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‘rinsi2024, 16:51 Para que serve alégica? 17 DE Para que serve a logica? {ETEMBRO DE 2022 LOGICA Desidério Murcho Uma maneira esclarecedora de compreender o que é a légica e qual & a sua importincia & compreender primeiro 0 que é 0 raciocinio ¢ qual & a sua importancia, Ser aqui abordado sobretudo o raciocinio discursivo, que é onde a légica desempenha o seu papel mais Sbvio, mas nem todo o raciocinio é discursive. Quando reconhecemos um rosto humano, subimos um lance de escadas ou até quando caminhamos, a quantidade de raciocinio exigida é impressionante, Contudo, esta quase inteiramente fora do nosso controlo. Fazemo-lo, demoramos anos a aprender a fazé-lo desde o tempo em que gatinhavamos, mas nao sabemos exactamente como 0 fazemos, De modo que ser abordado aqui sobretudo 0 raciocinio discursivo: o tipo de raciocinio que fazemos usando uma linguagem. A matemati a filosofia, a historia e a arqueologia fazem-se com raciocinio discursivo; e 0 raciocinio quotidiano também é em parte discursivo, a ciéneia, © raciocinio discursivo é uma tentativa de provar uma conclusdo com base numa ou mais premissas — ¢ 0 que nfo ¢ discursivo nao anda longe disto, se bem que neste caso nifo faga muito sentido falar literalmente de premissas ¢ conclusdes. Toda a gente raciocina todos os dias, mesmo sem uma compreensio robusta do que é raciocinar, nem de como se raciocina bem. E é aqui que entra a logica. O objectivo desta area de estudos é ter uma compreensio mais robusta do raciocinio, e desenvolver instrumentos para distinguir o bom do mau raciocinio, No iltimo século, o progresso da légica tem sido notavel, apesar de ser ainda em grande parte mal compreendida, sobretudo porque ¢ muito mais fécil compreender aplicagdes especificas da légica, como o raciocinio estatistico, e também porque nao temos uma dni logica completamente geral que seja consensual entre os especialistas — apesar de a logica classica e as suas extensdes serem talvez as mais promissoras. Sem raciocinio discursivo, ficariamos reduzidos ao que conseguimos saber s6 pela observasio directa, Nao saberiamos o que aconteceu ha sessenta e seis milhdes de anos que eliminou a maior parte da fauna do planeta, e ndo saberiamos que a dgua é feita de oxigénio e hidrogénio. Para saber a maior parte do que queremos saber precisamos de raciocinar, ou seja, precisamos de tentar chegar a uma concluso com base numa ou mais premissas, porque no temos uma maneira mais directa de descobrir essa conclusao. E por isso que 0 raciocinio ¢ importante, e, consequentemente, é por isso que a légica & importante, 0 raciocinio discursive ora é dedutivo, ora indutivo. Até muito recentemente, s6 o primeiro estava apropriadamente compreendido (ainda que se tratasse apenas de alguns dos seus tipos), porque nao tinhamos instrumentos matematicos para aplicar adequadamente ao raciocinio indutivo — instrumentos do género dos que temos no caso da dedugao desde as, primeiras décadas do século XX. Mas qual é exactamente a diferenga entre 0 raciocinio dedutivo ¢ o indutivo? Hi algumas diferengas eruciais, mas a mais fundamental é que 0 raciocinio dedutivo exclusivamente linguistico, ao passo que o indutivo nfo o é. Eis um exemplo de uma dedugao valida: nitpslerticanarede.comes_conhecimentologia.htm! ane. ‘rinsi2024, 16:51 Para que serve alégica? 8 Logo, no nasceu em Tiradentes. Para saber que esta dedugao é valida, nao precisamos de saber quem é a Ursula, nem onde nasceu ela; nao precisamos de saber onde fica Tiradentes, nem se é ou nao uma localidade chilena, Tudo © que temos de conhecer é as condigdes de verdade das trés afirmagées, ¢ a maneira como estdo organizadas, Apesar de a maior parte das pessoas serem incapazes de 0 descobrir por si, sem ajuda matemitica, esta dedugdo é valida — porque qualquer condigao de verdade na qual as duas premissas sejam verdadeiras é também uma condigio de verdade em que a conclusio é verdadeira, Eis um pequeno arrazoado para mostrar por que raziio isto € assim: Suponha-se que a conclusdo é falsa, Tlé alguma condigao de verdade na qual as duuas premissas sejam verdadeiras, dada essa suposigd0? A resposta ¢ que ndo hd. Nao ha, porque s for falsa, entdo ela nasceu em Tiradentes. Contudo, se a primeira premissa for verdadeira, ela nasceu no Chile, 0 que significa que a segunda premissa & afinal de contas falsa. E caso suponhamos agora que a segunda premissa & verdadeira, isso significa que a primeira € falsa, porque nesse caso ela nasceu em Tiradentes, mas no no Chile, ¢ consequentemente nao é verdadeiro que se ela nasceu naquel naquele pais. a conclusa cidade, nasceu Eis uma dedugo mais simples, que qualquer pessoa consegue ver que é valida, mesmo que nao tenha formagio légica: ‘Ursula e Marguerite sao cineastas. Logo, Ursula ¢ cineasta, Neste caso, é completamente dbvio que qualquer condigdo de verdade na qual a premissa seja verdadeira é também uma condigdo de verdade na qual a conclusio sera verdadeira. E sabemo-lo sem precisarmos de saber quem so aquelas pessoas, nem se so realmente cineastas. E isto que significa dizer que a dedugdo é uma forma meramente linguistica de raciocinio: tudo o que precisamos de conhecer para saber que uma dedugao é valida, ou invalida, é as condigdes de verdade de todas as suas afirmagées. Isto nao basta, contudo, no caso do raciocinio indutivo. Neste caso, 0 conhecimento linguistico nao é suficiente; precisamos também de conhecimento de fundo geral para determinar