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O Direito A Saude Da Pessoa Idosa
O Direito A Saude Da Pessoa Idosa
Introdução
Conclusões
Referências
Prefácio
No momento em que se completam duas décadas da promulgação da
Constituição da República, parece adequado refletir sobre sua efetividade. O que se
constata, em face de evidências, é que alguns dispositivos de grande alcance social
ainda se encontram em fase de implantação, quando não de mera “cogitação”. Pode-se
incluir no primeiro caso a proteção do idoso, tema que só recentemente mereceu atenção
do legislador. O mesmo, porém, não é possível dizer dos doutrinadores, na medida em
que poucos são os trabalhos que analisam os direitos das pessoas que estão na “terceira
idade”. Não obstante a edição do Estatuto do Idoso, há aspectos peculiares à situação
dos maiores de sessenta anos, que clamam por regulamentação adequada.
Neste contexto, de todo oportuno O direito à saúde da pessoa idosa, trabalho
que aprofunda a análise do aspecto que talvez melhor caracterize a vulnerabilidade das
pessoas que estão em processo de envelhecimento: a saúde.
Com relação aos idosos não basta afirmar a saúde como um direito fundamental.
É preciso destacar seu caráter prioritário e identificar as peculiaridades do atendimento à
saúde do idoso. Para tanto, a autora analisa os problemas que dificultam, quando não
comprometem inteiramente, o exercício desse direito pelo idoso, quer no âmbito
público, quer no privado. Considerando a natureza do direito em causa, é esclarecida e
justificada a intervenção do Estado nos planos de saúde, que se verifica não só mediante
ação regulamentadora, como por meio de outros instrumentos, como a revisão
contratual e a aplicação dos princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva
aos pactos celebrados entre idosos e instituições privadas prestadoras de serviços de
saúde. Paralelamente, é feito o debate sobre a prestação de serviço de saúde ao idoso
pelo SUS - Sistema Único de Saúde.
Na mesma linha, examinam-se o Estatuto do Idoso, tradutor por excelência do
princípio do melhor interesse do idoso, que emerge da Constituição Federal, e o Código
Civil Brasileiro em pontos específicos referentes aos direitos dos idosos. Indo além,
estudam-se as teorias da “reserva do possível” e do “mínimo existencial”, no que se
imbricam com a questão do idoso. Por fim, apontam-se os instrumentos para assegurar a
eficácia social dos direitos da pessoa idosa.
Embora a preocupação com a precisão técnica seja uma das marcas do trabalho,
este é enriquecido pelo talento da autora, Professora da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, com sólida formação acadêmica: doutora em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC- RJ, mestre em Direito pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
Encanta sobretudo o fato de uma jovem como a autora, Fabiana Rodrigues
Barletta, preocupar-se com a defesa do direito dos idosos, por tanto tempo preteridos,
como que a dar concretude ao princípio constitucional da solidariedade.
Escrito para fins de doutoramento, o presente trabalho transcende as expectativas
acadêmicas, tornando-se leitura necessária para todos os que se propõem a conhecer e a
estudar os direitos dos idosos. Além disso, O direito à saúde da pessoa idosa deve ser
incluído, sem dúvida, no rol de obras que contribuem para a efetivação desses direitos.
Heloisa Helena Barboza
Introdução
1
CAMARANO, Ana Amélia, KANSO, Solange e MELLO, Juliana Leitão e. Quão além dos 60 poderão
viver os idosos brasileiros? In: Os Novos Idosos Brasileiros: Muito Além dos 60? Organizadora:
CAMARANO, Ana Amélia. Rio de Janeiro: IPEA, 2004, p. 77.
2
DE FREITAS, Elizabeth Viana. Demografia e epidemologia do envelhecimento. In: Tempo de
Envelhecer: Percursos e Dimensões Psicossociais. Organizadores: PY, Ligia, DE SÁ, Jeanete Liasch
Martins, PACHECO, Jaime Lisandro e GOLDMAN, Sara Nigri. Rio de Janeiro: NAU, 2004, p. 21.
3
Dados sobre a população com mais de 60 anos por idade e sexo no censo demográfico de 2000. Fonte:
IBGE- Censo Demográfico.
4
CAMARANO, Ana Amélia. Envelhecimento da população brasileira: uma contribuição demográfica.
In: Tratado de Geriatria e Gerontologia. Organizadores: DE FREITAS, Elizabete Viana, PY, Ligia, NERI,
Anita Liberanesso, CANÇADO, Flávio Aluízio Xavier, GORZONI, Milton Luiz, DA ROCHA, Sônia
Maria. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002, p. 58.
5
CAMARANO, Ana Amélia, KANSO, Solange e MELLO, Juliana Leitão e. Quão além dos 60 poderão
viver os idosos brasileiros?, p. 103.
Ora, nada há que sustente, diante de avanços médicos em termos de tratamentos
curativos e paliativos, que o indivíduo deixe de gozar de saúde sem nada se fazer pelo
argumento de que “faz parte da velhice”. Se a medicina já se deu conta de que é
possível envelhecer e morrer em condições dignas de saúde, é papel do direito assegurá-
las na última etapa da vida da pessoa humana, pois, do contrário, haveria um
inconcebível atentado ao valor máximo de ordem constitucional que proclama sua
dignidade.
Todo o estudo desenvolvido encontra-se abalizado na normativa constitucional e
infraconstitucional que trata com especialidade da pessoa idosa. Nessa última seara
destacam-se a Política Nacional do Idoso e o Estatuto do Idoso.
Reconhece-se que a existência de leis setoriais que visam especificamente à
proteção da pessoa idosa não recebe acolhida de parte da doutrina sob a justificativa de
que essa tutela poderia levar os tutelados à marginalização.6 Observa-se, contudo,
segundo dados trazidos pela mesma doutrina, que a Itália possui desde 1978 a Lei 833,
cujo art. 2 dispõe que a tutela da saúde do idoso representa um de seus objetivos
fundamentais, de modo a prevenir e remover as condições concorrentes para sua
marginalização;7 o que o doutrinador ainda considera reducionista pois, em suas
palavras: “a proteção e a promoção do idoso realizam-se, antes de tudo, com a aplicação
do princípio da igualdade, segundo o qual a dignidade humana não depende das
circunstâncias externas, nem tão pouco das condições pessoais ou dos papéis sociais,
mas é um valor inerente ao homem.”8
6
PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalitá constituzionale. Napoli: Scientifiche Italiane, 1984,
p. 340: “Deve-se desconfiar da construção do idoso como uma categoria e também de uma normativa
exclusiva para o idoso e somente para ele, pois uma e outra poderiam consistir em fonte de nova
marginalização. Não parece útil sequer correto propor a criação de um ‘direito dos direitos dos idosos’;
também não se trata de elaborar um estatuto dos idosos. Trata-se, sobretudo, de individualizar soluções
mais adequadas para a proteção e a promoção das pessoas que se encontrem em situação de particular
dificuldade, até mesmo de em condição peculiar de deficiência” [Traduziu-se livremente do italiano]
7
PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalitá constituzionale, p. 341. [Traduziu-se livremente do
italiano]
8
PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalitá constituzionale, p. 341. [Traduziu-se livremente do
italiano]
Por outro lado, existe posição doutrinária a fazer apologia acerca da criação de
normas peculiarmente destinadas aos idosos e, ainda, a propor a edificação de um
direito da ancianidade.9
Nesse pormenor, os pontos de vista adotados no presente trabalho aproximam-se
da segunda concepção no sentido de se proclamar a existência de um direito voltado
especialmente para o idoso. A primeira, certamente se desenvolveu sob a égide do
Estado Italiano, plantado na realidade européia, em muito afastado das realidades
sociais da América Latina onde se insere o Estado brasileiro.
Pensa-se, na perspectiva construcionista de um direito da ancianidade para
outros sistemas jurídicos, que o conteúdo normativo do Estatuto do Idoso brasileiro
possa ser fonte a embasar o fenômeno da recepção de direitos.10
Trazer à colação problemas concretos levados aos tribunais em instâncias
intermediárias ou finais que envolvem especialmente idosos é a alameda para ilustrar as
proposições defendidas, sem a pretensão de esgotar os entendimentos dos juízos
consultados ou fazer uma síntese do seu pensamento.
________x________
9
CARAMUTO, Maria Isolina Davobe. Los derechos de los ancianos. Madri/ Buenos Aires: Ciudad
Argentina, 2002, p. 433: “Esta exigência de integração valorativa, ao meu parecer, só pode resolver-se
pela construção de um verdadeiro Direito da Ancianidade. Só pode concretizar-se, mediante a
elaboração de um corpo normativo autônomo, com princípios e regras próprias, perfeitamente
diferenciadas do resto das ramificações tradicionais, ainda que vinculadas a elas. Isto poderia realizar-se
através de um traçado jurídico sistematizado, que dê contas de uma realidade humana que já é
reconhecida como específica e valiosa, no entanto frágil e complexa.” [Traduziu-se livremente do
espanhol]
10
Para um estudo aprofundado do fenômeno das recepções de Direito, veja-se o artigo de TAVARES,
Ana Lúcia de Lyra. O estudo das recepções de direito. In: Estudos Jurídicos Em Homenagem Ao
Professor Haroldo Valladão. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1983, p. 45-66, passim. Nas páginas 46 e 47 a
autora explica em que consiste o fenômeno das recepções de direito e trata da sua imprecisão
terminológica: “O fenômeno que a expressão ‘recepção de direito’ evoca é a introdução, em um
determinado sistema jurídico, de regras, noções, ou institutos pertencentes a um outro sistema. Entretanto,
o emprego do termo ‘recepção’ para indicar esse fenômeno, na totalidade e na diversidade de suas
manifestações, não é de aceitação tranqüila. Ponderam, os estudiosos do assunto, que ele subentende um
ato voluntário, espontâneo, não se aplicando, portanto, aos casos em que a introdução de algumas normas
ou institutos alienígenas em um sistema decorreu de atos impositivos e compulsórios. Essa, a razão de
encontrarmos, na matéria, uma terminologia que varia, por vezes, em função da causa do fenômeno ou
dos modos pelos quais ele se processa; por outras, em virtude de uma preferência subjetiva sem qualquer
intuito de diferenciar suas múltiplas manifestações.”
Nas páginas 65 e 66 a autora arremata: “Essa ‘receptividade’ não deve, porém, fazer com que se
esqueçam de certas cautelas, para prevenir conseqüências negativas de um transplante inadequado ou mal
efetuado.
A proliferação desses estudos decorre, sobretudo na área do direito comparado, da importância atribuída
às recepções como instrumentos de modernização dos sistemas, de harmonização dos padrões jurídicos e
de compreensão internacional.”
Nessa conjuntura inicia-se o traçado de um arco temático que parte do seguinte
argumento: se o ancião encontra-se mais apto a desenvolver doenças do que os seres
humanos jovens, exsurge a saúde, dentre os seus direitos fundamentais, como aquele de
ordem prioritária nas idades longevas. Ter direito à saúde funciona como pressuposto
para que sejam exercitados os outros direitos dos idosos.
Busca-se, no primeiro capítulo, identificar quem é o idoso, justificar sua
vulnerabilidade jurídica e revelar que, na idade avançada, a saúde apresenta uma série
de peculiaridades. Os direitos aos alimentos e à moradia são tratados como mínimas
condições para que o idoso possa auferir saúde. Averigua-se, portanto, a quem cabe
prestá-los e os meios de satisfazê-los. Procura-se comprovar que o idoso, apesar de sua
imanente vulnerabilidade, é dotado de capacidade jurídica para direcionar sua vida, em
condições de saúde ou de doença por meio da autodeterminação, que afasta
preconceitos acerca da velhice e lhe confere respeito.
No segundo capítulo faz-se um paralelo sobre as circunstâncias de
vulnerabilidade de crianças, adolescentes e idosos e dos pontos de aproximação e de
afastamento dos direitos dessas duas categorias de pessoas que se encontram num
particular estágio de vida. Com base na analogia e nas possibilidades abertas pela
Constituição da República brasileira, tenta-se construir um princípio hermenêutico em
favor dos idosos: o princípio do seu melhor interesse. Procura-se mostrar que, se
utilizado na interpretação jurídica, o princípio do melhor interesse do idoso produzirá
uma série de efeitos positivos para seu beneficiado.
No terceiro capítulo procede-se ao exame da assistência sanitária proporcionada
ao idoso por intermédio do Estado e se discutem teorias de íntima ligação com o direito
prestacional à saúde, a saber: a teoria do “mínimo existencial” e a teoria da “reserva do
possível”. Defende-se que a saúde é direito de natureza fundamental e exigível e, a
partir daí, toma-se em consideração como o sistema público de saúde brasileiro se
compõe e se desenvolve, especialmente no que concerne ao oferecimento do direito à
saúde à pessoa idosa.
No quarto capítulo cuida-se da prestação de saúde ao idoso advinda da livre
iniciativa, propondo, de início, a eficácia horizontal do direito fundamental à saúde nas
relações interprivadas. Da análise do idoso como consumidor da assistência particular à
saúde, constata-se sua hiper vulnerabilidade perante o fornecedor. A partir de então,
trata-se do instituto da lesão, da mutualidade que se transmuda em solidariedade e dos
princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva como possibilidades
jurídicas na tutela dos interesses dessa pessoa hiper vulnerável quando usuária de planos
de saúde.
No quinto capítulo fecha-se o arco desenhado ao constatar que, mais do que
enunciado, o direito à saúde da pessoa idosa necessita ser promovido em condições
ideais. Dentre elas, destaca-se o estado democrático, sustentado pelo princípio da
dignidade da pessoa humana, composto pelos princípios fundamentais da liberdade, da
igualdade e da solidariedade em seus múltiplos aspectos ponderáveis caso a caso.
Ademais, partindo do pressuposto de que o direito à saúde possui natureza prioritária na
velhice, adverte-se que ele só se realizará se utilizados instrumentos que, baseados no
princípio constitucional da igualdade substancial e no seu consectário princípio do
melhor interesse do idoso, dêem-lhe efetividade.
1º CAPÍTULO: A saúde como direito prioritário da pessoa idosa
11
DE BEAUVOIR. Simone. A velhice. Tradução de: MARTINS, Maria Helena Franco. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1990, passim.
12
DE BEAUVOIR. Simone. A velhice, p. 33-35: “No homem, o que caracteriza fisiologicamente a
senescência é o que o doutor Destrem chama ‘uma transformação pejorativa dos tecidos.’ A massa dos
tecidos metabolicamente ativos diminui, enquanto aumenta a dos tecidos metabolicamente inertes: tecidos
intersticiais e fibroesclerosados; eles são objeto de uma desidratação e de uma degeneração gordurosa. Há
uma diminuição marcada da capacidade de regeneração celular. O progresso do tecido intersticial sobre
os tecidos nobres é principalmente surpreendente no nível das glândulas e do sistema nervoso. Ele
acarreta uma involução dos principais órgãos e um enfraquecimento de certas funções que não cessam de
declinar até a morte. Fenômenos bioquímicos se produzem: aumento do sódio, do cloro, do cálcio;
diminuição do potássio, do magnésio, do fósforo e das sínteses protéicas.
A aparência do indivíduo se transforma e permite que se possa atribuir-lhe uma idade, sem muita margem
de erro. Os cabelos embranquecem e se tornam rarefeitos; não se sabe por quê: o mecanismo da
despigmentação do bulbo capilar permanece desconhecido; os pêlos embranquecem também, enquanto
em certos lugares – no queixo das mulheres velhas por exemplo – começam a proliferar. Por desidratação
e em conseqüência da perda da elasticidade do tecido dérmico subjacente, a pele se enruga. Os dentes
caem.[...] A perda dos dentes acarreta um encolhimento da parte inferior do rosto, de tal maneira que o
nariz – que se alonga verticalmente por causa da atrofia de seus tecidos elásticos – aproxima-se do
queixo. A proliferação senil da pele traz um engrossamento das pálpebras superiores, enquanto se formam
salientadas pela autora tenham sido esclarecidas pela medicina, e seja essa também a
responsável por tornar os idosos cada vez mais longevos e com qualidade de vida;
incluindo o bem que fazem para sua auto estima as variadas modalidades de cirurgias
estéticas hoje em dia possíveis, parece que os sintomas descritos perduram na terceira
idade. E não há como dizer que esses acontecimentos não abalam física e
emocionalmente as pessoas idosas, porque elas sabem como foram um dia, sabem como
são as pessoas num estágio de vida normal. Elas se sentem vulneráveis porque
efetivamente são. Usa-se deliberadamente, seguindo o exemplo de Norbert Elias, a
palavra “normal” porque as pessoas tornam-se diferentes quando envelhecem. E é esta
diferença que as faz vulneráveis fisicamente, psiquicamente e também socialmente. “Os
outros, os grupos de ‘idade normal’, muitas vezes têm dificuldade de se colocar no lugar
dos mais velhos na experiência de envelhecer”13 Essa dificuldade extrema mais a
distância entre os longevos e os jovens e faz dos primeiros cada vez mais sozinhos e
incompreendidos.
Quanto à saúde psíquica dos anciãos relata-se também que há declínios a serem
levados em conta.14 A propósito, Norberto Bobbio publicou em 1996, oito anos antes de
papos sob os olhos. O lábio superior míngua; o lóbulo da orelha aumenta. Também o esqueleto se
modifica. Os discos da coluna vertebral empilham-se e os corpos vertebrais vergam: entre 45 e 85 anos o
busto diminui dez centímetros nos homens e quinze nas mulheres. A largura dos ombros se reduz e a
bacia aumenta; o tórax tende a tornar uma forma sagital, sobretudo nas mulheres. A atrofia muscular e a
esclerose das articulações acarretam problemas de locomoção. O esqueleto sofre de osteoporose: a
substância compacta do osso torna-se esponjosa e frágil; é por este motivo que a ruptura do colo do
fêmur, que suporta o peso do corpo, é um acidente freqüente.
O coração não muda muito, mas seu funcionamento se altera; perde progressivamente suas faculdades de
adaptação; o sujeito deve reduzir suas atividades para poder poupá-lo. O sistema circulatório é atingido; a
arteriosclerose não é a causa da velhice, mas é uma de suas características mais constantes. Não se sabe
exatamente o que a provoca: desequilíbrios hormonais, dizem uns; uma tensão sangüínea excessiva,
dizem outros; pensa-se em geral que a causa principal é uma perturbação do metabolismo dos lipídeos. As
conseqüências são variáveis. Por vezes a arteriosclerose atinge o cérebro. Em todo o caso, a circulação
cerebral torna-se mais lenta. As veias perdem sua elasticidade, o débito cardíaco decresce, a rapidez da
circulação diminui, a pressão sobe. É preciso observar, aliás, que a hipertensão, tão perigosa para o
adulto, pode muito bem ser suportada pelo homem idoso. O consumo de oxigênio do cérebro reduz-se. A
caixa torácica torna-se mais rígida e a capacidade respiratória, que é de 5 litros aos 25 anos, cai para 3
litros aos 85. A força muscular diminui. Os nervos motores transmitem com menor velocidade as
excitações e as reações são menos rápidas. Há involução dos rins, das glândulas digestivas, do fígado. Os
órgãos do sentido são atingidos. O poder de acomodação diminui. A presbiopia é um fenômeno quase
universal entre os velhos, e a vista ‘cansada’ faz com que a capacidade de discriminação decline.
Também diminui a audição, chegando freqüentemente até a surdez. O tato, o paladar, o olfato têm menos
acuidade que outrora.”
13
ELIAS, Norbert. Envelhecer e morrer: alguns problemas sociológicos. In: A Solidão dos Moribundos.
Tradução de: DENTZIEN, Plínio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 80.
14
DE BEAUVOIR. Simone. A velhice, p. 603-604: “Já disse que as doenças mentais são mais freqüentes
nos velhos do que em qualquer outra faixa etária.[...] Entretanto, sendo a velhice uma ‘anomalia normal’,
muitas vezes fica difícil traçar uma fronteira entre as perturbações psíquicas que normalmente
sua morte em 2004, livro sobre sua velhice, a que ele chama de “Tempo da Memória”.
Bobbio escreve: “O mundo dos velhos, de todos os velhos, é, de modo mais ou menos
intenso, o mundo da memória. Dizemos: afinal, somos aquilo que pensamos, amamos,
realizamos. E eu acrescentaria: somos aquilo que lembramos.”15
A redação do filósofo político em nada remonta ao seu engajamento como
senador e escritor de inúmeros livros, dentre eles “Teoria da Norma”, “Teoria do
Ordenamento Jurídico”, “O Futuro da Democracia”, “Liberdade e Igualdade”, “A Era
dos Direitos”, “Da Estrutura à Função”, entre outros, que trouxeram para os estudiosos
brasileiros, a partir da década de 50 do século passado, contribuição indispensável na
seara da Ciência Política e da Filosofia do Direito.16 Pelo contrário, o autor descreve sua
velhice como melancólica, “a melancolia subentendida como a consciência do não-
realizado e do não mais realizável”17, em suas palavras.
Parece que as experiências dos anos de velhice são, para quase todos, de alguma
forma, sofridas.
Norbert Elias escreveu também em idade avançada sobre a “Solidão dos
Moribundos” e sobre “Envelhecer e Morrer.” Em cada expressão do seu pensamento
evoca a fragilidade dos idosos que advém de sua condição de vulneráveis: “Muitas
pessoas morrem gradualmente, adoecem, envelhecem. As últimas horas são
importantes, é claro. Mas muitas vezes a partida começa muito antes. A fragilidade
dessas pessoas é muitas vezes suficiente para separar os que envelhecem dos vivos.”18
19
Consoante CARAMUTO, Maria Isolina Davobe. Los derechos de los ancianos, p. 25. [Traduziu-se
livremente do espanhol]
20
CAMARANO, Ana Amélia e PASIANTO, Maria Tereza. Introdução. In: Os Novos Idosos Brasileiros:
Muito Além dos 60?, Organizadora: CAMARANO, Ana Amélia. Rio de Janeiro: IPEA, 2004, p. 2 e 3:
“Assume-se que a idade traz vulnerabilidades, perda de papéis sociais com a retirada da atividade
econômica, aparecimento de novos papéis (ser avós), agravamento de doenças crônicas e degenerativas,
perdas de parentes e amigos entre outras. [...] Embora se observe a heterogeneidade do grupo estudado,
pergunta-se o que faz esse grupo ser diferente dos demais, que os torna objeto específico de estudos
acadêmicos, de políticas etc. [...] Pode-se se dizer que as principais características do grupo são o
crescimento, proporcional à idade, das suas vulnerabilidades físicas e mentais e a proximidade da
morte.” [Grifou-se]
21
Com o intuito inequívoco de mostrar que as doenças não são belas nem românticas, mas que muitos as
entrevêem desse modo, faz-se imprescindível recorrer a SONTAG, Susan. A doença como metáfora.
Tradução de: RAMALHO, Márcio. 3 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984, ao relatar e, principalmente,
comentar a conversa de Byron com Moore, p. 42 e 43: “O tratamento romântico da morte afirma que as
pessoas se tornam singulares e mais interessantes por sua doença. ‘Estou pálido’, disse Byron olhando no
Procura-se firmar a vulnerabilidade física, psíquica e social do idoso, para que
seja encontrada também, sua vulnerabilidade jurídica. Assim, quando não existe
igualdade de fato entre as pessoas, as regras jurídicas não podem ser as mesmas para
todos. Aos diferentes em razão do envelhecimento que os vulnerabiliza, precisa-se
assegurar igualdade jurídica, a fim de mitigar sua desigualdade material em relação às
pessoas de outra faixa etária garantindo o humanismo em sociedade.22
Outra questão polêmica nessa matéria está contida na difícil identificação de
quem é, para os efeitos do Direito, idoso. Com o advento da Lei nº 8.842 de 1994, que
instituiu a Política Nacional do Idoso e foi corroborada pela Lei 10.741 de 2003, o
Estatuto do Idoso, ressurgiram as discussões acerca desse ponto.
Antes disso, a Constituição da República de 1988 dispôs, em favor dos maiores
de setenta anos, o voto facultativo, conforme art. 14, § 1º, alínea “b” e, em artigos
espaçados, sobre as idades máximas de aposentadoria voluntária no serviço público, “de
sessenta anos de idade e trinta e cinco de contribuição, se homem, e cinqüenta e cinco
anos de idade e trinta de contribuição, se mulher”, na forma do art. 40, § 1º, inciso III,
alínea “a”; “de sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se
mulher, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição.” na forma da alínea “b”
do mesmo artigo. Estabeleceu-se a aposentadoria compulsória, “aos setenta anos de
idade, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição” ainda no art. 40, inciso
II. Com relação à previdência social dos outros trabalhadores, assegurou-se a
aposentadoria aos sessenta e cinco anos de idade, se homem e sessenta, se mulher, e se
reduziu em cinco anos “o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para
os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o
produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal”, na forma do art. 201, § 7º, inciso
II.
espelho. ‘Gostaria de morrer de uma consunção.’ Por quê?, perguntou seu amigo tuberculoso Tom
Moore, que estava visitando Byron em Pratas, em fevereiro de 1828. ‘Porque todas as mulheres diriam:
‘Olhem o pobre Byron, como ele está interessante assim morrendo’.” Talvez a principal dádiva dos
românticos à sensibilidade não seja a estética da crueldade e a beleza do mórbido (como Mario Praz
sugeriu em seu famoso livro), ou mesmo a exigência de ilimitada liberdade pessoal, mas a idéia niilista e
sentimental do ‘interessante’.”
22
Confira-se, a respeito, o raciocínio de BODIN DE MORAES, Maria Celina. O conceito de dignidade
humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: Constituição, Direitos Fundamentais e Direito
Privado. Organizador: SARLET, Ingo Wolfgang. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 116:
“Neste ambiente, de um renovado humanismo, a vulnerabilidade humana será tutelada, prioritariamente,
onde quer que ela se manifeste. De modo que terão precedência os direitos e as prerrogativas de
determinados grupos considerados, de uma maneira ou de outra, frágeis e que estão a exigir, por
conseguinte, a especial proteção da lei. Nestes casos estão as crianças, os adolescentes, os idosos...”
Consideram-se tais idades máximas para o repouso remunerado dos que já
trabalharam suficientemente ao longo de sua juventude e, portanto, merecem uma
velhice de descanso e usufruto do que conseguiram ao longo da vida.
Também foi prevista constitucionalmente a garantia de um salário mínimo de
benefício mensal ao idoso que comprove não possuir meios de prover a própria
manutenção ou tê-la promovida por sua família, conforme dispuser a lei, em termos de
assistência social, no art. 203, inciso V. Não se disse, porém, quem é o idoso a que se
faz referência.
Em outro momento, a Constituição dispôs, no art. 230, § 2º, sobre a garantia de
gratuidade dos transportes coletivos urbanos aos maiores de sessenta e cinco anos, como
modo de o Estado amparar as pessoas idosas conforme caput do mesmo artigo.
Para o Estatuto do Idoso estão regulados por ele os direitos assegurados às
pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos. Conforme dispõe seu art. 1º:
“É instituído o Estatuto do Idoso, destinado a regular os direitos assegurados às pessoas
com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.”
Portanto, a determinação legal de idoso estatuída tem o dado cronológico como
referencial, pouco importando se o ser humano possui ou não debilidade física ou
psíquica, se é homem ou mulher, pobre ou abastado. Trata-se de um critério objetivo
que visa a encerrar discussões acerca da sua procedência.
Todavia, tanto antes da promulgação da Política Nacional do Idoso já se
argumentava que “a qualidade de idoso deveria ser analisada caso a caso, dependendo
das condições biopsicológicas de cada ser humano”23, quanto atualmente, discute-se o
critério legalmente adotado para assegurar direitos aos sexagenários: “O grande
problema do critério cronológico é de não considerar as diferenças pessoais e a larga
faixa etária que está abrangida pelo conceito, principalmente se levarmos em conta que,
atualmente, são cada vez mais numerosas as pessoas centenárias.”24
Diverge-se dessa posição, pois, seguramente, adotar uma idade para considerar
uma pessoa sujeita a gozar de direitos especiais afasta os tortuosos caminhos da
avaliação física e psíquica de suas capacidades, que poderia gerar injustiças de toda
ordem. Até porque, não são apenas os contingentes psicofísicos que tornam uma pessoa
23
DE FREITAS JR. Roberto Mendes. Direitos do idoso. In: Direitos da Criança, do Adolescente e do
Idoso: Doutrina e Legislação. Belo Horizonte: Del Rey, 2006 , p. 100.
24
BRAGA, Pérola Melissa V. Direitos do idoso segundo o estatuto do idoso. São Paulo: Quartier Latin,
2005, p. 44.
idosa. Também o sexo, a classe social, a educação, a personalidade, as vivências
passadas, o contexto sócio-econômico, entre outros fatores, influenciam no processo de
envelhecimento, de forma que se revela impossível uma resposta definitiva de quando
se inicia a chamada terceira idade para a pessoa individualmente considerada.
Entretanto, ao sustentar que “pode haver enorme diferença no estado de saúde
(física e mental), entre duas pessoas sexagenárias, uma delas pode ser doente e
debilitada, enquanto a outra se encontra em pleno vigor, sendo perfeitamente lúcida”25,
chega-se à assertiva de que “certamente há enorme diferença entre um idoso (pelo
critério da Lei nº 8.842/94) de 60 anos e um outro de 100 anos de idade, por isso se
torna difícil a aceitação de um mesmo tratamento para ambos.”26
Embora mereça respeito essa posição, parece não ser a mais adequada.
O fato de pessoas com sessenta anos ou mais encontrarem-se em pleno vigor,
não lhes retira a condição de pessoas biologicamente envelhecidas. “Pesquisas de
caráter biofisiológico puderam estabelecer que, com o avançar dos anos, vão ocorrendo
alterações estruturais e funcionais que, embora variem de um indivíduo a outro, são
encontradas em todos os idosos.”27 Aliás, um idoso centenário pode gozar de mais
saúde do que um sexagenário. Além do mais, o que se almeja é que os envelhecidos
continuem ativos nas esferas púbicas e privadas, no trabalho remunerado ou não, na
política, nas artes, nos esportes, na educação e em todos os espaços, para que possam
manter o livre desenvolvimento de sua personalidade.
O critério cronológico tem sido reiteradamente adotado na ordem jurídica
brasileira para impedir o trabalho de pessoas menores de quatorze anos,28
desconsiderando sua capacidade psíquica, intelectual ou compleição física; para
considerar menores de dezoito anos, independente do seu grau de maturidade, ainda que
aferível psiquicamente, inimputáveis na seara penal29 e, com capacidade relativa para os
25
BRAGA, Pérola Melissa V. Direitos do idoso segundo o estatuto do idoso, p. 44.
26
BRAGA, Pérola Melissa V. Direitos do idoso segundo o estatuto do idoso, p. 44
27
PAPALÉO NETTO. Matheus. O estudo da velhice no século XX: histórico, definição do campo e
termos básicos. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia. Organizadores: DE FREITAS, Elizabete Viana,
PY, Ligia, NERI, Anita Liberanesso, CANÇADO, Flávio Aluízio Xavier, GORZONI, Milton Luiz, DA
ROCHA, Sônia Maria. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002, p. 3.
28
Art. 227, § 3º, inciso I, da Constituição da República.
29
Art. 27, do Código Penal.
atos da vida civil, os maiores de 16 e menores de 18 anos.30 Destarte, tal como o
desenvolvimento de infantes e adolescentes, o processo de envelhecimento “é
determinado pela interação constante e acumulativa de eventos de natureza genético-
biológica, psicossocial e sociocultural.”31
Ao determinar que idoso é pessoa com idade igual ou maior que sessenta anos a
legislação em comento buscou um critério uniforme, proveniente de investigações
científicas da Organização Mundial de Saúde (OMS), que considera idosas pessoas de
sessenta e cinco anos ou mais nas nações desenvolvidas e de sessenta anos ou mais nas
nações em desenvolvimento. A Política Nacional do Idoso e o Estatuto pátrio seguiram
tais diretrizes, já que o Brasil é considerado país em desenvolvimento.
Enfim, cabe o registro de que estabelecer quem é idoso não compreende tarefa
fácil, haja vista tantas heterogeneidades próprias dos seres humanos, o que induz à
heterogeneidade de suas velhices. 32
De todo modo, o Direito necessita de um critério legal para se conduzir e ser
aplicável. É nesse sentido que se entende que o critério etário, o mais invariável possível
dentro de um espectro muito maior onde se encontram as discussões a respeito de
quando se inicia a velhice, e, paralelamente, de quem é o idoso, parece, em termos
legais que demandam uma determinação precisa, o mais acertado.
Nesse contingente de indefinição sobreleva o fato de o Brasil possuir norma
constitucional que ordena o amparo da velhice por todos os seguimentos da sociedade e
pelo Poder Público. Recentemente, como já apontado, promulgou-se um estatuto para o
idoso, ferramenta que, se tiver a devida eficácia, pode em muito amenizar sua
vulnerabilidade de fato. Enfim, a Lei assegura direitos específicos à pessoa idosa porque
30
Art.4º, inciso I, do Código Civil.
31
NERI, Anita Liberanesso. Teorias psicológicas do envelhecimento. In: Tratado de Geriatria e
Gerontologia. Organizadores: DE FREITAS, Elizabete Viana, PY, Ligia, NERI, Anita Liberanesso,
CANÇADO, Flávio Aluízio Xavier, GORZONI, Milton Luiz, DA ROCHA, Sônia Maria. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 2002, p. 45.
32
PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalitá constituzionale, p. 342: “A própria definição do
idoso é problemática porque é expressão não unicamente da idade da vida, mas também e principalmente,
da conservação das estruturas e das funções psicofísicas, das potencialidades físicas e intelectivas. Mesmo
a capacidade natural, enquanto capacidade de compreender e de querer, com o passar do tempo, modifica-
se constantemente, ora aumentando, ora diminuindo. A mutação qualitativa é expressão, além do
patrimônio biológico, também das experiências e da sensibilidade adquiridas; a capacidade efetiva se
desenvolve porque a própria personalidade do homem se desenvolve. Todavia haverá sempre a paralela
dignidade e o direito de que o seu desenvolvimento não encontre limites, exceto por aqueles ditados no
seu efetivo e exclusivo interesse, seja também em correlação aos análogos interesses dos outros.”
[Traduziu-se livremente do italiano]
ela efetivamente necessita, pois se difere de jovens, adultos e, inclusive de crianças, na
sua condição vulnerável.33
A propósito, a ciência médica já havia constatado a estreita ligação entre o
envelhecimento e o surgimento de deficiências, que acabam tornando o ser idoso
imensamente vulnerável.34 Enfatize-se que as pessoas idosas compõem o principal
grupo de deficientes.35
Sensível a essa realidade, o legislador previu no art. 15, § 4º, do Estatuto do
Idoso que “os idosos portadores de deficiência ou com limitação incapacitante terão
atendimento especializado, nos termos da lei.” Portanto, torna-se importante
compreender o que significa acessibilidade.
O conceito de acessibilidade é, na forma do art. 2º, inciso I, da Lei 10.098 de
2000: “possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia,
dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos transportes e dos
sistemas e meios de comunicação por pessoas portadoras de deficiência ou com
mobilidade reduzida”
Dessa forma, para o idoso com dificuldade de enxergar, hão de ser colocados,
nas vias públicas, sinais sonoros para que ele possa transitar com segurança e
autonomia. De igual modo, devem ser destinados ao idoso que sofra agravos auditivos,
sinais visuais com o mesmo objetivo de lhe propiciar condições de tráfego, com
33
BARBOZA, Heloisa Helena. O melhor interesse do idoso. In: O Cuidado Como Valor Jurídico.
Coordenadores: PEREIRA, Tânia da Silva e DE OLIVEIRA, Guilherme. Rio de Janeiro: Forense, 2008,
p. 65: “Assim como a criança e o adolescente, o idoso se encontra em situação peculiar, na qual a
vulnerabilidade é potencializada.
Embora ambos grupos sejam constituídos por pessoas ‘especialmente’ vulneráveis, e haja em vários
pontos certo paralelismo entre a situação da criança e do adolescente e a do idoso, impondo-se a tutela
privilegiada de seus direitos, não se deve perder de vista que, na verdade, tais pessoas caminham em
direção oposta, sendo inversamente proporcionais suas necessidades.”
34
MEDEIROS, Marcelo e DINIZ, Débora. Envelhecimento e deficiência. In: Os Novos Idosos
Brasileiros: Muito Além dos 60?, Organizadora: CAMARANO, Ana Amélia. Rio de Janeiro: IPEA,
2004, p. 113: “Mostrar a relação entre envelhecimento e deficiência é importante por várias razões.
Primeiro, porque o envelhecimento vem acompanhado de algumas limitações nas capacidades físicas e, às
vezes, intelectuais mas, apesar do envelhecimento crescente de quase todas as populações do mundo, na
maioria delas pouco ou nada se tem feito para que estas limitações não se tornem causa de deficiências.
Segundo, porque mostra que, na ausência de mudanças na forma como as sociedades organizam seu
cotidiano, que todos seguem em direção a uma fase da vida em que se tornarão deficientes, o que motiva,
ainda por meio da defesa de interesses egoístas, a melhoria de políticas públicas voltadas à deficiência.
Terceiro, porque lembra que a interdependência e o cuidado não são algo necessário apenas diante de
situações excepcionais e sim necessidades ordinárias em vários momentos da vida de todas as pessoas.
Quarto, porque a previsibilidade do envelhecimento permite entender que muito da deficiência é resultado
de um contexto social e econômico que se reproduz no tempo, pois a deficiência no envelhecimento é, em
parte, a expressão de desigualdades surgidas no passado e que são mantidas.”
