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Quando refletimos sobre a Natureza em geral, ou sobre a histéria da humanidade, ou sobre nossa propria latividade intelectual, vemos em primeiro lugar a imagem de um incessante emaranhado de relagbes e reagbes, de ermutagdes e combinacdes, nas quais nada permanece ‘o-qué, onde € como era, mas nas quais tudo se move, toma forma e passa. Vemos portanto em primeiro plano @ imagem de um todo, com suas partes ainda mais ou ‘menos mantidas ao fundo; observamos os movimentos, as transigdes, as conexdes, em vez das coisas que se mover € combinam e estdo ligadas. Esta concepeto do mundo Primitivo, nait, porém intrinsecamente correta, & a mesma da filosofia grega antiga, foi formulada pela primeira vez com clareca por Heréclito: do & e nio 6, porque tudo é fluido, esté constantemente mudando, constante- ‘mente tomando forma e passando. Friedrich Engels UL . W. VL vu. vu. INDICE A DIALETICA DO SEXO FEMINISMO AMERICANO FREUDISMO: UM FEMINISMO DESVIRTUADO ABAIXO A INFANCIA RACISCO: 0 SEXISMO DA FAMILIA DO HOMEM 0 AMOR A CULTURA DO ROMANCE, CULTURA (MASCULINA) DIALETICA SEXUAL DA HISTORIA DA CULTURA © FEMINISMO NA ERA DA ECOLOGIA CONCLUSAO: A REVOLUGAO DEFINITIVA, uw 28 58 87 ns 167 169 181 197 221 233 I. A DIALETICA DO SEXO As classes sexuais sto tio enraizadas, que se tor- nam invisiveis, A existéncia dessas classes ‘pode parecer ‘uma desigualdade superficial, facilmente soluciondvel com algumas reformas, ou talvez com a integraco plena das mulheres na forca de trabalho. Mas a reagio do homem, da mulher ¢ da crianga comum — “O qué? Ora, nio se pode mudar istol Vocé deve estar loucol” — est mais proxima da verdade. Falamos de algumas coisas tio pro- fundas quanto esta, Essa reagio instintiva € honesta, pois, mesmo quando 0 ignoram, as feministas falam de uma ‘mudanga na condigao biol6gica bésica. O fato de que uma mudanga tio profunda no possa se ajustar em ca- tegorias tradicionais de pensamento, p.e., 0 “politico”, ‘corre no porque essas categorias ndo se usem, mas por- que nao so suficientemente amplas: um feminismo rac cal as perpassa, Se houvesse um outro termo mais abran- gente, do que revoludo, n6s 0 usariamos. ‘Até que fosse atingido um certo nivel de evolucdo € que a tecnologia chegasse a sofisticagéo atual, questio- nar condigées biol6gicas bésicas era loucura. Por que deveria uma mulher trocar seu precioso lugar no curral, por uma uta sangrenta e sem esperanca? Entretanto, pela primeira vez em alguns paises, as pré-condigdes para fa revolugio feminista existem — na verdade, a situagio ccomega a exigir essa revolucio. uw ‘As primeiras mulheres estéo conseguindo escapar a0 massacre, e, inseyuras e vacilantes, comegam a. des- cobrir-se umas is outras. Seu primeiro passo & uma obser- vvago cuidadosa, em conjunto, para ressensibilizar uma conscigncia partida. Isto € penoso. No importa quantos niveis de conscigncia sejam atingidas, 0 problema sempre se aprofunda, Ele se acha em todo iugat. A divisio Yin ¢ Yang peneira toda a cultura, a historia, a economia, © propria natureza; as vers6es ocidentais modernas da discriminagio sexual integram apenas 0 substrato. mais superficial © recente. Intensificar assim nossa. sensbili- dade em relagio ao sexismo traz problemas muito piores do que os que a nova conscitneia do racismo’ trouxe Para os militares negros. As feminists tém que questionar Ifo s6 toda a caltura oetdental, como a prépria organiza- fo da cultura, e, mais; at€ a propria organizacto da na- tureza. Muitas mulheres desistem, desesperadas. Se é ne- cessério ir tio longe, elas preferem desconhecer 0 assunt. Outras continuam fortalecendo e expandindo o movimento, sua dolorosa sensbiidade em relacio a opresséo da mu Ther existe com um tinico propésito: eliminé-la Finalmente Contuis, antes que possamos asi para mudar a si- tuasio, precisamos saber como ela suraiv e evoluiv,e atra- vvés de que insttuigdes ela opera hoje. Citando Engels: “[Devemos] examinar a sucessio dos fatos, a partir dos qusis © antagonismo brotou, de modo a descobrir. nas condigdes assim eriadas, os meios de pér fim 0 confito.” Para a revolucio feminista, precisamos de-uma andlise da dindmica da guerra dos sexos tio completa quanto ara a revolugdo econémica foi a andlise de Marx © Engels sobre 0 antagonismo das classes. Mais completa 2inda, Porque Tidamos com um problema mais amplo; com uma ‘opressio que remonia além da histéria escrita, até © proprio reino animal. ‘Ao rat esta andlise, podemos secorter ltico de Marx e Engels, mas nfo a suas opi as mulheres — eles néo sabiam quase nada sobre a con- digdo das-mutheres enquanto classe oprimida, reconhe- cendo-a somente quando isso’ coincidia'com a economia, 12 Marx e Engels superaram seus precursores socialis- tas, porque desenvolveram um método de andlise 20 mes- mo tempo dialética © materialista. Os primeiros a com- preender a Hist6ria disleticamente, viram 0 mundo como lum processo, como um fluxo natural de acio ¢ reacio, de elementos opostos, porém insepardveis © interpene- trantes. Por terem sido capazes de perceber a Historia mais como um filme do que como fotos instantineas, tentaram evitar cair na visdo “metaffsica” estagnada, que aprisionou tantas outras grandes mentes. Até mesmo este tipo de andlise pode ser um produto da divisio sexual, ‘como discutiremos no Capitulo 9, Combinaram esta vie so da interago dinimica das forcas hist6ricas com uma visio materialista, ie., tentaram pela primeira vez dar uma base real A mudanga hist6rica e cultural, tragar 0 desenvolvimento das classes econsmicas, a partir de cau- sas orginicas, Compreendendo integralmente os meca- nismos da Histéria, esperavam mostrar ao homem como dominé-la, s pensadores socialistas anteriores a Marx ¢ Engels, ‘como Fourier, Owen ¢ Bebel, nfo foram capazes de fazer ‘mais do que interpretar moralmente as desigualdades so- ciais existentes, postulando um mundo ideal, onde os pri vilégios de classe e a exploracio nao deveriam existir, sim- pplesmente gragas a boa vontade, do mesmo modo como as primeiras pensadoras feministas postularam um mundo ‘onde o privilégio do homem e a exploragio nfo deveriam cexistir, simplesmente gracas & boa vontade. Em ambos os casos — por nio terem os pensadores primitivos com- preendido realmente como a injustica social tinha evo- Iaido, mantido a si mesma, ou poderia ser eliminada — suas idéias cairam num vazio cultural, ut6pico. Marx ¢ Engels, por outro Indo, tentaram um ‘enfoque cientifico da Histéria, Trouxeram 0 conflito das classes as suas ori jgexs econémicas reais, projetando uma solucio econd- mica, baseada em pré-condicbes econdmnicas j existentes: 1 tomada dos meins de produeo pelo proletariado levaria ‘2 um comunismo, onde 0 governo se retrairia, no pre~ cisando mais reprimir a classe baixa em beneficio da classe mais alta, Na sociedade sem classe, os interes 13 Mas a doutrina do materialismo hist6rico, por mais que tenha representado um avanco significative em rela- Glo & anélise histérica anterior, nfo f resposta com- pleta, como os fatos posteriores o confirmaram. Porque, apesar de Marx e Engels fundamentarem sua teoria na realidade, era ela apenas uma realidade parcial. Esta é a definigio estritamente econdmica do materialismo hist6- “O materialismo histérico € aquela visio do curso da Historia que busca a causa iiltime © a grande energia movel Se todos 0s fatos histéricos no. desenvolvimento econdmico 4a sociedade, nas mudangas dos modos de produgto e troca, ‘a consegiente divisio da sociedade em classes distintas,e nas tas entre essas classes.” (Grifos da autora) Mais adiante, ele afirm: “.