se as premissas de um raciocinio indutivo apoiam, ou nao, a conclusio, Sera dado a seu tempo um exemplo deste tipo de raciocinio, Para jé, € importante compreender o proprio conceito de condigdo de verdade, Considere-se a afirmagao “Hé extraterrestres azuis inteligentes”. Nao sabemos se esta afirmagao & verdadeira, ou se seré falsa. Talvez seja verdadeira, talvez seja falsa, Nao sabemos. Nao somos omniscientes; hd um niimero indefinido de afirmagdes verdadeiras que nao sabemos que so verdadeiras, e também um nimero indefinido de afirmagGes falsas que ndo sabemos que so falsas. E 0 que hé de terrivel quanto a nés é que ha muitas afirmagGes falsas que muitas pessoas acreditam que so verdadeiras sem provas adequadas, e também muitas afirmagées verdadeiras que muitas pessoas acreditam que so falsas sem provas adequadas Voltaremos a este tema. Para ja, note-se que no sabemos se a frase “Hi extraterrestres azuis inteligentes” & verdadeira ou falsa. Contudo, ha algo que sabemos: sabemos que se ha extraterrestres azuis inteligentes, ento aquela afirmagdo é verdadeira; e sabemos que aquela afirmagao é falsa se no existirem tais seres. Por outras palavras, nao sabemos qual é o valor de verdade daquela nitpslerticanarede.comes_conhecimentologia.htm! ana ‘rinsi2024, 16:51 Para que serve alégica? seja falsa. Assim, as condigdes de verdade de uma afirmagio sdo aquelas condigdes nas quais essa afirmagao € verdadeita, e as outras condigdes nas quais é falsa. O raciocinio dedutivo & meramente linguistico precisamente nesse sentido: quando é vilido, © nosso conhecimento das condigdes de verdade das suas afirmagdes ¢ suficiente para saber que no tera concluso falsa caso todas as premissas sejam verdadeiras. De notar que em légica e filosofia a palavra “valido” é entendida num sentido especializado, Quase todos os cientistas ¢ leigos usam esta palavra de maneira diferente. E um pouco como velocidade e aceleragao, na fisica, ou massa e peso. A maior parte das pessoas, a excepgio dos fisicos, usam os dois pares de palavras como se quisessem dizer aproximadamente 0 mesmo, No seu sentido especializado, contudo, aqueles dois pares de palavras no querem dizer 0 mesmo — ¢ a fisica nem sequer di os primeiros passos a menos que distingamos cuidadosamente a velocidade da aceleragao ¢ a massa do peso, O mesmo acontece com o conceito de validade. No seu sentido especializado, em légica e filosofia, a validade é uma caracteristica do raciocinio dedutivo, e no é 0 mesmo que a verdade. Num dado raciocinio, as suas afirmagGes sdo verdadeiras ou falsas, mas no so validas nem invélidas, porque a validade diz respeito ao raciocinio constituido por essas afirmagdes. Por outro lado, o proprio raciocinio nao é verdadeiro nem falso, mas antes vilido ou invélido, porque a verdade e a falsidade sao caracteristicas de afirmagées, ¢ nao de raciocinios. E um pouco como ser numeroso. Os indianos so numerosos, porque hé muitos, mas nenhum indiano individual & numeroso, porque essa é uma caracteristica do conjunto dos indianos, e nao dos indianos individuais, Simetricamente, o conjunto dos indianos nao tem cérebro, que é uma coisa que todos os indianos certamente tém. S6 porque todos os membros de um conjunto tém uma dada caracteristica, isso ndo significa que o conjunto tenha também essa caracteristica, nem vice-versa, De modo que quando as pessoas falam de raciocinios verdadeiros ou de afirmagdes validas, isso significa que nada praticamente sabem de légica, Sdo como criangas perdidas na floresta, e nem tém disso consciéncia. A validade, pois, é © que temos num raciocinio quando as suas afirmagdes esto organizadas de tal mancira que no hé condigdes de verdade nas quais a conclusio seja falsa, caso todas as premissas sejam verdadeiras. E esta caracteristica do raciocinio dedutivo que nos permite descobrir o que nio sabfamos, com base no que jé sabemos. Assim, se uma pessoa souber que Ursula ndo nasceu no Chile, e se souber também que se ela nasceu em Tiradentes, nasceu no Chile, essa pessoa, caso saiba raciocinar bem, consegue descobrir algo de novo acerca de Ursula: que nao nasceu em Tiradentes. Contudo, a validade ndo é suficiente para que tenhamos um bom raciocinio dedutivo. Pelo menos duas outras condigdes sio necessirias — condigdes que serdo abordadas a seu tempo. Contudo, note-se que a validade é a tinica condigao estritamente logica, no sentido de ser a ‘nica condig&o para a andlise da qual temos instrumentos matematicos. As outras duas condigdes caem fora do ambito da ligica num sentido estrito, matemético — ainda que fagam parte da ligica, concebida de maneira abrangente como um instrumento geral para examinar 0 raciocinio, concepgao esta da légica que a aproxima sobremaneira, ¢ ainda bem, de uma drea da filosofia conhecida como “teoria do conhecimento” ou “epistemologia”. F ébvio que alguns raciocinios perfeitamente validos so apesar disso bastante desastrados, porque tém premissas falsas. £ dedutivamente vélido concluir que Aristételes nasceu em Portugal das premissas de que 1) ou nasceu na Grécia ou em Portugal ¢ 2) ndo nasceu na nitpslerticanarede.comes_conhecimentologia.htm! ana ‘rinsi2024, 16:51 Para que serve alégica? verdadeiras; a validade nao basta. Por outro lado, sem validade, as premissas verdadeiras nao fazem seja 0 que for para provar que a conclusao é verdadeira. Precisamos tanto da validade como de premissas verdadeiras para chegar a uma conclusio verdadeira, O raciocinio & sélido quando & ao mesmo tempo