35
MEDEIROS, Marcelo e DINIZ, Débora. Envelhecimento e deficiência, p. 108.
liberdade e autonomia. Barreiras arquitetônicas nas vias públicas, no interior dos
edifícios públicos e privados, no acesso ao transporte e nas vias de comunicação em
massa ou não, também devem ser transpostas para que o idoso com mobilidade reduzida
possa gozar de acesso no caráter mais extenso possível não só no ambiente urbano,
como também no rural.
A acessibilidade do idoso não deve ser promovida apenas nos lugares públicos,
mas, principalmente, no local onde o idoso estabelece sua residência com sua família ou
em entidades de atendimento. Para essas últimas, o Ministério da Saúde já editou a
Portaria nº 249 de 2002, que define critérios de cadastramento e funcionamento dos
centros de referência em assistência à saúde do idoso, destacando os mecanismos
obrigatórios para promover sua acessibilidade.
No que toca os órgãos de prestação da saúde pública ou privada – o Sistema
Único de Saúde e os planos privados de saúde – deverão fornecer, sem qualquer tipo de
cobrança sob pena de abusividade, segundo o art. 51, inciso IV, do Código de Defesa do
Consumidor, o atendimento especializado que o Estatuto do Idoso apregoa para os
idosos portadores de deficiência ou com limitação incapacitante.36
Também em razão da fragilidade peculiar do “idoso internado ou em
observação”, seu Estatuto determina, no art. 16, ser-lhe “assegurado o direito a
acompanhante, devendo o órgão de saúde proporcionar as condições adequadas para sua
permanência em tempo integral, segundo o critério médico.” Assim, a presença do
acompanhante deverá ser viabilizada pelo Sistema Único de Saúde ou pelos planos
privados de saúde, sem qualquer tipo de cobrança que, se existente, será abusiva na
forma do art. 51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor.37 Frente ao
mandamento do parágrafo único do art. 16 do Estatuto, “caberá ao profissional de saúde
responsável pelo tratamento conceder autorização para o acompanhamento do idoso ou,
no caso de impossibilidade, justificá-la por escrito.” Essa justificativa pode ser
examinada pelo Poder Judiciário no caso de o idoso ou sua família julgarem que seus
fundamentos não procedem.38
36
No mesmo sentido, RAMAYANA. Marcos. Estatuto do idoso comentado. Rio de Janeiro: Roma
Victor, 2004, p. 39.
37
No mesmo sentido, RAMAYANA. Marcos. Estatuto do idoso comentado, p. 39.
38
Consoante RAMAYANA. Marcos. Estatuto do idoso comentado, p. 40.
Esses mandamentos em torno da promoção da saúde da pessoa idosa surgem em
decorrência da sua imanente vulnerabilidade, que enseja cuidados especiais a fim de, na
medida do possível, torná-la menos intensa e causadora de menores sofrimentos à
pessoa humana que, além de sobremaneira fragilizada por conta da idade, encontra-se,
ademais, doente.
Se a vulnerabilidade da pessoa idosa demanda tutela especial no que concerne
não só à sua saúde, mas também no que toca a outros direitos fundamentais, ela não tem
o condão de subtrair a capacidade de fato dessa pessoa, nem de tomar seus direitos de
personalidade.39 Ainda que doente, se a moléstia do ancião não lhe retira a consciência,
obviamente, ele permanece livre, na forma do disposto no art. 10 do Estatuto do Idoso.40
No entanto, não se olvida de que o idoso doente é ainda mais vulnerável. Por
isso, sem lhe extrair o poder de autodeterminação e a livre expressão de sua
personalidade, os profissionais da área médica que com ele se relacionem deverão agir
com um cuidado redobrado, a fim de não desrespeitá-lo em sua concepção e decisão,
sempre no intento de lhe garantir autonomia no exercício de seus direitos, com ênfase
para os de índole existencial, que integram sua personalidade.
39
Explica AMARAL, Francisco. Direito civil – introdução. 5 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 220:
“Enquanto a personalidade é um valor, a capacidade é a projeção desse valor que se traduz num quantum.
Capacidade, de capax (que contém), liga-se à idéia de quantidade e, portanto, à possibilidade de medida
de graduação. Pode-se ser mais ou menos capaz, mas não se pode ser mais ou menos pessoa.
Compreende-se, assim, a existência de direitos da personalidade, não de direitos da capacidade. O
ordenamento jurídico reconhece a personalidade e concede a capacidade, podendo considerar-se essa
como atributo daquela. A capacidade é então a ‘manifestação do poder de ação implícito no conceito de
personalidade’, ou a ‘medida jurídica da personalidade’. E, enquanto a personalidade é valor ético que
emana do próprio indivíduo, a capacidade é atribuída pelo ordenamento jurídico, como realização desse
valor.”
40
Art. 10 do Estatuto do Idoso: “É obrigação do Estado e da sociedade, assegurar à pessoa idosa a
liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais
e sociais, garantidos na Constituição e nas leis.
§ 1º O direito à liberdade compreende, entre outros, os seguintes aspectos:
I – faculdade de ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições
legais;
II – opinião e expressão;
III – crença e culto religioso;
IV – prática de esportes e diversão;
V – participação na vida familiar e comunitária;
VI – participação na vida política, na forma da lei;
VII – faculdade de buscar refúgio, auxílio e orientação.
§ 2º O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, abrangendo a
preservação da imagem, da identidade, da autonomia, de valores, idéias e crenças, dos espaços e dos
objetos pessoais.
§ 3º É dever de todos zelar pela dignidade do idoso, colocando-o a salvo de qualquer tratamento
desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.”
2- O idoso e o exercício dos seus direitos de personalidade
41
Nesse sentido ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: teoria geral. 2 ed. Coimbra: Coimbra
Editora, 2000, p. 43, também DE VASCONCELOS, Pedro Pais. Teoria geral do direito civil. 2 ed.
Coimbra: Almedina, 2003, p. 35 e DE CUPIS, Adriano, Direitos da personalidade. Tradução de:
REZENDE, Afonso Celso Furtado. Campinas: Romana, 2004, p. 19.
42
DE CUPIS, Adriano. Direitos da personalidade, p. 21.
43
DE CUPIS, Adriano. Direitos da personalidade, p. 24.
44
DE CUPIS, Adriano. Direitos da personalidade, p. 29.
45
DE CUPIS, Adriano. Direitos da personalidade, p. 31.
46
DE VASCONCELOS, Pedro Pais. Teoria geral do direito civil, p. 40.
47
MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Teoria Geral do Direito Civil. 1º volume. 2 ed. Lisboa:
Associação Acadêmica da Faculdade de Direito, 1987/1988, p. 310.
A personalidade humana constitui direito não patrimonial absoluto, pois diz
respeito ao ser e não ao ter.48 Desse modo, perfilhar a existência jurídica dos direitos de
personalidade significa reconhecer que cada ser é valorado simplesmente por ser pessoa.
De tal maneira, o ser humano coloca-se diante da realidade e do Direito, afinal,
as normas jurídicas existem para os homens, por isso, torna-se possível observar a
pessoa, ao mesmo tempo, como fim do Direito, fundamento da personalidade jurídica e
sujeito das situações jurídicas,49 que, dessa forma, impõe à realidade exterior seus
objetivos próprios e se determina com liberdade, reconhecendo que é a dona de seu
destino e, portanto, responsável por ele.50 O Direito, por seu turno, serve aos interesses
das pessoas, uma vez que concebido e utilizado por elas. Logo, cabe a aferição de que a
pessoa humana não se apresenta como um instituto jurídico, mas consta presente em
cada decisão e em cada norma, já que os institutos jurídicos existem para contemplá-
la.51
Os direitos da personalidade encontram-se marcados por um profundo teor ético
tendo em vista consubstanciarem projeção da personalidade humana e só receberem tal
consideração por possuírem esse conteúdo.52
Portanto, não há fôrmas nas quais caibam os inúmeros direitos da personalidade
e as previsões legais não contemplam todos eles. No Código Civil brasileiro são
tratados nos artigos 11 a 21, embora a previsão do legislador esteja longe de abarcar as
múltiplas situações que os envolvem.
O art. 8º do Estatuto do Idoso faz alusão aos direitos da personalidade das
pessoas idosas ao dispor que: “o envelhecimento é um direito personalíssimo”. Isto
posto, observa-se que envelhecer se encontra dentro dos direitos da personalidade além
de, pela expressão “personalíssimo”, compreender-se que esse direito concerne a uma
pessoa ou a um grupo com “individualidades coincidentes ou características
especiais”53.
48
DE CUPIS, Adriano. Direitos da personalidade, p. 37.
49
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: teoria geral, p. 44.
50
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: teoria geral, p. 47.
51
MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Teoria Geral do Direito Civil, p. 307.
52
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: teoria geral, p. 79.
53
VILAS BOAS, Marco Antônio. Estatuto do idoso comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 15.
Sabe-se que faz parte dessas individualidades coincidentes ou características
especiais o declínio psicofísico gradual das pessoas de idade avançada. Desse modo,
muitos idosos convivem com as debilidades que lhes são mais comuns do que às
pessoas jovens. Ainda assim, sua integridade física e psíquica, que provem dos seus
direitos de personalidade, há de ser sempre preservada.
O avanço da idade para sessenta anos ou mais não significa por si decreptude,
doença grave, ou morte iminente.54 Todavia, o organismo idoso adoece mais. Portanto,
enquanto houver vida, faz-se necessário que as especificidades desse corpo e dessa
mente sejam cuidados, uma vez que os direitos da personalidade decorrem das
necessidades específicas de cada ser humano segundo a sua personalidade ontológica.55
Na pessoa idosa, tanto o aparelho respiratório, o cardiovascular, o digestivo, as
funções renais, e a atividade psíquica são modificados.
O envelhecimento do aparelho respiratório tem sua capacidade vital diminuída, a
difusão de oxigênio através da membrana alveolocapilar diminui assim como a
ventilação das bases pulmonares, há modificações no esqueleto e modificações
musculares que limitam os movimentos respiratórios, há alterações na árvore brônquica,
o que gera calcificações e perda de elasticidade, há perda dos cílios vibráteis e
dilatações alveolares que são fatores que ocasionam o efisema pulmonar.56
Nota-se, em matéria cardiovascular, uma diminuição da freqüência cardíaca após
os sessenta anos, diminui a permeabilidade capilar quanto o débito sangüíneo médio, o
que faz aumentar a diferença arteriovenosa em oxigênio; diminui a elasticidade da aorta
e grandes vasos, o que gera arteriosclerose e calcificações, aumenta-se também o tempo
total de circulação sanguínea.57
Em relação às funções renais, ocorre diminuição do débito plasmático renal,
baixa também a filtração glomerular, diminui a secreção e reabsorção tubulares e se
54
RODRIGUES, Pais C. e RODRIGUES, Maria Manuel Pais. O doente idoso: patologia geral e
terapêutica. In: Separata do Jornal do Médico. Porto, 1978, p. 2.
55
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: teoria geral, p. 80.
56
RODRIGUES, Pais C. e RODRIGUES, Maria Manuel Pais. O doente idoso: patologia geral e
terapêutica, p. 7.
57
RODRIGUES, Pais C. e RODRIGUES, Maria Manuel Pais. O doente idoso: patologia geral e
terapêutica, p. 8.
apresenta perturbada a atividade enzimática que intervêm nas trocas iônicas ao nível dos
túbulos renais.58
Pelo envelhecimento do aparelho digestivo podem ocorrer perda da dentição o
que leva a problemas de mastigação, diminuição da salivação e da atividade secretora
gástrica. Alteram-se a função exócrina do pâncreas, a função da síntese protéica do
fígado e a motilidade intestinal, o que gera constipação; diminui-se o tônus do estômago
e a absorção de aminoácidos, lipídeos e xilose em nível de intestino delgado.59
Ocorrem também modificações na capacidade psíquica do idoso tais como:
diminuição da capacidade intelectual, diminuição da memória especialmente para fatos
recentes, alterações no sono, menor emoção perante acontecimentos traumatizantes e
diminuição de autocrítica perante os seus atos.60
Nesses casos, para continuar o livre e pleno desenvolvimento da sua
personalidade, com a decorrente titularidade de direitos e obrigações, a pessoa idosa que
apresente alguns desses agravos deve, na medida em que preservadas suas faculdades
mentais, consentir livremente a respeito de qualquer tipo de intervenção em seu corpo e
mente. De maneira genérica proclama-se que “o corpo e a liberdade pessoal que nele se
encarna apresentam-se no palco do mundo como a premissa para um agir livre.”61
No contexto apresentado, o art. 17 do Estatuto do Idoso assinala: “Ao idoso que
esteja no domínio de suas faculdades mentais é assegurado o direito de optar pelo
tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável.” Essa regra remete ao
consentimento informado cujo fundamento primeiro é a autonomia do paciente. 62
58
RODRIGUES, Pais C. e RODRIGUES, Maria Manuel Pais. O doente idoso: patologia geral e
terapêutica, p. 9
59
RODRIGUES, Pais C. e RODRIGUES, Maria Manuel Pais. O doente idoso: patologia geral e
terapêutica, p. 10.
60
RODRIGUES, Pais C. e RODRIGUES, Maria Manuel Pais. O doente idoso: patologia geral e
terapêutica, p. 11.
61
RODOTÀ, Stefano. Transformações do corpo. Tradução de: BODIN DE MORAES, Maria Celina. In:
Revista Trimestral de Direito Civil. Vol. 19, Julho/ Setembro/2004, p. 106.
62
SWITANKOWSKY, Irene. S. A new paradigm for informed consent. New York: University Press of
America, 1998, p. 1: “Autonomia é o fundamento do consentimento informado propriamente dito. Desde
a ausência de uma decisão autônoma, o consentimento informado torna-se um simples consentimento.
Consentimentos não são propriamente informados a não ser que eles sejam decididos de maneira
autônoma pelo paciente. A autonomia é um complexo cognitivo-relacional; estado que varia em grau e
qualidade entre os indivíduos. Quanto maior for o desenvolvimento, a reflexão, a educação do indivíduo,
mais autônoma será a decisão.” [Traduziu-se livremente do inglês]
Nesse sentido, pode-se afirmar que a opção do idoso doente pelo tratamento de
saúde que considerar mais favorável para si – sua aquiescência livre e esclarecida –
trata-se da prática do consentimento informado, ou seja, da materialização da
manifestação de sua vontade.63
Contudo, “vulnerabilidades médicas, doença grave e inquietação poderiam
diminuir a autonomia da pessoa devido também a incertezas que são implícitas em
certos tratamentos médicos ou diagnósticos da doença do paciente.” 64
Por isso, a
informação, tão clara quanto possível sobre as indicações e contra indicações da
terapêutica e dos exames diagnósticos utilizados, constitui o cerne do consentimento
informado, a fim de sanar as incertezas do paciente sujeito à intervenções médicas,
ainda quando tenham de ser enfrentadas inseguranças próprias da medicina, doença
grave ou tensões emocionais.
Há de se acrescentar que existe uma enorme vulnerabilidade para a tomada de
decisões acerca de sua saúde no caso de ser idosa a pessoa adoecida.
A idade avançada já torna o ser humano frágil socialmente, fisicamente e
psiquicamente, porque sujeito à exclusão social e à possibilidade iminente de agravos
psicofísicos. Se doente, o idoso não só mantém sua condição de vulnerável, como a
possui acrescida, notadamente, por não estar e por não se sentir sadio. O que se tem
nesses casos é uma situação de vulnerabilidade levada ao extremo: pessoa idosa doente
tendo que tomar conhecimento das agruras de sua enfermidade, raciocinar a respeito dos
procedimentos que lhe são aventados e escolher o que fazer dentro deste espectro de
circunstâncias desfavoráveis que, inclusive, podem lhe afetar as condições de
discernimento, é assaz vulnerável.65
Por isso, os médicos devem ter um cuidado especial ao lhe prestarem as
informações devidas para que haja consentimento realmente esclarecido e uma atenção
63
ROMEO CASABONA, Carlos María. O consentimento informado na relação entre médico e paciente:
aspectos jurídicos. In: Biotecnologia e Suas Implicações Ético-Jurídicas. Coordenadores: ROMEO
CASABONA, Carlos María e QUEIROZ, Juliane Fernandes. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 128.
64
SWITANKOWSKY, Irene. S. A new paradigm for informed consent, p. 1. [Traduziu-se livremente do
inglês]
65
Alguma medida dessa vulnerabilidade é expressa por ALVAREZ, Alejandro Bugallo. Os princípios da
vulnerabilidade e da autonomia no estatuto do idoso: pressupostos e aplicações. Mimeo, 2008, nos
seguintes termos: “Com efeito ‘a vivência da doença acompanhada, por definição, da incapacidade de
controlar e reverter o processo através de recursos próprios’ e, portanto, de ‘auto-reparação’ estimula a
busca de ajuda externa, inspirada na idéia de que ‘a doença é removível e que o enfermo se percebe
sanável’, razão do caráter fiduciário na relação médico-paciente.”
redobrada para procederem de acordo com o que realmente o idoso quer ou aceita para
si, afinal, pode haver divergência no modo de ver do médico e de seu paciente.
Um exemplo ilustra a hipótese.
“Uma mulher de 82 anos adentrou o consultório do Dr. Mayerovitz.
– Doutor, disse ela sofregamente, não estou me sentindo bem.
– Sinto muito, Sra. Kupinik; algumas coisas a medicina mais avançada
pode curar. Eu não tenho como torná-la mais jovem, a senhora
compreende.
Ela respondeu de imediato:
– Doutor, quem foi que lhe pediu que me fizesse mais jovem? Tudo
que eu quero é que possa me fazer mais velha!”66
66
BONDER, Nilton. O segredo judaico da resolução de problemas. Rio de Janeiro: Imago, 1995, p. 80.
67
Sobre a temática da vulnerabilidade de todos os doentes, idosos ou não, e da necessidade de esclarecê-
los especialmente, DE MEIRELLES, Jussara Maria Leal e TEIXEIRA, Eduardo Didonet. Consentimento
livre, dignidade e saúde pública: o paciente hipossuficiente. In: Diálogos Sobre Direito Civil:
Construindo a Racionalidade Contemporânea. Coordenadores: RAMOS, Carmem Lucia Silveira,
TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloisa Helena, GEDIEL, José Antônio Peres, FACHIN, Luiz Edson
e BODIN DE MORAES, Maria Celina. Rio de Janeiro: Renovar: 2002, p. 355: “Necessário, portanto,
levar-se em conta a vulnerabilidade do paciente ao informá-lo a respeito da doença e da terapêutica
possível ou não, acessível ou não, bem como dos resultados que se pode obter a partir da eleição do
tratamento respectivo. Para ser possível conceder o denominado consentimento livre e esclarecido, é
preciso, obviamente, o paciente seja devidamente informado sobre a sua doença e o tratamento a ser
ministrado.
Não é por demais evidente dizer-se que a informação deve ser bem compreendida pelo paciente. Mais do
que informado, ele deve ser esclarecido. Se não entende a linguagem médica, esta deve ser simplificada.
Se consegue entendê-la, mas não tem condições de assimilá-la, posto que seu sofrimento é muito maior
que a sua capacidade de raciocínio, isso deve ser considerado. O consentimento, em tais casos, não é
livre; é eivado de vício: a vulnerabilidade.”
68
GOLDIM, José Roberto. Bioética e envelhecimento. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia,
Organizadores: DE FREITAS, Elizabete Viana, PY, Ligia, NERI, Anita Liberanesso, CANÇADO, Flávio
intervenções médicas, que, obedecendo aos princípios bioéticos do respeito pela
autonomia do doente, da não maleficência, da beneficência e da justiça,69 – o que afasta
a negligência dos profissionais da saúde a qual, evidentemente, lhes atribui
responsabilidades – estão, entretanto, sujeitas a não alcançar o resultado pretendido ou
até a causar males maiores.70
Portanto, gozar de capacidade desponta como requisito para que o idoso possa
emitir, validamente, o consentimento de uma intervenção nos domínios de seu corpo ou
mente adoentados.71 É necessária sua capacidade para entender a condição em que se
encontra, sopesar os riscos e benesses potenciais do tratamento e, a partir disso,
deliberar a respeito segundo suas convicções.72 O conteúdo de capacidade para decidir
sobre os domínios do seu corpo, genericamente considerado, é o mesmo da capacidade
de fato, entendida como a aptidão para usar e exercer, por si mesmo, os direitos na vida
civil. 73
Aluízio Xavier, GORZONI, Milton Luiz, DA ROCHA, Sônia Maria. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,
2002, p. 86: “O paciente também tem o direito de ‘não saber’, isto é, o direito de não ser informado, caso
manifeste expressamente essa sua vontade. O profissional de saúde tem que reconhecer claramente
quando essa situação ocorre e buscar esclarecer com o paciente as suas conseqüências. O paciente deve
ser consultado formalmente se essa é realmente a sua decisão. Após isso, a sua vontade deve ser
respeitada. Nessa situação deve ser solicitado que indique uma pessoa de sua confiança para que seja o
interlocutor do profissional com a família. O próprio paciente, quando possível, deve comunicar à sua
família essas suas decisões.”
69
Consoante BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Principles of biomedical ethics. 4 ed.
New York, Oxford: Oxford University Press, 1994, p. 120- 394, passim.
70
ROMEO CASABONA, Carlos María. O consentimento informado na relação entre médico e paciente:
aspectos jurídicos, p. 130: “A questão em torno do consentimento informado é, pois, esta: em que
consentir o paciente, pois o objeto de seu consentimento é a intervenção médica como tal, com sua
tendência diagnóstica, preventiva ou curativa, mas também com seu inevitável risco de danos.”
71
PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalitá constituzionale, p. 344: “A idade não pode ser um
aspecto que incide sobre o status personae. A menoridade, a idade madura ou senil que seja, não incide
por si só sobre a propensão à titularidade das situações subjetivas. O seu efetivo exercício pode ser
limitado ou em parte excluído, a partir não de predeterminadas, abstratas, rígidas e às vezes arbitrárias
valorações ligadas às diversas fases da vida, mas sim com base na correlação, valorada atentamente, entre
a natureza do interesse no qual se consubstancia a concreta situação e a capacidade de entender e de
querer. Deve-se verificar a real capacidade de efetuar e pôr em ação as escolhas e os comportamentos
correlacionados às situações subjetivas interessadas. É fundamental distinguir o idoso auto-suficiente do
idoso em condições de debilidade ou deficiência.” [Traduziu-se livremente do italiano]
72
HIGHTON, Elena I. e WIERRZBA, Sandra M. La relación médico-paciente: el consentimiento
informado. 2 ed. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2003, p. 104.
73
Conforme lições de PEREIRA. Caio Mário da Silva, Instituições de direito civil. Vol 1. 20 ed.
Atualizado por: BODIN DE MORAES, Maria Celina. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 279: “A
senilidade, por si só, não é causa de restrição da capacidade de fato, porque não se deve considerar
equivalente a um estado psicopático, por maior que seja a longevidade. Dar-se-á a interdição se a
senectude vier a gerar um estado patológico, como a arteriosclerose ou a doença de alzheimer, de que
Não se olvida de que os idosos relativamente incapazes possam também, desde
que devidamente assistidos, influir de maneira válida nos atos médicos em si próprios,
uma vez que não são totalmente desprovidos de habilidade mental. 74
Mas os idosos absolutamente incapazes não poderão decidir acerca das
intervenções médicas a que serão submetidos, por não possuírem uma vontade
consciente, destarte, dotada de valor jurídico. Esses idosos, bem como outros que,
embora capazes encontrem-se inconscientes, por coma conseqüente de traumatismo ou
por enfermidade, não poderão optar pelo tratamento de saúde que julgarem mais
favorável, devendo a decisão ser tomada por terceiros, na forma do parágrafo único do
art. 17, do Estatuto do Idoso: “Não estando o idoso em condições de proceder à opção,
esta será feita: I – pelo curador, quando o idoso for interditado; II – pelos familiares,
quando o idoso não tiver curador ou este não puder ser contactado em tempo hábil; [...]”
A prelação pelo curador seguida dos familiares na falta do primeiro contém
dotação de sentido. O que a Lei visa com essa hierarquia de outros sujeitos quando o
idoso não possa manifestar sua vontade, é que consinta a pessoa que dele for mais
próxima em afinidade, que conheça seus desejos anteriormente expressados e seus
valores pessoais, logo, que se manifeste do modo mais próximo ao que manifestaria o
idoso se gozasse de capacidade para tanto.75
resulte o prejuízo das faculdades mentais. Em tal caso, a incapacidade será o resultado do estado psíquico
e não da velhice.” Em sentido contrário, RAGAZZO, Carlos Emmanuel Joppert. O dever de informar
dos médicos e o consentimento informado. Curitiba: Juruá, 2007, p. 90: “Dessa forma, embora possam ter
relevantes pontos de interseção, o fato é que os dois conceitos não se confundem. A capacidade legal de
praticar atos jurídicos não se relaciona com a competência para tomar decisões médicas. Ao paciente
devem ser concedidas todas as oportunidades possíveis de tomar decisões médicas a seu próprio respeito.
Aliás, se deve inclusive preservar o direito de os pacientes incompetentes receberem informação sobre a
sua condição médica e opções, o que os possibilita influir, na medida do possível, em eventuais decisões
quanto a alternativas de tratamento.” Ao que se responde em desacordo e com base nas lições de ROMEO
CASABONA, Carlos María. O consentimento informado na relação entre médico e paciente: aspectos
jurídicos, p. 148, nota 44: “Com certa freqüência se observa na literatura sobre estas matérias a utilização
dos termos ‘competente’ e ‘incompetente’, para se referir à pessoa que tem ou não capacidade para
prestar seu consentimento. Trata-se de expressões de origem anglo-saxônica, no geral importadas por não
juristas, ao fazer a tradução literal das palavras ‘competent’ e ‘incompetent’”.
74
PEREIRA. Caio Mário da Silva, Instituições de direito civil, p. 282: “Os relativamente incapazes não
são privados de ingerência ou participação na vida jurídica. Ao contrário, o exercício de seus direitos se
realiza com a sua presença. Mas atendendo ao ordenamento jurídico a que lhes faltam qualidades que lhes
permitam liberdade de ação para procederem com completa autonomia, exige sejam eles assistidos por
quem o direito positivo encarrega desse ofício.”
75
Refere-se a essa hipótese com muita propriedade, SERTÃ, Roberto Lima Charnaux. A distanásia e a
dignidade do paciente. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 125: “Já no atual Código, há expressa referência
ao ‘descendente que se demonstrar mais apto’( parágrafo 1º do artigo 1775), o que consiste em
cláusula aberta, de interpretação subjetiva, a permitir que venha atuar como representante legítimo dos
De todo modo, cabendo ao idoso, ou, em caso de incapacidade, ao seu curador
ou aos seus familiares decidir acerca do mais favorável tratamento de saúde dentre os
propostos, faz-se imprescindível para um consentimento válido a informação muito bem
prestada. Ela deve ser adequada em termos de qualidade e quantidade, ou seja: relevante
para o consentimento livre e esclarecido do paciente ou de terceiros que, por ele, tenham
que decidir.
Devem constar da informação: elementos característicos ou o caráter da
intervenção, objetivos pretendidos por meio dela, riscos provenientes dela, implicações
adjacentes que com certeza vão ocorrer, conseqüências colaterais presumíveis ou
possíveis, efeitos que serão acarretados no modo de vida do idoso, alternativas de
tratamento, entre outros que a identifiquem com a mais absoluta clareza, como um
vocabulário usado pelos médicos apropriado para o nível intelectual e cultural de quem
vai emitir o consentimento. Mais: a informação não deve pecar por insuficiência ou por
exagero, além de dever ser contínua em determinadas circunstâncias.
Se a informação é insuficiente, retirará do consentimento a natureza livre e
esclarecida que o caracteriza. Se for exagerada, pode levar a temores excessivos sobre
hipóteses remotas e macular a saúde psíquica do doente idoso.76 É obrigação do médico
proceder à avaliação entre o que resulta insuficiente ou exagerado sopesando os
princípios bioéticos do respeito pela autonomia do doente, da não maleficência, da
beneficência, da justiça77, e, na hipótese de paciente idoso, considerar, inclusive, sua
ampla vulnerabilidade.
interesses do incapaz, o seu descendente que se revele mais preparado, sereno e responsável para tão
delicada missão, independente do seu lugar na ordem de idade entre seus irmãos.[...]
Destarte, sobretudo nas últimas etapas da vida do pai ou da mãe, o filho que estiver mais presente no
cotidiano deles, sempre disposto a lhes prover amparo e tomar a frente nas decisões mais difíceis, este
sim, será o mais indicado para desempenhar o mister de curador.
De notar-se que, em qualquer hipótese o Código irá, como alternativa final, deferir ao Judiciário o poder
de decidir a quem entregar a curatela do enfermo incapaz.
[...]Situações haverá em que, por exemplo, um neto dedicado, que tenha sido criado pelo avô, e dele
nunca tenha se afastado, será muito mais habilitado a gerir seus interesses do que um filho que há anos
resida em local distante, e não se envolva em assuntos familiares.” [grifou-se]
76
Como bem adverte STANCIOLI, Brunello Souza. Relação jurídica médico-paciente. Belo Horizonte:
Del Rey, 2004, p. 65 e 66: “Não se deve prescindir do dever de falar a verdade ou, no mínimo, calar a
verdade, desde que não com o intuito de ludibriar. O médico pode, por exemplo, recusar-se a fornecer
determinadas nuances da informação, desde que não induza o paciente a crença de que diz toda a verdade
(uma omissão dolosa). Em qualquer hipótese, no entanto, não é permitido às partes faltar à verdade.”
77
Nesse diapasão, são elucidativas as lições acerca de tais princípios feitas por BARBOZA, Heloisa
Helena. Princípios do biodireito. In: Novos Temas de Biodireito e Bioética. Organizadores: BARBOZA,
Heloisa Helena, DE MEIRELLES, Jussara Maria Leal e BARRETTO, Vicente de Paulo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003, p. 55: “O estabelecimento dos mencionados princípios da bioética decorreu da criação
Já a continuidade da informação diz respeito às ações terapêuticas que não se
esgotam em apenas um ato e cuja peculiaridade só se revela posteriormente ao início da
assistência médica. Assim, paulatinamente, o médico informa e obtém ulteriores
consentimentos na medida em que avança com o tratamento.78 Preferivelmente, a
informação deve ser transmitida tanto verbalmente, com vocábulos compreensíveis para
os idosos, quanto por escrito, com um tamanho de letra ajustado à sua capacidade de
leitura. “Um documento elaborado com vocabulário inadequado, estrutura de texto de
difícil compreensão e tamanho de letra pequeno pode, por si, gerar um constrangimento
pela sua dificuldade de acesso e entendimento.” 79
A tomada de decisão pelo idoso enfermo, ou por terceiros por ele responsáveis,
deve dotar-se de voluntariedade. Por isso, o consentimento ou o não consentimento
devem ocorrer livres de qualquer forma de coação, persuasão forte ou
constrangimentos.80 Aqui, aborda-se o não consentimento como rejeição à intervenção
médica, logo, como manifestação da vontade do paciente que não deseja se submeter ao
tratamento proposto, seja diagnóstico, preventivo ou curativo. Ainda assim, cabe ao
médico sugerir outros tipos de terapêutica ou mesmo paliativos para a situação
patológica que acomete o idoso. Veja-se bem: a Lei dá ao idoso “o direito de optar pelo
tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável”, considerando que, diante de
doenças terminais, ele possa optar por tratamentos meramente paliativos, que não
posterguem sua vida de maneira fútil. Mas não se cogita em deixá-lo, se doente, sem
pelo Congresso dos Estados Unidos de uma Comissão Nacional encarregada de identificar os princípios
éticos básicos que deveriam guiar a investigação em seres humanos pela s ciências do comportamento e
pela biomedicina. Iniciados os trabalhos em 1974, quatro anos após publicou a referida Comissão o
chamado Informe Belmont, contendo três princípios: a) o da autonomia ou do respeito às pessoas por suas
opiniões e escolhas, segundo valores e crenças pessoais; b) o da beneficência que se traduz na obrigação
de não causar dano e de extremar os benefícios e minimizar os riscos; c) o da justiça ou imparcialidade na
distribuição dos riscos e benefícios, não podendo uma pessoa ser tratada de maneira diferente de outra,
salvo haja entre ambas uma diferença relevante. A esses três princípios Tom L. Beauchamp e James F.
Childress acrescentaram outro, em obra publicada em 1979: o princípio da ‘não maleficência’, segundo o
qual não se deve causar mal a outro e se diferencia assim do princípio da beneficência que envolve ações
de tipo positivo: prevenir ou eliminar o dano e promover o bem, mas se trata de um bem de um contínuo,
de modo que não há uma separação significante entre um e outro princípio.” [Grifou-se]
Para uma análise pormenorizada de tais princípios, veja-se, por todos, BEAUCHAMP, Tom L. e
CHILDRESS, James F. Principles of biomedical ethics. 4 ed. New York, Oxford: Oxford University
Press, 1994, p. 120- 394.
78
ROMEO CASABONA, Carlos María. O consentimento informado na relação entre médico e paciente:
aspectos jurídicos, p. 155-157.
79
GOLDIM, José Roberto. Bioética e envelhecimento, p. 89
80
GOLDIM, José Roberto. Bioética e envelhecimento, p. 89.
qualquer tipo de tratamento que o alivie das dores e dos mal estares. O Código Civil
brasileiro afirma, em seu art. 15, que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se,
com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”. Nesse caso, note-se
que há rejeição à intervenção médica em favor da vida.
Observe-se que na Espanha será pertinente a alta voluntária “quando já não se
tenha sentido a permanência do paciente no centro sanitário ou sua visita ao mesmo, ou
seja, quando já não esteja à disposição do pessoal sanitário medida alguma em favor da
saúde do paciente, além daquela que foi rejeitada por ele.”81 Acrescenta-se que lá, o
paciente com capacidade pode prescindir de tratamentos vitais.82 Na Inglaterra,
inclusive, ao juiz foi concedido o poder de consentir em favor do suicídio assistido,
enquanto no Brasil esta prática configuraria crime, tipificado no art. 122 do Código
Penal.83
Nesse particular há importantes posições doutrinárias, tanto no âmbito da
medicina quanto no do direito, a favor de não delongar a agonia de um idoso em estado
terminal, submetendo-o a um depauperamento vagaroso, conseguido por meio da
tecnologia e dos avanços da ciência médica, ou seja, pelo mecanismo da distanásia. Em
prol da dignidade humana, valor máximo do ordenamento jurídico pátrio, parecem
acertados os argumentos contra esse prolongamento artificial da vida, que pode gerar
aflição e amargura a um ser humano que já existiu suficientemente para alcançar a
velhice, fase final de sua trajetória na qual, inevitavelmente, encontrar-se-á com a
finitude.
Então, o que deve ser feito se é sabido que o ancião prefere morrer em sua casa
ao invés de no hospital, quando também se sabe que em casa ele morrerá mais depressa?
“Talvez não seja supérfluo dizer que o cuidado com as pessoas fica muito defasado em
81
ROMEO CASABONA, Carlos María. O consentimento informado na relação entre médico e paciente:
aspectos jurídicos, p. 170.
82
ROMEO CASABONA, Carlos María. O consentimento informado na relação entre médico e paciente:
aspectos jurídicos, p. 169.
83
Relata DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Tradução de:
CAMARGO, Jefferson Luiz. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 259, que: “Nancy B., de vinte e cinco
anos sofria de uma doença rara neurológica chamada síndrome de Guillain-Barre que a deixava paralisada
do pescoço para baixo, e pediu ao juiz que autorizasse o médico a desligar o aparelho de respiração
artificial que a mantinha viva. O médico lhe disse que ligada a esse aparelho, poderia continuar viva por
muitos anos ainda, mas ela preferia morrer. ‘As únicas coisas que restam na vida são assistir à televisão e
ficar olhando as paredes. Para mim, chega. Já estou ligada ao respirador há dois anos e meio, e acho que
fiz a minha parte’. O juiz disse que ficaria muito feliz se Nancy mudasse de opinião, mas que a
compreendia e concordaria com seu pedido. O respirador foi desligado e Nancy B. morreu em fevereiro
de 1992.”
relação ao cuidado com seus órgãos.”84 “Assim, como regra geral, para uma intervenção
que prolonga a existência ser considerada adequada, ela não pode piorar a qualidade de
vida”85 do idoso.
Os avanços tecnológicos de hoje devem servir sempre para estancar a dor do
idoso defronte à morte. Após a certeza de doença incurável parece correto que a
qualidade de vida prepondere em face da sua quantidade e há meios de proporcionar
esse tipo de auxílio à pessoa idosa enquanto ela subsistir.86 Nesse propósito, entram em
cena os analgésicos, antiinflamatórios, antieméticos, psicofármacos, antibióticos, anti-
secretores, protetores de mucosa gástrica e laxativos para que sejam desenvolvidos
cuidados paliativos, tendo em vista que o sofrimento não faz, essencialmente, parte do
processo de morrer.87
Apesar de a distanásia possuir defensores e opositores, conjectura-se que no
Brasil ela tem angariado mais oponências do que aplausos.
O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, atendendo à consulta
da Dra. C. S. R. – cujo conteúdo tratava de que atitude tomar como médica em face de
paciente de 78 anos de idade, com neoplasia maligna metastática sem resposta ao
tratamento habitual, após autorização dos familiares para não intubar, em franca
evolução para insuficiência respiratória – emitiu o seguinte parecer:
“Anexamos à presente Consulta manifestações deste Conselheiro e
outros (bioeticistas ou juristas), favoráveis ao não prolongamento da
vida por ‘meios heróicos’ em pacientes terminais, mormente se for a
pedido do próprio paciente ou da família. Há inclusive, Resolução
recente da Comissão de Bioética do HC-FMUSP, que poderá ser
solicitada e juntada.
84
Essa ponderação é feita por ELIAS, Norbert em Envelhecer e morrer, p. 103.