-.que toda a histéria do passado, com excesio dos Agios primitivos, fois histria de Tutas de classes; que essay classes confltantes da sociedade sio sempre os resultados dos, ‘modos de produgio e troca—numa palavra, das condiSes ‘econémicas de sun época; que a estrutura econdmica da socie~ ade sempre fornece a base real, exclusivamente a parti da ual podemos formular tanto a’ explicaglo ultima de toda @ superestrutura das instituiges politieas e juridias, quanto, 8 das idéias religiosas,filoséficas e demais idéias de um pe- odo histérico dado.” (Grifos da autora). ‘Seria um erro tentar explicar a opressio das mulhe- Fes, a partir desta interpretacdo estritamente econdmica, A andlise de classes 6 um belo instrumento de trabalho, ‘mas ¢ limitada. Apesar de correta num sentido linear, ela nao se aprofunda o suficiente, Hé todo um substrate se- xual da dialética historica que Engels algumas vezes per eebe obscuramente. Mas, por ver a sexualidade somente através de um filtro econdmico, reduzindo tudo a ‘sto, rio € capaz de avalié-la por si mesma. 14 on oe entre o homem ¢ a mulher estabeleceu-se para fins de re- Ee ee ee Mc hc xno «io ose ee nes ne Mas Engels deu crédito demais a reconheci si ota oan ether eae az orn 0 mgs crs © Vee NT psn 260, (NT) ; 1, A correlagio que cle estabelece aa Orisem da Familia, da Propriedade. Private e do Estado entee 0 inerdesenvolvimesto ‘esses dois sistemas ‘ma escala de tempo deve ser intxpretada ‘como se segue MATRIARCADO 5 PATRIARCADD-————> e [ree gee I 15 dos preconceitos de Marx com relagfio as mulheres (um reconceito cultural partihado por Freud, bem como Por todos os homens de cultura), perigoso, se tentarmos forgar o feminismo a entrar numa’ estrutura marxista orto- doxa — congelando em dogmas o que eram apenas insights incidentais de Marx ¢ Engels sobre as classes se- xuais. Em vez disso, precisamos ampliar materialismo hhist6rico para incluir 0 que é estritamente marxista, do ‘mesmo modo como a fisica da relatividade nfo invalidou a fisica newioniana, apenas tragou um circulo a sua volta, limitando sua apiicagdo — por comparagéo apenas — ‘a uma esfera menor. Pois um diagnéstico econdmico que remonta a propriedade dos meios de produgio, ¢ até dos meios de reproducio, nao explica tudo. Existe um nivel da realidade que no deriva diretamente da economis ‘A suposigio de que, antes de ser econdmica, a real dade & psicossexual, 6 geralmente acusada de aist6rica pelos que aceitam uma visio materialista dialética da His- {6ria, porque ela parece nos situar antes do ponto em que ‘Marx comegou: tateando através de um nevoeito de hipé= teses ut6picas, de sistemas filoséficos que podem ser cer tos ou errados (niio hé como dizer), sistemas que expli- cam desenvolvimentos histéricos coneretos por categorias @ priori de pensamento. O materialismo histérico, a0 con- trio, tentou explicar o “conhecer” pelo “ser”, © nao vice-versa, Mas existe uma terceira alternativa ainda nfo ten- tada; podemos desenvolver uma visio materialista da His- tria, baseada no proprio sexo. ‘AS primeiras te6ricas feministas foram, para_uma visio materialista do sexo, 0 que Fourier, Bebel e Owen foram para uma visio materialista das classes. De modo eral, a teoria feminista tem sido tio inadequada quanto 8 primeiras tentativas feministas de corrigit 0 sexismo. Era de esperar que isso ocorresse. O problema é to vasto que, na primeira tentative, s6 a superficie poderia set examinada, deserevendo-se ‘apenas as desigualdades ‘mai aritantes. Simone de Beauvoir foi a nica que chegou perto de uma andlise definitiva — que talvez a tenha realizado, Sua penetrante obra O Segmdo ts Sexo — que 16 ‘apareceu recentemente, no inicio da década de cinglenta, para um mundo convencido de que o feminismo estava ‘morto — pela primeira vez tentou assentar o feminismo em bases hist6ricas. De todas as tedricas feministas, Simo- ne de Beauvoir & a mais completa e abrangente, ao relacio- nar o feminismo com as melhores idéias da nossa cultura. Pode ser que esta virtude também seja seu tinico defeito. Ela é quase que sofisticada demais, culta de- mais. Onde isto se torna uma deficiéncia — 0 que certa- ‘mente € ainda discutivel — é na sua interpretagio rigida- ‘mente existencialista do feminismo (perguntamo-nos 0 quanto Sartre