vélido e todas as suas premissas sdo verdadeiras. Todas as dedugGes sélidas tém conclusdes verdadeiras. Este & 0 conceito semitécnico de solidez. Porém, como sabemos que as premissas sio de facto verdadeiras? Como deveria ser evidente, isso depende das premissas. Talvez sejam acerca de planetas e estrelas; nesse caso, precisamos de astronomia, Ou talvez sejam acerca da depressao; nesse caso, precisamos de psicologia ou psiquiatria. E quase certo que as nossas premissas, a menos que sejam as mais ébvias afirmagdes do aqui-e-agora, serdo em si conclusdes de outros raciocinios, sejam eles dedutivos ou indutivos. E esta caracteristica que nos da uma espécie de arvore inferencial, na qual varios fragmentos de raciocinio se combinam de varias maneiras para nos permitit chegar a uma conclusio geral. E como ja se sugeriu, em quase todos os casos, com a distinta excepgo da propria logica e da matemtica, combinamos varios ra indutivos para tentar saber seja o que for que queremos saber. Nem a indugo por si, nem a dedugo, nos levam muito longe. Precisamos de ambas — excepto, é claro, na matematica e na légica, onde todos os resultados técnicos so puramente dedutivos, ainda que mesmo ai se encontre um imenso pano de fundo de pressupostos que, afinal, so também indutivos. ciocinios dedutivos e Foram mencionadas trés condigdes para que um raciocinio seja bom, ¢ sé se falou até agora de duas delas: a validade e a verdade das premissas. Por que raziio nfo ¢ isto suficiente? final, todos os raciocinios s6lidos t8m conclusio verdadeira. E 0 que se quer € isso mesmo: conclusGes verdadeiras. Ou ndo? io Bem, em rigor, nao é isso que se quer. Queremos também saber que essas conclusdes verdadeiras. E porque no somos omniscientes, ser verdadeiro nao significa que sabemos que € verdadeiro, Ha muitas afirmagdes verdadeiras que acreditamos erradamente que sao falsas, e vice-versa. $6 porque uma afirmagao é verdadeira, isso ndo significa que sabemos que o &. Para sabermos que uma afirmagao é verdadeira precisamos de provas, ¢ 0 raciocinio é uma maneira de tentar provar que uma dada conclusao é verdadeira. Nao ha outra mancira apropriada de tentar descobrir se uma dada conclu: algo que j4 acreditamos que sabemos. Considere-se 0 seguinte raciocinio, que nao & propriamente genial: 6 verdadeira a ndo ser comegando com Ha extraterrestres azuis inteligentes. Logo, ha extraterrestres azuis inteligentes, A primeira surpresa aqui é que esta ¢ uma dedugfo valida, porque nao ha condigdes de verdade na qual a premissa seja verdadeira, apesar de a conclusdo ser falsa, Mas isso s6 & assim porque a premissa é igual a conclusio. O raciocinio é viciosamente circular, é claro, mas isso nao quer dizer que nio seja valido, porque a validade, no sentido especializado da logica, no quer de modo algum dizer que o raciocinio & bom. E que dizer da solidez? Aquele raciocinio é sélido? Bem, se houver extraterrestres inteligentes azuis, o raciocinio ¢ s6lido, porque é valido € porque, nesse caso, a premissa sera verdadeira. Contudo, é ébvio que somos incapazes de usar este raciocinio para descobrir se a conelusio é verdadeira, simplesmente porque teriamos de saber de antemdo que a premissa é verdadeira — mas a premissa é a mesma afirmagdo que encontramos na conclusio. De modo nitpslerticanarede.comes_conhecimentologia.htm! ana ‘rinsi2024, 16:51 Para que serve alégica? Assim, como se vé agora claramente, a solidez nao é suficiente para que um raciocinio seja bom. E também necessirio que o raciocinio nao seja circular. Ora, este é um conceito epistémico, no sentido em que diz respeito ds nossas maneiras de tentar descobrir coisas e saber coisas. Para descobrir algo que ainda nao sabemos, precisamos de comegar por algo que j4 sabemos. Contudo, 0 conceito de conhecimento é enganador, porque tem um pé fora do nosso controlo, e outro perfeitamente sob 0 nosso controlo, Precisamos de ter cuidado ao entrar nestas fguas, porque muitas pessoas pretendem falar e escrever acerca do conhecimento sem se darem conta de que, afinal de contas, nao esto falando do conhecimento. E 0 que € 0 conhecimento, afinal de contas? Bem, seja o que for que se possa dizer, nao é certamente o mesmo do que a verdade, porque ha muitas afirmages verdadeiras que desconhecemos. E 0 conhecimento nao é também seja 0 que for que por acaso pensamos que € conhecimento, porque nao somos omniscientes: em muitos casos, acreditamos que sabemos, mas ndo sabemos; estamos enganados. Para que consigamos saber que a Terra esté parada, a Terra precisa de estar parada, Se a Terra niio estiver parada, nao sabemos que esta parada, ainda que pensemos que sabemos que o est Neste caso, temos essa crenga, mas estamos enganados. Isto é 0 que em filosofia e linguistica & conhecido como “a factividade do conhecimento”: podemos acreditar erradamente que sabemos que a Terra esté parada mas, a menos que a Terra esteja parada, no o sabemos. F isto que significa dizer que o conhecimento tem um pé fora do nosso controlo; esse pé é a verdade. Para que realmente saibamos seja o que for, em contraste com a crenga falsa de que sabemos, a verdade tem de estar envolvida — e a verdade esta largamente fora do nosso controlo. Se hé ou nio extraterrestres inteligentes azuis, isso ¢ algo que esté fora do nosso controlo. Se hd, a afirmagio em questio € verdadeira, e é falsa caso contririo, A verdade, felizmente, esta na sua maior parte fora do nosso controlo. (Porqué “na sua maior parte”? Porque em alguns casos temos