85
PASCHOAL, Sérgio Márcio Pacheco. Qualidade de vida na velhice. In: Tratado de Geriatria e
Gerontologia. Organizadores: DE FREITAS, Elizabete Viana, PY, Ligia, NERI, Anita Liberanesso,
CANÇADO, Flávio Aluízio Xavier, GORZONI, Milton Luiz, DA ROCHA, Sônia Maria. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 2002, p. 83.
86
BURLÁ. Claudia. Envelhecimento e cuidados ao fim da vida. In: Tempo de Envelhecer: Percursos e
Dimensões Psicossociais. Organizadores: PY, Ligia, DE SÁ, Jeanete Liasch Martins, PACHECO, Jaime
Lisandro e GOLDMAN, Sara Nigri. Rio de Janeiro: NAU, 2004, p. 377: “Os cuidados paliativos têm
início quando do diagnóstico de uma doença incurável. Mesmo na fase aguda do tratamento, medidas
paliativas devem ser tomadas para aliviar qualquer sintoma que cause desconforto ao paciente,
paralelamente a tratamentos como tentativa de cura. Mas, à medida que a doença evolui e a cura não é
mais possível para aquele paciente, os cuidados paliativos passam a ser a modalidade terapêutica mais
adequada. A estratégia do tratamento, então, muda para uma abordagem que visa ao alívio dos sintomas e
não mais à cura, pela impossibilidade de isso ocorrer.”
87
BURLÁ. Claudia. Envelhecimento e cuidados ao fim da vida, p. 378-392.
Já se vai consagrando entre nós o princípio da autonomia. Já não tem
mais a mesma força, nos dias atuais, a suposta imposição hipocrática
de se preservar SEMPRE a vida, a qualquer custo.
Do próprio Vaticano emanaram considerações no sentido de se
permitir, aos pacientes terminais, uma morte digna, com o mínimo de
sofrimento para eles e para os seus familiares.
Assim sendo, a situação descrita pela consulente se enquadra
claramente nos casos em que o médico, intervindo sobre o paciente,
no mais das vezes à revelia ou até mesmo contra a vontade dele e de
seus familiares, passa a assumir mais a postura de torturador do que a
de médico.
Está claro que, na suspensão do tratamento, toda documentação
comprovante da vontade do paciente, e de seus familiares, bem como
do estágio terminal da doença, deverá ser anexada ou inscrita no
prontuário, para fins de possível futura defesa do médico diante de
virtual acusação de omissão ”88
Esclareça-se que, se o paciente idoso preferir a distanásia, é direito seu ter acesso
a ela, pois há idosos que preferem uma morte lenta, com sofrimento, desde que
conservado um bocado a mais de sua existência. O ideal é que a pessoa idosa adoecida
possua capacidade para optar pelo que melhor lhe convenha e de fazer escolhas sobre o
que diga respeito ao que resta de sua vida.
Tem-se como exemplo o caso da idosa de setenta e seis anos que, após uma
cirurgia cardíaca não mais pôde se retirar da unidade de terapia intensiva embora
sofresse uma crise após a outra. Ela desejava, sempre que se fizesse necessário,
submeter-se ao processo de “ressuscitação” e sua vontade foi salvaguardada mesmo
quando passou por uma parada cardíaca usando um respirador artificial. Na ocasião, a
filha não permitiu que deixassem de ressuscitá-la, argumentando que sua família tinha o
costume de ‘lutar até o fim’ como em casos antecedentes que envolveram a vida do
marido e da tia da idosa, reforçando sua posição, em consonância com os valores da
mãe, ao aduzir: ‘Até nosso gato recebeu transfusões de sangue quando estava
agonizante.’89
Porém, há exceções ao direito do idoso de prestar consentimento.
A supremacia dos interesses coletivos exsurge como uma delas, em certas
ocasiões em que o aspecto coletivo deve prevalecer em face do interesse individual. No
ambiente médico-sanitário é comum que se controle uma enfermidade transmissível a
88
CREMESP- Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Parecer nº 37267. Data de
Emissão: 1999. Ementa: Médica que recebe autorização de familiares para não intubar paciente de 78
anos com neoplasia maligna metastática sem resposta ao tratamento habitual. Em:
http://www.cremesp.org.br, consultado em 15. 11.2007.
89
Exemplo extraído da obra de DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades
individuais, p. 263.
outras pessoas como em circunstâncias de epidemia ou de doenças infecto contagiosas.
Tratam-se de situações nas quais a autonomia do idoso para o consentimento informado
pode restringir-se por medidas limitativas, tendo em vista o bem estar e a saúde
públicos. Até mesmo sua liberdade de ir e vir poderá ser cerceada. Faculta-se inclusive
ao Poder Público, impor a tais idosos portadores de agentes patogênicos, vacinação
compulsória e proibição de entrada em determinados espaços.90
Situações de emergência vital previstas também pelo parágrafo único do art. 17
do Estatuto do Idoso fazem com que o médico decida por ele na falta de tutor ou de
familiares.91
Mas só em casos limite, onde a vida do idoso esteja em xeque, é permitido que o
médico prescinda do consentimento informado para praticar intervenções, invertendo,
pois, o costume seguido num passado próximo que lhe entregava o poder de decisão
acerca do tratamento mais satisfatório para o enfermo.92 Trata-se do consentimento
presumido, que possui como base jurídica o estado de necessidade do paciente e a
impossibilidade, sob risco de vida, de primeiramente consultar pessoas do entorno do
idoso, como o possível curador e familiares.93
90
Consoante ROMEO CASABONA, Carlos María. O consentimento informado na relação entre médico
e paciente: aspectos jurídicos, p. 165.
91
Art. 17 do Estatuto do Idoso: “Não estando o idoso em condições de proceder à opção, esta será feita:
[...]
III – pelo médico, quando ocorrer iminente risco de vida e não houver tempo hábil para a consulta a
curador ou familiar;
IV – pelo próprio médico, quando não houver curador ou familiar conhecido, caso em que deverá
comunicar o fato ao Ministério Público.”
92
Conforme esclarece BARBOZA, Heloisa Helena. A autonomia da vontade e a relação médico-paciente
no Brasil. In: Separata de Lex Medicinae. Revista Portuguesa de Direito da Saúde. Coimbra: Coimbra
Editora e Centro de Direito Biomédico. Julho/ 2004, p. 7: “Desde os tempos de Hipócrates até os nossos
dias, busca-se o bem do paciente, ou seja, aquilo que, do ponto de vista da medicina, se considerava
benéfico para o paciente, sem que esse em nada intervenha na decisão. Esse tipo de relação,
apropriadamente denominada paternalista, atribui ao médico o poder de decisão sobre o que é melhor
para o paciente. Similar à relação dos pais para com os filhos, foi durante longo tempo considerada a
relação ética ideal, a despeito de negar ao enfermo sua capacidade de decisão como pessoa adulta. O
médico tomava todas as decisões sem o paciente, a quem se dirigia para comentar o tratamento com vista
a assegurar o seu cumprimento ‘Um bom paciente era o que seguia o tratamento e um mau paciente o que
não o seguia’
A relação de assistência – compreendendo-se como tal: diagnóstico, exames, tratamento, enfim toda gama
de cuidado com as pessoas que têm algum problema de saúde, de natureza paternalista – defendida por
alguns até o presente, manteve-se durante milênios ‘tendo como alicerce a perpetuação de três crenças’: a
obrigação de reverência aos médicos, seres dotados de um poder sobrenatural de curar; a fé nos doutores;
a obediência ao médico, já que ‘quem sabe mais, pode mais.’ ”
93
ROMEO CASABONA, Carlos María. O consentimento informado na relação entre médico e paciente:
aspectos jurídicos, p.166-168.
Por todo o exposto, afirma-se que o consentimento informado do idoso é
instrumento de autodeterminação em questões relativas à sua saúde. No mesmo sentido,
a autonomia, não só para o consentimento informado, mas para qualquer escolha de
como viver os anos de velhice, manifesta condição de saúde da pessoa idosa.
Já se reconheceu que o aumento da idade amplia as possibilidades de episódios
de doenças e de danos à funcionalidade psicofísica e social. Contudo, se o ser humano
envelhece com autonomia e independência, continuando ativo no exercício de seus
papéis sociais e, na intimidade, prevalece dono de si mesmo, a gozar de um juízo de
significado pessoal, mesmo que acometido por um ou outro agravo, pode-se afirmar que
ele é saudável, pois autonomia também é sinônimo de saúde.
3 - A saúde: direito prioritário da pessoa idosa
A Constituição da OMS (Organização Mundial de Saúde), agência internacional
pertencente ao grupo de agências da ONU (Organização das Nações Unidas), define
saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a
ausência de afecção ou doença.”
Com esse significado a saúde recebe o tratamento mais abrangente possível: uma
pessoa que não contenha qualquer doença ainda não possui saúde se não tiver um
completo, quer dizer, um conteúdo concluído de bem estar não só físico e mental, mas
também social. Realmente, o teor abrangido pela definição de saúde da OMS serviria
também para conceituar felicidade: um estado de completo bem-estar físico, mental e
social.
Não se pretende com essa primeira asserção criticar o critério adotado pela OMS
para aferir saúde. Entende-se que dificilmente poderia ser elaborado algo melhor, que o
ser humano merece o estabelecido e que esse estado ideal de coisas deve ser
constantemente buscado, pois restringi-lo poderia ocasionar um retrocesso social.
Paralelamente, a OMS define qualidade de vida como: “a percepção do
indivíduo de sua posição na vida no contexto da cultura e sistemas de valores nos quais
ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações.” Aqui, o
conteúdo apresentado toca na subjetividade de cada um, pois depende da percepção, ou
seja, do que possa se aperceber, no sentido de sentir, acerca de sua posição na vida, no
contexto da cultura e sistemas de valores nos quais se vive e também o seu sentimento
(subjetivo) em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações. De tal
modo, mesmo que a vida de alguém pareça qualitativamente maravilhosa aos olhos dos
outros, ela não será se esse alguém assim não a experimentar.
Ambas as definições são importantes para se construir uma acepção de saúde
para a pessoa idosa, sem se esquecer que o envelhecimento acarreta “trocas anatômicas
e funcionais não produzidas por doenças” e que se diferem entre os indivíduos, mas que
fazem parte de “um processo biológico intrínseco, declinante e universal, no qual se
podem reconhecer marcas físicas e fisiológicas inerentes.”94 Por isso, torna-se difícil
implementar a medicina tradicional curativa para os idosos. Na terceira idade alterações
anatômicas, funcionais e doenças crônico-degenerativas apresentam-se irreversíveis,
embora possam ser controladas pela medicina geriátrica. O grande problema enfrentado
é o não controle dessas afecções, que gera sintomas desagradáveis, seqüelas e
complicações. “Estas serão responsáveis por deterioração rápida da capacidade
funcional, surgindo incapacidade, dependência, perda de autonomia, necessidade de
cuidados de longa duração e institucionalização.”95
Logo, proclamar saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e
social, além da ausência de afecção ou doença para os anciões em sua generalidade
parece utópico, tendo em vista que não é comum envelhecer sem passar pelo
mencionado processo biológico próprio do envelhecimento que, certamente,
compromete a saúde percebida nos termos da OMS.96
Todavia, não se proclama que a saúde na terceira idade tal como prevista pela
OMS – um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência
de afecção ou doença – seja inalcançável. Há de se levar em conta a existência de idosos
com propensão genética acima do normal, capazes de usufruir o previsto na
Constituição Internacional de Saúde, e, nesses casos, a Medicina e o Direito devem
assegurar a manutenção dessa saúde. Adverte-se, porém, que tais casos constituem
raridades. Importante asseverar que não se quer dar menos saúde à pessoa idosa se ela
94
DE FREITAS, Elizabete Viana, MIRANDA, Roberto Dishinger e NERY, Mônica Rebouças.
Parâmetros clínicos do envelhecimento e avaliação geriátrica global. In: Tratado de Geriatria e
Gerontologia. Organizadores: DE FREITAS, Elizabete Viana, PY, Ligia, NERI, Anita Liberanesso,
CANÇADO, Flávio Aluízio Xavier, GORZONI, Milton Luiz, DA ROCHA, Sônia Maria. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 2002, p. 609.
95
PASCHOAL, Sérgio Márcio Pacheco. Qualidade de vida na velhice. In: Tratado de Geriatria e
Gerontologia, p. 81.
96
RAMOS, Luiz Roberto. Epidemologia do envelhecimento. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia.
Organizadores: DE FREITAS, Elizabete Viana, PY, Ligia, NERI, Anita Liberanesso, CANÇADO, Flávio
Aluízio Xavier, GORZONI, Milton Luiz, DA ROCHA, Sônia Maria. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,
2002, p. 74 e 75.
possui capacidade para usufruir o máximo, mas ser realista e dar todo o possível dentro
das limitações do ser encanecido.
Por outro lado, não se apregoa que velhice seja sinônimo de não saúde. A
geriatria, no estágio em que se encontra, focaliza “a preservação e/ou a recuperação fun
cional” por meio de “uma abordagem diagnóstica multifacetada dos problemas físicos,
psicológicos e funcionais”, do idoso.97 Aliás, considera-se possível gozar de uma
velhice bem sucedida preservando a saúde física e psíquica até a idade mais adiantada,
observada como situação de bem estar pessoal, familiar e social, tendo em vista que o
envelhecer, na concepção dos cientistas e mesmo dos leigos, “não implica,
necessariamente, doença e afastamento, e de que o idoso tem potencial para mudança e
reservas de desenvolvimento inexploradas.”98
Nesse sentido, parece mais próximo das condições inerentes do idoso, o ideário
de qualidade de vida acima esboçado, tendo em vista que ele também se relaciona com a
vida saudável, numa perspectiva mais condizente com o self da pessoa idosa.99
Afirma-se que pessoas bastante idosas possuem condições de auferir uma vida
saudável, apesar das limitações referidas, no caso de se conceber saúde como
capacidade funcional.100 Por conseguinte, “embora a grande maioria dos idosos seja
portadora de, pelo menos, uma doença crônica, nem todos ficam limitados por essas
97
DE FREITAS, Elizabete Viana, MIRANDA, Roberto Dishinger e NERY, Mônica Rebouças.
Parâmetros clínicos do envelhecimento e avaliação geriátrica global. In: Tratado de Geriatria e
Gerontologia, p. 617.
98
FREIRE, Sueli Aparecida. A personalidade e o self na velhice: continuidade e mudança. In: Tratado de
Geriatria e Gerontologia. Organizadores: DE FREITAS, Elizabete Viana, PY, Ligia, NERI, Anita
Liberanesso, CANÇADO, Flávio Aluízio Xavier, GORZONI, Milton Luiz, DA ROCHA, Sônia Maria.
Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002, p. 929.
99
Refere-se ao self , FREIRE, Sueli Aparecida. A personalidade e o self na velhice: continuidade e
mudança, In: Tratado de Geriatria e Gerontologia, p. 929 elucidando que se trata de: “Termo que se refere
a Eu, Eu-mesmo, Si-mesmo. Será mantida a palavra em inglês e em itálico porque esse uso é corrente na
literatura em várias línguas.” E na p. 930, explica que: “Na literatura sociológica e psicológica, o self é
definido como um conjunto de estruturas de autoconhecimento que representam o que um indivíduo
pensa de si mesmo e quanto gasta de energia e de cuidados consigo próprio. Constitui o âmago do
autoconceito, a consciência de que o indivíduo tem de sua contínua identidade e de sua relação com o
ambiente, ou do que vê como essencial sobre si mesmo. Desenvolve-se gradualmente, depende da
interação do indivíduo com os outros e tem funções reguladoras sobre a personalidade.”
100
Nesse sentido também se manifesta BRAGA, Pérola Melissa V. Direitos do idoso segundo o estatuto
do idoso, p. 117.
doenças, e muitos levam uma vida perfeitamente normal com suas doenças controladas
e expressa satisfação na vida.”101
Jungida à idéia de saúde como capacidade funcional, compreende-se também
que gozar de saúde relaciona-se a possuir qualidade de vida, na acepção da OMS.
Trabalhando especificamente com o idoso “a qualidade de vida na velhice pode ser
definida como a avaliação multidimensional referenciada a critérios sócio-normativos e
intrapessoais, a respeito das relações atuais, passadas e prospectivas entre o indivíduo
maduro ou idoso e o seu ambiente.”102
Outro fator que avalia a qualidade de vida do idoso é a medida de sua
autonomia. 103
A autonomia apresenta-se como a habilidade de definir e realizar seus
próprios intentos, portanto, não envolve saber se o idoso é, independente do quão
avantajada seja sua idade, hipertenso, diabético, cardíaco ou se medica com
antidepressivos. Caso ele mantenha a aptidão para conduzir sua vida e decidir como e,
em que circunstâncias, se dedicará ao trabalho em qualquer modalidade, ao lazer, ao
cuidado consigo e aos relacionamentos e atividades sociais, apesar dos agravos
apontados, seguramente será avaliado como uma pessoa saudável.104
O envelhecimento bem sucedido, ou seja, saudável, é o somatório da capacidade
funcional aliada à qualidade de vida e à autonomia da pessoa idosa. No entanto, faz-se
imperioso ressaltar que a perda delas são conjecturas muito comuns na velhice, pois,
101
RAMOS, Luiz Roberto. Epidemologia do envelhecimento. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia, p.
74.
102
PASCHOAL, Sérgio Márcio Pacheco. Qualidade de vida na velhice. In: Tratado de Geriatria e
Gerontologia, p. 81.
103
LEMOS, Naira e MEDEIROS, Sônia Lima. Suporte social ao idoso dependente. In: Tratado de
Geriatria e Gerontologia. Organizadores: DE FREITAS, Elizabete Viana, PY, Ligia, NERI, Anita
Liberanesso, CANÇADO, Flávio Aluízio Xavier, GORZONI, Milton Luiz, DA ROCHA, Sônia Maria.
Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002, p. 893: “Na velhice, a manutenção da autonomia e da
independência estão intimamente ligadas à qualidade de vida. A autonomia e a independência, entre os
idosos, são ótimos indicadores de saúde. Uma das formas de se qualificar a qualidade de vida de um idoso
é avaliando-se o grau de autonomia que possui e o grau de independência com que desempenha as
funções do dia-a-dia, sempre levando o contexto sociocultural em que vive. Isto porque é este que vai lhe
oferecer oportunidades ou restrições para o exercício total ou parcial da independência e da autonomia.
Contextos aceitadores e respeitadores dos direitos de todos os cidadãos, e que, por isso, ofereçam
compensações e ajudas a cada um segundo a sua singularidade, têm maior capacidade para garantir a
autonomia e a independência de seus membros, entre eles os idosos.”
104
RAMOS, Luiz Roberto. Epidemologia do envelhecimento. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia, p.
75.
nessa altura da vida, corriqueiramente, ocorrem modificações funcionais as quais, não
controladas, retiram dos anciãos a saúde.
Na velhice as situações mórbidas estão adjacentes, desencadeando-se com mais
facilidade do que nas pessoas jovens, pois a capacidade de reserva e de defesa do idoso
também se tornam menores. O envelhecimento proporciona a diminuição da disposição
para se adaptar, de tal maneira que o indivíduo fica muito mais vulnerável aos processos
traumáticos, infecciosos e psicológicos.
Do mesmo modo, é habitual que a pressão arterial, o débito cardíaco, o
equilíbrio hidroeletrolítico e o fluxo sanguíneo encontrem-se debilitados na terceira
idade.105 No aparelho locomotor observa-se alteração na marcha, diferenciada dos mais
jovens por desenvolver-se a passos curtos, mais lentos ou mesmo por pés que se
arrastam; os movimentos dos braços perdem a amplidão situando-se mais junto ao
corpo. Na visão podem surgir as cataratas, degeneração macular, glaucoma e retinopatia
diabética, além do decrescimento da habilidade visual por vários outros fatores
decorrentes do envelhecimento. No aparelho auditivo há perda da acuidade às vezes
acompanhada por estados vertiginosos e zumbidos.106 Acrescente-se que as demências e
depressões são relativamente freqüentes na maior idade.107
Enquanto na infância mais adiantada, na juventude e mesmo na idade adulta não
próxima à velhice esses agravos são raros e, quando existentes, constituem desafios para
a medicina e a ciência – uma vez que pés que se arrastam para conseguir se
movimentar, ou demências degenerativas não são próprios da juventude – na velhice
esses transtornos são muitíssimo comuns.
Quando se é jovem apenas se usufrui da saúde sem sequer percebê-la, porque
seu oposto, a doença – e não se refere a resfriados – inexiste usualmente.
Jovens e idosos habitam mundos diferentes. Enquanto gozar de saúde na
juventude é algo natural e as enfermidades consistem exceções à regra, permanecer
105
DE FREITAS, Elizabete Viana, MIRANDA, Roberto Dishinger e NERY, Mônica Rebouças.
Parâmetros clínicos do envelhecimento e avaliação geriátrica global. In: Tratado de Geriatria e
Gerontologia, p. 611.
106
DE FREITAS, Elizabete Viana, MIRANDA, Roberto Dishinger e NERY, Mônica Rebouças.
Parâmetros clínicos do envelhecimento e avaliação geriátrica global. In: Tratado de Geriatria e
Gerontologia, p. 611.
107
RAMOS, Luiz Roberto. Epidemologia do envelhecimento. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia, p.
75.
saudável na velhice significa triunfar num entorno de adversidades que envolvem o ser
envelhecido.
Por isso, ao tratar dos direitos fundamentais do idoso seu Estatuto elegeu, como
o primeiro deles, o direito à vida jungido à saúde e à dignidade, na forma do art. 9º: “É
obrigação do Estado, garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde, mediante
efetivação de políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em
condições de dignidade.”
É importante ressaltar o conteúdo normativo do artigo em comento, pois ele
agrega à vida saudável àquela que se dá em condições de dignidade. De nada adianta ao
idoso estar vivo se não goza de bem-estar físico, psíquico e social, pois, sem esses
predicados, não há que falar em vida nas condições de dignidade a que toda pessoa
humana tem direito.
A partir do caráter normativo do princípio da dignidade humana, todas as
pessoas fazem jus a viver dignamente, gozando de saúde, em qualquer etapa de sua
existência. Como os idosos são propensos às enfermidades imanentes da terceira idade,
sua saúde, quando em bom estado, deve ser preservada a todo custo e, quando
deficitária, precisa ser reabilitada com primazia, pois a queda na saúde de um idoso
pode significar a perda da vida em dignidade.
Compreende-se que a existência digna dos anciãos também se compõe pelo
acesso à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, à profissionalização e ao trabalho.108
Mas sem saúde não há como desfrutar desses e de outros direitos tratados com especial
atenção às demandas dos idosos na Lei que infraconstitucionalmente os tutela. Resta
evidente que, sem o ânimo que só um bom estado de saúde torna possível, não há
espaço para a dose de esforço necessária à dedicação aos estudos, à profissionalização e
ao trabalho. Inclusive, se em condições deficitárias de saúde o entusiasmo do ancião é
usurpado, retiram-se dele também, por conseguinte, as condições de se dedicar às
atividades culturais, ao esporte e ao lazer.
Portanto, conclui-se, pela freqüência e rapidez em que na terceira idade a saúde
se esvai, tornando o idoso mais suscetível aos agravos psicofísicos e ao alijamento
social que colocam em xeque uma vida saudável, sem a qual não há uma existência
108
Anote-se, segundo informações trazidas ao conhecimento por BARBOZA, Heloisa Helena. A ética na
saúde. In: Saúde e Previdência Social: desafios para a gestão do próximo milênio. Organizadores:
BAYMA, Fátima e KASZNAR, Istvan. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 177, que a conceituação de
saúde concebida pela 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986 é: “A saúde é a resultante das
condições de Alimentação, Habitação, Educação, Renda, Meio Ambiente, Trabalho, Transporte, Lazer,
Liberdade, Acesso a Posse de Terra e Acesso a Serviços de Saúde.”
envolta pela dignidade, que assegurar o direito à saúde, nessa etapa da vida, constitui
prioridade para a pessoa idosa. Além disso, dentre os direitos fundamentais de segunda
geração agasalhados pela Constituição da República, quais sejam, a educação, a saúde,
o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância e a assistência aos desamparados, ou seja, dentre aqueles
direitos que, para se realizar, necessitam de condutas ativas do Estado ou dos
particulares – no caso brasileiro, sempre com a anuência e a fiscalização estatal – a
saúde exsurge como direito prioritário da pessoa idosa, pois ela é pré-requisito para que
os idosos tenham acesso ao trabalho, à educação, à cultura, ao lazer, ao exercício dos
direitos civis e políticos, em condições de liberdade e dignidade.
Acrescente-se que para os idosos poderem usufruir de seu direito à saúde são
necessárias, concomitantemente, certas condições para a vida em dignidade dadas pelos
direitos fundamentais sociais da aposentadoria ou da assistência aos desamparados e da
moradia. Observe-se que os direitos à saúde, à previdência e à assistência social, aliados
e assegurados, compõem as metas da seguridade social no Brasil, consoante art. 194 da
Constituição da República que apregoa: “A seguridade social compreende um conjunto
integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a
assegurar os direitos à saúde, à previdência e à assistência social.”
Destarte, juntamente com o direito à saúde, são direitos prioritários da pessoa
idosa os direitos à aposentadoria ou à assistência e à moradia, posto que relacionados às
condições mais elementares de vida na terceira idade e por se afigurarem como
pressupostos para que sejam exercitados outros direitos.
Elegeu-se, entretanto, como objeto da presente investigação, o direito à saúde,
exatamente pelo fato de a qualidade de saúde da pessoa estar em decrescência quanto
mais ela se torna idosa. Trata-se de um desafio não só para a medicina, mas também
para o direito, que carrega os instrumentos para que o cuidado médico seja
implementado, a garantia da saúde das pessoas que se encontram na terceira idade.
Ademais, como já colocado, ao lado da previdência ou da assistência e da moradia, a
saúde compõe a tríade básica, anterior e essencial para que haja vida em dignidade nas
idades longevas e para que direitos posteriores tenham condições de se exercer, razão de
se elevá-la à categoria de direito social prioritário da pessoa idosa.
Por essas razões, somente a saúde como direito prioritário da pessoa idosa será
analisado nesse trabalho, afinal, tanto o estudo da Previdência Social quanto da
Assistência Social como do direito à moradia dos idosos daria ensejo a outras Teses.
Mas optou-se por fazer, de maneira panorâmica, alguns comentários ao direito
aos alimentos, previstos nos artigos 11 a 14 do Estatuto do Idoso, de íntima relação com
os direitos constitucionais da aposentadoria e da assistência aos desamparados e ao
direito à habitação, também previsto no Estatuto nos artigos 37 e 38, consectário natural
do direito constitucional à moradia, todavia, sem a menor pretensão de esgotá-los.
Tratar-se-á dos direitos aos alimentos e à habitação, sem os quais não há como se
conceber condições mínimas para a garantia do direito à saúde, em pontos específicos
destinados aos idosos.
Desse modo, o idoso que tenha condições de viabilizar, por seus próprios meios,
alimentos adequados às suas indigências é o que melhor atende à sua autonomia. Os
alimentos, no sentido lato da palavra, abrangem todas as necessidades para o gozo de
uma vida digna e podem provir do direito à aposentadoria, do direito à assistência
social, do próprio trabalho da pessoa que ainda se sinta capaz para tanto, de pensão
deixada por familiares ou mesmo de recursos amealhados ao longo da vida.
Há idosos, que além de se abastecerem, fornecem alimentos aos seus
dependentes, funcionando como verdadeiros arrimos de família. Todavia, outros, sem
qualquer fonte de renda, precisam do suporte dela ou do Estado.
Em princípio, o Estatuto do Idoso dispõe no seu art. 11, que “os alimentos serão
prestados ao idoso na forma da lei civil,” Nesses termos, como alimentos devem-se
entender os propriamente ditos e todo o necessário para a subsistência do alimentado na
vida em sociedade, conforme o disposto no art. 1.920 do Código Civil que, ao falar do
legado de alimentos, acaba por elucidar o sentido desta palavra que “abrange o sustento,
a cura, o vestuário e a casa”109 De acordo com o art. 1.694, § 1º do Código Civil, “os
alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos
recursos da pessoa obrigada.”
Porém, o Código Civil disciplina em seu art. 1.696 que “o direito à prestação de
alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a
obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros”. O artigo em questão
adverte claramente que a obrigação alimentar recai nos parentes mais próximos em
grau. A seguir, o art. 1.697 do Código Civil afirma que, “na falta dos ascendentes cabe a
obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos irmãos
assim germanos como unilaterais.” Logo, só na falta de ascendentes é que os
109
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família, 3 ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 371.
descendentes serão chamados à prestação obrigacional, bem como, só na falta de
descendentes a obrigação recairá sobre os irmãos do alimentado.
Tais estabelecimentos não são acompanhados pelo Estatuto do Idoso que em seu
art. 12 dispõe: “a obrigação alimentar é solidária, podendo o idoso optar entre os
prestadores.”
Há quem sustente a existência de uma antinomia entre os artigos 11 e 12 do
Estatuto, na medida em que se consigna, a priori, que os alimentos serão prestados ao
idoso na forma da lei civil, que dispõe de maneira diversa do referido art. 12 que prevê a
solidariedade da obrigação alimentar. 110
Não se entrevê tal antinomia porque, no que o art. 12 do Estatuto não
excepcionou, vigem as normas civis em relação aos alimentos no que diz respeito a
significarem direito para o alimentado não só à alimentação em si, mas também ao
sustento, à cura, ao vestuário e à casa, na medida do binômio necessidade do
alimentando e possibilidade do alimentante, sem prejuízo de se conceder judicialmente
ao beneficiário do encargo majoração, redução ou até exoneração no quantum recebido
em caso de mudança na situação financeira de quem o supre, na forma do art. 1699 do
Código Civil e de assegurar que, quem fornece alimentos deverá fazê-lo sem desfalque
do necessário ao seu sustento, na dicção do art. 1. 695, também do Código Civil.
O objetivo do art. 12 é que o idoso, cujos meios de subsistência sejam
insuficientes ou mesmo inexistentes para se manter, tenha a opção de acionar o cônjuge
ou o parente melhor abastado, para que obtenha o mais brevemente possível e com
maior certeza, a prestação da qual necessita.111 De tal modo, o idoso poderá escolher
entre seus pais, filhos, netos e irmãos ou cônjuge para a condição de alimentante, sem
110
Confrontando os artigos 11 e 12 do Estatuto do Idoso com o artigo 1.696 do Código Civil, DE JESUS,
Damásio. E. Estatuto do idoso anotado – lei 10.741/2003, aspectos civis e administrativos. São Paulo:
Damásio de Jesus, 2005, p. 54, salienta: “Conforme veremos a seguir, o artigo 11 ora em discussão, ao
recepcionar o Código Civil, criou uma antinomia aparente, visto que o artigo 1.696 estabelece
reciprocidade na obrigação alimentar, enquanto o art. 12 do Estatuto do Idoso fixa solidariedade para os
coobrigados e discricionariedade do idoso na opção pelo obrigado. Isso quer dizer que enquanto um filho
é obrigado a processar primeiro o seu pai para depois para depois pleitear alimentos de seu avô, ainda que
esse último seja milionário, o idoso pode optar por processar seu neto em detrimento de seu filho. A
antinomia em questão só pode ser resolvida pela adoção 1.696 do CC...”
111
Nesse sentido DE FREITAS JR. Roberto Mendes. Direitos do idoso, p. 123: “O texto legal em tela
constitui uma avanço legislativo bastante relevante, pois possibilita ao idoso que proponha a ação
somente contra o parente com melhores condições econômico-financeiras, evitando demandas
tumultuadas e intermináveis, com vários alimentantes se digladiando ao mesmo tempo, interpondo, cada
qual, vários recursos, muitas vezes meramente procrastinatórios, postergando a relevante prestação
jurisdicional requerida pelo idoso necessitado.”
justificar por que. Cabe e ao idoso o discernimento de quem verdadeiramente poderá
auxiliá-lo.
Lembre-se que, como a abrigação alimentar prevista pelo Estatuto do Idoso está
regida pela solidariedade, “o devedor que satisfez a dívida por inteiro tem o direito de
exigir de cada um dos co-devedores a sua quota, dividindo-se igualmente por todos a do
insolvente, se o houver, presumindo-se iguais, no débito, as partes de todos os co-
devedores”, de acordo com o art. 283 do Código Civil. Dessa forma, o alimentante
também resulta beneficiado já que não sofrerá grave prejuízo em sua fortuna porque,
contrariamente ao regime de alimentos do Código Civil em que não cabe solidariedade,
aqui, como no direito das obrigações, ela está instituída entre pais, filhos, netos, irmãos
e cônjuge.
Embora a Lei prefira que a prestação alimentar seja suprida pela família nos
termos dos artigos 11 e 12 já analisados, também a sociedade deverá contribuir para que
não faltem alimentos ao idoso por instrumento da tutela estatal, quando nem ele nem
sua família disponham de recursos para tanto, na forma do art. 14 do Estatuto: “Se o
idoso ou seus familiares não possuírem condições econômicas de prover o seu sustento,
impõe-se ao Poder Público esse provimento, no âmbito da assistência social.”
A proteção do idoso por intermédio da assistência social tem sede na
Constituição da República, em seu art. 203.112
Não se faz necessária contribuição prévia do idoso para gozar do benefício da
assistência, como ocorre no regime da previdência. Ambas são espécies do gênero
seguridade social, mas, para se alcançar os benefícios da previdência é forçosa a
contribuição prévia do beneficiário, enquanto para se conseguir a benesse assistenciária,
o único requisito exigido é a carência comprovada do idoso e de sua família em termos
econômico-financeiros, conforme disposto na Lei.
Antes da entrada em vigor do Estatuto, a Lei nº 8.742 de 1993, conhecida como
Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), dispunha sobre o assunto previsto
constitucionalmente, limitando em sessenta e sete anos a idade para que se pudesse
usufruir do benefício assistenciário, na forma de seu art. 20.
112
Art. 203 da Constituição da República: “A assistência social será prestada a quem dela necessitar,
independente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; [...]
V – garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que
comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família,
conforme dispuser a lei.” [Grifou-se]
Mas, como advento do Estatuto, Lei cronologicamente mais nova e
especialíssima na tutela do idoso, essa passou a vigorar diminuindo a idade para o gozo
do aditamento a partir dos sessenta e cinco anos de idade, segundo seu art. 34.113
Embora tal previsão beneficie o idoso, não parece ainda ideal. Se seu Estatuto
destina-se a regular as direitos assegurados às pessoas com idade igual ou maior que 60
(sessenta) anos, por critérios científicos acerca do envelhecimento que considera idosas
pessoas de 60 (sessenta) anos ou mais nos países em desenvolvimento como o Brasil,
não deveria haver, dentro do próprio Estatuto, a fixação de outras faixas etárias para a
aferição dos direitos da pessoa idosa, ainda mais quando se trata de pessoa não só
vulnerabilizada em razão da idade, mas também em razão de sua condição miserável.
Critica-se a não existência de um conceito genérico de idoso no Brasil, o que dá
ao legislador, por conseqüência, o arbítrio de fixar a idade que queira para a aferição
dos direitos da pessoa idosa, sem um critério científico que justifique porque aquela
idade foi escolhida para o início da fruição de determinado direito.
Quanto à prova da absoluta pobreza da pessoa que fará jus ao recebimento de
um salário, será realizada mediante pesquisa acerca da sua rentabilidade mensal e de seu
núcleo familiar, considerando assim pessoas que vivam sob o mesmo teto e possuam
renda mensal por cabeça inferior a um quarto do salário mínimo.114 Essa perspectiva
alargada de família confirma-se pelo teor do art. 36 do Estatuto: “o acolhimento de
idosos em situação de risco social por adulto ou núcleo familiar, caracteriza
dependência econômica, para os efeitos legais.” Continua, mesmo assim, obrigado o
Estado a fornecer assistência social caso o adulto ou o núcleo familiar não possuam
efetivamente meios de prover o idoso, e a prova disso é que, as mais modernas decisões
jurisprudenciais, não têm se fixado no teor literal do critério acima referido, mas no
113
Art. 34 do Estatuto do Idoso: “Aos idosos, a partir de 65 (sessenta e cinco) anos, que não possuam
meios para prover sua subsistência, nem de tê-la provida por sua família, é assegurado o benefício mensal
de 1 (um) salário mínimo, nos termos da Lei Orgânica de Assistência Social – Loas.
Parágrafo único. O benefício já concedido a qualquer membro da família nos termos do caput não será
computado para os fins do cálculo da renda familiar per capta a que se refere a Loas.”
114
Art. 20, § 1º da LOAS: “Para os efeitos do disposto no caput, entende-se família o conjunto de
pessoas elencadas no art. 16 da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, desde que vivam sob o mesmo teto.” e
Art. 20, § 3º da LOAS: “Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência
ou idosa a família cuja renda mensal per capta seja inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo.” [Grifou-
se]
contexto de vida dessas pessoas, desde que fique claramente evidenciada sua
miserabilidade.115
Por fim, “a assistência social aos idosos será prestada, de forma articulada,
conforme os princípios e diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social”,
como se viu, “na Política Nacional do Idoso, no Sistema Único de Saúde e demais
normas pertinentes”, nos termos do art. 33 do Estatuto.
Esgotada a análise proposta acerca dos alimentos que podem ser provenientes de
várias fontes e constituem requisito elementar para a fruição da saúde pelo idoso, passa-
se a averiguação da moradia como também direito elementar para a vida da pessoa idosa
em condições dignas.
