moderno da palavra. ‘Trata-se, portanto, de reconhecer que 0 espirito cientifico é, antes de tudo, um produto da Hist6ria. E uma progressiva aquisigao das técnicas que exigem pesquisas exatas e verificdveis. Pouco a pouco, institui-se um mundo cientifico ou, como diz Bachelard, uma “cidade cientifica”, cujos costumes e leis constituem espirito cientifico. Este é, portanto, o espirito de um grupo, quase um espirito de corporagao no qual cada aprendiz de sabio € iniciado; quase como os novos membros de um clube, ou como os calouros das grandes escolas so iniciados pelos veteranos, no espfrito e tradigdes do grupo. 18 Metodologia Cientifica Cap. 1 Iniciagdo nas técnicas de trabalho, familiaridade no manuseio dos instrumentos de laboratérios, habilidade no trato com fontes bibliograficas néo se aprendem num dia 3,4 IMPORTANCIA DO ESP{RITO CIENTIFICO Diante do exposto, ¢ desnecessario encarecer a importancia do espirito cientifico. © universitério, por exemplo, consciente de sua fungao na Universidade, iri procurar imbuir-se desse espirito cientifico, aperfeigoando-se nos métodos de investigacao e aprimo- tando suas técnicas de trabalho. Os conhecimentos cientificos que vai adquirir, os bons ou maus mestres que vai enfrentar ndo constituirao o essencial da vida académica. O essencial todos concordam nisto, aprender como trabalhar, como enfrentar ¢ solucionar os pro- blemas que se apresentam néo s6 na Universidade, mas principalmente na vida profissional, E isso nio € adquirir conhecimentos cientificos feitos, f6rmulas magicas para todos os males, mas sim habitos, consciéncia e espirito preparado no emprego dos instrumentos que Ievardo a solucdes de problemas. Essas sempre se apresentario, na carreira profissional, com novos matizes, de tal forma que as solug6es feitas, porventura aprendidas na Universi- dade, serdo inadequadas. Urge entao apelar para 0 espirito de criatividade e de iniciativa que, aliadas ao espirito cientifico, adquitido ao longo dos estudos universitérios. irdo achar a solucdo mais indicada que as circunstincias exigirem. ‘Aqui vale 0 ditado: ao pobre que bater & porta ndo se di o peixe, mas a linha ¢ 0 anzol. O peixe resolve a situagao presente, mas a linha € 0 anzol poderdo resolver 0 problema em definitivo. Por outro lado, a ciéncia, hoje em dia, néo se resume na criatividade de um génio isolado que faz descobertas decisivas. A pesquisa cientifica se apresenta como um edificio, da dimensio dos arranha-céus, que supde a mobilizagio de um exército de técnicos & inventores, trabalhando em equipes disciplinadas, e que dispde de orgamentos da impor- tancia de um tesouro do Estado. Como s¢ filiar a tal exército sem a mentalidade e 0 espirito que 0 animam? 4 Apud Denis HUISMANN, André VERGEZ, Curso moderno de filosofia, p. 116 ¢ seguintes Cap. 1 Natureza do conkecimento cientifico 19 TESTE-RESUMO Complete as sentencas abaixo com a(s) palavra(s) adequada(s): 1 Descobrir ou estabelecer relagdes entre os fendmenos, fatos ou dados da realidade € Conhecer fatos s conhecimento m justific4-los ou explicar-lhes as causas & préprio do 3- O conhecimento cujo objeto é material ¢ mensurdvel ¢ cujo método é experimental chama-se Na concepgao classica, trés sao as caracteristicas do conhecimento cientifi- co, a saber: e 5— Hoje a ciéncia ¢ entendida ndo como a posse mas como ... constante de explicagies ¢ solugdes de problemas, de revisdo ¢ reavaliagao continua de seus resultados. 6— Enquanto as ciéncias buscam o conhecimento do mundo material com seus fendmenos e suas leis, quem busca explicar as causas remotas € 0 sentido do homem e do mundo 7— A aceitagio da revelacao divina a respeito de verdades sobrenaturais que ultrapassam os limites da capacidade finita da inteligéncia humana € propria do conhecimento ... 8~ A adequacio que se estabelece entre 0 que 0 sujeito cognoscente afirma através de uma proposigao e o objeto do qual se afirma, ou, ainda, a relagao de conformidade entre o dizer e 0 ser constitui 9 que se denomina 9— Somente se poderd afirmar uma verdade com certeza quando houver 10 — Atitude e qualidade subjetiva que leva o sujeito a buscar solugdes sérias com métodos adequados, o espfrito critico e objetivo, 0 empenho ¢ desinte- resse € ainda 0 espitito imparcial, honesto, perspicaz e que néo mede esforcos ¢ dificuldades na busca do saber chama-se ..

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