controlo sobre o que é verdadeiro: quando uma pessoa corre, a afirmagao “Ela esté correndo” é verdadeira, porque ela esta correndo: foi cla que torou essa afirmagao verdadeira.) De modo que o conhecimento tem um pé na verdade, que é algo que esta em grande parte fora do nosso controlo. Contudo, o conhecimento nao diz respeito apenas a verdade. Talvez algumas pessoas acreditem que ha extraterrestres inteligentes azuis, mas ndo o sabem efectivamente, ainda que cles existam. Para saber realmente algo é preciso ter provas; a verdade nao chega. E 0 que sao as provas? E a nossa maneira de tentar descobrir a verdade. Uma prova é seja o que for que conta apropriadamente a favor de uma dada conelusio. Ver uma borboleta pousada na nossa pea é uma prova suficientemente boa, em condigdes ‘comuns, de que esta de facto uma borboleta pousada na nossa pemna. Mas ouvir vozes que mais ninguém ouve, quando uma pessoa sobe 4 montanha e faz jejum durante dois dias, nao é uma prova suficientemente boa de que essa & a voz de Deus. Em epistemologia, é comum usar o termo “Justificago” para falar de provas, mas o que hi de importincia capital a compreender aqui, seja qual for o termo que se use, é que ter uma boa prova ou justificagao de uma coisa qualquer nao implica que isso é realmente verdadeiro; as provas nao sio factivas, ao contrario do conhecimento, Voltando ao raciocinio, este & 0 nosso principal instrumento de descoberta da verdade, Sem io, a observagdo seria fitil. Quando observamos certos resultados num laboratério, racioci nitpslerticanarede.comes_conhecimentologia.htm! sna ‘rinsi2024, 16:51 Para que serve alégica? conseguimos ver, provam essas conclusdes. Nao ha conhecimento, no sentido declarative em que sabemos que as baleias nao sio peixes, sem raciocinio discursivo de algum tipo, e este & 0 pedago que esti sob o nosso controlo, O conhecimento declarativo exige prova ou justificagdo, ¢ isto envolve raciocinio discursivo. io discursivo estd sob 0 nosso controlo, o que significa que conseguimos raciocinar cuidadosa e responsavelmente, ou itresponsavelmente, que é a alternativa de eleigo da maior parte dos terriqueos. racioci Agora que clarificémos um pouco o conceito de conhecimento, estamos em condigdes de retomar o tema e explicar o que ha de errado no raciocinio viciosamente circular, Ainda que seja s6lido, este tipo de raciocinio ¢ evidentemente deficiente. Mas porqué? 14 aqui dois factores em jogo, e s6 um deles & dbvio desde o inicio. Hf ébvio desde logo que nao ha maneira alguma de provar adequadamente uma afirmago se comegarmos por ela ou por uma qualquer equivalente verbal. Eis um exemplo deste iiltimo caso: Nenhuma sociedade realmente justa carece de igualdade. Logo, nao ha justiga sem igualdade. Neste caso, a conclusio no é exactamente a mesma afirmagdo que se encontra na premissa, mas 0 racioe duvidosa, considera que também a premissa o é io & 4 mesma viciosamente circular, porque quem considera a conclusio Porém, qual é o segundo factor aqui em jogo que no é assim tio ébvio? Trata-se de um factor tio crucial, que nao é talvez. um exagero afirmar que explica por si o sucesso da ciéncia. Considere-se a diferenga entre as seguintes duas situagSes: 1. Casualmente, uma pessoa olha pela janela ¢ vé 0 que parece alguém que caminha naquela manha muito fria © chuvosa, 2, Casualmente, uma pessoa olha pela janela e vé 0 que parece alguém a voar como 0 Super- Homem. No primeiro caso, a prova visual casual é perfeitamente suficiente para tragar a conclusio de que alguém esta efectivamente a caminhar la fora, Contudo, precisamente a mesma prova nio é suficiente no segundo caso. Porqué? Porque a conclusdo a tragar no segundo caso & bastante implausivel, ao passo que, no primeiro, a conclusio & comum até mais nao, Isto significa que ndo avaliamos as provas no vacuo; avaliamo-las contra um pano de fundo de crengas prévias. Sempre que uma prova parece apontar na direcgdo de uma conclusio muitissimo implausivel, exigimos mais e mais provas plausiveis, to perto de serem incontestaveis quanto o conseguirmos. O elemento indutivo aqui é ébvio, e quem j4 conhece © raciocinio indutivo bayesiano esta em casa, Voltaremos ao tema daqui a pouco; para jé, importa persistir no raciocinio dedutivo e no papel crucial que o conceito de plausibilidade prévia desempenha também aqui. Numa palavra, a terceira condi¢o para que um raciocinio dedutivo seja bom, além da validade e da verdade das premissas, é esta: as premissas precisam de ser mais plausiveis do que a conclusao. Esta terceira condigdo vai além de bloquear o raciocinio viciosamente circular; ajuda além disso a explicar por que raziio comega por ser viciosamente circular. E é-o porque para descobrir algo é preciso comegar pelo que é mais plausivel do que o que queremos descobrir. Imagine-se que alguém esta a tentar descobrir se h4 oxigénio em Marte. E simplesmente nitpslerticanarede.comes_conhecimentologia.htm! ena ‘rinsi2024, 16:51 Para que serve alégica? as aceitamos para tragar essa concluso, por que nao poupar trabalho ¢ aceitar também que ha oxigénio em Marte desde logo? Isto significa que ha uma espécie de principio epistémico geral com respeito ao raciocinio probatério, ou seja, 0 raciocinio que visa descobrir algo que ainda ndo sabemos. O prinefpio & que para o fazermos adequadamente precisamos de comegar com premissas que sejam mais plausiveis do que a conclusio que estamos a tentar tragar. Repare-se que este principio epistémico aplica-se apenas ao raciocinio