Além de a moradia ser direito fundamental social de todos, o Estatuto do Idoso
estabeleceu condições mais favoráveis para que os anciãos tenham acesso à habitação
na forma de seu art. 38, pois, tal como os alimentos, uma moradia digna é pré-condição
para que o idoso possa fruir seu direito à saúde.116
Identifica-se que o Estatuto almeja que a pessoa idosa possua moradia para si
própria e não para fins especulativos. O que sobreleva aqui é o direito de adquirir a
propriedade cujos fins revelem-se assistenciais aos idosos. Para tanto, a cada programa
habitacional público ou subsidiado com recursos públicos, três por cento das unidades
residenciais, obrigatoriamente, serão reservadas para atendimento dos idosos117: não
significa apenas que tais unidades tenham de ser adquiridas por eles, mas por pessoas
físicas ou jurídicas que dêem ao imóvel a função de atendê-los. Também a porcentagem
de reserva de três para cada cem unidades residenciais voltadas ao atendimento dos
idosos não implica entender que eles só terão direito a esse percentual. Ao contrário, os
três centésimos são o mínimo garantido às pessoas idosas e elas podem auferir mais do
que o mínimo. O importante é que se designem critérios de financiamento para a
115
Nesse sentido a Súmula 11 da Turma Nacional de Uniformização: “A renda mensal, per capta,
familiar, superior a ¼ do salário mínimo não impede a concessão de benefício assistencial previsto no art.
20, § 3º da Lei 8.742 de 1993, desde que comprovada, por outros meios, a miserabilidade do postulante.”
116
Art. 38 do Estatuto do Idoso: “Nos programas habitacionais, públicos ou subsidiados com recursos
públicos, o idoso goza de prioridade na aquisição de imóvel para moradia própria, observado o seguinte:
I – reserva de 3% (três por cento) das unidades residenciais para atendimento aos idosos;
II – implantação de equipamentos urbanos comunitários voltados ao idoso;
III – eliminação de barreiras arquitetônicas e urbanísticas, para garantia de acessibilidade ao idoso;
IV – critérios de financiamento compatíveis com os rendimentos de aposentadoria e pensão.”
117
Em sentido contrário, RULLI NETO, Antonio. Proteção legal do idoso no Brasil. Fiuza Editores,
2003, p. 260: “No caso de não haver idosos a adquirirem as unidades reservadas, comprovadamente, tal
reserva não perdurará, indefinidamente, mas por período razoável, sendo as unidades destinadas a outras
pessoas.”
compra do imóvel, compatíveis com os rendimentos de aposentadoria e pensão, a fim de
que a pessoa idosa, ou quem queira atendê-la, possua recursos.
O artigo em comento também prevê que se implementem equipamentos urbanos
comunitários voltados ao idosos, como veículos de transporte destinados em parte para
a terceira idade, ou praças de lazer e esporte que também serão aproveitadas por pessoas
dessa faixa etária, por exemplo. A eliminação de barreiras arquitetônicas e urbanísticas,
por meio da garantia de acessibilidade, é essencial para que o idoso exerça sua
autonomia, tanto no local onde reside quanto nas suas adjacências.
Como dispõe a Constituição no art. 230, § 1º, “os programas de amparo aos
idosos serão executados preferencialmente em seus lares.” Mas o lar de um idoso pode
ser tanto o lugar onde habite sozinho, com sua família ou uma entidade de atendimento.
O que se almeja com este artigo é afastar o idoso de instituições hospitalares e afins.
Já o Estatuto do Idoso disciplina em seu art. 37: “o idoso tem direito à moradia
digna, no seio da família natural ou substituta, ou desacompanhado de seus familiares,
quando assim o desejar, ou, ainda, em instituição pública ou privada.”
Neste momento pretende-se salientar que o direito à moradia do idoso já vem
jungido à dignidade de sua habitação. Desse modo, uma residência que não possua
requisitos básicos à vida em dignidade não é o que se avaliza ao idoso.
Em princípio, a pessoa idosa tem todo direito de optar por como viver. Pode ser
que ela eleja viver só e com todos os afazeres domésticos. Entretanto, quanto mais velha
for, torna-se comum e recomendável que ela possua empregado a ocupar-se dessas
tarefas e um cuidador para si.
Convenha-se, contudo, que só idosos bem afortunados possuem condições de
manter esse padrão de vida.
De toda sorte, o Estatuto prioriza a moradia do idoso desacompanhada de seus
familiares, se assim o desejar, ou no seio da família natural ou substituta. É o que se
compreende da leitura do § 1º do art. 37: “A assistência integral na modalidade de
entidade de longa permanência será prestada quando verificada a inexistência de grupo
familiar, casa-lar, abono ou carência de recursos financeiros próprios ou da família.”
Verdadeiramente, a vida em família presume a existência do afeto a envolver o
idoso, que não pode ser ignorado.118 Também parece importante o fato de o idoso
118
ERBOLATO, Regina M. Prado Leite. Relações sociais na velhice. In: Tratado de Geriatria e
Gerontologia, Organizadores: DE FREITAS, Elizabete Viana, PY, Ligia, NERI, Anita Liberanesso,
CANÇADO, Flávio Aluízio Xavier, GORZONI, Milton Luiz, DA ROCHA, Sônia Maria. Rio de Janeiro:
continuar entre os seus, convivendo com distintas gerações, o que agrega e não o isola
na sua condição de ser humano envelhecido. Da mesma forma, o aconchego das coisas,
roupas e mobiliários próprios certamente é relevante para lhe atribuir bem estar.
Mas se a família substituta escolhe o idoso por estima e compaixão, pode tornar-
se o melhor lugar para ele habitar. É recomendável tanto à família natural, quanto à
substituta, que contem com a ajuda de um cuidador para o idoso, a fim de manter sua
permanência junto aos afetos, aliada aos cuidados de um profissional da área de saúde.
119
Guanabara Koogan, 2002, p. 962: “Numa família em condições ‘saudáveis’ de funcionamento, ninguém é
despedido por não cumprir a contento as funções de seu papel; ninguém costuma ser abandonado; vivem-
se conflitos, toleram-se insultos e outros comportamentos inadequados entre colegas, amigos ou vizinhos.
A afeição (esperada) entre seus membros, a constância dos mesmos e o senso de obrigação que permeia
tais vínculos garantem ao indivíduo trocas continuadas de suportes instrumental e psicológico/emocional,
e reforçam a expectativa de retribuição, no futuro, de quaisquer suportes fornecidos no presente.”
119
DIOGO, Maria José D’ Elboux e DUARTE, Yeda Aparecida de Oliveira. Cuidados em domicílio:
conceitos e práticas. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia. Organizadores: DE FREITAS, Elizabete
Viana, PY, Ligia, NERI, Anita Liberanesso, CANÇADO, Flávio Aluízio Xavier, GORZONI, Milton
Luiz, DA ROCHA, Sônia Maria. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002, p. 767: “A Assistência
Domiciliária ressurge entre as modalidades assistenciais e, no que tange o cuidado ao idoso, mostra-se
uma alternativa eficaz à manutenção do convívio familiar e de sua qualidade de vida. Ela não substitui
nenhuma outra modalidade assistencial. Tem, si, lugar específico entre as mesmas, evitando que os idosos
sejam hospitalizados desnecessariamente ou que assim permaneçam quando tal intervenção não é a mais
indicada, sendo, ao contrário, um risco para o mesmo.
Constitui uma interface entre um idoso com algum grau de dependência e sua família, que necessita se
adaptar a ‘nova’ situação. Essa intervenção propicia à família o tempo necessário à sua reestruturação e à
redistribuição de papéis e atribuições, de forma a atender as novas demandas e evitar a institucionalização
do idoso.”
120
BORN, Tomiko e BOECHAT. Norberto Seródio. A qualidade dos cuidados do idoso
institucionalizado. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia. Organizadores: DE FREITAS, Elizabete
Viana, PY, Ligia, NERI, Anita Liberanesso, CANÇADO, Flávio Aluízio Xavier, GORZONI, Milton
Luiz, DA ROCHA, Sônia Maria. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002 p. 771: “Tomando-se, então, a
ILP (Instituição de Longa Permanência) como um lar especializado, com dupla função – a de
proporcionar assistência gerontogeriátrica conforme o grau de dependência dos seus residentes e a de
oferecer, ao mesmo tempo, um ambiente doméstico, aconchegante, capaz de preservar a intimidade e a
Com o tratamento que o Estatuto conferiu às entidades de atendimento, parece
mais fácil avaliar se o idoso recebe efetivamente o amparo que lhe é outorgado pela
Constituição nesse âmbito do que no familiar. Não se quer com isso fazer apologia das
entidades de atendimento contra os núcleos familiares,121 muito pelo contrário. Mas é
sabido que, quanto mais privado é o local onde o vulnerável reside, mais sujeito a
agressões clandestinas ele estará.122
No que toca os direitos fundamentais estabelecidos pelo Estatuto em seu Título
II, observa-se que no Capítulo VII, ao tratar da assistência social, já se prevêem regras
para as entidades de atendimento na forma do art. 35. Também no Capítulo IX, que trata
da habitação, há disciplina acerca de condutas a serem seguidas pelas entidades no art.
37, parágrafos 2º e 3º. Ademais, no Título IV, que cuida da política de atendimento do
idoso, o Capítulo II está totalmente voltado para as obrigações das entidades na forma
dos artigos 48, 49, 50 e 51 com seus parágrafos e incisos. O subseqüente Capítulo III,
disciplina sobre sua fiscalização nos artigos 52, 53, 54, 55, com seus incisos, alíneas e
parágrafos. Já o Capítulo IV, tipifica as infrações administrativas que as entidades
podem sofrer nos artigos 56, 57 e 58. Em seguida, o Capítulo V disciplina sobre a
apuração administrativa de infração às normas de proteção ao idoso referindo-se, nos
artigos 50, 62 e 63, especificamente às entidades de atendimento. O Capítulo VI
prescreve sobre a apuração judicial de irregularidades nas instituições, na modalidade
dos artigos 64, 65, 66, 67, 68 e seus parágrafos.
Por fim, se alimentação adequada e moradia digna encontram-se atreladas ao
direito prioritário à saúde da pessoa idosa, como expressões de um mínimo existencial
identidade dos seus residentes – , certamente a qualidade do cuidado irá pressupor a realização satisfatória
desses objetivos.
Nas ILPs com qualidade, o idoso pode recuperar a saúde e a vontade de viver, criar novas relações
sociais, desenvolver-se.”
121
ELIAS, Norbert. Envelhecer e morrer, p. 85 adverte que: “...A admissão em um asilo normalmente
significa não só a ruptura definitiva dos velhos laços afetivos, mas também a vida comunitária com
pessoas com quem o idoso nunca teve relações afetivas. O atendimento físico dos médicos e o pessoal da
enfermagem podem ser excelentes. Mas ao mesmo tempo a separação dos idosos da vida normal e sua
reunião com estranhos significa solidão para o indivíduo. Não estou pensando apenas nas necessidades
sexuais, que podem ser muito ativas na extrema velhice, particularmente entre homens, mas também na
proximidade emocional entre pessoas que gostam de estar juntas, que têm um certo envolvimento mútuo.
Relações desse tipo também diminuem com a transferência para um asilo e raramente encontram aí uma
substituição. Muitos asilos são, portanto, desertos de solidão.”
122
Segundo ainda ELIAS, Norbert. Envelhecer e morrer, p. 85: “Não é incomum que a geração mais
jovem, ao chegar ao comando, trate mal a mais velha, às vezes até com crueldade. Não faz parte das
tarefas do Estado imiscuir-se nesses assuntos.”
sem o qual não há possibilidade de a saúde ser instaurada, é a saúde que lhes propicia a
fruição dos seus demais direitos fundamentais, tanto de índole pessoal como social.
Em relação à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer, o Estatuto prevê, do
artigo 20 ao 25, uma série de incentivos para que a pessoa idosa desfrute da melhor
maneira possível desses prazeres da vida.123 Mas do que vale, por exemplo, a garantia
de desconto de pelo menos 50% (cinqüenta por cento) nos ingressos para eventos
artísticos, culturais, esportivos e de lazer, bem como acesso especial aos respectivos
locais, nos termos do art. 23, se o idoso não goza de bem estar para aproveitar o que
esses eventos lhe reservam?
Quanto à profissionalização e o trabalho, do artigo 26 ao 28, a Lei apóia o idoso
que queira continuar ativo em relação ao labor.124 Mas que condições teria o idoso não
saudável de oferecer sua mão de obra para o trabalho?
A Lei também garante transporte gratuito urbano e semi-urbano aos maiores de
65 (sessenta e cinco) anos, podendo esta idade reduzir-se até 60 (sessenta) anos a
critério da legislação local, inclusive com a reserva de 10% (dez por cento) dos assentos
identificados com a placa de reservado preferencialmente para os idosos, na forma do
art. 39, parágrafos, 1º, 2º e 3º. No transporte interestadual, lei específica deverá garantir
reserva de 2 (duas) vagas gratuitas por veículo para idosos com renda igual ou inferior a
2 (dois) salários mínimos e desconto de, no mínimo, 50% (cinqüenta por cento) no valor
das passagens para os idosos que excederem as vagas gratuitas e cujo rendimento seja
igual ou inferior a 2(dois) salários mínimos, de acordo com o art. 40. Os artigos 41 e 42,
respectivamente, asseguram reserva para idosos, nos termos da lei local, de 5% (cinco
123
Neste particular destaca-se a importância da educação na terceira idade e o bem que ela gera ao ser
idoso, nas palavras de DE SÁ, Jeanete Liasch Martins. Educação e envelhecimento. In: Tempo de
Envelhecer: percursos e dimensões psicossociais. Organizadores: PY, Ligia, DE SÁ, Jeanete Liasch
Martins, PACHECO, Jaime Lisandro e GOLDMAN, Sara Nigri. Rio de Janeiro: NAU, 2004, p. 368 e
369: “Falar de educação e envelhecimento é falar de vida, de existência e de plenitude. É vislumbrar o ato
educativo prenhe de possibilidades e de humanidade, num movimento orgânico de ação e reflexão, de
trocas intensas, de ‘empoderamento’, de inclusão, de transformação incorporada ao dinamismo da vida
individual e coletiva.”
124
Nesse particular são importantes os estudos de BEAUVOIR, Simone de. A velhice, p. 333: “As
angústias geradas pela aposentadoria desembocam por vezes em longas depressões. Segundo o Dr.
Blajan-Marcus, essas depressões superpõem vários elementos: a aposentadoria vivida como luto e exílio
inscreve-se num contexto de lutos mal resolvidos, de dependência familiar, de temperamento depressivo,
e provavelmente de perturbações circulatórias e glandulares, embora seja difícil identificar cada um
desses elementos. Isso quer dizer que o golpe desfechado pela aposentadoria abate totalmente aqueles que
o passado marcou de uma certa maneira. A nova condição ressuscita as tristezas da separação, o
sentimento de abandono, de solidão, de inutilidade, que gera a perda de uma pessoa querida.
Para se defender de uma inércia em todos os sentidos nefasta, é necessário que o velho conserve
atividades; seja qual for a natureza dessas atividades, elas trazem uma melhoria ao conjunto de suas
funções.”
por cento) das vagas nos estacionamentos públicos e privados, posicionadas de modo a
garantir melhor comodidade ao idoso e prioridade no embarque no sistema de transporte
coletivo. Todavia, como uma pessoa acamada poderá usufruir de todos esses
benefícios?
Faz-se urgente, portanto, eleger a saúde como direito prioritário para que as
pessoas idosas, efetivamente, desfrutem não só dos direitos comuns a todos os seres
humanos, mas também dos que a maior idade lhes garante.
Assim como ter saúde é pré-requisito para o acesso à educação, à cultura, ao
esporte e ao lazer, às diversões e aos espetáculos, a vivência dessas atividades
proporciona melhor qualidade de vida e, portanto, de saúde, para a pessoa idosa,
principalmente por serem oferecidas juntamente com o respeito por sua peculiar
condição de idade, na forma do art. 20 do Estatuto.
Desse modo, a educação na terceira idade será incentivada pelo Poder Público,
que também fará por adequar currículos, metodologias e material didático aos
programas educacionais com essa destinação, como dispõe o caput do art. 21 do
Estatuto. Na forma do parágrafo primeiro do citado artigo, “os cursos especiais para
idosos incluirão conteúdo relativo às técnicas de comunicação, computação e demais
avanços tecnológicos, para sua integração à vida moderna” e, de acordo com o
subseqüente parágrafo segundo, “os idosos participarão das comemorações de caráter
cívico ou cultural, para transmissão de conhecimentos e vivências às demais gerações,
no sentido da preservação da memória e da identidade culturais.”
Muitíssimo importante para a inserção social do idoso, posto que se relaciona
intimamente com a preservação de sua saúde, é a fixação nos diversos níveis de ensino
formal de conteúdos voltados ao processo de envelhecimento, ao respeito e à
valorização dessas pessoas a fim de eliminar o preconceito e produzir conhecimentos
sobre a matéria, como disciplina o art. 22 do Estatuto. No mesmo sentido, o apoio do
Poder Público à criação de universidades abertas para as pessoas idosas bem como à
publicação de livros e periódicos de conteúdo e padrão editorial adequados a essa faixa
etária, considerando, até mesmo, a natural redução de sua capacidade visual, afiguram-
se como contributos à inclusão do idoso, previstos no art. 25 do seu Estatuto. Note-se
que a promoção da educação dos anciãos no Brasil, pode dizer respeito tanto à educação
básica, a qual muitos não tiveram acesso, quanto a que abranja a continuidade dos seus
estudos.125
Proporcionar informações, educação, ingresso nos ambientes das artes e da
cultura em horários ou espaços especialmente voltados aos idosos também enriquece
qualitativamente suas vidas, de modo a lhes proporcionar desenvolvimento pessoal e
participação social,126 o que inegavelmente contribui para sua saúde psíquica. Tais
projetos serão levados até eles pelos meios de comunicação, consoante o art. 24 do seu
Estatuto.
Há de se considerar também a importância para o bem estar e a saúde psicofísica
do idoso o fato de ele ter acesso ao trabalho, remunerado ou não, pois este último tem o
condão de implementar sua socialização, pela possibilidade de contato direto, no
trabalho em grupo, ou indireto, no caso dos intelectuais e autônomos, com outras
pessoas de sua e de distintas gerações. O art. 26 do Estatuto prevê que “o idoso tem
direito ao exercício de atividade profissional, respeitadas suas condições físicas,
intelectuais e psíquicas.” Nesse diapasão, o direito ao trabalho tem o papel de promover
o exercício de funções pela pessoa idosa objetivando retirá-la da qualidade de inativa, o
que elimina sua produtividade, considerando também que não deve lhe impor cobranças
exageradas, o que faria surtir um efeito indesejado em sua saúde.127 Há de se ter em
conta o valor do trabalho para a continuidade da autonomia dos anciãos, estreitamente
relacionado com sua qualidade de vida, pois, quando adequado ao idoso, “com
observância de suas particularidades físicas, – o trabalho – torna-se terapia ocupacional,
distração recreativa e até mesmo prazer físico.”128
Ao ser admitido em qualquer emprego ou trabalho, mesmo no ingresso por
concurso, ressalvados os casos em que a ocupação exija habilidades que o idoso não
tenha, 129 veda-se sua discriminação e a limitação de idade, sendo que o primeiro critério
125
RULLI NETO, Antonio. Proteção legal do idoso no Brasil, p. 185.
126
RULLI NETO, Antonio. Proteção legal do idoso no Brasil, p. 192.
127
BRAGA, Pérola Melissa V. Direitos do idoso segundo o estatuto do idoso, p. 58: “Deve-se buscar um
meio termo entre o velho estereotipado, que se limitava a ficar ociosamente em casa, dando trabalho para
seus familiares, e aquele idoso de quem se exija que entre em competição com os mais novos, em
permanente disputa por uma maior produção e participação na sociedade.”
128
BRAGA, Pérola Melissa V. Direitos do idoso segundo o estatuto do idoso, p 143.
129
DE FREITAS JR. Roberto Mendes. Direitos do idoso, p.127, traz à baila importante observação:
“Vale notar respeitável corrente jurisprudencial, sustentando que a imposição de limite máximo deverá
de desempate em concurso público privilegia as pessoas de idade mais avançada,
conforme o art. 27 e parágrafo único do Estatuto. Inclusive, obstar ou negar a alguém,
por motivo de idade, acesso a qualquer cargo público, emprego ou trabalho constitui
crime tipificado pelo art. 100, incisos I e II da referida Lei. A Lei oferece ainda
estímulos aos programas voltados para o trabalho do idoso e para uma aposentadoria
ativa, como disciplina seu art. 28.130
Os mandamentos legais do art. 28 necessitam de políticas públicas para que
sejam implementados. Considera-se, pois, pertinente, o estímulo às empresas privadas
na contratação de idosos, mediante isenções ou reduções fiscais e propaganda dessas
empresas.131
O direito ao transporte gratuito também possibilita o acesso do idoso aos
hospitais, laboratórios, clínicas, ou seja, a lugares em que sua saúde vá ser assistida.
Todos esses direitos previstos como fundamentais propiciam melhores
condições de existência para a pessoa idosa. Portanto, não só a saúde é condição de
gozo desses direitos, mas eles também tangenciam a saúde por influírem na qualidade
de vida dos idosos.
Sublinhe-se, entretanto, que em condições extremas, esses direitos podem até
faltar, mas a saúde, no sentido oposto ao da doença, não.
Por conta de o idoso estar mais exposto às agressões tanto biológicas,
provocadas pelo tempo, quanto às de índole social que necessita enfrentar; pelo fato de
as alterações biológicas sofridas desencadearem doenças físicas e psíquicas com mais
facilidade e em maior punjança que na juventude, é imperioso que o direito à saúde na
terceira idade seja concedido em ordem de prioridade, para salvaguarda do princípio
constitucional da dignidade humana nas contingências especialíssimas da velhice.
131
Consoante propõe DE FREITAS JR. Roberto Mendes. Direitos do idoso, p.128.
2º CAPÍTULO: Enunciados normativos assecuratórios de direitos à pessoa idosa:
da constituição de 1824 ao estatuto do idoso
132
Grifou-se.
m) a instituição de seguros de velhice, de invalidez, de vida e para os
casos de acidentes do trabalho [...]”133
133
Grifou-se.
134
Grifou-se.
aspectos mais íntimos e entranhados da pessoa se houvesse norma a outorgá-los.135
Nesse sentido, recepciona como tais, também aqueles que não estiverem previstos na
Lei Maior, mas que se relacionem com situações existenciais da pessoa humana.
A doutrina brasileira sustenta, no mesmo passo, que os direitos fundamentais
podem ou não ter assento na Constituição formal136 e a portuguesa orienta que direitos
extra constitucionais têm a capacidade de funcionar como materialmente fundamentais
se, pelo seu artefato ou por sua autoridade, puderem ser equiparados aos direitos
formalmente fundamentais.137 Tratam-se, assim, de direitos fundamentais em sentido
material, que não o são formalmente, por não estarem incluídos no catálogo
constitucional.138
Se direitos não previstos em sede constitucional podem ser considerados
fundamentais em sentido material, com muito mais razão os previstos têm capacidade
de sê-lo, desde que sua importância ou objeto mereçam tal ascensão.
Esse é o caso do direito de amparo do idoso que consta previsto
constitucionalmente. Como os direitos fundamentais possuem conteúdo materialmente
aberto, torna-se possível a existência de outros da mesma natureza contidos em distintas
partes do texto constitucional.139 E não há como negar, diante dos dados demográficos
hodiernos, do momento histórico brasileiro – de exaltação ao pluralismo e à
solidariedade – e da intrínseca vulnerabilidade das pessoas idosas, a importância atual
de protegê-las, alçando seu direito de amparo à condição de fundamental, para o bem
delas próprias, de suas famílias, da comunidade em que se inserem, da sociedade em
geral e até mesmo do Poder Público, pois, não ampará-las sob a égide de um direito
fundamental poderia causar um déficit social relevantíssimo.140
135
FERNÁNDEZ-GALIANO, A. Derecho natural. Introducción filosófica al derecho. 4 ed. Madrid:
Benzal, 1983, apud PEREZ LUÑO. Antonio E. Los derechos fundamentales. 6 ed. Madrid: Tecnos, 1995,
p. 49. [traduziu-se livremente do espanhol]
136
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003, p. 85.
137
Nesse sentido, CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 6
ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 403.
138
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976.
3 ed. Coimbra: Almedina, 2006, p. 77.
139
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 79.
140
Segundo magistério de SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 99:
...Direitos fundamentais fora do catálogo somente poderão ser os que – constem ou não, do texto
constitucional – por seu conteúdo e importância possam ser equiparados aos integrantes do rol elencado
O art. 229 da Constituição da República brasileira diz que: “a família, a
sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua
participação na comunidade, defendendo sua dignidade e be-estar e garantindo-lhes o
direito à vida.”
A dicção do preceituado é que a pessoa idosa possui o direito subjetivo de ser
amparada pela família, pela sociedade e pelo Estado.
Chega-se a tal conclusão pelo fato de o dever jurídico obrigar família, sociedade
e Estado a procederem, positivamente ou negativamente, de maneira compatível com os
interesses das pessoas idosas, titulares do direito subjetivo ao amparo.141
Pelo seu conteúdo de significado e por sua relevância, o direito de amparo da
pessoa idosa pode ser equiparado aos fundamentais e ter, em seu favor, o mesmo
tratamento destinado a esses pela interpretação do art. 5º, § 2º da Constituição brasileira.
O objetivo desse artigo é o de expandir e aperfeiçoar o catálogo de direitos
fundamentais por meio do critério da atipicidade.142 Todavia, ainda que tal artigo
inexistisse, o direito de amparo da pessoa idosa teria a condição de fundamentalmente
implícito, ou seja, subentendido pela dimensão axiológica que possui e que se abraça
com a tábua de valores constitucionais,143 afinal, tal direito é consectário do princípio da
dignidade da pessoa humana na circunstância especial de estar envelhecida e a
necessitar de cuidados especiais.144
145
Cf. DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 15 ed. São Paulo: Malheiros,
1998, p. 318.
146
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3 ed. Tomo IV. Direitos fundamentais. Coimbra:
Coimbra Editora, 2000, p. 10.
147
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, p. 12.
148
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, p. 12.
149
Expressão de VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na constituição
portuguesa, p. 82.
em segundo lugar, os preceitos concernentes aos direitos fundamentais teriam a função
de garantia e proteção de certos bens jurídicos das pessoas avaliados como essenciais;
em terceiro, para a caracterização de direitos fundamentais, teria de se avaliar seu
intuito específico, remontado à acepção de homem no ambiente da nossa cultura calcada
no princípio da dignidade humana. Com esse critério tripartite pretende-se determinar a
abrangência dos direitos fundamentais atribuindo-lhes a chamada autonomia
institucional.150
E o direito de amparo da pessoa idosa tem autonomia institucional. Veja-se: o
direito de amparo da pessoa idosa possui o radical formado por posição jurídica
subjetiva atribuída às pessoas dessa faixa etária, tem a função de garantir o amparo dos
anciãos, bem jurídico de relevância essencial e, por fim, remete-se ao princípio da
dignidade humana, uma vez que tutela a pessoa idosa em suas vicissitudes especiais
tendo em vista, exatamente, a preservação de sua dignidade.
Dessa forma, é patente que o direito de amparo aos idosos encontra-se inserido
na base institucional de todos os direitos fundamentais, o que reafirma sua condição de
direito fundamental previsto fora do catálogo do Título II da Constituição da República
brasileira.
150
Formulação de VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na constituição
portuguesa, p. 82 e 83.
151
ÁVILA. Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2 ed. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 16.
152
ÁVILA. Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 23.
formal, do legislador”.153 Assim é que “o sentido não é uma ‘qualidade da palavra’, mas
a sua ‘relação a uma coisa’, a um contexto material ou a um contexto de experiência.”154
Afirmar que a interpretação dos textos legais implica a constituição de
significados para eles e por meio do uso deles não afasta a existência de estruturas de
compreensão antecedentes que, sob certo ponto, viabilizam o entendimento mínimo
desses significados. Desse modo, é tarefa do intérprete construir a partir de alguma
coisa preexistente.155 “A ligação entre texto e intérprete requer a presença de ambos: ao
intérprete não é consentido saltar ou deliberadamente ignorar o texto.”156
De todo modo, a legislação setorial comumente determina a consecução de fins e
valores, bem como estabelece instrumentos jurídicos que os realizem. Tais finalidades e
valores são pontos de partida a serem considerados pelo intérprete na sua função de
cientista ou de aplicador do Direito.
São, ao mesmo tempo, finalidades e axiomas do Estatuto do Idoso, a proteção
integral e prioritária da pessoa idosa de acordo com seu melhor interesse.
Soma-se a essa assertiva outra. O Estatuto do Idoso encontra-se inserido num
sistema cuja fonte hierárquica superior é a Constituição da República brasileira,
portanto, a normativa infraconstitucional existe e exerce a sua função unida ao
ordenamento jurídico pátrio, diretamente orientado pelo conteúdo valorativo do
princípio da dignidade da pessoa humana.
Considerando que a dignidade humana só pode ser alcançada e mantida se
atribuída ao ser humano em suas circunstâncias, na realidade social em que se insere,
com as contingências de vida que possui, infere-se a necessidade de um olhar
diferenciado do Direito para as pessoas de idade muito tenra ou muito adiantada.
À criança, há algum tempo, foi declarada necessidade de tutela especial nos
documentos internacionais. Estabelece a Declaração de Genebra de 1924 a “necessidade
de proclamar à criança uma proteção especial” e a Declaração Universal de Direitos
153
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Tradução de:
DE CICCO, Maria Cristina. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 67.
154
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil, p. 67.
155
ÁVILA. Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 25.
156
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil, p. 67.
Humanos das Nações Unidas de 1948 determina, em favor da criança, “o direito a
cuidados e assistência especiais”.157 Ademais, a Declaração de Direitos da Criança de
1959 fez constar que:
“A criança gozará de proteção especial e disporá de oportunidade e
serviços, a serem estabelecidos por lei e por outros meios, de modo
que possa desenvolver-se física, mental, moral, espiritual e
socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de
liberdade e dignidade. Ao promulgar leis com este fim, a consideração
fundamental a que se atenderá será o interesse superior da
criança.”158
Trinta anos após essa declaração, portanto em 1989, foi aprovada a Convenção
Internacional dos Direitos da Criança ratificada pelo Brasil um ano depois, por meio do
Decreto 99.710 de 1990, na forma do disposto no art. 3.1:
“Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições
públicas ou privadas de bem-estar social, tribunal, autoridades
administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar,
primordialmente, o interesse maior da criança.”159
PEREIRA, Tânia da Silva. O “melhor interesse da criança”. In: O melhor Interesse da Criança: Um
157
Debate Interdisciplinar. Coordenadora: PEREIRA, Tânia da Silva. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 4.
158
PEREIRA, Tânia da Silva. O “melhor interesse da criança”, p. 4.
159
PEREIRA, Tânia da Silva. O “melhor interesse da criança”, p. 5, 6, 21 e 22.
160
PEREIRA, Tânia da Silva. O “melhor interesse da criança”, p. 6, esclarece: “O texto original em
inglês declara, expressamente: ‘In all actions concerning children, whether undertaken by public or
utilizar essa expressão que trata de um princípio levado em conta em toda interpretação
concernente à população infanto-juvenil pátria.161
Coube, portanto, ao Estatuto da Criança e do Adolescente “concretizar e
expressar os novos direitos da população infanto-juvenil, que põem em relevo o valor
intrínseco da criança como ser humano e a necessidade de especial respeito a sua
condição de pessoa em desenvolvimento.”162
No que toca o idoso tem-se apenas a notícia da existência de um Plano de Ação
Internacional sobre o Envelhecimento, realizado em Viena, no ano de 1982.163
No Brasil, a Constituição da República dispõe que a família, a sociedade e o
Estado possuem o dever de amparar as pessoas idosas e assegurar sua participação na
comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito a vida,
na forma do art. 230. Paralelamente, encontram-se em vigor a Lei 8.842 de 1994 que
dispõe sobre a Política Nacional do Idoso e a Lei 10.741 de 2003, o Estatuto do Idoso.
Esse último elege princípios que podem ser melhor averiguados no processo de
interpretação da Lei.
A discussão sobre princípios é relativamente recente, iniciada no segundo
quartel do século passado. Tem-se notado que as acepções acerca dos princípios não se
apresentam homogêneas, pois ainda se desenvolve um processo de construção dos seus
significados, cada vez mais apurados e sintetizados, o que não exclui a importância da
análise das primeiras manifestações a seu respeito.
Nesse sentido, observe-se uma de suas concepções pioneiras elaborada por
Larenz:
“Ocupámo-nos dos ‘princípios ético-jurídicos’ como critérios
teleológico-objectivos da interpretação e em conexão com o
desenvolvimento do Direito, atendendo a um tal princípio.
Qualificámo-los de ‘pautas directivas de normação jurídica que, em
virtude da sua própria força de convicção, podem justificar resoluções
jurídicas’.”164
private social welfare institutions, courts of law, administrative authorities or legislative bodies, the best
interests of the child shall be a primary consideration.”
161
V., por todos, PEREIRA, Tânia da Silva. O “melhor interesse da criança”, p. 1-101, passim.
162
BARBOZA, Heloisa Helena. O estatuto da criança e do adolescente e a disciplina da filiação no
código civil. In: O Melhor Interesse da Criança: Um Debate Interdisciplinar. Coordenadora: PEREIRA,
Tânia da Silva. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p.110-111.
163
Consoante informação de CARAMUTO, Maria Isolina Davobe. Los derechos de los ancianos. Madri/
Buenos Aires: Ciudad Argentina, 2002, p. 441.
164
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 5 ed. Tradução de: LAMEGO, José. Revisão de:
FREITAS, Ana. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983, p. 577.
De modo extenso e exemplificativo continua a explanação:
“Alguns deles estão expressamente declarados na Constituição ou
noutras leis; outros podem ser deduzidos da regulação legal, da sua
cadeia de sentido, por via de uma ‘analogia geral’ ou do retorno a
ratio legis; alguns foram ‘descobertos’ e declarados pela primeira vez
pela doutrina ou pela jurisprudência, as mais das vezes atendendo a
casos determinados, não solucionáveis de outro modo, e que se
impuseram na ‘consciência jurídica geral’ graças a força de convicção
a eles inerente.”165
165
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, p. 577.
166
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, p. 577-578.
167
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de BOEIRA, Nelson. São Paulo: Martins
Fontes, 2002, p. 36.
168
Refere-se às críticas de ÁVILA. Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos
princípios jurídicos, p. 51-52: “...Há incorreção quando se enfatiza que os princípios possuem uma
dimensão de peso. A dimensão de peso não é algo que esteja incorporado a um tipo de norma. As normas
não regulam sua própria aplicação. Não são, pois, os princípios que possuem uma dimensão de peso: às
razões e aos fins aos quais eles fazem referência é que deve ser atribuída uma dimensão de importância.
A maioria dos princípios nada diz sobre o peso das razões. É a decisão que atribui aos princípios um peso
em favor em função das circunstâncias do caso concreto. A citada dimensão de peso (dimension of
weight) não é, então, atributo abstrato dos princípios, mas qualidade das razões e dos fins a que eles
fazem referência, cuja importância concreta é atribuída pelo aplicador. Vale dizer, a dimensão de peso
não é um atributo empírico dos princípios, justificador de uma diferença lógica em relação às regras, mas
resultado de juízo valorativo do aplicador”
E continua citando dois exemplos dos quais se destacará apenas um:
“Dois exemplos talvez possam demonstrar que é o aplicador, diante do caso a ser examinado, que atribui
dimensão de peso a determinados elementos, em detrimento de outros. O Supremo Tribunal Federal
analisou hipótese em que o Poder Executivo, depois de prometer, por decreto, baixar a alíquota do
imposto de importação, decidiu, simplesmente, majorá-la. Os contribuintes que haviam contratado, com
base na promessa de redução da alíquota, insurgiram-se contra o desembaraço das mercadorias com a
“Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a
dimensão de peso ou importância. Quando os princípios se
intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de
automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele
que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de
cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o
julgamento que determina que um princípio ou política particular é
mais importante que outra freqüentemente será objeto de controvérsia.
Não obstante, essa dimensão é parte integrante do conceito de um
princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou
quão importante ele é.”169
aplicação da alíquota majorada, sob o fundamento de que teria sido violado o princípio da segurança
jurídica. A questão posta perante do Tribunal poderia ser resolvida de dois modos: primeiro, com a
atribuição de maior importância ao princípio da segurança jurídica, para garantir a confiança do cidadão
nos atos do Poder Público e, por conseqüência, vedar a aplicação de alíquotas mais gravosas para aqueles
contribuintes que haviam celebrado contratos na expectativa de que a promessa fosse cumprida; segundo,
com a atribuição de importância apenas ao fato gerador do imposto de importação, que ocorre no
momento do desembaraço da mercadoria, em razão do quê, tendo sido a alíquota, dentro das atribuições
do Poder Executivo, majorada antes da data de ocorrência do fato gerador, não teria havido qualquer
violação ao ato jurídico perfeito. O Tribunal adotou a segunda hipótese de solução. Mas o que isso
significa para a questão ora discutida? Significa que a dimensão de peso desse ou daquele elemento não
está previamente decidida pela estrutura normativa, mas é atribuída pelo aplicador diante do caso
concreto. Fosse a dimensão de peso um atributo empírico dos princípios, o caso ora examinado deveria
ter sido necessariamente solucionado com base no princípio da segurança jurídica e na garantia de
proteção ao ato jurídico perfeito – e não foi. Isso porque não são as normas jurídicas que determinam, em
absoluto, quais são os elementos que deverão ser privilegiados em detrimento de outros, mas os
aplicadores, diante do caso concreto.”
169
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 42-43.
170
ÁVILA. Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 44-
45, onde o autor exemplifica muito bem seu raciocínio.