teve que ver com isso). E fazemos isso em vista do fato de que todos os sistemas culturais, incli- sive existencialismo, sdo eles proprios determinados pelo dualismo sexual. Diz ela: 0 homem nunca pensa sobre si mesmo sem pensar no ‘Outro; ele vé 0 mundo sob o signo da dualidade, que ndo é, em primeira instincia, de cardter sexual. Mas, sendo diferente ‘do homem, que se constrdi como Mesmo, & certamente A ca. tegoria do’ Ontro que a mulher pertence; © Outro inclu & mulher, (Grifos da autora.) Talvez ela tenha ido Jonge demais. Por que postular como explicagio final o conceito bésico hegeliano da alte- ridade, © entio cuidadosamente documentar as. circuns- tncias biol6gicas e hist6ricas que empurraram a classe das “mulheres” em tal categoria, sem levar em conta uma ossibilidade muito mais simples e mais provével, ou seja, gue © dualismo bisico brotava do proprio sexo? Nao. é Nevessério postular categorias a prior! do pensamento ¢ da existéncia — como alteridade, transcendéncia, imanéncia — nas quais a Histéria passa entio a ser moldada. Marx © Engels descobriram que essas préprias categorias filo- s6ficas originavam-se da Historia, Antes de admit essas categorias, tentemos primeiro desenvolver uma andlise, na qual a propria biologi 8 prociagio — se encontra na base do dualismo, A su- osigio imediata do leigo, de que a divisio desigual dos sexos é “natural”, pode ser bem fundada, Nés ndo pre- cisamos, de imediato, enxergar além disso, Ao contrério, 7 ddas classes econémicas, as classes sexuais brotaram dire- tamente de uma realidade biol6gica: os homens e as mu- “heres foram criados diferentes, © no igualmente privile- giados. Contudo, como Simone de Beauvoir salientou, essa diferenca propriamente dita ndo necessitou do mesmo de- senvolvinento de um sistema de classes — a dominago de um grupo por outro — de que necessitaram as funcoes reprodutoras dessas diferencas. A familia biol6gica 6 um poder de distribuigio inerentemente desigual. A necess dade do poder que leva ao desenvolvimento de classes ori gina-se da formago psicossexual de cada individuo, de acordo com este desequilibrio basico, € nio, como Freud, Norman O, Brown e outros postularam — mais uma vez se excedendo — de um conflito irredutivel da Vida contra a Morte, de Eros versus Ténatos. ‘A janilia bioldgica — a unidade bisica de repto- ddugio homem/mulher/crianga, em qualquer forma de ‘rganizagio social — se caracteriza por estes fatos, se ‘no imutéveis, pelo menos fundamentais: 1) que as mulheres, através de toda a Hist6ria, ‘antes do advento do controle da natalidade, estavam a ‘mere constante de sua biologia — menstruagio, meno- pausa, e “males femininos”, de continuos partos dolorosos, amamentagio © cuidado com as eriancas, todos 0s quais fizeram-nas dependentes dos homens (seja irmin, pai, ‘marido, amante, ou cla, gover, comunidade em getal) ara a’ sobrevivéncia fisica. 2) que 0s filhos do homem exigem um tempo ainda maior para crescer do que os dos animais, sendo portanto indefesos e, pelo menos por um pequeno periodo, de- pendentes dos adultos para a sobrevivéncia fisica. 3) que a interdependéncia bésica mée/filho existiu de alguma forma em todas as sociedades, passadas ou presentes, e consegiientemente moldou a psicologia de toda mulher madura e de toda crianga. 4) que a diferenga natural da reprodusdo entre os sexos levou diretamente & primeira divisio de trabalho baseada no sexo, que esti nas origens de toda divisio posterior em classes econémicas e culturais © possivel- mente se encontra ainda na raiz de todas as castas (dis 18 étiminagio buseada no sexo © outras caacterseas bio- Togicamente determinadas, como a raga, ¢ Wade, ete), Estas contngécis biligies da fama humane no podem ser entendas como soimasanropotgios, Gua {uer um que observe os animals cnzand,reproduindose e euidando de seus foes terdifeuldads'om acer 8 linha da “rlatvdade cultura Pores fo imports

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