probatério, e nem tudo o que se apresenta como raciocinio tem esse aspecto probatério — em alguns casos, ndo pretendemos encontrar provas a favor de uma dada conclusdo que ainda desconhecemos, mas antes explicar por que razo é verdadeira uma conclusio que jé sabemos que é verdadeira. E por vezes este tipo de tarefa & explicitada na forma de um raciocinio dedutivo, ainda que neste caso nao se trate de modo algum de raciocinio probatério. Eis um exemplo. Suponha-se que uma crianga vé gua fervendo pela primeira vez, € pergunta por que razio esta fervendo. Quem Ihe responde tenta entdo explicar-Ihe as leis da natureza relevantes que esto em operacio naquele fendmeno, e essa explicagiio é susceptivel de ser entendida como um raciocinio dedutivo: isto ¢ aqueloutro ocorre; logo, a Agua esta fervendo. Obviamente, a conclusio é muito mais dbvia e plausivel do que as premissas, e ndo apenas para a crianga, Porqué? Porque basta olhar para ver a égua fervendo. Mas ndo se consegue olhar e com esse simples gesto ver que as leis da natureza so assim e assado. As premissas usadas so menos plausiveis do que a conclusio — e nao hd problema algum com isso, porque este nfo € um caso de raciocinio probatério, mas antes de raciocinio explicativo. Eis outro exemplo de raciocinio que nao é probatério, Em logica conseguimos provar, por exemplo, que a afirmagao “Ursula é grega ou nao” é uma verdade lgica, usando premissas que so menos dbvias do que esta afirmagao, Isto ocorre porque nao estamos a tentar descobrir se aquela afirmagao é verdadeira; isso ja nés sabemos. O que estamos a tentar descobrir é se conseguimos provar que é verdadeira usando principios légicos mais fundamentais. Esta terceira condigio do raciocinio bom —a que vou chamar “cogente”, a partir de agora — é bastante mais ébvia quando raciocinamos para tentar persuadir alguém. Um argumento, nao no sentido de uma disputa irracional, mas antes no sentido légico, é um raciocinio que visa persuadir alguém. Ora, se uma pessoa esté a tentar persuadir outra de uma maneira apropriada, o que é muito diferente de manipulé-la, ter de comegar de premissas que aquela pessoa considera plausiveis; de outro modo, ela limitar-se-d a rejeitd-las. E se a pessoa esti a tentar persuadi-la de que a conclusio é verdadeira, isso significa que a outra nao a considera plausivel, pelo menos partida, De modo que € preciso partir de premissas que quem no aceita a conclusao considere mais plausiveis do que a conclusio. Porém, o que 6, afinal, a plausibilidade? E um juizo quotidiano, ¢ bastante impreciso, de probabilidade. A plausibilidade & o que parece mais ou menos provavel a alguém, ¢ diferentes pessoas podem fazer diferentes juizos de plausibilidade. A plausibilidade & fortemente subjectiva, ao contrario da verdade e da validade. Porém, nao é irredutivelmente subjectiva, porque se consegue provar muitas afirmagées inicialmente implausiveis. Por exemplo, se alguém afirmar que dobrar cinquenta vezes uma folha comum de papel, que tem cerca de 0,1 milimetros de espessura, tem como resultado uma espessura de mais de cem milhdes de quilémetros, isso & muitissimo, muitissimo implausivel. Contudo, consegue-se nitpslerticanarede.comes_conhecimentologia.htm! ma ‘rinsi2024, 16:51 Para que serve alégica? Na verdade, o préprio fito da argumentagdo, quando argumentamos cooperativamente para tentar descobrir a verdade, é fazer diminuir o fosso hiante entre o que a outra pessoa as razodveis considera plausivel e o que nés consideramos plausivel. Quando duas pe: discordam quanto a uma questio, precisam de dar um ¢ outro passo atras até conseguirem descobrir um terreno comum, a partir do qual possam entio tentar descobrir que conclusao retirar das premissas que ambos consideram plausiveis, Evidentemente, que ndo ¢ isto que os terréqueos tendem a fazer, em geral, quando argumentam; em vez de tentarem descobrir a verdade, & muito comum que as pessoas tentem manipular as outras, engané-las e marear pontos numa guerra verbal. Trata-se de um exercicio imoral, e & uma pena que em vez de ser publicamente condenado seja, ao invés, desfrutado como um entretenimento doentio, mais ou manos como ver touradas. © dolo epistémico é muito comum entre terriqueos. Raciocinar bem nio é coisa natural no nosso planeta. Passando agora a indugdo, trata-se de um tipo muito diferente de raciocinio, porque ndo ¢ ‘meramente linguistico. Para saber sc um dado raciocinio dedutivo é valido ou no, exige-se apenas o exame cuidadoso das condigdes de verdade de todas as suas afirmagées; 0 conhecimento de fundo sobre o mundo em geral é irrelevante. Porém, no caso do raciocinio indutivo, o conhecimento de fundo sobre o mundo é crucial, Porque a dedugio é tio diferente da indugo, é hoje em dia comum reservar a palavra “validade” para a dedugo, ao contrario do que alguns autores faziam hi umas décadas. Isto é sé uma convengdo. Se uma pessoa falar de validade indutiva, tera de dizer que é um tipo muito diferente de validade. Hoje em dia é comum reservar a palavra “validade” para a dedugo, e falar acerca de premissas que apoiam indutivamente a conclusdo, no caso da indugdo. Para ver claramente a diferenga mais fundamental entre a dedugdo e a inducdo, considere-se © raciocinio obvio que conclui que a probabilidade de sair caras é de 1/2, depois de Ursula Jangar uma moeda ao ar: Ursula langou uma mocda ao ar Logo, hé uma probabilidade de cinquenta por cento de a moeda sar caras. Este no é um bom raciocinio indutivo, por razSes