A crítica de Ávila não procede por tratar como absoluta a proposição de
Dworkin, mas principalmente por ressaltar várias vezes que “é o aplicador, diante do
caso a ser examinado, que atribui dimensão de peso a determinados elementos, em
detrimento de outros”. Ora, a doutrina faz suas construções e interpretações da lei sem
referir-se a casos concretos, pelo menos, a priori. Compreende-se que a interpretação do
Direito deve também se realizar em abstrato, afinal, sabe-se, há muito, que a doutrina é
fonte legítima do Direito.171
Eis a concepção de princípios proposta por Alexy:
“...Os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na
maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais
existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que
estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em
diferente grau e que a medida devida de seu cumprimento não só
depende das possibilidades reais senão também das jurídicas. O
âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e
regras opostos.”172
171
Nesse sentido também AMARAL, Francisco. A interpretação jurídica segundo o código civil. In:
Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Vol. 1. Nº 1. Outubro/Dezembro de 1989, p. 40:
“Quanto aos agentes da interpretação, ela diz-se judicial , quando feita pelos tribunais. Geralmente não se
limita à interpretação do texto legal, mas, sim, à construção de uma decisão de um problema concreto. E
doutrinária, se feita pelos cientistas do Direito. Neste caso, mais propriamente uma recomendação
dirigida aos juízes, atribuindo a uma disposição um determinado significado.”
172
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de: VALDÉS, Ernesto Garzón.
Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. Madrid, 2002, p. 86. [Traduziu-se livremente do
espanhol]
173
ÁVILA. Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 63.
174
ÁVILA. Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 64.
entre o estado de coisas posto como fim e os efeitos decorrentes da conduta havida
como necessária.”175
Para Ávila:
“Os princípios consistem em normas primariamente complementares
e preliminarmente parciais, na medida em que, sobre abrangerem
apenas parte dos aspectos relevantes para uma tomada de decisão, não
têm a pretensão de gerar uma solução específica, mas de contribuir, ao
lado de outras razões, para a tomada de decisão.”176
Nesse particular, dissente-se desse autor por não compreender que apenas os
princípios necessitam de outras razões para a tomada de decisão. “Um enunciado
lingüístico torna-se norma quando é lido e confrontado com o inteiro ordenamento, em
dialética com os fatos históricos concretos, com as relações individuais e sociais.” 177 E
esse enunciado lingüístico pode ser tanto um princípio quanto uma regra.
Em suma, parece que todas as proposições apresentadas contêm critérios a
direcionar o intérprete na visualização e na aplicação de um princípio, embora nenhuma
delas esteja imune a críticas ou se mostre absolutamente suficiente. Por isso, frisa-se
que a descrição de princípios é um processo em desenvolvimento pelos teóricos do
Direito, embora sua interpretação e aplicação consista numa realidade da qual o
intérprete não pode se eximir.
Assim, com as diretrizes dadas pela doutrina, os aplicadores e intérpretes do
Direito, hão de encontrar os princípios e aplicá-los na interpretação do Direito.
Destinados especialmente a tutelar a pessoa idosa há três princípios extraídos da
interpretação teleológica e sistemática do Estatuto do Idoso iluminada pelo princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana. Tratam-se dos sub-princípios da
proteção integral do idoso e da absoluta prioridade outorgada ao idoso que conformam
o princípio do melhor interesse do idoso.
O sub-princípio da proteção integral do idoso pode ser aferido pela exegese do
art. 2º do seu Estatuto que dispõe:
“O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei,
assegurando-lhe, por lei, ou por outros meios, todas as oportunidades
e facilidades, para preservação da sua saúde física e mental e seu
175
ÁVILA. Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 65.
176
ÁVILA. Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 68.
177
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil, p. 78.
aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições
de liberdade e dignidade.”178
Quer-se, com isso, que a pessoa idosa tenha não só oportunidades, mas também
facilidades para preservar sua saúde psicofísica, para se aperfeiçoar em nível moral,
intelectual, espiritual e social, para gozar de todos os seus direitos de ser humano, com a
proteção integral que emana de cada linha e entrelinha de seu Estatuto, o qual, já de
início, põe em relevo a liberdade e dignidade das pessoas que vivenciam a terceira
idade.
As oportunidades e facilidades atribuídas à pessoa idosa constam do seu
Estatuto como direitos fundamentais, portanto, como alicerces em que se edifica sua
proteção integral. São eles: o direito à vida, à liberdade ao respeito e à dignidade, o
direito aos alimentos, à saúde, à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer, o direito à
profissionalização e ao trabalho, à previdência ou à assistência social, à habitação e ao
transporte.
Todos esses direitos são desenvolvidos ao longo do Estatuto de forma peculiar,
destinada exclusivamente ao idoso, de modo a tutelá-lo em suas circunstâncias
especiais. Ademais, a fim de protegê-lo integralmente, constam estatuídas medidas
gerais e específicas de proteção, bem como toda a política de atendimento ao idoso que
engloba disposições gerais, trata em capítulo específico das entidades de atendimento ao
idoso, da sua fiscalização, das infrações administrativas e sua apuração e da apuração
judicial de irregularidades nas entidades. Há também, no referido Estatuto, um Título
exclusivo dedicado ao acesso à justiça, em que são definidas as atribuições do
Ministério Público para com a pessoa idosa e a proteção judicial de seus interesses
difusos, coletivos, individuais indisponíveis ou homogêneos. Ao final, a Lei tipifica
crimes praticados especificamente contra a pessoa idosa e estabelece sansões penais aos
transgressores.
Observe-se que a tutela integral funciona como sub-princípio, pois constitui
critério teleológico-objetivo da interpretação a justificar a tomada de decisões em
benefício do idoso, possui dimensão de peso, a qual ganhará relevância no sopesamento
com outros princípios que com ele colidam, apresenta-se na modalidade de comando de
otimização, ou seja, ordena que a tutela integral se realize na maior medida possível, de
acordo com as possibilidades jurídicas e fáticas dadas por um caso concreto ou
formuladas em abstrato, envolvendo o idoso. Ademais, possui como qualidade a
178
[Grifou-se]
determinação da realização de um fim juridicamente relevante, qual seja, a proteção
integral do idoso, que só será realizada se adotado certo comportamento. Sua
interpretação e aplicação demandam avaliação da correlação entre o estado de coisas
colocado como fim – a tutela integral do idoso – e os efeitos decorrentes dessa conduta
tida como necessária, isto é, a efetividade do princípio na prática.
Acentua-se que o sub-princípio da proteção integral do idoso encontra-se
inserido num ordenamento jurídico, que, por sua vez, deve ser considerado um sistema,
pois a função do sistema faz-se necessária.179 “A unidade interna não é um dado
contingente, mas, ao contrário, é essencial ao ordenamento, sendo representado pelo
complexo de relações e de ligações efetivas e potenciais entre normas singulares e entre
os institutos.”180 Torna-se indispensável, portanto, a averiguação do sentido e alcance
desse sub-princípio no direito civil pátrio, cujas disposições referentes às pessoas idosas
não se esgotam no âmbito do seu Estatuto.
À guisa de exemplificação, põe-se em análise o art. 1.641 do Código Civil que
disciplina, em seu inciso II, que “é obrigatório o regime da separação de bens no
casamento de pessoa maior de 60 (sessenta) anos”
Essa regra possui conteúdo aviltante, de caráter altamente discriminatório das
pessoas maiores de sessenta anos. Ela prima por proteger o idoso na esfera patrimonial,
desconsiderando sua capacidade de fato e seus direitos de personalidade. Por que pensar
que o idoso precisa desse tipo de tutela se ele é absolutamente capaz para todos os atos
da vida civil que englobam tanto situações jurídicas patrimoniais como existenciais? O
casamento, na forma do art. 1.511 do Código Civil estabelece comunhão plena de vida,
com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. Por que tal comunhão, a
partir dos sessenta anos de um dos cônjuges ou de ambos não pode se estabelecer
também, segundo a vontade do casal, em relação aos seus bens patrimoniais? 181
179
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil, p. 78.
180
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil, p. 78.
181
Nesse sentido, TJSP. Apelação Cível nº 007.512-4/2-00, 2ª Câmara Cível, julgada em 18.08.1998.
Desembargador relator: César Peluso. Publicada na RT nº 758, 1998, p. 106 e seguintes, onde se destacou
que a disposição do Código Civil vigente na época, ainda o de 1916, agredia um dos fundamentos da
República, qual seja, a dignidade da pessoa humana: “... Estaria ainda, a legitimar e perpetuar verdadeira
degradação, a qual, retirando-lhe o poder de dispor do patrimônio nos limites do casamento, atinge o
cerne mesmo da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República (art. 1º, inc. III,
da Cf), não só porque decepa e castra no seu núcleo construtivo de razão e vontade, na sua capacidade de
entender e querer, a qual, numa perspectiva transcendente, é vista como expressão substantiva do próprio
ser, como porque não disfarça, sob as vestes grosseiras do paternalismo incestuoso, todo o peso de uma
O Código de 1916 já legislava no sentido de que a mulher maior de cinqüenta
anos e o homem maior de sessenta se casassem compulsoriamente pelo regime da
separação total de bens. Compreendiam alguns, que nessa altura da vida o patrimônio de
um ou de ambos os nubentes já estaria consolidado e que o conteúdo patrimonial do
casamento deveria ser peremptoriamente afastado. A rigor, temia-se que a pessoa de
mais idade se prejudicasse financeiramente contraindo núpcias com uma jovem, caso
pudesse escolher outro regime de bens para seu casamento.182
O fato é que o Código atual repete o erro de julgar que o Estado deve intervir tão
violentamente na liberdade dos idosos, homens ou mulheres.183
A regra em comento contraria o sub-princípio da proteção integral do idoso, pois
protegê-lo consiste também em respeitá-lo nas decisões acerca de sua vida privada. A
proteção integral do idoso, na forma do art. 2º de seu Estatuto, condiz expressamente
com a “preservação da sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral,
intelectual, espiritual e social em condições de liberdade e dignidade”, de modo a tutelar
também a integridade psíquica do idoso, conteúdo de seu direito à saúde.184
Mesmo que a pessoa idosa se relacione com alguém que possa se apoderar de
sua fortuna é direito de toda pessoa ter liberdade para decidir como quer se casar.
Retiram da pessoa idosa tanto a liberdade quanto a dignidade, despersonalizando-a, se
lhe tratam como uma incapaz de conduzir suas escolhas.185
A partir do pressuposto de que somente o decurso do tempo, especialmente em referência a cada ato ou
atividade, não influencia automaticamente no sentido negativo a capacidade natural normal, faz-se
necessário rever as soluções legislativas que, presumindo a decadência da pessoa em razão da idade –
inspiradas na verdade na necessidade de realizar uma renovação com pessoas mais jovens – tiveram a
pretensão de parecerem normas construídas no interesse dos idosos. Essas normas freqüentemente
propõem estatutos de favorecimento ou de desfavorecimento irracionalmente lesivos ao princípio da
igualdade.” [ traduziu-se livremente do italiano]
186
BOBBIO. Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de: DE CICCO, Cláudio e SANTOS,
Maria Celeste C. J. São Paulo: Polis, 1989, p. 93: “O critério hierárquico (para solução de antinomias),
chamado também de lex superior, é aquele pelo qual, entre duas normas incompatíveis, prevalece a
hierarquicamente superior: lex superior derogat inferiori”
187
BOBBIO. Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, p. 95 e 96: “O terceiro critério (para solução de
antinomias), dito justamente da lex specialis, é aquele pelo qual, de duas normas incompatíveis, uma geral
e uma especial (ou excepcional), prevalece a segunda: lex specialis derogat generali.”
188
Cf. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005, p. 414.
189
Em sentido contrário FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de direito constitucional. 31 ed. São
Paulo: Saraiva, 2005, p. 236: “ Note-se que nos dois primeiros casos – invalidez e setenta anos de idade –,
a aposentadoria tem um caráter tipicamente previdenciário. Visa a pôr o servidor ao abrigo da
necessidade, dando-lhe condições materiais de vida.”
190
PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalitá constituzionale, p. 342-343: “Se nosso sistema
não é fundamentado na ociosidade e garante a todos o trabalho, que afinal representa um modo de realizar
Apesar de se saber que o dispositivo infraconstitucional não tem o condão de se
sobrepor a uma regra da Constituição, considera-se que, o advento do Estatuto do Idoso,
com todo seu arcabouço axiológico de proteção integral, certamente auxilia o intérprete
a não aplicar tal regra preconceituosa em face do idoso que queira e tenha condições
físicas e psíquicas de continuar seu trabalho no serviço público.191 Cabe assinalar, antes
de tudo, que o sub-princípio da proteção integral do idoso é expressão do princípio da
dignidade da pessoa humana, na peculiar condição de envelhecida, previsto no art. 1º,
inciso III, da norma constitucional. O princípio da proteção integral do idoso também se
coaduna com a condenação de toda forma de discriminação bem como com o já citado
art. 3º, inciso IV, também da Constituição e de cunho fundamental, que se refere, de
maneira específica, a promover o bem de todos sem preconceitos de idade. Sopesando
toda a normativa principiológica apontada com a regra do art. 40, § 1º, inciso II, torna-
se forçoso concluir que os princípios terão proeminência num juízo de ponderação.
Assim, “normas que realizam diretamente direitos fundamentais dos indivíduos têm
preferência sobre normas relacionadas apenas indiretamente com os direitos
fundamentais” num juízo de ponderação. 192
Para arrematar, assevera-se que:
“... As leis especiais não são mais consideradas atuativas dos
princípios codicísticos, mas daqueles constitucionais, elas não podem
ter lógicas de setor autônomas ou independentes das lógicas globais
do quadro constitucional; elas devem ser sempre concebidas e
conhecidas obrigatoriamente no âmbito do sistema unitariamente
considerado.”193
a própria personalidade, para sentir-se vivo e socialmente útil, grande parte da legislação que põe limites
de idade inflexíveis seja para o acesso ao trabalho seja para a aposentadoria (limites inspirados
exclusivamente na idade e não em outros fatos eventualmente concorrentes) é suspeita de
inconstitucionalidade.” [traduziu-se livremente do italiano]
191
Assevera AMARAL, Francisco. A interpretação jurídica segundo o código civil. In: Revista do
Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Vol. 1. Nº 1. Outubro/Dezembro de 1989, p. 42: “A interpretação
conforme os princípios, que pode ser simultânea com outras modalidades, implica, portanto, a passagem
da ratio legis à ratio júris, isto é, do sentido da norma legal aos sentidos dos fundamentos do próprio
sistema, isto é, os princípios jurídicos. Ocorrendo contradição entre estes e as normas do sistema, uma
contradição entre a norma e seu fundamento normativo (o princípio-fundamento), suscita-se duas
soluções diversas. Uma primeira de correção da norma, conforme aos princípios. A norma deve adequar-
se ao princípio. Uma segunda solução, no caso da norma ser claramente contraditória ou oposta aos
fundamentos axiológicos que o princípio representa, deve preferir-se a ratio iuris à ratio legis. Há, assim,
uma preterição de superação da norma, pois os fundamentos normativos (os princípios jurídicos) devem
prevalecer contra os critérios jurídicos positivados (as normas).”
192
DE BARCELLOS. Ana Paula. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 235.
193
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil, p. 79.
Essa assertiva serve tanto para corroborar o raciocínio desenvolvido acerca da
extensão do sub-princípio da proteção integral do idoso como também do sub-princípio
da absoluta prioridade assegurada ao idoso, que se passa a analisar.
O art. 3º do Estatuto do Idoso assevera que:
“É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder
Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao
esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao
respeito à convivência familiar e comunitária.”194
Com tal disposição evidencia-se que a pessoa idosa faz jus não só à proteção
integral antes referida, mas também à tutela prioritária, que o coloca em situação
preferencial na efetivação de direitos fundamentais de todos os seres humanos.195 Veja-
se que a absoluta prioridade atribuída ao idoso acarreta obrigações para sua família, para
a comunidade e a sociedade em que se insere e para o Poder Público.
Nesse sentido, o Estatuto traça metas a serem levadas a cabo por cada uma
dessas instituições no rol exemplificativo do parágrafo único do mesmo art. 3º, o qual
determina: “a garantia de prioridade compreende”:
“I – atendimento preferencial imediato e individualizado junto aos órgãos
públicos e privados prestadores de serviço à população;” significa que a pessoa idosa
gozará de atendimento privado ou público, incluindo concessionários e permissionários
do serviço público, com absoluta primazia196 e de maneira rápida. Nos casos em que
houver necessidade, considerando as condições psicofísicas do indivíduo, pode-se dizer
que o atendimento deve ser instantâneo, e mais, individualizado, ou seja, a distinguir o
idoso de acordo com as sua especialidades intrínsecas. Por exemplo: em caso de
emergência ou urgência numa internação hospitalar em que concorram um velho e um
194
Observe-se que a absoluta prioridade funciona como sub-princípio, pois constitui critério teleológico-
objetivo da interpretação a justificar a tomada de decisões em benefício do idoso, possui dimensão de
peso, a qual ganhará relevância no sopesamento com outros princípios que com ele colidam, apresenta-se
na modalidade de comando de otimização, ou seja, ordena que a absoluta prioridade se realize na maior
medida possível, de acordo com as possibilidades jurídicas e fáticas; dadas por um caso concreto ou
formuladas em abstrato envolvendo o idoso. Ademais, possui como qualidade a determinação da
realização de um fim juridicamente relevante, qual seja, a absoluta prioridade atribuída ao idoso, que só
será realizada se adotado certo comportamento. Sua interpretação e aplicação demandam avaliação da
correlação entre o estado de coisas colocado como fim – a absoluta prioridade do idoso – e os efeitos
decorrentes dessa conduta tida como necessária, isto é, a efetividade do princípio na prática.
195
Crianças e adolescentes gozam da mesma tutela prioritária como adiante se desenvolverá.
196
RAMAYANA. Marcos. Estatuto do idoso comentado, p. 17.
jovem, o velho usufruirá primeiramente do serviço com a agilidade que sua penúria
ensejar, levando em conta o contexto particularíssimo de sua idade avançada que
demanda cuidados peculiares.197
“II – preferência na formulação e na execução de políticas sociais públicas
específicas;” o que leva a entender que as políticas traçadas pela Política Nacional do
Idoso e por seu Estatuto não se exaurem. Outras devem ser implementadas por meio do
comando legislativo federal, estadual e municipal em categoria de prelação tanto na
formulação quanto na execução.
“III – destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a
proteção do idoso;” o que já retrata, além do fragmento de um princípio, uma política
pública em seu favor. Dessa forma, o orçamento da União, dos Estados e dos
Municípios deverá destinar, impreterivelmente, verbas públicas para hospitais, clínicas,
farmácias, escolas, entidades de atendimento, entidades de entretenimento e cultura,
entre outros estabelecimentos desse jaez que visem a proteger, no sentido mais alargado
dessa palavra, a pessoa idosa, especialmente à pobre e desamparada.
“IV – viabilização de formas alternativas de participação, ocupação e convívio
do idoso com as demais gerações;” no sentido de incentivar a socialidade do idoso tanto
nas relações familiares e comunitárias, como também nas relações sociais que pode e
deve cultivar nos ambientes públicos e privados. Devem ser criadas, para tanto, novas
opções para que a pessoa idosa possa desenvolver sua sociabilidade e se integrar às
gerações mais jovens.
“V – priorização do atendimento do idoso por sua própria família, em detrimento
do atendimento asilar, exceto dos que não a possuam ou careçam de condições de
manutenção da própria subsistência;” o que implica solidariedade da família já que se
refere à pessoa que necessita de atendimento, ou seja, que sozinha não pode ministrar
sua existência. Esse inciso leva em consideração que estão mais preparados para acolher
o idoso aqueles que com ele possuem laços afetivos, ao invés dos dotados de melhores
capacidades profissionais. Sobressai o valor do afeto e a oportunidade de a pessoa idosa
continuar vivendo em seu lar, ao lado de seus móveis e utensílios domésticos, os quais
197
Ressalte-se que o Estatuto do Idoso inova ao atribuir esse tipo de prioridade ao ser humano de idade
adiantada, pois a observação que se fazia antes da sua vigência era outra na seara médica. Cf. PAPALÉO
NETTO. Matheus. O estudo da velhice no século XX: histórico, definição do campo e termos básicos. In:
Tratado de Geriatria e Gerontologia, p. 4: “A política de desenvolvimento que domina as sociedades
industrializadas e urbanizadas sempre teve mais interesse na assistência materno-infantil e dirigida aos
jovens. O investimento numa criança tem o retorno potencial de 50 a 60 anos de vida produtiva, enquanto
cuidados médico-sociais direcionados à manutenção de uma vida saudável de um idoso não podem ser
encarados como investimento.”
ajudam a manter uma sensação de aconchego e até de conforto espiritual.198 Ressalva-
se, contudo, a permanência domiciliar do ancião que precisa de atendimento e não
possui família para provê-lo bem como dos que a possuem, mas são tão pobres que não
possuem condições de manter sua sobrevivência.
Para os que não possuem família a solução apontada parece correta, o que não se
pode dizer a respeito do idoso que, embora não tenha recursos para se manter, houver
família suficientemente abastada. A não ser que se queira dizer que é a família que não
dispõe de condições econômicas para cuidar do idoso, perspectiva não visualizada a
partir da dicção do preceito, parece que num direito personalista, em que o ser vale mais
que o ter, no sentido de despatrimonializar e repersonalizar as relações familiares,199
não exista espaço para que o Estado deixe aos cuidados de uma entidade pública, pessoa
envelhecida que possua comunidade familiar.200
“VI – capacitação e reciclagem dos recursos humanos nas áreas de geriatria e
gerontologia e na prestação de serviços aos idosos;” para que haja mais pessoal
qualificado para atender o idoso em diversos espaços sociais e nos ambientes de
específica prestação de serviços aos idosos, considerando, antes de tudo, a preservação
de sua capacidade funcional.201
“VII – estabelecimento de mecanismos que favoreçam a divulgação de caráter
educativo sobre os aspectos biopsicossociais de envelhecimento;” a fim de possibilitar
que tanto as pessoas da terceira idade quanto as demais que compõem a sociedade, se
esclareçam acerca das vicissitudes biológicas, psíquicas e sociais do envelhecimento por
198
RAMAYANA. Marcos. Estatuto do idoso comentado, p. 18.
199
Cf. FACHIN, Rosana Amara Girardi. Em busca da família do novo milênio: uma reflexão crítica
sobre as origens históricas e as perspectivas do direito de família brasileiro contemporâneo. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001, p. 11-13.
200
No sentido de valorização da pessoa nas relações familiares tuteladas pelo Estado, BARBOZA,
Heloisa Helena. O direito de família brasileiro no final do século XX. In: A Nova Família: Problemas e
Perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 105: “Paralelamente a todas essas inovações, de igual ou
maior importância, foi a ampliação do papel do Estado, a quem incumbe, além da função de proteção à
família, o dever de assegurar-lhe assistência, na pessoa de cada um dos que a integram, deslocando o
objeto de sua atenção para o indivíduo, em lugar da comunidade familiar.” [grifou-se]
201
RAMOS, Luiz Roberto. Epidemologia do envelhecimento. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia, p.
77-78: “A manutenção da capacidade funcional é, em essência, uma atividade multiprofissional para a
qual concorrem médicos, enfermeiras, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psicólogos e assistentes
sociais. A presença destes profissionais da rede de saúde deve ser vista como prioridade. No entanto, para
que a atenção ao idoso possa se realizar em bases interprofissionais, é fundamental que se estimule a
formação de profissionais treinados, através da abertura de disciplinas nas universidades, de residências
médicas e de linhas de financiamento a pesquisas que identifiquem a área da geriatria e gerontologia.”
[Grifou-se]
meio de cursos, cartilhas, informações por meio da imprensa, da internet, entre outros
órgãos de informação em massa. O que é desconhecido não sensibiliza e nem atrai
maiores interesses.
“VIII – garantia de acesso à rede de serviços de saúde e de assistência social
locais.” O que se visa é tornar certo, seguro, o acesso do idoso à rede de serviços de
saúde e de assistência social locais. Quanto ao acesso, verificam-se duas formas de
apreciá-lo e ambas estão contidas no teor do enunciado normativo. Em primeiro lugar,
deve ser assegurado ao idoso o atendimento de sua saúde e disponibilizada assistência
social em seu benefício no local onde resida. Em segundo, o idoso tem que ter
condições de acesso, no sentido de condição de transitar rumo a esses locais, pois é
sabido que os velhos mais velhos possuem, muito freqüentemente, alguma dificuldade
de locomoção.
Enfim, cabe registrar que cada um desses preceitos individualiza a pessoa idosa
no sentido de lhe garantir prioridade em vários setores da sua vida pública e privada,
mas não compõem um rol limitativo. A fim de cumprir o preceito do caput do art. 3º,
outras ações que se mostrarem necessárias para afiançar a absoluta prioridade outorgada
ao idoso devem ser desenvolvidas por políticas públicas, pelo legislador, pela doutrina e
pelos tribunais.
Diante de todo o exposto, cumpre nessa altura demonstrar que o sub-princípio da
proteção integral jungido ao sub-princípio da absoluta prioridade consubstanciam um só
princípio: o do melhor interesse do idoso.
Isso ocorre porque os princípios “precisam, para a sua realização, de uma
concretização através de sub-princípios e valores singulares, com conteúdo material
próprio.”202 Mas o princípio do melhor interesse do idoso “é antes a ideia directiva que
serve de base a todos estes sub-princípios e lhes indica a direcção, não podendo
explicar-se esta ideia directiva de outro modo senão aduzindo os seus subprincípios e
princípios jurídicos gerais concretizadores na sua conjugação plena de sentido.”203
202
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito.
Tradução de: CORDEIRO, Antonio Menezes. Lisboa: Calouste Gulbenkian. 1989, p. 87. Observe-se que
Canaris faz alusão aos princípios gerais do direito, com os quais não se está a trabalhar, pois se opera com
princípios de uma lei especial como norteadores de um sistema que refletem os conteúdos valorativos
constitucionais. De todo modo, sua construção permite compreender o sentido de sub-princípios também
nesse caso.
203
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, p. 579, em que o autor dá, também, um exemplo
de princípio e sub-princípios: “Tomemos o princípio do Estado de Direito. Nele contém-se, sem dúvida,
uma série de subprincípios, como, por exemplo, a legalidade da administração, a vinculação também do
legislador a certos direitos fundamentais, a independência dos juízes, o direito de acesso à justiça, a
Assim, da mesma forma que a proteção integral e absoluta prioridade compõem
o princípio do melhor interesse do idoso, este indica a direção dessa proteção e dessa
prioridade, num movimento de junção de significados que gera uma acepção
compatibilizada: a pessoa idosa faz jus à tutela integral e prioritária de acordo com seu
melhor interesse.
Assim, os artigos 2º e 3º do Estatuto fazem menção indireta ao princípio do
melhor interesse e o art. 4º subseqüente o contém implicitamente ao dispor:
“Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência,
discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos
seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei.
§ 1.º É dever de todos prevenir a ameaça ou violação aos direitos do
idoso.[...]”
Defende-se ainda que o valor jurídico do cuidado para com a pessoa idosa é
informado pelo princípio do seu melhor interesse.
Da mesma forma, já se considerada um problema de saúde pública, identificado
pela Organização Mundial de Saúde (OMS), qualquer tipo de violência, crueldade ou
opressão contra o idoso. A pessoa idosa faz jus à tutela integral e prioritária, segundo o
princípio do seu melhor interesse, o qual não condiz com ação única, repetida, ou
ausência dela quando devida, vivenciada numa relação em que haja expectativa de
confiança do idoso e que acabe por lhe causar sofrimento e angústia.208 Repita-se, que
todo atentado aos direitos do idoso, por ação ou omissão, será punido na forma da Lei e
que é dever de todos prevenir tal ameaça ou violação aos direitos do idoso, de acordo
com o princípio do seu melhor interesse. Essas asserções são corroboradas pelo Estatuto
do Idoso que, no capítulo destinado à disciplina do direito fundamental à saúde da
pessoa idosa dispõe em seu art. 19:
207
TJRJ. Apelação Cível nº 2006.001.00167. Apelante: Município do Rio de Janeiro. Apelado: José
Ribeiro da Conceição. Relatora: Desembargadora Conceição A. Mousnier. Julgada em: 31.05.2006.
208
MACHADO, Laura e QUEIROZ, Zally V. Negligência e maus tratos. In: Tratado de Geriatria e
Gerontologia, p. 791.
“Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra ao idoso
serão obrigatoriamente comunicados pelos profissionais de saúde a
quaisquer dos seguintes órgãos:
I – autoridade policial;
II – Ministério Público;
III – Conselho Municipal do Idoso;
IV – Conselho Estadual do Idoso:
V – Conselho Nacional do Idoso”
209
BARBOZA, Heloisa Helena. O princípio do melhor interesse do idoso, p. 70.
210
Grifou-se.
211
Trata-se de ensinamento de RODRÍGUEZ. Manuel Atienza. Sobre la analogia em el derecho: ensayo
de análisis de um razonamiento jurídico. Madrid: Civitas, 1986, p. 26. O autor também cita um exemplo
de analogia: “As relações que se dão entre uma companhia de barcos de vapor e seus passageiros, que
tenham tomado camarotes para sua comodidade durante a viagem, não difere em nenhum aspecto
essencial da que se dá entre o hoteleiro e seus hóspedes. (...)
Se o ordenamento jurídico brasileiro acolhe o princípio do melhor interesse da
criança, também deve encampar, por analogia, o mesmo princípio a favorecer o idoso,
pois a razão de o menor necessitar de um princípio especialíssimo, em razão de sua
tenra idade, é o mesmo atribuído às pessoas de idade muito adiantada. A
vulnerabilidade em virtude da idade é comum entre crianças, adolescentes e idosos, por
isso, a tutela especial dessas faixas etárias tem, guardadas as devidas proporções, a
mesma razão de ser.212
Assim, se o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e o
princípio do melhor interesse do idoso são análogos, porque compartem a mesma
característica, qual seja, a vulnerabilidade dessas pessoas em razão da idade, tal relação
pode expressar-se também assim: o princípio do melhor interesse da criança e do
adolescente existe e é válido porque crianças e adolescentes são vulneráveis, como o
princípio do melhor interesse do idoso existe e é válido, porque os idosos são
vulneráveis.213
Mais: o princípio do melhor interesse do idoso não se reduz a um princípio
setorial, aliás, “as denominadas ‘orientações setoriais’ nem sempre são eficientes para a
tutela da personalidade e dos direitos fundamentais da pessoa humana”214 . Logo, o
princípio de que se trata, é expressão do princípio constitucional da dignidade da pessoa
humana considerada em suas peculiaridades. Em outras palavras, “o princípio do
melhor interesse do idoso, de base constitucional, é consectário natural da cláusula geral
As duas relações, se bem que não são idênticas, apresentam uma analogia tão estreita que deveria ser-lhes
de aplicação a mesma regra de responsabilidade. Somos da opinião, por conseguinte, de que o demandado
deveria verdadeiramente ser considerado como responsável pelo dinheiro roubado ao demandante, sem
necessidade de prova alguma de negligência.” [Traduziu-se livremente do espanhol]
212
RODRÍGUEZ. Manuel Atienza. Sobre la analogia em el derecho: ensayo de análisis de um
razonamiento jurídico, p. 29: “Quando os juristas falam de analogia, querem referir-se por comum a um
procedimento argumentativo que permite transladar a solução prevista para um caso, a outro distinto, não
regulado pelo ordenamento jurídico, mas que se assemelha ao primeiro enquanto que comparte com
aquele certas características essenciais ou bem – para empregar a solução clássica recolhida pelo Código
Civil espanhol – a mesma razão (eadem ratio). [Traduziu-se livremente do espanhol]
213
RODRÍGUEZ. Manuel Atienza. Sobre la analogia em el derecho: ensayo de análisis de um
razonamiento jurídico, p. 35. “... A relação de analogia pode formular-se sempre como uma analogia de
relações: se dois conceitos ou os objetos denotados pelos mesmos, por exemplo, dois casos jurídicos, A e
B, são análogos porque compartem a característica x, dita relação pode expressar-se também assim: A
está para x como B está para x. [Traduziu-se livremente do espanhol]
214
BARBOZA, Heloisa Helena. O princípio do melhor interesse do idoso, p. 70.
de tutela da pessoa humana e, por excelência, fonte da proteção integral que é devida ao
idoso.”215
O princípio do melhor interesse do idoso também é recepcionado pelo art. 5º, §
2º da Constituição, no sentido de que os direitos e garantias expressos nela não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, recebendo, pois, a
natureza de fundamental.
O direito à proteção integral, com absoluta prioridade e segundo o princípio do
melhor interesse é garantido pela Constituição na medida em que o idoso é pessoa mais
vulnerável que outras de diferente faixa etária, e seu tratamento especial decorre do
princípio constitucional da dignidade conferido à pessoa humana. Essa dignidade faz
urgente interpretar o direito a partir de um olhar acerca das diferenças, possibilitando a
convivência de distintas gerações com o conhecimento do que as aproxima e afasta,
preservando, antes de tudo, a pessoa em sua situação singular. Destarte, “não existe um
número fechado de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa sem limites, salvo
aqueles colocados no seu interesse e naqueles de outras pessoas”216, como a colisão de
interesses de pessoas idosas com outros interesses de crianças e adolescentes, situação
na qual haverá necessidade de uma minuciosa ponderação.
O princípio do melhor interesse do idoso apresenta-se como princípio porque
constitui critério teleológico-objetivo da interpretação a justificar a tomada de decisões
em benefício do idoso, possui dimensão de peso, a qual ganhará relevância no
sopesamento com outros princípios que com ele colidam, apresenta-se na modalidade de
comando de otimização, ou seja, ordena que o melhor interesse se realize na maior
medida possível, de acordo com as possibilidades jurídicas e fáticas; essas dadas por um
caso concreto ou abstrato envolvendo o idoso. 217
O princípio analisado possui como qualidade a determinação da realização de
um fim juridicamente relevante, qual seja, o melhor interesse do idoso, que só será
realizado se adotado certo comportamento. Sua interpretação e aplicação demandam
215
BARBOZA, Heloisa Helena. O princípio do melhor interesse do idoso, p. 57.
216
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil, p. 156.
217
BARBOZA, Heloisa Helena. O princípio do melhor interesse do idoso, p. 70: “Tome-se como
exemplo o idoso em ‘situação de risco’ (art. 43, Lei 10.741/03), que resulta dentre outras causas do
‘abuso da família’ ou da ‘condição pessoal’ do idoso. A fórmula legal contém conceitos indeterminados e
sua interpretação diante do caso concreto deverá atender não só as diretrizes fixadas pela lei, como (e
principalmente) o melhor interesse do idoso, para que se efetive a proteção integral que lhe é assegurada
pelo Estatuto.”
avaliação da correlação entre o estado de coisas colocado como fim – o melhor interesse
do idoso – e os efeitos decorrentes dessa conduta tida como necessária, isto é, a
efetividade do princípio na prática.
218
TEPEDINO, Gustavo. Novas formas de entidades familiares: efeitos do casamento e da família não
fundada em matrimônio. In: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 326-327.
219
TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil-constitucional das relações familiares. In: Temas de Direito
Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 350.
princípio do melhor interesse das crianças dos adolescentes e dos idosos, c. o sub-
princípio da proteção integral das crianças dos adolescentes e dos idosos, d. o sub-
princípio da absoluta prioridade outorgado às crianças, aos adolescentes e aos idosos.
220
Nesse sentido, BARBOZA, Heloisa Helena. O melhor interesse do idoso, p. 71; “Constata-se implícito
no preceito constitucional o princípio do melhor interesse do idoso, como expressão da proteção integral
que lhe é devida com absoluta prioridade. Tal princípio, de inegável valia como critério hermenêutico,
diante da complexidade da situação existencial do idoso, revela-se instrumento hábil na efetivação da
tutela da dignidade das pessoas que se encontram num estado mais avançado da existência humana.”
II – criação de programas de prevenção e atendimento especializado
para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem
como a integralização social do adolescente portador de deficiência,
mediante treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação
do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de
preconceitos e obstáculos arquitetônicos.
§ 2º A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos
edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte
coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de
deficiência.”221
Aos idosos, na forma do § 2º do art. 230, o que se garantiu foi a gratuidade dos
transportes coletivos urbanos desde que atingida a idade de sessenta e cinco anos,
independentemente de deficiência física, sensorial ou mental, nos seguintes termos:
“Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos
urbanos.”
O direito à acessibilidade é expressão do princípio do melhor interesse das
crianças dos adolescentes e dos idosos em nível constitucional, corroborado pelo art. 15,
§ 4º do Estatuto do Idoso.
e. O direito ao cuidado como expressão do princípio do melhor interesse das
crianças, dos adolescentes e dos idosos
Quanto ao cuidado prestado a crianças, adolescentes e idosos, a Constituição,
usando de vocábulos diferentes, consagrou a solidariedade entre gerações da mesma
família voltada para os seus membros vulneráveis na forma do art. 229: “Os pais têm o
dever de assistir, criar, educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de
ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.” O direito ao cuidado
especial, no seio da família, também é expressão do princípio do melhor interesse das
crianças e dos adolescentes.222 Fazem jus ao mesmo cuidado especial advindo da
221
Grifou-se.
222
PY, Ligia e TREIN, Franklin. Finitude e infinitude: dimensões do tempo na experiência do
envelhecimento. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia. Organizadores: DE FREITAS, Elizabete Viana,
PY, Ligia, NERI, Anita Liberanesso, CANÇADO, Flávio Aluízio Xavier, GORZONI, Milton Luiz, DA
ROCHA, Sônia Maria. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002, p. 1016: “Absolutamente incapaz de
realizar, por si mesmo, a tarefa de prover a própria sobrevivência, o recém nascido encontra na mãe o
cuidado, o refúgio e também a proteção para os perigos que se intensificam diante da vulnerabilidade
extrema de sua condição. Evidencia-se a dependência do Outro para sua sobrevivência, não só aos perigos
reais da vida, como também já se esboça essa dependência frente à própria vida psíquica do indivíduo.