que se tomnardo visiveis daqui a pouco, mas é um ponto de partida razoavel. Por agora, note-se que dependemos do conhecimento de fundo para ajuizar se o raciocinio esta pelo menos na direcgo certa. Por que nao retirar a conelusao de que a moeda iré ficar de pé? Ou que ira ficar parada no ar? Ou explodir? Ou simplesmente transformar-se num clefante pirpura com asas? Todas estas hipoteses remotas sdo tao boas como quaisquer outras, acerca do mundo, e pensarmos ao invés exclusivamente em condigdes de verdade, Recorde- se que, para saber se uma dedugdo € valida, basta pensar nas condigdes de verdade: ha ¢ ignorarmos 0 conhecimento de fundo que temos alguma condicdo de verdade, de todo em todo, ainda que completamente louca e rebuscada, na qual as premissas sejam todas verdadeiras ¢ a conclusao falsa? Nao ¢ preciso saber seja 0 que for acerca do mundo em geral; a competéncia linguistica é suficiente, No caso da indugdo, contudo, é claro que essa competéncia nao é suficiente. A conclusio indutiva de que a moeda tem uma probabilidade de cinquenta por cento de sair caras no melhor do que a conclusdo de que ira transformar-se num elefante purpura com asas, caso so se tenha em consideragdo as condigdes de verdade daquelas afirmagdes, Por mais forte que nitpslerticanarede.comes_conhecimentologia.htm! ana ‘rinsi2024, 16:51 Para que serve alégica? indutivo nao é dedutivo — o que ndo é uma surpresa assim téo grande. Os padrées dedutivos sio simplesmente demasiado grosseiros; é como tentar ver bactérias a olho nu. Quando temos dois raciocinios indutivos, mesmo que um seja muito melhor do que o outro, ambos so dedutivamente invélidos, por igual. O ponto importante aqui € que isso ¢ irrelevante. Voltando um pouco atras, por que razo 0 raciocinio indutivo da moeda nao particularmente bom? Porque é 0 que seria apropriado chamar uma “indugo preguigos: eo facto de parecer que este género de indugdes so razoiveis é talvez um dos factores cruciais que explica por que razdo os terréqueos demoraram tanto tempo a d obrir a ciéncia, e por que razo ainda hoje a maior parte das pessoas tém dificuldade em compreender as caracteristicas mais basicas do raciocinio cientifico, que é crucialmente indutivo. Suponha-se que alguém afirma que Ursula comprou a sua moeda numa loja de truques de magia. Subitamente, no parece uma boa ideia inferir que a moeda tem cinquenta por cento de hipoteses de sair caras. Talvez a moeda esteja viciada, de modo que sai coroas a maior parte s. Como se vé, o conhecimento de fundo é 0 corago da questo quando se trata do io indutivo. das vez racioci Assim, um raciocinio indutivo promissor ira incluir a premissa de que a moeda nao parece viciada, Contudo, mesmo assim a indugdo seria muito preguigosa, Uma boa indugao, neste caso, exige que se lance a moeda ao ar pelo menos umas dezenas de vezes e se registe os resultados, para entdo se inferir indutivamente que a probabilidade de sair caras & de cinquenta por cento. Esta é uma exigéncia crucial da indugdo sélida, porque 0 mundo nao & perfeitamente uniforme. Nao ha qualquer uniformidade perfeita na natureza; hé algumas uniformidades ou regularidades, mas estas existem contra um pano de fundo de excepgdes, irregularidades e ndo-uniformidades. O raciocinio indutivo intuitivo, preguigoso, esté quase sempre errado precisamente devido a este aspecto: os terréqueos tendem a esperar regularidades quando nao hé regularidades. Descobrir regularidades ¢ importante, ¢ € uma das principais misses da ciéncia, mas as regularidades genuinas sto muito dificeis de descobrir, O simples facto de uma coisa se seguir a outra no é suficiente para inferir que uma é um efeito da outra, ou sequer que ocorrem regularmente juntas. Desde que existe Terra, 0 Sol sempre nasceu, todos os dias, até hoje sempre no futuro é uma inferéneia indutiva terrivel. mas concluir que sempre iré nascer Para ver claramente a tentagao ilégica de pressupor regularidades quando nao ha boas razdes para o fazer, e para ver ao mesmo tempo como conhecimento de fundo é crucial, considere- se 0 seguinte raciocinio indutivo: Sete bolas foram retiradas de uma eaixa fechada que tinha oito bolas. Todas as bolas retiradas até agora so pretas. Logo, a dltima bola que falta é provavelmente preta. Esta previsio indutiva é na verdade terrivel, mas intuitivamente parece boa. E terrivel porque ainda nao temos suficiente conhecimento de fundo, Talvez se trate de bolas de um jogo que tem sete bolas pretas e uma branca. Nesse caso, a previstio segura é que a proxima bola sera branca, e ndo preta. Ou talver se trate de bolas usadas num jogo s6 com bolas pretas, caso em que a previsdo & que a proxima bola seré também preta, Contudo, sem conhecimento de fundo acerca daquelas bolas e da caixa, nao ha simplesmente qualquer boa previsio indutiva a fazer. Acontece apenas que no sabemos; é daqueles casos em que os sibios fazem silencio € 0s tolos concluem alegremente, nitpslerticanarede.comes_conhecimentologia.htm! ena ‘srinsi2024, 16:51 Para que serve a léica? que se baseiam em padrdes ébvios; em contraste, o bom raciocinio cientifico, indutivo, tem de por de lado os padrées faceis ¢ proceder activamente a experimentagao, para tentar descobrir padrées genuinos, Eis outro exemplo. Uma pessoa faz a sua vida na cidade onde vive, vai as compras, vai trabalhar ¢ vai a varios outros sitios da sua cidade. De vez em quando, vé um corvo preto. E parece-lhe que munca viu um corvo que ndo fosse preto. Tem ela dados suficientes para