Assim, esse estado primordial de desamparo desempenha um papel decisivo na estruturação do
psiquismo, que se constitui fundamentalmente na relação com o Outro, ou seja, o ser humano só
sobrevive porque o outro o deseja. Essa é a origem de ser amado e cuidado, perpetuada no ser humano até
a sua morte.”
família os idosos, segundo o princípio do seu melhor interesse.223 Observe-se que o
cuidado, tanto para crianças e adolescentes, quanto o dirigido aos idosos, não se
restringe à solidariedade intergeracional no âmbito familiar, mas também à
solidariedade que deve provir da sociedade e do Estado em relação aos seus membros
mais vulneráveis, em razão da idade reduzida ou avançada.
Percebe-se que os artigos são praticamente idênticos, com diferença no que diz
respeito ao trabalho assegurado ao idoso, quando, às crianças e adolescentes, assegura-
se o preparo para o ingresso nele por meio do acesso à profissionalização; e a referência
à cidadania é feita somente em face do idoso, já que numa acepção clássica, esta é
adquirida “com a obtenção da qualidade de eleitor, que documentalmente se manifesta
na posse do título de eleitor válido.”224 De outro modo, mesmo na concepção clássica,
essa prerrogativa consta como direito fundamental constitucional do adolescente de
dezesseis anos, na forma do art. 14, § 1º, inciso II, alínea c, da Constituição da
República, que prevê o voto facultativo.
O que sobreleva em ambos os artigos consiste no abrigo do sub-princípio da
absoluta prioridade atribuída tanto aos idosos quanto às crianças e aos adolescentes na
efetivação dos direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária e a
obrigação, na dicção do Estatuto do Idoso, ou o dever, na dicção do Estatuto da Criança
224
DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo, p. 348.
e do Adolescente, tanto da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder
público de assegurá-los.
A garantia de prioridade das crianças e dos adolescentes compreende, na forma
do parágrafo único do art. 4º do seu Estatuto:
“a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer
circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância
pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais
públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas
com a proteção à infância e à juventude.”
225
Expressão de PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil, p. 80.
adolescentes só “podem ser entendidos se se conhece o mundo ao qual pertencem” 226, e
que elege como princípio fundamental a dignidade da pessoa humana.
A partir da cláusula geral de tutela da pessoa humana extraída do princípio
constitucional de sua dignidade torna-se possível asseverar que “o seu conteúdo não se
limita a resumir os direitos tipicamente previstos por outros artigos da Constituição, mas
permite estender a tutela a situações atípicas.”227
É exatamente esse o caso do sub-princípio da absoluta prioridade que se
compreende também atribuído ao idoso de acordo com a axiologia constitucional. Se,
pela interpretação do art. 5°, parágrafo 2º da Constituição exsurge o princípio do melhor
interesse do idoso, do qual a absoluta prioridade é sub-princípio, resta claro que a
Constituição também encampa a absoluta prioridade como princípio em favor do idoso,
embora assim não disponha literalmente, pois “a negação do estar em si mesmo do
direito positivo implica a recusa de métodos puramente lingüísticos da interpretação,
como se a interpretação consistisse unicamente na análise da linguagem, puramente
formal, do legislador.”228
Isto posto, em caso de colisão de interesses atrelados a crianças, adolescentes e a
idosos, há de se fazer uma criteriosa ponderação dos direitos e dos valores resguardados
pelos princípios atribuídos a ambos, a fim de se decidir, de acordo com as
especificidades do caso concreto, quem gozará da absoluta prioridade; no ponto
específico desse trabalho, quem gozará da absoluta prioridade no acesso à saúde. Logo,
não há uma resposta apriorística de qual dos interessados terá uma reposta favorável
num conflito de razões. O intérprete, nesses casos, deve adotar critérios para bem
sopesar princípios, direitos ou interesses que estejam em jogo. 229
226
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil, p. 80.
227
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil, p. 155.
228
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil, p. 67.
229
Consoante AMARAL, Francisco. O código civil brasileiro e o problema metodológico de sua
realização. Do paradigma da aplicação ao paradigma judicativo-decisório. In: Revista Forense. Rio de
Janeiro. Vol. 385. Maio/Junho de 2006, p. 98-99: “Não é demais repetir que a interpretação é hoje tema
fundamental do pensamento jurídico, apresentando-se não mais como a investigação semântica das
disposições normativas, visando à sua ‘aplicação’, mas como um problemático processo de realização do
direito, ‘não sendo exagero afirmar que ‘no pensamento jurídico dos últimos decênios pode observar-se
uma preocupação especial por todos os assuntos relativos à interpretação das normas jurídicas, centrando-
se, ultimamente, quase todos os debates no processo de obtenção de decisões’. Verifica-se, assim,
verdadeira mudança da perspectiva tradicional, que partia do sistema jurídico, por meio do raciocínio da
subsunção, para o problema a resolver ou a própria decisão.”
Já se sugeriu que a primeira etapa adotada no processo de ponderação fosse o
arranjo dela, em que se analisariam todos os dados do caso e assuntos a ele relacionados
para se aferir exatamente o objeto do balanceamento; a segunda etapa consistiria no
desempenho da ponderação, quando se fundamentaria a relação entre as importâncias
sopesadas; a terceira etapa versaria sobre a reconstituição da ponderação, com a
elaboração de regras de preponderância entre os itens componentes do sopesamento
com aspiração de validade para casos similares.230 Ainda assim, advertiu-se que o
intérprete poderá usar outros critérios para fazer o balanceamento, levando sempre em
conta os princípios constitucionais.231
Não há, por conseguinte, e nem pode haver, um resposta a priori para a situação
de confronto de interesses, de direitos ou de princípios protetivos de crianças,
adolescentes e idosos, a não ser que se trabalhasse com exemplos elaborados em
abstrato, o que não se pretende, dadas as limitações deste trabalho. Dogmaticamente,
tanto os infantes e púberes quanto os velhos são titulares da proteção especial
proveniente da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público,
segundo os sub-princípios da tutela integral e absolutamente prioritária, de acordo com
o princípio do seu melhor interesse.232
O princípio do melhor interesse do idoso, seja consentido frisar, é consectário do
princípio da dignidade da pessoa humana, que não tolera um tratamento formalmente
igualitário e materialmente desigual entre pessoas de idades díspares em virtude das
vulnerabilidades acarretadas pela velhice. Logo, a pessoa humana é tutelada tanto pelo
direito constitucional quanto pelas leis setoriais, em seus princípios e regras, levando-se
em conta suas particularidades, seu momento de vida, em uma palavra: sua unicidade,
para que não seja lesada em seus direitos, principalmente quando se trata da parte fraca
230
Essas são formulações de ÁVILA. Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos
princípios jurídicos, p. 87 e 88.
231
ÁVILA. Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 88.
232
Em sentido diverso, DE FREITAS JR. Roberto Mendes. Direitos do idoso, p. 138: “...Havendo
conflito de interesses entre a priorização no atendimento da criança ou adolescente, e da pessoa idosa, a
prioridade deverá ser concedida aos primeiros (por força de disposição constitucional), permanecendo,
após, a prioridade do idoso em relação aos demais cidadãos (por força de norma legal
infraconstitucional).”
de uma relação ou situação jurídica levada ao Poder Judiciário para apreciação e
decisão. 233
Nesse sentido, interpretar o direito dos idosos de acordo com o princípio do seu
melhor interesse significa, em questões relativas à sua saúde, não só conceder-lhe esse
direito fundamental de maneira prioritária em relação aos seus outros direitos, mas
também de lhe conferir prioridade no acesso à saúde em face de direitos concorrentes da
mesma estirpe de pessoas de outras faixas etárias.
Resta claro, portanto, que nas relações da pessoa idosa com o Estado ou com a
iniciativa privada na prestação de sua saúde, vigora o princípio do seu melhor interesse
como corolário de sua dignidade a guiar toda interpretação dessas relações. Assim,
“viver dignamente é viver com saúde e qualidade, daí a importância e a relevância para
as pessoas de mais idade de terem acesso a um plano de saúde privado ou receberem um
digno tratamento da saúde pública.”234 Afinal, “nada representa mais a dignidade do ser
humano do que sua vida respeitada e a morte tranqüila.”235
233
Observe-se, pois, o magistério de AMARAL, Francisco. O código civil brasileiro e o problema
metodológico de sua realização. Do paradigma da aplicação ao paradigma judicativo decisório. In:
Revista Forense. Vol. 385. Maio/Julho de 2006, p. 97: “A interpretação jurídica não tem por objetivo
descobrir o sentido e o alcance de uma regra jurídica, mas sim, constituir-se na primeira fase de um
processo de construção ou concretização da norma jurídica adequada ao caso concreto. Apresentando-se
as regras jurídicas como proposições lingüísticas de caráter geral, deve o intérprete, a partir do seu texto,
construir a norma-decisão específica para o caso em tela, tendo em vista o ser humano in concreto,
situado, não o sujeito de direito in abstracto, próprio do direito liberal da modernidade.”
234
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 390.
235
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor, p. 390.
3º CAPÍTULO: A saúde da pessoa idosa como direito fundamental e o
papel do Estado na sua consecução
236
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução: COUTINHO, Carlos Nelson. Rio de Janeiro:
Campus, 1992, p. 73 e 74.
237
KANT, Emmanuel. Doutrina do direito. Tradução de: BINI, Edson. São Paulo: Ícone, 1993, p. 55.
238
KANT, Emmanuel. Doutrina do direito, p. 55.
conceito de liberdade próprio à teoria liberal do Estado é o conceito de liberdade como
não-impedimento.”239
Ressalta-se o pensamento de Kant, pois ele representa a etapa conclusiva da
primeira fase da história dos direitos do homem, que vai alcançar seu cume nas
declarações iniciais de seus direitos não mais enunciados por filósofos, mas pelos
detentores do poder de governo, que não se contentavam com a simples existência
abstrata de direitos naturais. 240 Naquele momento, ao final do século XVIII, já se fazia
indispensável que eles fossem materializados e reconhecidos pelo Estado. Ao mesmo
tempo, Kant contribui para a formação do conceito de Estado de Direito que possui
interdependência com os direitos fundamentais, esses, próprios de um Estado em que as
leis são soberanas e que não partem do arbítrio dos poderosos.241
Assim, a origem dos direitos fundamentais encontra-se na Declaração de
Direitos do Povo da Virgínia de 1776, um marco da Revolução Americana, e na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, ponto máximo da Revolução
Francesa, mas é a primeira que representa o marco da passagem dos direitos de
liberdade legais ingleses para os direitos fundamentais constitucionais.242
Ainda imbuídos do espírito jusnaturalista, os direitos fundamentais constantes
das primeiras constituições escritas, surgem como direitos do indivíduo frente ao
Estado, delimitando uma área de não interferência estatal e um domínio de autonomia
do indivíduo face ao Poder Público, que deveria se abster de intervir na esfera privada
da vida das pessoas. Chama-se esta fase precursora dos direitos fundamentais de
primeira dimensão desses mesmos direitos civis e políticos, atribuídos aos cidadãos, no
início do constitucionalismo do Ocidente pelo Estado Liberal.
Porém, significativos para o estudo da saúde da pessoa idosa como direito
fundamental são, principalmente, os denominados direitos de segunda dimensão,
surgidos no século XIX, quando já não havia tanta necessidade de se justificar a
existência de direitos em face do Estado, mas de assinalar que existem direitos que
devem provir dele.
239
BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. Tradução de: FAIT, Alfredo.
Brasília: UNB, 1984, p. 74.
240
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 73.
241
PEREZ LUÑO. Antonio E. Los derechos fundamentales, p. 32.
242
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 47.
Todavia, há de se ressaltar que não há incompatibilidade entre os direitos
fundamentais de primeira e os de segunda dimensão, tendo em vista que as extensões de
direitos fundamentais se complementam abrangendo, inclusive, novas dimensões, todas
baseadas na acepção de que a dignidade da pessoa humana é o norte a guiar os direitos
humanos de índole fundamental.
Como conseqüência da Revolução Industrial, do surgimento do proletariado e
das manifestações socialistas que reivindicavam mais que um direito à liberdade formal,
quer-se dizer, a liberdade perante a lei, passou a existir um clamor por liberdade em
bases materiais, que oferecesse aos menos favorecidos justiça social.243 Nascem,
portanto, os direitos fundamentais sociais, econômicos e culturais compostos pela
vindicação do eficaz exercício das liberdades positivas e com o condão de assegurar aos
mais necessitados, igualdade de oportunidades próprias de um Estado de Direito
dirigido também pela justiça material.244 Nesse passo, os direitos sociais firmam-se
quão direitos de libertação da necessidade e, ainda, quão direitos de promoção, cujo
conteúdo é a organização da solidariedade.245 Configuram-se também direitos à
igualdade substancial e gozam de um regime jurídico diferenciado defronte a uma
desigualdade de fato que, por seu implemento, será limitada ou superada.246
Concomitantemente, na virada para o século XX, surgem as expressões
primitivas do que seria o Estado do Bem-Estar Social, cujos direitos, consagrados
constitucionalmente, adjudicavam aos indivíduos prestações estatais que não
constituíam apenas uma abstenção no domínio de suas vidas particulares, mas um agir
243
PARCERO, Juan Antonio Cruz. Los derechos sociales como técnica de protección jurídica. In:
Derechos Sociales e Derechos de las Minorias. 2 ed. Compiladores: CARBONELL, Miguel, PARCERO,
Juan Antonio Cruz, VÁZQUEZ, Rodolfo. México: Editorial Porrúa, 2001, p. 89: “Seria ingênuo e
inclusive torpe pensar que o problema dos direitos sociais é um problema exclusivamente jurídico;
quando falamos de direitos sociais, fazemos referência a certos bens ou valores (justiça, igualdade, saúde,
educação, et coetera), e mais especificamente, a uma série de pretensões ou demandas para obter ou
garantir ditos bens ou valores que consideramos um meio para obter aquilo que chamamos justiça social.”
[Traduziu-se livremente do espanhol]
244
Segundo o que QUEIROZ, Cristina M. M. Direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2002,
assevera na p. 161: “A ‘igualdade de chances’ (não de condições), a concorrência de oportunidades,
enfim, a alternativa da minoria a maioria, substituem-se hoje ao comando da ‘vontade geral’ como
categorias gerais ‘legitimadoras’ da acção que o Estado entretanto assumiu no domínio da economia e da
sociedade.”
245
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Direitos fundamentais, p. 105.
246
SANCHÍS, Luis Pietro. Los derechos sociales y el principio de igualdad sustancial. In: Derechos
Sociales e Derechos de las Minorias. 2 ed. Compiladores: CARBONELL, Miguel, PARCERO, Juan
Antonio Cruz, VÁZQUEZ, Rodolfo. México: Editorial Porrúa, 2001, p. 25 e 26.
efetivo que garantisse um mínimo vital para sua subsistência, tais como estabelecidos na
Carta Mexicana de 1917 e na Constituição de Weimar de 1919. Inclusive, a
Constituição de Weimar foi o texto inspirador de outras cartas constitucionais que se
estabeleceram após o fim da Segunda Grande Guerra, cujo intento era conjugar os
direitos de liberdade com os direitos econômicos, sociais e culturais. 247 A chegada dessa
segunda dimensão de direitos fundamentais, notadamente em nível constitucional,
obrigava o Estado a desempenhar prestações positivas, que se garantiam por intermédio
de políticas públicas interventivas. Dessa maneira, o conceito de direitos sociais se
correlaciona com o de Estado Social. Os direitos fundamentais ainda tiveram
reconhecimento no âmbito internacional por meio da expressiva Declaração de Direitos
Humanos da ONU datada de 1948 e, posteriormente, pelo Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966.
Sem nenhuma dúvida os direitos sociais pressupõem um protagonismo do Poder
Público na medida em que tais direitos acampam prestações oferecidas pelo Estado.248
O que se propugna por meio dos direitos sociais é um Estado que pratique a justiça
distributiva, que aceite a responsabilidade de garantir aos seus membros uma base
mínima de bem estar, que proporcione os meios adequados à existência humana em
condições de dignidade. “Alude-se aqui aos interesses de natureza existencial: mínimo
existencial e respeito à dignidade, no exercício do princípio da igualdade, este válido
não obstante as condições pessoais e a idade.”249 Tem-se ciência de que o problema do
idoso assume não só dimensões individuais como, ao mesmo tempo, sociais.250 E os
direitos sociais à prestações “são direitos do indivíduo, (e portanto, também do idoso)
frente ao Estado a algo que – se o indivíduo possuísse meios financeiros bastantes e se
encontrassem no mercado uma oferta suficiente – poderia obtê-los também de
particulares.”251, mas, não tendo, cabe ao Poder Público prestá-los.
247
PEREZ LUÑO. Antonio E. Los derechos fundamentales, p. 40.
248
PELÁEZ, Francisco J. Contreras. Derechos sociales: teoría e ideologia. Madrid: Tecnos, 1994, p. 17.
249
PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalitá constituzionale, p. 340. [Traduziu-se livremente
do italiano]
250
PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalitá constituzionale, p. 340.
251
ALEXY, Robert. Derechos sociales fundamentales. In: Derechos Sociales e Derechos de las Minorias.
2 ed. Compiladores: CARBONELL, Miguel, PARCERO, Juan Antonio Cruz, VÁZQUEZ, Rodolfo.
México: Editorial Porrúa, 2001, p. 69. [Traduziu-se livremente do espanhol e se acrescentou (e também
do idoso)]
Atente, todavia, que não só direitos sociais geram custos para o Estado. Os
direitos civis e políticos também dependem de prestações positivas que não se esgotam
na abstenção estatal.252 A fim de tutelá-los, configura-se necessário que o Estado gaste,
por exemplo, com regulamentação, definindo o alcance e a restrição desses direitos,
com regulação administrativa, com o exercício do poder de polícia frente às agressões
provenientes do próprio Estado ou de particulares, com a efetivação das eleições para
garantir o direito ao voto, entre outras despesas.253 A propriedade, emblematicamente, é
um direito civil que requer expensas estatais, como o aparato da justiça civil e penal,
com a força policial, com seus registros, com os serviços de cadastro, com a fixação e o
controle das zonas de uso do solo.254
Do mesmo modo não é correto sustentar que os direitos sociais, econômicos e
culturais só se executam mediante prestações. Condutas omissivas como as de não
danificar a saúde, não deteriorar a educação ou não destruir o patrimônio cultural, são
maneiras de realizá-los mediante obrigações negativas.255
Como se vê, as dimensões de direitos civis e políticos e as de direitos sociais,
econômicos e culturais se intercruzam, de modo que a satisfação dos primeiros não
obsta a dos segundos e vice versa. Ambas as categorias consubstanciam direitos de
índole fundamental. Percebe-se a falácia de que apenas os direitos sociais demandam
ações positivas do Estado, pois os civis e políticos também requerem atuações dessa
natureza. Todos os direitos, enfim, solicitam, em alguma medida, prestações positivas e
negativas para auferirem efetividade.
A diferença entre direitos civis e políticos e direitos sociais prestacionais
consiste no fato de que os custos dos segundos destinam-se às obrigações estatais
distributivas, que visam ao alcance da justiça social, como ocorre, por exemplo, na
prestação pública do direito à saúde às pessoas idosas. Na esfera jurídico-política atual
252
Esta é a tese desenvolvida por HOLMES, Stephen e SUNSTEIN, Cass. The cost of rights – why liberty
depends on taxes. New York: Norton and Company, 1999, passim.
253
ABRAMOVICH, Victor e COURTIS, Christian. Apuntes sobre la exigibilidad judicial de los
derechos sociales. In: Direitos Fundamentais Sociais: Estudos de Direito Constitucional, Internacional e
Comparado. Organizador: SARLET, Ingo Wolfgang. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 137e 138.
254
ABRAMOVICH, Victor e COURTIS, Christian. Apuntes sobre la exigibilidad judicial de los
derechos sociales, p. 137.
255
AÑON, María José. El test de la inclusión: los derechos sociales. In: Trabajo, derechos sociales y
globalización: algunos retos para el siglo XXI Coordenador: ANTÓN, Antonio. Madrid: Talasa, 2000, p.
175 e 176.
os direitos sociais “concretizam a obrigação do Estado de controlar os riscos do
problema da pobreza, que não podem ser atribuídos exclusivamente aos próprios
indivíduos, restituindo um status mínimo de satisfação das necessidades pessoais.” 256
2 - A saúde: direito fundamental e exigível
Não há dúvida de que os direitos são custosos para o Estado. A questão dos
custos, porém, não seria problemática se os recursos estatais fossem suficientes para
contemplar todo tipo de assistência que os cidadãos necessitam e merecem, afinal,
contribuem com tributos para que o Poder Público os gerencie em benefício da
sociedade.
Todavia, parece que em todo o mundo, mesmo nas nações mais ricas, a
dificuldade da escassez de recursos é empecilho para que o povo goze satisfatoriamente
dos direitos que devem provir do aparato governamental.257
259
TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na era dos direitos. In: Teoria dos Direitos
Fundamentais. 2 ed. Organizador: TORRES, Ricardo Lobo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 297.[
grifou-se]
260
BverfGE nº 33, p. 303. Decisão na qual a Corte decidiu pelo Estado não ter que criar tantas vagas nas
universidades públicas para receber toda a gama de estudantes interessados em cursá-las.
261
KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no brasil e na alemanha: os (des)caminhos de
um direito constitucional ‘comparado’. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 51.
262
KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no brasil e na alemanha: os (des)caminhos de
um direito constitucional ‘comparado’, p. 51.
objetivamente constatada263e que a pré-ponderação seria do legislador em face das
possibilidades orçamentárias estatais, o que impediria o alvedrio do Poder Judiciário
acerca da alocação de recursos sem ter em conta o entendimento do legislador político
democrático.264 Em estreita síntese, arguementa-se: “as opções que permitirão definir o
conteúdo dos cidadãos a prestações positivas do Estado têm de caber, portanto, a um
poder constituído.”265 Portanto, à “reserva do possível” soma-se o argumento da reserva
parlamentar em matéria orçamentária, o que toca o princípio da separação de poderes.266
Dentro dessa mesma linha de argumentação entende-se, inclusive, que os
direitos sociais não seriam direitos originalmente fundamentais.267
Com todo respeito, e sem desprestigiar a relevância da discussão que ainda se
procederá em face às indagações postas, não se comunga da opinião que os direitos
sociais, reduzidos à reserva do possível, teriam que ser alocados tão somente pelo
legislador ordinário quando houver ofensa às disposições constitucionais legitimadas
pelo legislador originário, muito menos de que os direitos sociais não consubstanciam
direitos de origem fundamental.
Há de se constatar, contudo, que é grande a polêmica doutrinária e
jurisprudencial a girar em torno da exigibilidade judicial dos direitos sociais
prestacionais, entre os quais se inclui o direito à saúde, até porque, como já se destacou,
263
Nesse sentido, NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da república
portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 294.
264
É o que assevera TORRES, Silvia Faber. Direitos prestacionais, reserva do possível e ponderação:
breves considerações e críticas. In: Direitos Fundamentais: Estudos em Homenagem ao Professor
Ricardo Lobo Torres. Organizadores: GALDINO, Flávio e SARMENTO, Daniel. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 785.
265
DE ANDRADE, José Carlos Vieira. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976. 3
ed. Coimbra: Almedina, 2006, p. 192.
266
Consoante SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos sociais na constituição de 1988. In: Revista Diálogo
Jurídico. Ano 1. Vol. 1. Abril/2001, p. 35.
267
Referindo-se ao “mínimo existencial”, TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos
fundamentais. In: Revista de Direito Administrativo. Vol. 177. Julho/Setembro, 1989, p. 29, assevera:
“Carece o mínimo existencial de conteúdo específico. Abrange qualquer direito, ainda que originalmente
não fundamental (direito à saúde, à alimentação, etc.)...” Recentemente, o autor confirma a sua posição
afirmando em A jusfundamentalidade dos direitos sociais. In: Revista de Direito da Associação dos
Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. Vol. XII, Lumen Juris, 2003, p. 370, que: “... Esse é o
caminho que leva à superação da tese do primado dos direitos sociais sobre os direitos da liberdade, que
inviabilizou o Estado Social de Direito, e da confusão entre direitos fundamentais e direitos sociais, que
não permite a eficácia destes últimos sequer na sua dimensão mínima.” [grifou-se]
questiona-se, nesse particular, se direitos desse jaez fazem mesmo parte do conjunto de
direitos fundamentais.268
A resposta acertada parece ser a que reconhece os direitos sociais como efetivos
direitos fundamentais porque são princípios do Estado de Direito e fazem parte do
núcleo do constitucionalismo atual, possibilitando que as pessoas aufiram um grau de
humanização cabível em cada momento histórico. Nesse diapasão, os direitos sociais
possuem um núcleo irredutível, isto é, um limite ao alvedrio do legislador, por
constituírem prestações sem as quais os indivíduos não poderiam sequer desenvolver
sua liberdade.269 Dessa forma, a liberdade desponta como o principal argumento em
favor dos direitos sociais, no sentido de que a liberdade jurídica, para fazer ou deixar de
fazer algo, não possui qualquer valor se não acompanhada da liberdade real (fática), de
eleger o que fazer dentro do que se permite; e tal liberdade, no âmbito da sociedade
industrial hodierna, depende essencialmente de atividades estatais.270
Nota-se, portanto, que a liberdade se estabelece como argumento em prol tanto
dos direitos de defesa quanto dos direitos prestacionais. Assim como os direitos de
defesa, os sociais também estão fulcrados na idéia de que a dignidade da pessoa só pode
ser alcançada com condições de liberdade para todos.271
Para justificar que os direitos fundamentais devem também assegurar a
liberdade fática, ressalta-se a importância dela para os homens, por lhes propiciar
condições de não viver abaixo de mínimas condições existenciais, de não lhes condenar
a nada fazer ou de não se verem excluídos da vida cultural de sua época. Ademais, esta
forma de liberdade permite que o ser humano possa se desenvolver livre e dignamente
na comunidade social.272
Observe-se que a Constituição brasileira atual tratou dos direitos sociais
exatamente no seu Título II, que cuida dos direitos e garantias fundamentais, atribuindo-
lhes capítulo próprio, erguendo-os, de maneira ostensiva, à posição de legítimos direitos
fundamentais e, portanto, diferenciando-os da reminiscência provinda da Carta de 1934
268
AÑON, María José. El test de la inclusión: los derechos sociales, p. 178.
269
AÑON, María José. El test de la inclusión: los derechos sociales, p. 179.
270
ALEXY, Robert. Derechos sociales fundamentales, p. 73.
271
SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos sociais na constituição de 1988, p. 22.
272
ALEXY, Robert. Derechos sociales fundamentales, p. 75.
e das seguintes, anteriores à de 1988, que os positivava no título da ordem econômica e
social.273
Firmada a fundamentalidade dos direitos sociais como direitos que viabilizam a
liberdade real e de que esse predicado decorre de expressa disposição da Constituição
brasileira de 1988, pergunta-se: os direitos sociais possuem garantia de ser sindicáveis
perante os tribunais? Esta questão está diretamente ligada à de quem possui
competência para decidir acerca da “reserva do possível”, caso se considere esse
argumento válido para a prestação de direitos sociais fundamentais.
A doutrina aponta uma objeção formal à judiciabilidade dos direitos sociais
fundamentais, no sentido de eles gerarem um deslocamento da política social do
parlamento para os tribunais e, no plano material, argumenta-se que os direitos sociais
não são conciliáveis, ou, pelo menos, entram em colisão, com as normas constitucionais
materiais que conferem direitos de liberdade, pois os direitos fundamentais sociais são
muito custosos e o Estado só distribui aquilo que arrecada dos proprietários de bens por
meio de tributos. 274
Mas, em resposta à oposição formal aos direitos sociais fundamentais, portanto,
em sua defesa, a mesma doutrina afirma em seguida que, de acordo com a divisão de
poderes e com a democracia, a atribuição de decidir acerca do conteúdo dos direitos
fundamentais é do legislador diretamente legitimado pelo povo, porém, cabe aos
tribunais, o papel de deliberar de acordo com o que o legislador já tenha decidido.275
O que parece correto é que, se há escassez de recursos financeiros, o que estiver
disponível será obrigatoriamente aproveitado na persecução dos direitos considerados
fundamentais pela normativa constitucional até que esses sejam alcançados.
Posteriormente sim, o legislador infraconstitucional poderá decidir em que aplicar os
recursos que sobejarem, se sobrarem, de acordo com as prioridades decididas
democraticamente em cada ocasião.
O direito fundamental à saúde é direito de todos e dever do Estado. Nesse
sentido, se os recursos do Erário são insuficientes, que se retirem insumos de outras
áreas não contempladas pelo Constituinte com a jusfundamentalidade que fora
outorgada a esse direito de cunho essencial, que envolve a integridade psicofísica e a
273
SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos sociais na constituição de 1988, p. 17.
274
ALEXY, Robert. Derechos sociales fundamentales, p. 77-79.
275
ALEXY, Robert. Derechos sociales fundamentales, p. 77.
vida dos cidadãos. Fazer relativizações em face do direito à saúde acaba por “levar a
‘ponderações perigosas’ e anti-humanistas do tipo ‘por que gastar dinheiro com doentes
incuráveis ou terminais?”276 ou, por que gastar dinheiro com doentes idosos,
principalmente com os muito idosos, se eles se encontram biologicamente próximos da
morte?277
Por tudo isso, sustenta-se que cumpre aos tribunais executar o que a Constituição
determina e que tal atitude não fere a democracia e nem o princípio da tripartição de
poderes.
Quanto à objeção material apontada, especialmente no que toca às liberdades
jurídicas de outros, entende-se que essas liberdades são afetadas em medida reduzida, já
que o que se garante por meio dos direitos fundamentais sociais é um mínimo vital.278
Dentro desse mínimo, evidentemente, estão englobadas prestações de saúde adequadas.
Há que se lembrar, inclusive, que a construção da teoria da “reserva do possível”
partiu de um tribunal alemão! Por que, então, os tribunais brasileiros não poderiam
discutir e decidir acerca de uma formulação originária do Poder Judiciário estrangeiro?
Parece plausível, se transferida a formulação jurídica da “reserva do possível” para o
contexto brasileiro, sustentar que constitui tarefa da doutrina e dos tribunais desenvolvê-
la, evidentemente, considerando os aspectos sócio-econômicos que a envolvem, bem
como a situação social e econômica do Brasil.279
Mas ainda há outros obstáculos para a exigibilidade judicial dos direitos
fundamentais como: i- a determinação da conduta devida, ii- a auto-restrição do Poder
Judiciário frente a questões políticas e técnicas, iii- a inadequação dos mecanismos
276 276
KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no brasil e na alemanha: os (des)caminhos
de um direito constitucional ‘comparado’, p. 53.
277
Essa perspectiva desumana e utilitarista é analisada por ALVAREZ, Alejandro Bugallo. Os princípios
da vulnerabilidade e da autonomia no estatuto do idoso: pressupostos e aplicações. Mimeo, 2008: “Sob a
ótica utilitarista, como ser velho não é equivalente a estar doente ou ser incapaz de dar alguma
contribuição à sociedade, a estigmatização e o abandono social atingem os dependentes e ineficientes, o
que equivale a justificar, sob a ótica da utilidade, as situações de exclusão e abandono social daqueles que
se verifica inviável a recuperação da capacidade distributiva.”
278
ALEXY, Robert. Derechos sociales fundamentales, p. 81.
279
KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de
um direito constitucional ‘comparado’, p. 53: “No Brasil, como em outros países periféricos, é
justamente a questão analisar quem possui legitimidade para definir o que seja ‘o possível’ na área das
prestações sociais básicas face à composição distorcida dos diferentes entes federativos. Os problemas de
exclusão social no Brasil de hoje se apresentam numa intensidade tão grave que não podem ser
comparados à situação social dos países membros da União Européia.”
processuais tradicionais para a tutela dos direitos sociais, iv- a escassa tradição de
controle judicial na matéria.280
Em primeiro lugar, o problema de exigir a prestação dos direitos fundamentais
sociais tem a ver com a dificuldade de se especificar concretamente qual seja a conduta
devida pelo Estado, em outras palavras, no que consiste o conteúdo do direito social. A
essa assertiva é possível contra argumentar: o entrave aludido não resulta próprio dos
direitos sociais, haja vista ser difícil também definir o conteúdo de outros direitos
constitucionais, tais como, o significado da propriedade ou o alcance da noção de
igualdade. Nem por isso tais direitos consentem em não auferir tutela jurisdicional,
razão pela qual os sociais também não devem deixar de recebê-la.281
A auto-restrição do Poder Judiciário frente a questões políticas e técnicas leva
em consideração que o Estado, ao definir que direitos sociais merecem sua ação
positiva, elege políticas públicas prioritárias e os juízes costumam considerar que tais
opções pertencem aos órgãos políticos e não a si. Entretanto, o que existe é uma
deficiência de ativismo judicial e a inconsciência de que o Pode Judiciário não só pode,
como também precisa resolver esse tipo de demanda, afinal, todas as situações em
termos de direitos sociais envolvem questões políticas ou técnicas, e se torna imperioso
que o intérprete as enfrente, judicializando o que apenas aparentemente possui teor
técnico ou político, se há ações ou omissões inconstitucionais por parte dos Poderes
Públicos.282
A inadequação dos mecanismos processuais tradicionais para a tutela dos
direitos sociais existe porque, até recentemente, eles se desenvolveram para a tutela dos
direitos civis e trabalham com a noção de direitos subjetivos clássicos, com dificuldade
de lidar com os direitos subjetivos públicos. Nada obsta, todavia, sejam criadas e
desenvolvidas engenharias processuais a fim de sanar a violação de obrigações que
possuem como fonte, direitos sociais. Muito além disso já está o Brasil que lida
280
ABRAMOVICH, Victor e COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibiles.
Madrid: Trotta, 2002. p. 117- 132, passim.
281
ABRAMOVICH, Victor e COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibiles, p.
122-123.
282
ABRAMOVICH, Victor e COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibiles, p.
127-129.
diuturnamente com ações civis públicas na defesa do consumidor, do meio ambiente,
das crianças e dos adolescentes e, recentemente, dos idosos, por exemplo.283
A escassa tradição de controle judicial em matéria de direitos sociais é, ao
contrário do que parece, incentivo para que se criem novas crenças a partir das atuais
contingências. Há que se reverter essa cultura de não reclamar judicialmente direitos
fundamentais de caráter social porque, não provocar o Judiciário gera retrocesso
jurídico na medida em que é própria construção de precedentes jurisdicionais que
viabiliza a conformação de princípios de atuação aplicáveis em processos análogos.
Julgados favoráveis à prestação estatal de direitos sociais promovem uma mudança de
atitude dos tribunais em face dessas questões e estimula os menos afortunados a buscar
justiça material por essa via.284
Nesse sentido, já se percebe que as pessoas idosas, mesmo com toda sua
vulnerabilidade, têm se articulado para, por intermédio do Poder Judiciário, obterem
exames, próteses, remédios e objetos, como por exemplo, fraldas descartáveis – que se
integram na categoria de medicamentos – a fim de receberem a tutela de seu direito à
saúde na medida das necessidades próprias da terceira idade. Tão importante como a
atitude dos anciãos, tem sido o ativismo judicial nessa matéria, pois, na grande maioria
dos casos consultados, a reposta do Poder Judiciário foi favorável à pretensão dos
idosos em matéria de saúde, que não os consideraram quaisquer pessoas a procura de
atendimento, mas sim, pessoas com a particularidade de idosas a buscá-lo.
Observe-se, por exemplo, o pedido de prótese concedido na forma dessa ementa:
“Agravo de instrumento. Antecipação de tutela determinando o
fornecimento de aparelho ortopédico pelo Estado. Sapato especial
para correção de encurtamento de membro inferior, ocasionado por
acidente. Súmula nº 65 do TJ/RJ. Deriva-se dos mandamentos dos
arts. 6º e 196 da Constituição Federal de 1988 e da Lei nº 8.080/90, a
responsabilidade solidária da União, Estados e Municípios, garantindo
o fundamental direito à saúde e conseqüente antecipação da respectiva
tutela.
Função terapêutica do aparelho, objetivando o tratamento da
deformidade física sofrida pelo autor. Incidência do art. 15, § 2º, da
Lei nº 10.741/03 (Estatuto do Idoso). Artigo 557, caput, do CPC.”
283
ABRAMOVICH, Victor e COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibiles,
p.129-131.
284
ABRAMOVICH, Victor e COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibiles,
p.131-132.
pedido, especialmente a um idoso, pode acarretar comprometimento irreversível nas
suas condições psicofísicas, ou mesmo o sacrifício de sua vida, razão pela qual se impõe
a consideração do direito à saúde como um direito subjetivo do indivíduo invocável
judicialmente.285 Levando-se em conta, muitas vezes, a emergência da prestação
reclamada, torna-se urgente a tutela jurisdicional em caráter liminar.
Conscientes de estar lidando com a vida e a dignidade da pessoa humana
envelhecida, os tribunais têm concedido antecipadamente o direito pleiteado nessa
seara, não obstante a proibição legislativa ordinária de concessão de tutela antecipada
contra o Poder Público e a orientação do Supremo Tribunal Federal no sentido da
constitucionalidade dessa legislação.286
Veja-se a ementa em favor da marcação urgente de exames para um ser idoso:
“Constitucional. Marcação de Exame Médico. Paciente idoso. Decisão
agravada que deferiu antecipação de tutela para marcação de exames
médicos necessários ao réu, ora agravado, no prazo de 48 horas sob
pena de multa fixada em R$ 300,00. Obrigação Solidária dos entes
federativos. Matéria pacificada pela Súmula nº 65 deste egrégio
Tribunal de Justiça. Deriva-se dos mandamentos dos arts. 6º e 196 da
Constituição Federal de 1988 e da Lei nº 8.080/90, a responsabilidade
solidária da União, Estados e Municípios, garantindo o fundamental
direito à saúde e conseqüente antecipação da respectiva tutela” 287
285
SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do
direito à saúde na constituição de 1988. In: Revista Diálogo Jurídico. Nº 10. Salvador, Janeiro/ 2002, p.
13.
286
Nesse sentido impõe-se a colocação de BRAGA, Pérola Melissa V. Direitos do idoso segundo o
estatuto do idoso, p. 127: “Uma pessoa na velhice possui uma condição física naturalmente mais
debilitada, o que não lhe permite suportar, durante muito tempo, uma patologia qualquer. O que seria
suportável para uma pessoa jovem ou adulta, pode ser fatal para o idoso e, assim, o rápido atendimento
pode ser a diferença entre a vida e a morte.”
287
TJRJ. Agravo de Instrumento nº 2006.002.12199. Agravante: Município do Rio de Janeiro. Agravado:
Adilson Mattoso de Gouvêa. Relator: Desembargador Marco Antonio Ibrahim. Julgada em 2007.
288
ALEXY, Robert. Derechos sociales fundamentales, p. 81.
expressão “mínimo social”, tradução exata da formulação pioneira alemã, ao se referir a
tais direitos. Mudando o vernáculo, tanto ao discorrer sobre “mínimo vital”, “mínimo
existencial” ou “mínimo social”, os jurisconsultos têm tratado de questões que se
aproximam, embora chegando a conclusões diferentes, no sentido do quanto se pode
assegurar aos indivíduos em matéria de direitos sociais, dentre os quais se destaca a
saúde, direito de natureza prioritária, já que pressuposto para o gozo de qualquer outro
direito fundamental.
O “mínimo existencial” é construção teórica que não possui presciência na
Constituição, mas se encontra relacionada ao conceito de liberdade, aos princípios
constitucionais que prevêem a igualdade, às imunidades e privilégios dos cidadãos que
dele necessitam e aos desideratos da Declaração Universal dos Direitos dos Homens,
possuindo, portanto, status constitucional.289 Tal construção relaciona-se também com o
problema da pobreza, especialmente da pobreza absoluta, mediante a qual não há
possibilidade de inércia do Estado, pois, sem um mínimo indispensável à própria
existência, não há sequer como falar de sobrevida dos homens e se cessam as
“condições iniciais de liberdade”.
O “mínimo existencial” tem força de direito, pois está implícito no princípio da
dignidade da pessoa humana e na idéia de um Estado Social de Direito.290 Como os
direito sociais podem ser apreciados quão implementadores da justiça social, ligados ao
dever comunitário de promoção da pessoa humana, infere-se que esses direitos positivos
são expressão direta do Estado Social de Direito, que, além de abarcar os direitos de
defesa e liberdade do Estado Liberal clássico – na medida em que a relação entre as
duas dimensões de direitos fundamentais é complementar e não excludente – provoca
uma distribuição justa e adequada dos bens aos mais necessitados.291 Nesse termos, o
Estado coloca o “mínimo existencial” em prática quando, por exemplo, realiza
prestações de serviço público gratuitamente, como acontece com a assistência à saúde
apesar da falta de contraprestação, por meio da engenharia advinda da Constituição que
prevê a imunidade tributária, ou por subvenções e auxílios financeiros como ocorre no
fornecimento não oneroso de remédios à população que deles carece.292
289
TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais, p. 29 e 42.
290
TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais, p. 30-32.
291
SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos sociais na constituição de 1988, p. 19.
292
TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na era dos direitos, p. 268.
Considera-se importante registrar que a idéia de um “mínimo existencial” não
enfraquece os direitos sociais. Pelo contrário, ela aumenta as chances de que os
desprovidos de condições de obtê-los por si, os recebam na estatura do essencial, o que
garante sejam prestados com a máxima eficácia.293 Ressalte-se que o “mínimo
existencial” tem sua extensão aprofundada e, inclusive, maximizada, na medida da
essencialidade do bem que o Estado vá prestar,294 porque sua substância é parte do
conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana,295 razão pelo qual o “mínimo
existencial” em matéria de saúde, e, particularmente, em questões que envolvam a saúde
da pessoa idosa, direito de ordem prioritária e componente do teor do princípio da
dignidade da pessoa humana, é, evidentemente, alargado. 296
Especialmente no que concerne ao direito à saúde, pode-se afirmar que ele
constitui não só direito de defesa, no sentido de respeito à integridade psicofísica do ser
humano e de afastamento dos atos degradantes e desumanos, como também direito à
prestações por parte do Estado em prol dos titulares de um direito subjetivo público que
reclama medicamentos, exames de várias ordens, atendimento médico e hospitalar, ou
seja, toda gama de fornecimento para a concreta realização desse direito fundamental
293
TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na era dos direitos, p. 268.
294
AMARAL, Gustavo. Direito, escassez & escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a
escassez de recursos e as decisões trágicas, p. 215.
295
BODIN DE MORAES, Maria Celina. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e
conteúdo normativo, p. 125.
296
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição
federal de 1988. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 61: “O que se percebe, em última
análise, é que onde não houver respeito pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições
mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim,
onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não
forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e
esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças. Tudo, portanto,
converge no sentido de que também para o homem jurídico-constitucional a concepção do homem-objeto
(ou homem-instrumento), com todas as conseqüências que daí podem e devem ser extraídas, constitui
justamente a antítese da noção de dignidade da pessoa, embora esta, à evidência, não possa ser, por sua
vez, exclusivamente formulada no sentido negativo (de exclusão de atos degradantes e desumanos), já
que assim se estaria a restringir demasiadamente o âmbito de proteção da dignidade.”
Ressalte-se que quando o autor refere-se aos direitos fundamentais está se referindo, inclusive, aos
direitos sociais aos quais chama de direitos fundamentais sociais. [grifou-se]
SARLET, Ingo Wolfgang, em Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do
direito à saúde na constituição de 1988, p. 2, salienta: “Consoante já assinalado, por mais que se queira
advogar a causa dos adversários da constitucionalização de um direito à saúde (como, de resto, dos
demais direitos sociais), a nossa Constituição vigente, afinada com a evolução constitucional
contemporânea e o direito internacional, não só agasalhou a saúde como bem jurídico digno de tutela
constitucional, mas foi mais além, consagrando a saúde como direito fundamental, outorgando-lhe, de tal
sorte, uma proteção jurídica diferenciada no âmbito da ordem jurídico-constitucional pátria.”
dentro do limite do razoável, que afasta, por exemplo, tratamentos odontológicos não
imprescindíveis, ou medicamentos de laboratórios caros, quando existem sucedâneos da
mesma composição química e na mesma posologia a um custo menor.297
Dessa maneira posicionou a decisão analisada, que, sem desmerecer o direito à
saúde da pessoa idosa, leva em consideração a doutrina do mínimo existencial:
“...No mais, correta a r. sentença monocrática, devendo o réu fornecer
os medicamentos PROPALA 250-50 mg; SIFROL 0,25, mg e
SUPLAN 25 mg, todos na quantidade de 3 caixas, até o dia 5 de cada
mês através de receituário médico, na quantidade e pelo tempo que for
necessário, mediante comprovação periódica, devendo para isso a
autora portar receitas atualizadas, facultando ao réu, no entanto, o
fornecimento de substância genérica, que contenha o mesmo princípio
ativo do medicamento objeto do pedido e da sentença, necessário ao
tratamento da saúde da autora.”298
301
Expressão de KRELL, Andreas J. Controle judicial dos serviços públicos básicos na base dos direitos
fundamentais sociais, p. 38.
302
DALLARI, Sueli Gandolfi. Os estados brasileiros e o direito à saúde. São Paulo: Hucitec, 1994, p.
22.
303
KRELL, Andreas J. Controle judicial dos serviços públicos básicos na base dos direitos fundamentais
sociais, p. 39-40.
304
KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de
um direito constitucional ‘comparado’, p. 60.
existencial a consecução dos direitos fundamentais de primeira dimensão, que também
podem ser custosos.305
Tribunal Federal posicionou-se, consoante nosso entendimento, no sentido de o Poder Judiciário dever
imiscuir-se nas questões, que, antes de tudo, têm base constitucional.
STF. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Relator: Ministro Celso de Mello. Julgada
em 29.04.2004: “Trata-se de argüição de descumprimento de preceito fundamental promovida contra
veto, que, emanado do Senhor Presidente da República, incidiu sobre o § 2º do art. 55 (posteriormente
renumerado para art. 59), de proposição legislativa que se converteu na Lei nº 10.707/2003 (LDO),
destinada a fixar as diretrizes pertinentes à elaboração da lei orçamentária anual de 2004. O dispositivo
vetado possui o seguinte conteúdo material: “§ 2º Para efeito do inciso II do caput deste artigo,
consideram-se ações e serviços públicos de saúde a totalidade das dotações do Ministério da Saúde,
deduzidos os encargos previdenciários da União, os serviços da dívida e a parcela das despesas do
Ministério financiada com recursos do Fundo de Combate à Erradicação da Pobreza.” O autor da presente
ação constitucional sustenta que o veto presidencial importou em desrespeito a preceito fundamental
decorrente da EC 29/2000, que foi promulgada para garantir recursos financeiros mínimos a serem
aplicados nas ações e serviços públicos de saúde. Requisitei, ao Senhor Presidente da República,
informações que por ele foram prestadas a fls. 93/144. Vale referir que o Senhor Presidente da República,
logo após o veto parcial ora questionado nesta sede processual, veio a remeter, ao Congresso Nacional,
projeto de lei, que, transformado na Lei nº 10.777/2003, restaurou, em sua integralidade, o § 2º do art. 59
da Lei nº 10.707/2003 (LDO), dele fazendo constar a mesma norma sobre a qual incidira o veto
executivo. Em virtude da mencionada iniciativa presidencial, que deu causa à instauração do concernente
processo legislativo, sobreveio a edição da já referida Lei nº 10.777, de 24/11/2003, cujo art. 1º -
modificando a própria Lei de Diretrizes Orçamentárias (Lei nº 10.707/2003) - supriu a omissão
motivadora do ajuizamento da presente ação constitucional. Com o advento da mencionada Lei nº
10.777/2003, a Lei de Diretrizes Orçamentárias, editada para reger a elaboração da lei orçamentária de
2004, passou a ter, no ponto concernente à questionada omissão normativa, o seguinte conteúdo material:
“Art. 1º O art. 59 da lei nº 10.707, de 30 de julho de 2003, passa a vigorar acrescido dos seguintes
parágrafos: ‘Art.59, § 3º Para os efeitos do inciso II do caput deste artigo, consideram-se ações e serviços
públicos de saúde a totalidade das dotações do Ministério da Saúde, deduzidos os encargos
previdenciários da União, os serviços da dívida e a parcela das despesas do Ministério financiada com
recursos do Fundo de Combate à Erradicação da Pobreza. § 4º A demonstração da observância do limite
mínimo previsto no § 3º deste artigo dar-se-á no encerramento do exercício financeiro de 2004.’ (NR).”
(grifei) Cabe registrar, por necessário, que a regra legal resultante da edição da Lei nº 10.777/2003, ora
em pleno vigor, reproduz, essencialmente, em seu conteúdo, o preceito, que, constante do § 2º do art. 59
da Lei nº 10.707/2003 (LDO), veio a ser vetado pelo Senhor Presidente da República (fls. 23v.). Impende
assinalar que a regra legal em questão - que culminou por colmatar a própria omissão normativa
alegadamente descumpridora de preceito fundamental - entrou em vigor em 2003, para orientar, ainda em
tempo oportuno, a elaboração da lei orçamentária anual pertinente ao exercício financeiro de 2004.
Conclui-se, desse modo, que o objetivo perseguido na presente sede processual foi inteiramente alcançado
com a edição da Lei nº 10.777, de 24/11/2003, promulgada com a finalidade específica de conferir
efetividade à EC 29/2000, concebida para garantir, em bases adequadas - e sempre em benefício da
população deste País - recursos financeiros mínimos a serem necessariamente aplicados nas ações e
serviços públicos de saúde. Não obstante a superveniência desse fato juridicamente relevante, capaz de
fazer instaurar situação de prejudicialidade da presente argüição de descumprimento de preceito
fundamental, não posso deixar de reconhecer que a ação constitucional em referência, considerado o
contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas
públicas, quando, previstas no texto da Carta Política, tal como sucede no caso (EC 29/2000), venham a
ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais destinatárias do comando
inscrito na própria Constituição da República. Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal
Federal põe em evidência, de modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição
constitucional conferida a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os
direitos econômicos, sociais e culturais - que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com
as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO) -, sob pena
de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável,
a integridade da própria ordem constitucional: “DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO - MODALIDADES
DE COMPORTAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER PÚBLICO. - O desrespeito à
Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação
de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita
normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios
que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a
inconstitucionalidade por ação. - Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização
concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-
se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação
negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por
omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a
medida efetivada pelo Poder Público. - A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em
menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento
revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também
desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de
medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.” (RTJ
185/794-796, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno) É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito
das funções institucionais do Poder Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de
formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos
Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois,
nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência,
no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos
estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a
comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos
impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo
programático. Cabe assinalar, presente esse contexto - consoante já proclamou esta Suprema Corte - que o
caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política “não pode converter-se em promessa
constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele
depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável
dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei
Fundamental do Estado” (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Não deixo de conferir,
no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à “reserva do possível”
(STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The Cost of Rights”, 1999, Norton, New York),
notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração
(direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste,
prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas. É que a
realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela gradualidade de seu
processo de concretização - depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro
subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a
incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir,
considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta
Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante indevida
manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - criar obstáculo artificial que revele
o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a
preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre
advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” - ressalvada a ocorrência de justo motivo
objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do
cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental
negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados
de um sentido de essencial fundamentalidade. Daí a correta ponderação de ANA PAULA DE
BARCELLOS (“A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais”, p. 245-246, 2002, Renovar): “Em
resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá
levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao
determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado
ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer
outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição. A meta central
das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na
promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria
dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de
existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão
estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se
poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O
mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de
conviver produtivamente com a reserva do possível.” (grifei) Vê-se, pois, que os condicionamentos
impostos, pela cláusula da “reserva do possível”, ao processo de concretização dos direitos de segunda
geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1)
a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a
existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele
reclamadas. Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a
aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado
binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de
modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos,
descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos. Não obstante a
formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por
delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela
absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo.
É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de
neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como
decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental,
aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a
uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como
precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a
possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja
fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado. Extremamente pertinentes, a tal propósito, as
observações de ANDREAS JOACHIM KRELL (“Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na
Alemanha”, p. 22-23, 2002, Fabris): “A constituição confere ao legislador uma margem substancial de
autonomia na definição da forma e medida em que o direito social deve ser assegurado, o chamado ‘livre
espaço de conformação’ (...). Num sistema político pluralista, as normas constitucionais sobre direitos
sociais devem ser abertas para receber diversas concretizações consoante as alternativas periodicamente
escolhidas pelo eleitorado. A apreciação dos fatores econômicos para uma tomada de decisão quanto às
possibilidades e aos meios de efetivação desses direitos cabe, principalmente, aos governos e
parlamentos. Em princípio, o Poder Judiciário não deve intervir em esfera reservada a outro Poder para
substituí-lo em juízos de conveniência e oportunidade, querendo controlar as opções legislativas de
organização e prestação, a não ser, excepcionalmente, quando haja uma violação evidente e arbitrária,
pelo legislador, da incumbência constitucional. No entanto, parece-nos cada vez mais necessária a revisão
do vetusto dogma da Separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos públicos e da prestação
dos serviços básicos no Estado Social, visto que os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se
mostraram incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos constitucionais. A
eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais a prestações materiais depende, naturalmente, dos recursos
públicos disponíveis; normalmente, há uma delegação constitucional para o legislador concretizar o
conteúdo desses direitos. Muitos autores entendem que seria ilegítima a conformação desse conteúdo pelo
Poder Judiciário, por atentar contra o princípio da Separação dos Poderes (...). Muitos autores e juízes não
aceitam, até hoje, uma obrigação do Estado de prover diretamente uma prestação a cada pessoa
necessitada de alguma atividade de atendimento médico, ensino, de moradia ou alimentação. Nem a
doutrina nem a jurisprudência têm percebido o alcance das normas constitucionais programáticas sobre
direitos sociais, nem lhes dado aplicação adequada como princípios-condição da justiça social. A negação
de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais Sociais tem como
conseqüência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos. (...) Em geral, está crescendo o
grupo daqueles que consideram os princípios constitucionais e as normas sobre direitos sociais como
fonte de direitos e obrigações e admitem a intervenção do Judiciário em caso de omissões
inconstitucionais.” (grifei) Todas as considerações que venho de fazer justificam-se, plenamente, quanto à
sua pertinência, em face da própria natureza constitucional da controvérsia jurídica ora suscitada nesta
sede processual, consistente na impugnação a ato emanado do Senhor Presidente da República, de que
poderia resultar grave comprometimento, na área da saúde pública, da execução de política
governamental decorrente de decisão vinculante do Congresso Nacional, consubstanciada na Emenda
Constitucional nº 29/2000. Ocorre, no entanto, como precedentemente já enfatizado no início desta
decisão, que se registrou, na espécie, situação configuradora de prejudicialidade da presente argüição de
descumprimento de preceito fundamental. A inviabilidade da presente argüição de descumprimento, em
decorrência da razão ora mencionada, impõe uma observação final: no desempenho dos poderes
processuais de que dispõe, assiste, ao Ministro-Relator, competência plena para exercer,
Mas o direito social à saúde é peculiar, pois o direito à vida encontra-se atrelado
a ele. E a tutela da vida não requer apenas atitudes de defesa à integridade psicofísica da
pessoa humana por parte do Estado, mas também atitudes positivas dele, uma vez que a
proteção desse direito fundamental clássico depende também da prestação de serviços
públicos, a fim de que os indivíduos não passem por graves intimidações à sua própria
liberdade. Assim, o critério da viabilidade orçamentária poderá ser relativizado quando
a querela jurisdicional envolver a vida humana, direito constitucional fundamental de
primeira dimensão, cuja eficácia – a preservação da integridade psicofísica da pessoa
humana – depende de condições materiais oferecidas pelo Estado.306 Nesse sentido, o
fragmento do julgado que condena o Município a prestar medicamentos adequados às
necessidades de pessoa idosa:
“...Pouco importa que o medicamento pleiteado não conste da lista de
entidade administrativa. Na presente demanda, objetiva-se a proteção
monocraticamente, o controle das ações, pedidos ou recursos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal,
legitimando-se, em conseqüência, os atos decisórios que, nessa condição, venha a praticar. Cumpre
acentuar, por oportuno, que o Pleno do Supremo Tribunal Federal reconheceu a inteira validade
constitucional da norma legal que inclui, na esfera de atribuições do Relator, a competência para negar
trânsito, em decisão monocrática, a recursos, pedidos ou ações, quando incabíveis, estranhos à
competência desta Corte, intempestivos, sem objeto ou que veiculem pretensão incompatível com a
jurisprudência predominante do Tribunal (RTJ 139/53 - RTJ 168/174-175). Nem se alegue que esse
preceito legal implicaria transgressão ao princípio da colegialidade, eis que o postulado em questão
sempre restará preservado ante a possibilidade de submissão da decisão singular ao controle recursal dos
órgãos colegiados no âmbito do Supremo Tribunal Federal, consoante esta Corte tem reiteradamente
proclamado (RTJ 181/1133-1134, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - AI 159.892-AgR/SP, Rel. Min.
CELSO DE MELLO, v.g.). Cabe enfatizar, por necessário, que esse entendimento jurisprudencial é
também aplicável aos processos de controle normativo abstrato de constitucionalidade, qualquer que seja
a sua modalidade (ADI 563/DF, Rel. Min. PAULO BROSSARD - ADI 593/GO, Rel. Min. MARCO
AURÉLIO - ADI 2.060/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO - ADI 2.207/AL, Rel. Min. CELSO DE
MELLO - ADI 2.215/PE, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), eis que, tal como já assentou o Plenário
do Supremo Tribunal Federal, o ordenamento positivo brasileiro “não subtrai, ao Relator da causa, o
poder de efetuar - enquanto responsável pela ordenação e direção do processo (RISTF, art. 21, I) - o
controle prévio dos requisitos formais da fiscalização normativa abstrata (...)” (RTJ 139/67, Rel. Min.
CELSO DE MELLO). Sendo assim, tendo em consideração as razões expostas, julgo prejudicada a
presente argüição de descumprimento de preceito fundamental, em virtude da perda superveniente de seu
objeto. Arquivem-se os presentes autos.”
306
KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de
um direito constitucional ‘comparado’, p. 47.
de um direito individual fundamental, qual seja, o direito à vida.
Como já salientado, assegurar o direito à vida a uma pessoa,
propiciando-lhe medicação específica que lhe alivie o sofrimento e a
dor de uma moléstia ou enfermidade irreversível, é garantir-lhe o
direito de sobrevivência, finalidade do Estado. Em face de sua
magnitude constitucional e, pois, social, referido direito não pode se
submeter a exigências administrativas – ipso facto, hierarquicamente
inferiores aos comandos constitucionais e legais – que obstaculizem
sua efetiva proteção. Em suma, o procedimento aludido pela
municipalidade é inconstitucional e ilegal, pois contrário à
concretização do direito individual fundamental à vida digna.
Não prospera o argumento referente à ausência de previsão ou
insuficiência de recursos orçamentários, uma vez que o custeio da
saúde municipal deve constar, por exigência constitucional, de sua
dotação orçamentária, a qual recebe, inclusive, contribuição da União,
através de repasses do SUS. Ademais existe a viabilidade de
compensação entre os órgãos dos entes federados, consoante o inciso
VII, do art. 35, da Lei 8.080/90. Nesse esteio, inadmissível o cidadão
ver-se prejudicado, por conta de eventuais entraves burocráticos,
sobrelevando-se o direito à saúde e à vida esculpidos no rol do art. 5º
da Constituição Federal, com os quais o Estado não pode barganhar,
pois que norteados pelos princípios fundamentais da República,
consubstanciados na cidadania e na dignidade da pessoa humana (art.
1º, incisos II e III, da CRFB) [...]
Na espécie, restou demonstrado pela documentação que se cuida de
pessoa idosa, com 72 anos de idade (fls.07), cuja natural condição
revela a imprescindibilidade do uso continuado dos remédios para
preservação de sua saúde. Diante dessas considerações incide também
a tutela específica estatuída pelo art. 15, caput e § 2º da Lei
10.741/2003 (Estatuto do Idoso)”307
O precedente ora estudado também leva em conta que o direito pleiteado tem
aplicação imediata na forma do art. 5º, § 1º da Constituição da República:
“Deveras, a Constituição da República denomina ‘direitos individuais’
o conjunto de direitos concernentes à vida, à igualdade, à liberdade, à
segurança, à propriedade e, nos termos do § 1º do seu art. 5º, as
normas definidoras desses direitos têm aplicação imediata, inserindo-
se, portanto, o fornecimento de medicamento aos carentes, na esfera
da atuação obrigatória do Poder Público, na preservação da vida” 308
307
TJRJ. Apelação Cível nº 2006.001.50395. 2ª Câmara Cível. Apelante: Município de Barra Mansa.
Apelado: Raimundo da Cunha. Relatora: Desembargadora: Suimei Meira Cavalieri. Julgada em: 24. 11.
2006.
308
TJRJ. Apelação Cível nº 2006.001.50395. 2ª Câmara Cível. Apelante: Município de Barra Mansa.
Apelado: Raimundo da Cunha. Relatora: Desembargadora: Suimei Meira Cavalieri. Julgada em: 24. 11.
2006.
Carta brasileira, estariam sujeitos à idêntica aplicabilidade imediata dos contidos no rol
do art. 5º, por também conformarem direitos fundamentais, logo, capazes de ordenar aos
Poderes Públicos a maior eficácia na sua concretização. Desse modo proclama-se que os
enunciados normativos que contêm direitos fundamentais devem ser imediatamente
aplicados, sem a necessidade da ingerência do legislador para que, definitivamente, não
fiquem à espera da disponibilidade dos órgãos estatais.309
Pelo exposto, não se entende que os direitos fundamentais sociais plasmados na
Constituição necessitem, para se efetivar, de opções políticas do legislador em função
do pluralismo ideológico ou por força de limitações jurídicas de fato,310 já que a
previsão constitucional parece suficiente para justificar sua prelação pelo poder
constituinte originário, de conformação absolutamente democrática. Todavia, para os
que assim não entendem, basta observar, no que toca o direito à saúde no ordenamento
jurídico brasileiro, a legislação infraconstitucional que reafirma a sua
jusfundamentalidade. A Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080 de 1990) dispõe em seu art.
2º que: “A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as
condições indispensáveis ao seu exercício.” E o Estatuto do Idoso prevê o direito à
saúde dentro do Título II da Lei 10.741, que trata dos direitos fundamentais da pessoa
idosa.
Nesses casos, quando já se implantou o serviço público que vá atender um
direito fundamental, o não prestá-lo em desobediência à lei ordinária, dá ensejo ao
mandado de segurança, também pelo fato de o impetrante ser titular de um direito
subjetivo em face do Estado:311
309
SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do
direito à saúde na constituição de 1988, p. 9.
310
Posição de DE ANDRADE, José Carlos Vieira. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa
de 1976, p. 386.
311
KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de
um direito constitucional ‘comparado’, p. 32.
UMA VEZ QUE ESTA NÃO TEM CONDIÇÕES DE SUPORTAR
OS SEUS ELEVADOS CUSTOS.
3- É DEVER SOLIDÁRIO DA UNIÃO, ESTADOS E MUNICÍPIOS
GARANTIR A SAÚDE. INTELIGÊNCIA DOS ARTS, 6º, 23, II, 24,
XII, 194, 195, 196 E 198 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, DA LEI
8.080/90, BEM COMO DO ART. 15, § 2º, DO ESTATUTO DO
IDOSO, LEI 10.741/2003.”312
312
TJRJ. Recurso do duplo grau obrigatório de jurisdição. nº 2006.009.00252. 7ª Câmara Cível.
Impretrante: Lucy Cunha Paulsen . Impretrado: Município de Niterói. Relatora: Desembargadora Helena
Candida Lisboa Gaede. Julgada em: 4. 04. 2006.
313
TJRJ. Recurso do duplo grau obrigatório de jurisdição. nº 2006.009.00050. 7ª Câmara Cível.
Impretrante: Carminda Couto Justi. Impretrado: Município de Barra do Piraí. Relatora: Desembargadora
Helena Candida Lisboa Gaede. Julgada em: 18. 04. 2006.
314
A fim de esclarecer o sentido de prótese e órtese, vale-se da lição de VILAS BOAS, Marco Antonio.
Estatuto do idoso comentado, p. 39: “Há uma classificação ortodoxa entre órtese e prótese, diferenciando-
as, eis que a lei não pode ter palavras inúteis ou equivalentes. E não contém, porque as palavras não são
sinônimas. A prótese consiste num dispositivo implantado no corpo para suprir a falta de um órgão[...]
Trata o art. 15, § 2º do Estatuto do Idoso de norma protetiva do ser humano
vulnerabilizado pela idade e pelo convívio com mais doenças que a população jovem
não vivencia, e, por tais vicissitudes, passível de se super endividar por gastos com
medicamentos ou de ter sua existência reduzida ao consumo deles.315 Por essas razões e
pelo princípio do melhor interesse do idoso, as prestações de medicamentos, exames
laboratoriais, e afins serão gratuitas para a pessoa idosa, sem se questionar sua condição
financeira. Aliás, onde a Lei não restringiu o direito, não cabe ao intérprete fazê-lo. “A
problemática do idoso não se exaure na tutela do cidadão, somente, ou do cidadão
pobre; é preciso superar a lógica típica da emergência e ‘olhar adiante’, e em tempo
realizar uma situação fundada sobre o fisiológico.”316
Melhor, nesse sentido, parece a decisão que se baseia na normativa
constitucional, na Lei do SUS e, principalmente, no art. 15, § 2º do Estatuto do Idoso,
sem tocar nas condições sócio-econômicas do idoso para obrigar o Município à
prestação de remédios e fraldas geriátricas, como se entrevê:
“Tratam os presentes autos, de Apelação interposta as fls. 55/62 por
ente federativo municipal, em ação que veicula pretensão de obrigação
de fornecimento de medicamentos imprescindíveis à saúde de autor
idoso, com fundamento nas normas constitucionais que informam a
solidariedade dos entes integrantes da República quanto à manutenção
da saúde dos cidadãos (arts. 1º, 23 e 196, CF), bem como, de normas
do plexo legislativo ordinário instituidoras e reguladoras do Serviço
estatal relativo à saúde (SUS) (arts. 4º e 6º, I. ‘d’, da Lei 8.080/90),
317
TJRJ. Apelação Cível nº 7877/2006. 16ª Câmara Cível. Apelante: Município de São Gonçalo.
Apelado: Adir Neves Rodrigues. Relator: Desembargador Gerson Arraes. Julgada em: 21. 03. 2006.
318
TJRJ. Agravo de Instrumento nº 2008.002.34813. 19ª Câmara Cível. Agravante: Angélica da Jesus
Sant'anna . Agravados: Município de São Pedro da Aldeia e Estado do Rio de Janeiro . Relator:
Desembargador Roberto de Abreu e Silva. Julgada em: 04.11.2008. [ grifou-se ]
“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO
ESPECIAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO.
SÚMULAS 282/STF E 211/STJ. FORNECIMENTO GRATUITO DE
MEDICAMENTOS. IDOSO. LEGITIMAIDADE PASSIVA
SOLIDÁRIA DOS ENTES PÚBLICOS (MUNICÍPIO, ESTADO E
UNIÃO). ARTS. 196 E 198, § 1º, DA CF/88. PRECEDENTES DO
STJ. FRECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E,
NESSA PARTE, DESPROVIDO.
1. A ausência de prequestionamento dos dispositivos legais tidos
como violados torna inadimissível o recurso especial. Incidência das
Súmulas 282/ STF e 211/STJ.
2. Nos termos do art. 196 da Constituição Federal, a saúde é direito de
todos e dever do Estado. Tal premissa impõe ao Estado a obrigação de
fornecer gratuitamente às pessoas desprovidas de recursos financeiros
a medicação necessária para o efetivo tratamento de saúde.
3. O Sistema Único de Saúde é financiado pela União, Estados-
membros, Distrito Federal e Municípios, sendo solidária a
responsabilidade dos referidos entes no cumprimento dos serviços de
saúde prestados à população. Legitimidade passiva do Estado
configurada.
4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte,
desprovido.”319
319
STJ. Recurso Especial nº 828.140- MT (2006/0067547-0). Primeira Turma. Recorrente: Estado do
Mato Grosso. Recorrido: Maria Euzébia do Nascimento. Relatora: Ministra Denise Arruda. Julgado em
20. 03.2007. [grifou-se]
320
Conforme observado por AMARAL, Ana Cláudia Santos, COELI, Claúdia Medina, ESTEVES DA
COSTA, Maria do Carmo, CARDOSO, Vânia da Silva, DE TOLEDO, Ana Lúcia Araújo, FERNANDES,
Carla Rodrigues. Perfil de morbidade e mortalidade de pacientes idosos hospitalizados. In: Cadernos de
Saúde Pública, Rio de Janeiro. Novembro/Dezembro/2004, p.1616-1626.
ressaltar o valor do cuidado que deve ser consignado aos idosos por sua extrema
vulnerabilidade física, psíquica e social. Nas tarefas estatais de incrementar os recursos
públicos e atender pessoas idosas em suas necessidades de saúde, evidentemente
sobreleva a segunda tarefa posto que, interesses de cunho patrimonial não podem jamais
figurar como merecedores de maior proteção e promoção por parte do Estado. As
questões referentes ao direito à saúde sempre dizem respeito ao ser humano, têm índole
existencial, estando intimamente ligadas ao direito à vida e, sublinhe-se, à vida em
patamares decentes de dignidade e não atrelados apenas à sobrevivência.
Amparar o idoso na forma propugnada pela Constituição significa saber cuidar
de sua senescência com as singularidades que ela carrega. A desigualdade de fato dos
idosos é a principal motivação desse tipo de tratamento jurídico diferenciado em seu
favor, constituído por política pública advinda do Legislativo por meio de disposições
como a do art. 15, § 2º do Estatuto do Idoso.
Portanto, o cuidado na seara da saúde em conformidade com a Lei 10.741 de
2003, atribui novas regras, além das previstas pela Constituição e pelas Leis do SUS,
para um sistema de saúde pública específico para o idoso, oferecendo-lhe algumas
prerrogativas a mais do que as destinadas às pessoas de idade adulta, certamente com
base nas suas aludidas condições especiais de vulnerabilidade e no consectário princípio
do seu melhor interesse.
A Constituição da República brasileira de 1988, em seu art. 196, diz que a saúde
é direito de todos e dever do Estado. A saúde é direito subjetivo, portanto, “refere-se
necessariamente a um sujeito para significar que ele goza de uma certa posição
321
KRELL, Andreas J. Controle judicial dos serviços públicos básicos na base dos direitos fundamentais
sociais, p. 26.
favorável.”322 O direito subjetivo à saúde tem como titulares todos os seres humanos do
Estado brasileiro, razão pela qual trata-se de direito subjetivo público, pois, a
generalidade dos indivíduos está apta a gozar da situação favorável de recebê-lo,
conseqüentemente, todos os indivíduos podem exigi-lo do Estado, porque sua prestação
consubstancia dever dele.
Esse dever, na forma do artigo citado, é garantido mediante políticas sociais e
econômicas. Tais políticas públicas devem visar: i. à redução do risco de doença e de
outros agravos, ii. ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação, na forma do referido art. 196.
Observa-se, portanto, que a primeira política em prol da saúde traçada pelo
Estado tem caráter preventivo. Ao se referir à redução do risco de doença e de outros
agravos o texto constitucional remete a certas necessidades humanas para uma vida
saudável, tais como, higiene, saneamento básico, água potável, alimentação adequada,
segurança no trabalho, segurança no consumo de produtos ou serviços, vacinação para
evitar deficiências, meio ambiente sadio, entre outras, a fim de que a saúde se mantenha
e se previnam doenças e outros riscos como epidemias, acidentes de trabalho ou
acidentes de consumo, por exemplo.323
Em segundo lugar, a ordem constitucional elege como política, ações e serviços
que serão prestados quando a saúde já estiver, em algum patamar, combalida, visando, à
sua promoção, proteção ou recuperação. Nesses casos, as políticas de prevenção às
doenças e outros agravos devem somar-se às ações que atuam diretamente sobre a
debilidade apresentada.
O acesso à saúde é universal, porque imbuído da obrigação de abranger a
universalidade do povo do Estado brasileiro. 324 Essa diretriz está calcada no caput do
artigo 5º da Constituição da República de 1988 que assevera serem todos iguais perante
322
ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2001, p. 38.
323
CORDEIRO, Hésio. SUS – Sistema único de saúde. Rio de Janeiro. Editora Rio, 2005, p. 79: “O
princípio de que é dever do estado garantir a saúde ‘mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco da doença e de outros agravos’ contempla, de forma explícita, o reconhecimento da
multicausalidade e de determinação social, econômica e política do processo saúde-doença.”
324
CORDEIRO, Hésio. SUS – Sistema único de saúde, p. 79: “O conceito de universalidade de cobertura
é análogo ao reconhecimento de todos à saúde. Há quem o questione, por julgar que não corresponde à
realidade ou às diferenças de consumo médico, que ocorrem na sociedade, relacionado a fatores
socioeconômicos ou psicossociais e diferenças culturais.”
a lei, logo, o direito à saúde previsto legalmente, aplica-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no país.
Mas o acesso à saúde, ainda que universal, permite distinções em sua aplicação
normativa haja vista não perder o foco de que existem pessoas, como as idosas, a
merecer proteção prioritária de sua saúde exatamente para que não haja violação do
princípio da igualdade substancial previsto também na Constituição em seu artigo 3º,
inciso III.325
Desse modo, o Sistema Único de Saúde implementou-se para assegurar a saúde
de todos que dele precisarem e o escolherem. Criado pela Constituição brasileira de
1988, dois anos depois regulamentou- se pelas Leis 8.080 de 1990 e pela Lei 8.142,
também de 1990. O SUS é composto pelo conjunto de ações e serviços de saúde
oferecidos por instituições públicas federais, estaduais e municipais, e, de maneira
complementar, pela iniciativa privada que se vincule ao seu sistema. 326 Ao contrário do
que se possa imaginar pela realidade social encontrada na saúde pública, o SUS não foi
criado para atender apenas à população carente, tal como uma política de assistência
social ou somente aos seus contribuintes, como ocorre com as prestações
previdenciárias.327 A universalidade a que a Lei alude significa que o sistema público de
saúde brasileiro destina-se a todos.328 Trata-se de um sistema, porque formado por
várias instituições de nível federal estadual e municipal, bem como pelo setor privado,
325
SARLET, Ingo Wolfgang e FIGUEIREDO Mariana Filchtiner. Proteção e promoção da saúde aos 20
anos da CF/88. In: Revista de Direito do Consumidor. Nº 37, Julho/Setembro, 2008, p.137-139.
326
ACURCIO, Francisco de Assis. Evolução histórica das políticas de saúde no Brasil. In: Programa
Multiplica SUS: Curso Básico Sobre O SUS: (Re) descobrindo O SUS Que Temos Para Construirmos O
SUS Que Queremos. Brasília, 2007, p. 37 e 38.