inferir bem indutivamente que todos os corvos so pretos? Claro que nao. Ela ira sentir essa tentago — esta é uma aposta segura. Os cérebros humanos funcionam dessa maneira. Contudo, ela ndo tem simplesmente dados suficientes para inferir indutivamente seja 0 que for desse género. Que teria ela de fazer? Isto & crucial para compreender o raciocinio indutivo solido, Bis uma lista de trés tarefas importantes que ela tem de levar a cabo para conseguir inferir indutivamente bem seja 0 que for acerca de corvos: 1, Observagao sistemética. A observagao casual, quotidiana, é quase completamente irrelevante. Bla tem de observar os corvos sistematicamente, 0 que significa ir procura deles, tentar observar 0 maximo de corvos que for praticavel, e em tantos sitios diferentes do mundo quanto possivel. Isto significa obviamente que as boas indugdes exigem cooperagdo; ela precisa de uma equipa de cientistas que a ajudem a observar corvos sistematicamente. Precisa de um programa cientifico de observacio de corvos. Preferencialmente, espathados por todo o planeta, Se s6 conseguir fundos pata fazer observagdes sisteméticas na Europa, entdo a hipétese em estudo diré respeito apenas aos corvos europeus, ¢ ndo aos corvos do mundo inte. 2. Procura de contra-exemplos. Ela precisa de procurar activamente corvos que ndo sejam pretos —e isto € exactamente o oposto do que fazemos intuitivamente, Nas nossas vidas diarias, em geral, reparamos apenas naqueles casos que parecem confirmar as nossas expectativas, ¢ rapidamente esquecemos ou nem sequer reparamos nos casos que so contrarios a essas expectativas. O raciocinio indutivo apropriado, pelo contrario, exemplos, simplesmente porque isso poupa-nos imenso trabalho, Encontrar um corvo que nao seja preto & suficiente para refutar a hipétese indutiva de que todos os corvos sao pretos. 3. Registos fidedignos. A meméria humana jd se sabe que & muitissimo falivel. Temos tendéncia para nos recordarmos de seja o que for que apresenta padres expectaveis, e para esquecer 0 que € contrario a esses padrées. A pressdo das expectativas é tio forte que temos até memarias inteiramente falsas, sé porque a meméria falsa est em harmonia com as nossas expectativas. Talvez aquela pessoa jé tenha visto um corvo que nio € preto no més passado, mas recorda-se dele como mais um corvo preto. uito sensivel a contra- Talvez ndo seja jé uma surpresa insistir numa quarta condigao para que aquela pessoa infira indutivamente bem seja o que for acerca da cor dos corvos: 0 conhecimento de fundo. Sabe ela jé alguma coisa de relevante para a indugdo acerca da cor dos corvos? Sim. A menos que tenha vivido numa caverna nos tiltimos milhares de anos em que os terraqueos andam por ai a matar-se uns aos outros, ela jé sabe que a cor dos animais no é, em geral, uniforme; ha sempre excepgdes. Animais albinos, animais que nascem com cores ligeiramente diferentes dos seus progenitores, ¢ todo o género de interferéneias ambientais na cor de um animal. Bem, sem essas variagdes, a teoria da evolugdo por seleego natural nem sequer di os primeiros passos. De modo que, na melhor das hipdteses, a conclusao indutiva seria que quase todos os corvos sao pretos, e nao realmente todos. (E, a propésito, os corvos no sio todos pretos, nem sequer quase todos.) Como se vé, 0 conhecimento de fundo acerca do mundo em geral é crucial no raciocinio . E por isso que & informative dizer que © raciocinio indutivo, e irrelevante no deduti nitpslerticanarede.comes_conhecimentologia.htm! soir ‘rinsi2024, 16:51 Para que serve alégica? encontra sempre condigdes de verdade na qual todas as premissas so verdadeiras e a conclusao falsa, © ponto principal é antes que num bom raciocinio indutivo é muitissimo improvaivel que as suas premissas sejam todas verdadeiras ¢ a sua conclusao falsa. Para coneluir esta brevissima viagem por alguns dos importantes ensinamentos que a légica tem a oferecer, vale a pena mencionar duas caracteristicas sociais do raciocinio. A primeira ja foi sugerida, quando se viu que a observagdo casual é quase sempre completamente irrelevante como base do raciocinio indutivo cogente. Precisamos de observagdes sisteméticas, ou seja, de um programa cientifico de observagdes. Porém, isto nao é o tipo de coisa que uma pessoa seja capaz de fazer sozinha; é preciso ter observadores fidedignos, com registos também fidedignos. O bom raciocinio indutivo é profundamente social. Ora, a dificuldade é que os terraqueos so agentes sociais epistémicos terriveis. Um bom agente social epistémico, responsavel, nunca afirmaria saber para ganhar pontos, as custas da verdade ¢ da prova apropriada. Porém, isso é exactamente 0 que os terraqueos esto concebidos por natureza para fazer: para mentir e enganar e iludir, a caminho da fama e do poder. E isto s6 assim porque compensa, E compensa porque os terraqueos so, regra geral, terrivelmente crédulos. E muito mais provavel que um ser humano aleatério aceite uma ideia s6 porque a maior parte das pessoas que 0 rodeiam a aceitam, ou porque as pessoas ima ideia Ihe for apresentada como uma conclusdo apropriada de um conjunto de premissas muito plausiveis. prestigiadas a aceitam, do que se essa mesmis E esta é a segunda caracteristica social do raciocinio: para a maior parte das pessoas, é mais facil acreditar s6 porque os outros acreditam do que acreditar porque alguém Ihes apresentou boas provas cuidadosamente. Ei este aspecto muitissimo desafortunado do perfil epistémico humano que é responsavel por tanto sofrimento, ignordncia e obscurantismo geral, ao longo dos séculos, Eis um punhado de exemplos da credulidade humana: Considere se por momentos um europeu bem educado tipico de 1600 [...] Acredita que as bruxas podem invocar tempestades que afiundam os navios em alto-mar [...] Acredita em lobisomens, ainda que nao existam na Inglaterra [...] Acredita que 0s ratos sao espontaneamente gerados em amontoados de palhe [...] Acredita que um corpo assassinado iré sangrar na presenga do homicida. Acredita que ha um unguento que, se for esfregado num punhal que causou uma ferida, ind curar a ferida [...] Actedita que & possivel transformar metais vis em ouro, apesar de ter diividas de que alguém saiba como isso se faz. Acredita que a natureza abomina o vacuo [...] (David Wootton, The Invention of Science: A New History of the Scientific Revolution, Capitulo 1, §2) ‘Nao havia uma réstia sequer de provas a favor de qualquer uma destas crengas, que cram naquele tempo to comuns. Mas antes de se fazer pouco daqueles desgragados pobres de espirito ignorantes, é uma boa ideia parar uns segundos. Quem pensa que jé ultrapassémos esses tempos das trevas, 0 melhor & pensar outra vez. A homeopatia, a Terra plana, as conspiragdes contra as vacinas ¢ as crengas estatisticamente falsas diariamente sugeridas pelos meios de comunicagio nio so assim tdo diferentes, para j4 néo falar de crengas albergadas por motivos religiosos. Note-se que em 1600 qualquer pessoa poderia ter provado que aquelas crengas que Wootton relata cram falsas ou que careciam de prova — bastando em alguns casos fazer breves experiéncias. Por que nao o fizeram? Hé aqui trés factores relevantes. nitpslerticanarede.comes_conhecimentologia.htm! we ‘rinsi2024, 16:51 Para que serve alégica? a a deduzir. Porque sabemos como evitar que a nossa estupidez leve a melhor — afinal,é isso que se faz na melhor cigncia — este primeiro factor ndo seria uma noticia assim tio mé, no fossem 08 outros dois. 2. 0 segundo factor é a natureza social da crenga. A maior parte do que sabemos ou erradamente acreditamos que sabemos vem de outras pessoas, Cada um de nés é simplesmente incapaz. de verificar por si todas as afirmagdes ¢ todas as provas. Precisamos de apoiar-nos nos outros. Eu no tenho maneira alguma directa de provar que o Holocausto ocorreu, Nao tenho sequer acesso directo aos registos histéricos relevantes. Sé6 sei do Holocausto porque leio sobre isso nos livros. De novo, este factor nao seria tio mau se tivéssemos eédigos sociais estritos de conduta epistémica, de maneira que ninguém transmitisse crengas aos outros sem boas provas. Porém, no temos tais e6digos, em geral, ainda que os tenhamos na maior parte das ciéncias. O pior, contudo, & 0 terceiro factor. Os terraqueos tém uma doenga infecciosa terrivel: a ansiedade quanto ao estatuto, Querem sair- se bem, querem sentir-se superiores, querem parecer inteligentes, moralmente superiores e bem informados. Suponha-se que uma pessoa me diz que uma raiz antiga da floresta da Amaznia cura tudo, do canero & depressio, passando pela disfuncao eréctil, pela calvicie e pelas céries, mas s6 nos dentes da frente. Sinto-me algo humilhado porque a outra pessoa esta na posse de ‘uma informagao importante que eu nao tinha, De modo que na préxima oportunidade faco aos ‘outros o que os outros me fizeram @ mim: volto a contar o milagre. Ndo exactamente por acreditar nele, mas antes porque me faz sentir superior. Agora reitere-se 0 processo ¢ temos uma dificuldade terrivel em mios. No fim, quase toda a gente acredita na mentira, s6 porque quase todas as outras pessoas também acreditam. Em 1600 as pessoas acreditavam naquelas tolices que Wootton relata s6 porque as outras também acreditavam, e hoje acontece exactamente o ‘mesmo, mas com outras crengas. Espreitanos aqui de longe uma espécie de ironia eésmica, O conhecimento ¢ meramente instrumental, biologicamente falando. Algumas pessoas algo estranhas gostam realmente de explorar e de descobrir e de compreender s6 pelo gozo de o fazer, mas a maior parte das. pessoas tém outras maneiras de se divertir que ndo obrigam ao esforgo concertado de que precisamos para saber um pouco de logica, digamos, ou de astronomia. Contudo, quando 0 conhecimento é visto como meramente instrumental para a sobrevivéncia, é também visto como meramente instrumental para seja 0 que for que nos apetece, mesmo que de facto prejudique a sobrevivéncia, De modo que usar o conhecimento fingido é uma triste constante na historia da humanidade — constante que, na maior parte dos casos, matou pessoas, ou fé- las ficar doentes, pobres e miseraveis. Esta é a ironia césmica: procurar determinadamente 0 conhecimento, em vez.de o usar apenas instrumentalmente, tende a melhorar a vida humana, ao passo que tomé-lo como meramente instrumental tende a contribuir para piorar as nossas desgragas e tragédias. © que nos conduz de novo ao inicio. Muitas pessoas ao longo dos séculos estudaram a légica do raciocinio humano. Este é um tema fascinante em si, e seria bom que estas linhas 0 tenham pelo menos sugerido. Mas é também um instrumento de importancia capital para descobrir maneiras de melhorar a condigdo humana, Afinal, temos de raciocinar bem para fazer. E & a logica, entendida na sua maior amplitude, que nos ajuda nessa importante tarefa, De jério Murcho Copyright © 2026 criticanarede. ISSN 1749-8457 nitpslerticanarede.comes_conhecimentologia.htm! sana

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