327
WEICHERT. Marlon Alberto. Saúde e federação na constituição brasileira. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2004, p. 158.
328
Não há, contudo, como se desprezar as experiências de quase vinte anos com o SUS, como bem
explana BAHIA, Ligia. O SUS e os desafios da universalização do direito à saúde: tensões e padrões de
convivência entre o público e o privado no sistema de saúde brasileiro. In: Saúde e Democracia: história
e perspectivas do SUS. Organizadores: LIMA, Nísia Trindade, GERSCHMAN, Silvia e EDLER, Flávio
Coelho. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005, p. 410: “Na prática, as diretrizes legais do SUS, embora intactas,
não foram suficientes para conter movimentos que o moldaram segundo princípios distintos dos
promulgados pela Constituição de 1988. Quinze anos após seu batismo legal, o SUS é considerado por
uma grande parcela de dos profissionais da saúde, órgãos da imprensa, determinadas autoridades
governamentais, empresários e sindicalistas como um sistema para pobres. A solução aparentemente
realista e eficaz para acomodar as tensões tem sido encarada pelos otimistas como etapa de um processo
de amadurecimento que evoluirá para a conformação de um sistema de fato único. Os pessimistas o vêem
como demonstração cabal da ineficiência do público e da imprescindibilidade do privado. Ambas as
interpretações supõem a impossibilidade de uma universalização, em curto prazo, e, de certo modo,
admitem uma complementaridade harmoniosa entre sistemas diferenciados pelo status socioeconômico
das demandas.”
contratado ou conveniado, possuindo todos esses órgãos o mesmo corpo sistemático
único, isto é, com a mesma filosofia de atuação em todo território nacional.329
O acesso à saúde pública tem concepção igualitária, de modo que todos os seres
humanos que recorram ao Estado tenham o mesmo nível de tratamento, sem qualquer
tipo de discriminação. No entanto, há de se observar que igualdade no serviço público
de saúde significa também o implemento de ações estatais em grupos especiais que mais
necessitam delas como o formado pelas pessoas idosas.
Nesse sentido, a Constituição brasileira de 1988 não consagra um modelo de
Estado mínimo, “que tende a atribuir todos ou quase todos esses encargos aos
indivíduos ou a grupos privados”330 e também não recepciona a concepção de Estado
social de Jorge Miranda, “que aceita assumir os custos de satisfação de necessidades
básicas, embora não os das demais necessidades a não ser na medida do indispensável
para assegurar aos que não podem pagar as prestações os mesmos direitos a que têm
acesso aqueles que as podem pagar,”331 mas o que o autor mencionado chama de Estado
assistencial, “que tende, pelo contrário, a confiá-los ao Estado.”332 Cumpre registrar
que a maioria da população brasileira depende do Sistema Único de Saúde numa
proporção de 75%. Estima-se que 20 a 25% do total de habitantes possuam plano
privado de saúde,333 uma quantia também expressiva pois, em números, há no Brasil 49
milhões de consumidores de planos de saúde entre idosos e não idosos.334
Jungida à universalidade e à igualdade nas prestações de saúde existe uma regra
que, embora não mencionada pela Constituição, encontra-se implícita na acepção social
própria do direito à saúde pública no Estado brasileiro. Trata-se da regra da gratuidade
dos serviços públicos de saúde, corroborada pelo art. 43 da Lei 8.080 de 1990: “a
gratuidade das ações e serviços de saúde fica preservada nos serviços públicos
329
ACURCIO, Francisco de Assis. Evolução histórica das políticas de saúde no Brasil, p. 38.
330
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Direitos fundamentais, p. 395.
331
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Direitos fundamentais, p. 395 e 396.
332
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Direitos fundamentais, p. 395.
333
BAHIA, Ligia. O SUS e os desafios da universalização do direito à saúde: tensões e padrões de
convivência entre o público e o privado no sistema de saúde brasileiro, p. 436.
334
GREGORI, Maria Stella. Desafios após dez anos da lei de planos de saúde. In: Revista de Direito do
Consumidor. nº 66. Abril/Junho, 2008, p. 87.
contratados, ressalvando as cláusulas dos contratos e convênios estabelecidos com as
entidades privadas.”
Ressalte-se que as ações e serviços em prol da saúde são de ordem pública, logo,
não podem ser afastados por pessoa alguma que se conforme em não recebê-los. Esse
tipo de negociação com o Estado é vedado.
Na forma do art. 197, a Constituição dispõe sobre a relevância pública das ações
e dos serviços públicos de saúde que integram uma rede regionalizada e hierarquizada
constituindo um sistema único, consoante seu art. 198. Assim, a rede de atendimento do
Sistema Único de Saúde distribui-se por regiões e por grupos, de acordo com
necessidades dadas em virtude da sua extensão geográfica, da densidão populacional e
da necessidade mais ou menos prioritária de acesso à saúde. A hierarquia corresponde à
divisão da rede em atendimentos de grau primário, de baixa, de média e de alta
complexidade. Nesse sentido, sugere-se que os Estados mantenham hospitais de alta
complexidade, visto que possuem um conhecimento regional da situação da saúde em
seus confins e os Municípios mantenham a responsabilidade pelos procedimentos
primários e de baixa complexidade, de forma que bem se integrem Estados e
Municípios a fim de racionalizar custos sem prejudicar usuários.335
Tem-se, pois, um sistema único, que não admite a existência de outros sistemas
de saúde, organizado de acordo com as seguintes diretrizes dos incisos I, II e III do art.
198:
i. “descentralização, com direção única em cada esfera de governo;” que condiz
com a hierarquia e a regionalidade já mencionados. Aqui, descentralizar significa dotar
o Município da obrigação de, primordialmente, executar os serviços de saúde, por
reconhecer as demandas locais e possuir capacidade de desenvolver ações preventivas e
de tratamento mais condizentes e satisfatórias de acordo com sua realidade. Recorde-se
que o art. 30, inciso VII da Constituição diz que “compete aos Municípios [...] prestar,
com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à
saúde da população.” Nesse ponto, as atividades da União e até mesmo dos Estados,
acabam sendo subsidiárias às do Município, que lhes entregará aquilo que não for de
sua alçada por abranger extensão regional ou nacional e os procedimentos que não
puder realizar de maneira adequada, sempre contando, nos dizeres do art. 30, com a
cooperação técnica e financeira da União e do Estado. Todavia, a descentralização pode
335
WEICHERT. Marlon Alberto. Saúde e federação na constituição brasileira, p. 165.
ser revertida se o Município ou o Estado incorrerem em práticas ilegais na forma do art.
4º, parágrafo único, da Lei 8.142 de 1990 que dispõe: “O não atendimento pelos
Municípios, ou pelos Estados, ou pelo Distrito Federal, dos requisitos estabelecidos
neste artigo, implicará em (sic) que os recursos concernentes sejam administrados,
respectivamente, pelos Estados ou pela União.”336
A direção única em cada esfera de governo significa que, no âmbito da União,
tal direção executar-se-á pelo Ministério da Saúde e nos Estados, Distrito Federal e
Municípios, a exercerão as Secretarias de Saúde ou órgãos equivalentes, de acordo com
o art. 9º da Lei 8.080 de 1990, que regulamenta a normativa constitucional. Ademais,
tanto a prestação pública de saúde quanto a privada possuem o mesmo direcionamento
em relação à sua política e às suas diretrizes e comandos.337
ii. “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem
prejuízo dos serviços assistenciais;” significando que o usuário do sistema deve ser
visualizado em seu todo, e não como um amontoado de partes, inclusive, inserido numa
comunidade, de modo que as ações de saúde devem se voltar tanto para o usuário
quanto para o ambiente em que se encontra, a fim de prevenir doenças e a realizar
devidamente o tratamento.338 O atendimento integral também se refere “ao
fornecimento de prestações materiais (como tratamentos, medicamentos, internações,
consultas, etc).339
Já a prioridade atribuída às atividades preventivas inclui fornecer medicamentos
aos que necessitam, mesmo que não estejam hospitalizados. Quanto aos serviços
assistenciais, o Sistema Único de Saúde possui o dever de prestá-los integralmente,
independente do tipo de doença ou agravo apresentado pelo indivíduo, da complexidade
e do custo do seu tratamento, ainda que a patologia apresentada não se inclua na sua
listagem de serviços usuais.340
iii. “participação da comunidade”; como ferramenta de gestão participativa, a
qual confere espaço à formulação, execução, influência, também por meio do povo, nas
336
WEICHERT. Marlon Alberto. Saúde e federação na constituição brasileira, p. 166-167.
337
SARLET, Ingo Wolfgang e FIGUEIREDO Mariana Filchtiner. Proteção e promoção da saúde aos 20
anos da CF/88, p. 141.
338
ACURCIO, Francisco de Assis. Evolução histórica das políticas de saúde no Brasil, p. 38.
339
SARLET, Ingo Wolfgang e FIGUEIREDO Mariana Filchtiner. Proteção e promoção da saúde aos 20
anos da CF/88, p. 136.
340
WEICHERT. Marlon Alberto. Saúde e federação na constituição brasileira, p. 170-171.
políticas públicas democraticamente consideradas prioritárias, além de arredar
exercícios paternalistas e implementar a responsabilidade comunitária.341 Tratada na Lei
8.080 de 1990 em seu art. 7º, inciso VIII, a participação da comunidade foi
desenvolvida na Lei 8.142 de 1990.342
Atente, inclusive, para a importância do dispositivo do parágrafo 4º que dá
grande importância às posições dos usuários do sistema: “A representação dos usuários
nos Conselhos de Saúde e Conferências será paritária em relação ao conjunto dos
demais seguimentos.”
Certo é que, se o Estado tem o dever de prestar saúde à população, os recursos
para tal munus possuem um manancial. Assim, o parágrafo primeiro do referido art. 198
diz que o Sistema Único de Saúde será financiado, nos termos do art. 195, por toda a
sociedade, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. Observa-se, portanto, que o
povo, beneficiário do direito à saúde, por meio de tributos pagos ao Estado, é, em
princípio, quem o abastece de expedientes, os quais lhe serão retransmitidos na forma
de políticas públicas de prevenção, promoção, proteção e recuperação da sua saúde.343
Mas, como dito, não apenas o orçamento da seguridade social destinar-se-á à saúde, a
ele serão adicionados recursos próprios da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios.
Todavia, a experiência demonstra que o Estado brasileiro ainda não conseguiu
atingir a meta de prestar assistência sanitária adequada e suficiente para que cada ser
humano tenha o digno tratamento de sua saúde e a preservação de uma vida digna.
341
WEICHERT. Marlon Alberto. Saúde e federação na constituição brasileira, p. 171.
342
A Lei 8.142 de 1990 em seu art. 1º criou a Conferência de Saúde e o Conselho de Saúde. Segundo reza
o parágrafo 1º desse artigo: “A Conferência de Saúde reunir-se-á a cada quatro anos com a representação
dos vários segmentos sociais, para avaliar a situação de saúde e propor as diretrizes para a formulação da
política de saúde nos níveis correspondentes, convocada pelo Poder Executivo ou, extraordinariamente,
por esta ou pelo Conselho de Saúde.”342
E o parágrafo 2º subseqüente, completa: “O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo,
órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais da saúde e
usuários, atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância
correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo
chefe do poder legalmente constituído em cada esfera de governo.”
343
CORDEIRO, Hésio. SUS – Sistema único de saúde, p. 79: “O conceito de seguridade social, envolve
ações de ‘iniciativa dos Poderes Públicos e da Sociedade, destinadas a assegurar os direitos à saúde,
previdência e assistência social’ (Título VIII, Cap. II, Seção I, art. 194, da Constituição Federal). Ao
incluir a saúde nesse conceito, superou o conceito tradicional de ‘seguro-social’. Esse compreende apenas
os direitos dos contribuintes diretos, enquanto o de seguridade envolve direitos de contribuintes e não
contribuintes, estes cobertos pelas receitas tributárias, portanto, por toda a sociedade.”
O Sistema Único de Saúde demanda maior racionalidade, de modo que serviços
sejam oferecidos mediante as necessidades da população e não como se observa hoje,
em muitos lugares, a presença de hospitais altamente equipados e médicos
especializados sem a contrapartida de serviços básicos de saúde e clínicos gerais;
ademais, necessita de grau maior de eficiência para resolver as questões de saúde e
doença com qualidade, valendo-se de técnicas mais adequadas, de acordo com a
realidade local e a disponibilidade de recursos, esses, devendo ser usados da melhor
maneira possível, afastando o desperdício. Os equipamentos da saúde pública também
devem ser apropriados para lograr os resultados que deles se esperam e os profissionais
treinados para bem exercer suas funções.344
Mas o maior problema do Sistema Único de Saúde parece ser seu financiamento.
Ele conta com contribuições sociais sobre o faturamento e o lucro, na forma do art. 195,
inciso I da Constituição que, conforme gerenciadas, mostram-se absolutamente
insuficiente para garantir o custeio das suas despesas.
Parece que, ciente da dificuldade de se implementar um sistema de saúde
gratuito e para todos no contexto econômico e social brasileiro, o próprio documento
constitucional, em seu art. 199, previu que a assistência à saúde é livre à iniciativa
privada, de forma a complementar o Sistema Único de Saúde, mas segundo diretrizes
traçadas pelo Estado, que privilegiam entidades filantrópicas e sem fins lucrativos, na
forma do parágrafo 1º do artigo citado. Dessa maneira, o Poder Público regula e
fiscaliza a assistência privada à saúde, que se dá por meio dos chamados planos
privados de saúde que, pagos por seus usuários, complementam o Sistema Único de
Saúde, mediante contrato de direito público ou convênio, realizados com o órgão estatal
de acordo com o parágrafo primeiro do referido artigo.
Percebe-se uma ordem de prioridade no oferecimento dos serviços de saúde. Em
primeiro lugar a saúde deverá ser prestada pelas unidades públicas. Caso sejam essas
incapazes de atender a todos os casos, em segundo lugar, o Poder Público priorizará
entidades filantrópicas e sem fins lucrativos; só em último caso, comprovada a carência
do setor público e filantrópico sem fins lucrativos é que o Sistema Único de Saúde pode
realizar contratos ou convênios com instituições privadas, que possuem finalidade de
lucro, desde que exerça seu poder de polícia a fim normatizar, fiscalizar e controlar a
atuação desses serviços.
344
ACURCIO, Francisco de Assis. Evolução histórica das políticas de saúde no Brasil, p. 38.
Ao Poder Público também é conferido o direito de se ressarcir dos dispêndios
que sofrer com o acolhimento de um cidadão que possua plano privado de saúde por
opção, ou por contrato empregatício. É que a gratuidade do Sistema Único de Saúde
ocorre entre ele e os cidadãos, mas não entre ele e as empresas privadas prestadoras de
serviços de saúde, de modo que o próprio art. 32 da Lei 9.656 de 1998, a chamada Lei
dos Planos de Saúde, determina que as operadoras dos planos devem ressarcir as
instituições públicas ou privadas integrantes do SUS, quando estas prestarem serviços
de atendimento à saúde abrangidos pelos respectivos contratos.
Desse modo, evita-se o locupletamento sem causa justa do setor privado em
desfavor do órgão público, pois, se o consumidor paga pela manutenção de sua saúde,
nada mais justo que, quando atendido na esfera pública, tenha os ônus do seu tratamento
repassado à instituição privada que deve se responsabilizar por ele. Trata-se, portanto,
de um importante instrumento da própria coletividade de se compensar do gravame em
que incorreu.
Dentre todas as pessoas que necessitam do acesso à saúde, os idosos encontram-
se na categoria de pessoas que necessitam mais. Isto ocorre em virtude do próprio
envelhecimento que torna o corpo e a mente humana, em medida maior, suscetíveis de
adoecer. Em caráter preventivo, os idosos precisam de condições especiais para viver
sua maturidade de maneira saudável; se doentes, pela fragilidade que a idade lhes
impõe, necessitam de uma tutela incisiva do Estado para recuperar e promover sua
saúde.
No Título II do Estatuto do Idoso, que versa sobre os direitos fundamentais da
pessoa idosa consta inserido, no Capítulo IV, o direito à saúde.
Dentre as políticas públicas mais importantes para garantir a vida digna do idoso
destacam-se as de saúde traçadas pelo seu Estatuto, na forma do art. 15, § 1º que
disciplina que a prevenção e a manutenção da saúde do idoso serão efetivadas por meio
de políticas sociais previstas nos incisos, I, II, III, IV e V do artigo aludido. Em
princípio, cumpre observar o significado de prevenção e de manutenção da saúde do
idoso. Prevenção quer dizer: chegar antes que a doença ou agravo estejam instalados,
evitar que o idoso tenha sua saúde debilitada; enquanto manutenção expressa a tomada
de medidas necessárias para a conservação ou permanência da situação de saúde do
idoso. Ambas tratam-se de medidas profiláticas, sendo que, aqui, manutenção denota
também o intuito de, pelo menos, não deixar que a saúde do idoso se torne mais precária
do que se encontra. A fim de efetivar tanto a prevenção quanto à manutenção da saúde
do idoso haverá, por parte do Poder Público, na forma dos incisos citados:
I – “cadastramento da população idosa em base territorial;” ou seja, o registro
público da população idosa no território brasileiro, inclusive para saber onde há
maior concentração da população envelhecida e suas condições existenciais a fim de
envidar esforços para sua proteção;
345
Todas as pesquisas sobre a saúde dos idosos são muito recentes e remontam ao século passado.
Segundo DOLL, Johannes, O campo interdisciplinar da gerontologia. In: Tempo de Envelhecer:
Percursos e Dimensões Psicossociais. Organizadores: PY, Ligia, DE SÁ, Janete Liasch Martins,
PACHECO, Jaime Lisandro e GOLDMAN, Sara Nigri. Rio de Janeiro: Nau, 2004, p. 93: “A palavra
‘geriatria’ foi introduzida em 1909 pelo médico Ignatz L. Nascher, um defensor desta especialidade
médica.”
346
Sobre gerontologia DOLL, Johannes, O campo interdisciplinar da gerontologia, p. 97-98, esclarece:
“O específico da gerontologia seria, portanto, a transformação e aplicação de conhecimentos advindos de
outras áreas [...] A gerontologia caracteriza-se por ser uma ciência que usa um leque de trabalhos mono,
multi e interdisciplinares, mas o específico aqui é a interação dos resultados desses trabalhos, no sentido
de construção de conhecimentos e teorias específicos sobre o envelhecimento.”
eventualmente conveniadas com o Poder Público, nos meios urbano e rural;” nos
casos em que a pessoa idosa necessite, por circunstâncias da sua própria doença ou
por impossibilidade de locomoção,347 de não sair do seu lar, seja ele seu domicílio ou
instituições como asilos e similares. Essa política pública abrange os ambientes das
cidades e os rurais;
347
As etiologias mais freqüentes de imobilidade do idoso, segundo MARINI, Maria Fernanda De Vito,
BAISI, Paulo Paiva e BARBOSA, Rosiane Caseli. Imobilidade e suas implicações – síndrome de
imobilidade. In: Geriatria: Fundamentos, Clínica e Terapêutica. Editores: DE CARVALHO FILHO,
Thomaz e PAPALÉO NETTO, Matheus. 2 ed. São Paulo: Atheneu, 2005, p. 720, são: “Neurológicas:
cerebrovasculares, neurodegenerativas, acidente vascular encefálico, neuropatias, Doença de Parkinson,
etc.
Musculoesqueléticas: osteoartrose, seqüelas de fraturas, problemas nos pés, deformidades, osteoporose,
osteomalácia, causas musculares, amputação, síndrome pós-pólio, etc.
Cardiovasculares: insuficiência cardíaca, insuficiência coronária, insuficiência vascular periférica.
Respiratórias: doença pulmonar obstrutiva crônica, dependência de oxigenioterapia.
Sensoriais: visuais, auditivas,
Quedas.
Iatrogênicas: medicamentos, imobilidade forçada por restrição física, etc.
Psíquicas: depressão, perda da motivação, medo de cair, isolamento social.
Desnutrição.
Condições ambientais inadequadas: iluminação, piso, degraus, etc.
Hospitalização prolongada.”
348
“É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS,
garantindo-lhe o acesso universal e igualitário, em conjunto articulado e contínuo das ações e serviços,
para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, incluindo atenção especial às doenças que
afetam preferencialmente os idosos.”
seja dispensada atenção especial e, para cumprir esse desiderato cabe, em princípio
reconhecê-las.
349
GUIMARÃES, Renato Maia. Os compromissos da geriatria. In: Sinais e Sintomas em Geriatria. 2 ed.
Editores: GUIMARÃES, Renato Maia e CUNHA, Ulisses Gabriel de Vasconcelos. São Paulo: Atheneu,
2004, p. 3.
350
PINHEIRO, José Elias Soares e FREITAS, Elizabete Viana. Promoção da saúde. In: Tempo de
Envelhecer: Percursos e Dimensões Psicossociais, p. 263.
351
PINHEIRO, José Elias Soares e FREITAS, Elizabete Viana. Promoção da saúde, p. 262.
352
PINHEIRO, José Elias Soares e FREITAS, Elizabete Viana. Promoção da saúde, p. 262.
tais como: “iluminação inadequada, pisos escorregadios, mobiliário, vestuário e o
transporte não adaptado às necessidades desse usuário.”353 O uso de remédios e o abuso
no uso do álcool ou de outras drogas também geram instabilidade.
A insuficiência cognitiva embaraça a independência funcional e autonomia do
idoso, uma vez que compromete as funções encefálicas e a habilidade intelectual. Há,
em certos idosos, dificuldades de memória recente, lentificação do curso do
pensamento, dificuldades no uso da linguagem.354 O comprometimento cognitivo leve
atinge 7% dos idosos acima de 65 anos e se identifica por: queixa de dificuldade de
memória confirmada por parente ou cuidador, distúrbio de memória constatado em teste
neuropsicológico específico, queixa de dificuldade no aprendizado e da atenção
concentrada, queixa de fadiga mental, no entanto, com funções cognitivas gerais
preservadas – com exceção do comprometimento de memória – manutenção das
atividades da vida diária e ausência de critérios clínicos suficientes para a confirmação
da doença de Alzheimer ou outro processo demencial.355
Mas os idosos são freqüentemente assolados por demências que se dividem em
degenerativas, decorrentes de um processo de atrofia cerebral progressiva como a
demência de Alzheimer, a demência com corpos de Lewy, a demência frontotemporal,
também conhecida como doença de Pick, a demência resultante da doença de
Parkinson,356 e, eventualmente, por demências adquiridas como a vascular, que provoca
acidentes vasculares cerebrais, traumas crânio encefálicos, associadas a processos
infecciosos como meningoencefalite, AIDS, entre outros e ao uso de certas substâncias
como álcool e outras drogas.357
A partir de uma doença cerebral, o idoso pode apresentar seqüelas que levam à
instabilidade postural, às incontinências e à imobilidade.358 Pacientes que apresentam
353
PINHEIRO, José Elias Soares e FREITAS, Elizabete Viana. Promoção da saúde, p. 262.
354
STELLA, Florindo. Funções cognitivas e envelhecimento. In: Tempo de Envelhecer: Percursos e
Dimensões Psicossociais. Organizadores: PY, Ligia, DE SÁ, Janete Liasch Martins, PACHECO, Jaime
Lisandro e GOLDMAN, Sara Nigri. Rio de Janeiro: Nau, 2004, p. 284-285.
355
STELLA, Florindo. Funções cognitivas e envelhecimento, p. 286-287.
356
STELLA, Florindo. Funções cognitivas e envelhecimento, p. 288-295.
357
STELLA, Florindo. Funções cognitivas e envelhecimento, p. 288.
358
PINHEIRO, José Elias Soares e FREITAS, Elizabete Viana. Promoção da saúde, p. 263.
doenças mentais constituem um enorme encargo para suas famílias e seus cuidadores,
razão pela qual esses também devem ser tratados numa perspectiva de suporte.359
A incontinência pode ser urinária, fecal, ou ambas ao mesmo tempo. Apresenta-
se como a perda involuntária de urina e/ou fezes que constitui um problema que atenta
contra a dignidade da pessoa idosa, causando-lhe deterioração da qualidade de vida e da
auto estima, isolamento social e hospitalização; além de lhe acarretar situações
deficitárias de higiene e saúde ocasionando maus odores, lesões na pele, infecções
recorrentes e quedas, resultando, pois, em instabilidade postural e, em casos mais
graves, imobilidade.360
Chama a atenção o fato de certos trabalhadores da saúde não darem a devida
importância às grandes manchas de urina nos lençóis de um idoso e se preocuparem
imediatamente quando percebem uma gota de sangue. Trata-se de uma inversão de
valores já que a mancha de sangue é facilmente identificável, podendo mesmo ser
trivial, enquanto as causas de incontinência urinária são complicadas assim como
também suas conseqüências. A imobilidade de um idoso pode desencadear diarréia
espúria e incontinência fecal. Por meio do toque retal e da realização de enema pode
resolver-se o que parecia crônico, pois a incontinência pode ser cuidada, mesmo
considerando que, nesses casos, o tratamento tem seus limites.361
Por fim, iatrogenia é a complicação decorrente de uma ação ou omissão médica.
Quanto às ações, podem ser medicamentosas, como o uso imoderado de remédios que,
com o fito de sanar todos os sintomas apresentados pela pessoa idosa, terminam sendo
maléficos, a ponto de causarem instabilidade postural, incontinência, insuficiência
cerebral e imobilidade; podem ser prescrições dietéticas muito severas que, ao invés de
causar benefícios, acarretam danos; pode ser até a chamada iatrogenia da palavra, onde
idoso, parentes e cuidadores confiam tanto nas opiniões médicas que nem as
questionam. Dessa ausência de conhecimento nascem concepções erradas como: “o
problema é da velhice”, “não há o que fazer” e assim se instala a iatrogenia por omissão,
que exclui o idoso da reabilitação física ou psíquica pela crença equivocada de que não
é possível readquirir autonomia funcional. Há casos em que o tratamento pode reverter a
depressão e a confusão mental, mas, por ignorância quanto aos benefícios dos
359
GUIMARÃES, Renato Maia. Os compromissos da geriatria, p. 4.
360
PINHEIRO, José Elias Soares e FREITAS, Elizabete Viana. Promoção da saúde, p. 262.
361
GUIMARÃES, Renato Maia. Os compromissos da geriatria, p. 4.
antidepressivos, apegados aos riscos de que ouviram falar, tais medicamentos não são
prescritos e, por não receberem terapêutica adequada, os idosos são comumente
considerados senis.362
Em segundo lugar, para orientar as ações do Sistema Único de Saúde, há dados
importantes acerca da freqüência de determinadas doenças que levam o idoso à
hospitalização. Foram extraídos de pesquisa do ano de 2003, cujo objetivo constava em
listar os procedimentos mais reiterados num universo de 2.340 procedimentos
relacionados pelo próprio SUS.
O estudo demonstra que, no início da velhice, entre na faixa etária de 60 a 64
anos para o sexo feminino, o Sistema Único de Saúde hospitalizou 10,21% de casos de
insuficiência cardíaca coronariana, 9,75% de doenças pulmonares, 3,81% de crises
hipertensivas, 3,80% de enteroinfecções, 3,73% de diabetes sacarino, 3,63% de AVC
agudo, 2,53% de colecistectomia, 2, 41% de crise asmática, 1,93% de desnutrição,
desidratação e anemia, 1,68% de intercorrência em paciente oncológico, 1,52% em
diagnóstico e/ou primeiro atendimento, 1,25% de colpoperineoplastia, 1,25% de outros
procedimentos perfazendo um total de 239.297 atendimentos. Nessa investigação,
optou-se por excluir as internações em psiquiatria, que, se incluídas, assumiriam a
terceira posição, com uma freqüência de 13.596 casos. Para os homens da mesma faixa
etária o Sistema Único de Saúde internou 10,7% de insuficiência cardíaca e coronariana,
10,19% de doenças pulmonares, 4,37% de AVC agudo, 3,15% de herniografia inguinal,
2,40% por crise hipertensiva, 2,37% de desnutrição, desidratação e anemia, 2,21% de
enteroinfecções, 1,96% por intercorrência em paciente oncológico, 1,93% de diabetes
sacarino, 1,70% para diagnóstico e/ou primeiro atendimento, 1,64% por crise asmática,
1,62% por hemorragias digestivas, 55,89% por outros motivos, num total de 260.766
atendimentos. Para tais resultados foram omitidos também os procedimentos de
internações psiquiátricas.363
A mesma pesquisa esclarece que na faixa etária dos idosos muito envelhecidos,
com 80 ou mais anos, a hospitalização feminina deu-se em 16,60% por doenças
pulmonares, em 15,72% por insuficiência cardíaca ou coronariana, em 7,20% por AVC
agudo, em 4,37% por desnutrição, desidratação e anemia, em 4,29% por
362
GUIMARÃES, Renato Maia. Os compromissos da geriatria, p. 4 e 5.
363
NUNES, André. O envelhecimento populacional e as despesas do sistema único de saúde. In: Os
Novos Idosos Brasileiros: Muito além dos 60? Organizadora: CAMARANO, Ana Amélia. Rio de
Janeiro: IPEA, 2004, p. 434-435.
enteroinfecções, em 2,91% por crise hipertensiva, em 2,42% por diabetes sacarino, em
1,84% em diagnóstico e/ou primeiro atendimento, em 1,80% por cirurgia de fratura
trasnstrocanteriana, em 1,77% por cuidados prolongados, em 1,69% por hemorragias
digestivas, em 1,65% por crises asmáticas, em 37,74% por outras causas, num total
262.632 atendimentos. Para os homens dessa faixa etária 19,63% das internações foram
causadas por doenças pulmonares, 15,39% por insuficiência cardíaca e coronariana,
6,89% por AVC agudo, 4,40% por desnutrição, desidratação e anemia, 3,79% por
enteroinfecções, 2,11% por crises hipertensivas, 1,77% por hemorragias digestivas,
1,77% por diagnóstico e/ou primeiro atendimento, 1,75% por crise asmática, 1,68% por
pielonefrite, 1,37% por diabetes sacarino, 1,34% por afecções do aparelho urinário, 38,
11% por outros males, numa quantia de 214.570 atendimentos, lembrando que não
foram computadas as internações de ordem psiquiátrica.364
Com base nesses estudos é possível que o Sistema Único de Saúde tenha
conhecimento a respeito das doenças que afetam preferencialmente a pessoa idosa
direcionando atenção especial a elas na recuperação, mas, principalmente, em nível
preventivo. A prevenção das moléstias revela-se sempre positiva, pois, além de garantir
a saúde do maior número de idosos, diminui os gastos do sistema público com a
institucionalização dos longevos que, para além do estritamente necessário, não é
maneira de se viver dignamente.365
As especificidades a respeito da saúde da pessoa idosa trazidas à baila pelo
Estatuto do Idoso no que diz respeito ao papel do Estado na prestação desse direito de
ordem fundamental confirmam, diante da indiscutível vulnerabilidade física, psíquica e
social dos anciãos, que o seu direito à saúde possui natureza prioritária.
364
NUNES, André. O envelhecimento populacional e as despesas do sistema único de saúde. In: Os
Novos Idosos Brasileiros: Muito além dos 60?, p. 444-445.
365
CAMARANO, Ana Amélia e PASINATO, Maria Tereza. O envelhecimento populacional na agenda
das políticas públicas. In: Os Novos Idosos Brasileiros: Muito além dos 60? Organizadora:
CAMARANO, Ana Amélia. Rio de Janeiro: IPEA, 2004, p. 278: “Os ‘presumidos’ elevados custos de
saúde da população idosa são, em parte, decorrentes do modelo de saúde adotado. Os custos de financiar
uma população idosa com uma alta incidência de doenças crônico-degenerativas serão muito maiores do
que o de financiar uma população ativa e saudável. Quer dizer, a forma como os serviços de saúde são
organizados numa sociedade é um determinante importante destes custos [Lloyd-Sherlock (2002)].
Medidas preventivas na área de saúde, [Estima-se, por exemplo, que a diminuição das hospitalizações no
período do inverno dos anos de 2000 e 2001, devido às campanhas de vacinação contra a gripe, seja da
ordem de 77, 6% segundo os dados do MS...] como, por exemplo, as voltadas para o envelhecimento
saudável e para a manutenção da capacidade funcional, podem melhorar a qualidade de vida da
população idosa e postergar a demanda de cuidados de longa permanência.” [Grifou-se]
Para que o princípio do melhor interesse do idoso tenha concretude é
indispensável, nas questões atinentes à sua saúde, seja atribuída a máxima tutela por
parte do Estado e que esforços, como a regulamentação da Emenda Constitucional
número 29 de 13.09.2000 e a criação de contribuição social para a saúde, entre outros,
especialmente os orçamentários, sejam envidados.
À guisa de conclusão da análise da saúde da pessoa idosa como direito
fundamental, do papel do Estado na prestação desse direito e de passagem para o estudo
da saúde da pessoa idosa prestada pela iniciativa privada, torna-se importante sustentar
que:
“A superação da precisa separação entre o público e o privado é
urgente. Tal separação – freqüentemente exacerbada ao ponto de
serem representadas como contraposições – respondem somente
algumas vezes a razões acadêmicas, mas não são integramente
coerentes com a reconstrução do ordenamento enquanto sistema
unitário e complexo. A civilidade de um País mede-se não pelo
número de máquinas, dos telefones, mas do tratamento reservado às
pessoas com maior dificuldade, aos marginalizados, aos deficientes,
da efetiva atuação histórica na centralidade da pessoa.” 366
366
PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalitá constituzionale, p. 345. [Traduziu-se livremente
do italiano]
4º Capítulo: A saúde da pessoa idosa prestada pela iniciativa privada
367
Sem desconhecer e considerar pertinente a crítica de BILBAO UBILLOS, Juan Maria. Eficacia
horizontal de los derechos fundamentales: las teorias y la practica. In: Direito civil contemporâneo: novos
problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, 219-237, passim, a essa
terminologia que pode, em certa medida, encobrir o desnivelamento na contratação entre particulares com
situações de poder muito desiguais opta-se por utilizá-la no sentido de oposto à eficácia vertical dos
direitos fundamentais que revela a incidência desses direitos por parte do Estado em relação aos
particulares.
368
BOTTESINI, Maury Ângelo e MACHADO, Mauro Conti. Lei dos planos e seguros de saúde. 2 ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 53: “Os planos de saúde se inserem num nicho criado pelo
descompasso entre a necessidade de uma proteção universal à saúde e assistência médico-hospitalar,
instituído como um direito de todos e dever do Estado pelo art. 196 da CF, e a carência de recursos
públicos necessários para garantirem a execução eficiente das políticas sociais e econômicas destinadas à
redução do risco doença e outros agravos. É a insuficiência de recursos financeiros que permitam prover o
acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde que faz
aparecer o chamado mercado para a medicina suplementar privada.”
Em 1964, por meio de convênios estabelecidos entre algumas empresas e a
previdência social, iniciou-se política de incentivo à disponibilização privada da saúde.
Às empresas atribuía-se a competência de se responsabilizar pela prestação da
assistência médica aos seus empregados e, concomitantemente, dispensava-se sua
contribuição à assistência social.
A Volkswagen foi a primeira empresa a realizar tais convênios que fizeram
desenvolver a medicina de grupo até o ano de 1979, quando cessou essa modalidade de
serviço. Procurando uma alternativa à aludida medicina de grupo, em 1967, criou-se a
primeira cooperativa médica denominada Unimed, que cresceu em diversas regiões do
Brasil a ponto de, atualmente, se posicionar como a maior cooperativa desse seguimento
no país. Em 1966, o Decreto-Lei 73 instituiu o seguro saúde, cujas operações só se
iniciaram em 1976 em virtude de, somente nesse ano, o Conselho Nacional de Seguros
Privados emitir Resolução a autorizar operações nessa atividade. Na Resolução 11 de
1976 estabeleceu-se o chamado “Reembolso de Assistência Médica e/ou Hospitalar”,
que dava aos segurados o direito de, após usufruírem dos serviços médicos e
hospitalares desejados, reembolsarem-se pelo pagamento auferido.
Reguladas pela SUSEP – Superintendência de Seguros Privados –, que exigia
condições mínimas para quem atuasse no setor, além de fiscalizá-lo, nas décadas de 70 e
80 surgiram as primeiras seguradoras de saúde. A Comind foi a primeira delas, seguida
pela Itaú. Em 1984, surgiu a Bradesco e em 1986, a Sul América.369
Com o advento da Constituição da República de 1988 estabeleceu-se que a
assistência à saúde é livre à iniciativa privada.370
A assistência privada à saúde teve importante marco em 1998, quando se
promulgou a Lei 9.656, que legisla especificamente sobre planos de saúde.Tais planos
são contratos cujo objeto é a transferência onerosa de riscos à iniciativa privada
referentes à futura necessidade de assistência médica e hospitalar.371 Assim, uma pessoa
ou uma empresa pagam aos planos de saúde para que esses provejam a assistência
369
MACERA, Andréa Pereira e SAINTIVE, Marcelo Barbosa. O mercado da saúde suplementar no
Brasil. Disponível em : www.fazenda.gov.br. Outubro/2004.
370
Art. 199 da CR/1988: “A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
§ 1º As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde,
segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades
filantrópicas e as sem fim lucrativos.”
371
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor, p. 489.
necessária por ocasião da doença daqueles que se asseguram mediante esse tipo de
ajuste.372
Apresenta-se como um contrato aleatório, pois o surgimento da moléstia do
segurado é futuro e incerto, mas, uma vez que ele ou seus dependentes estejam doentes,
o plano deverá tratá-los mediante serviços de assistência médica e hospitalar ou
reembolsá-lo da quantia despendida.373 Ademais, há incerteza de que o segurado vá ou
não se curar, porém, existe uma obrigação de resultado nesse tipo contratual que vincula
o plano a oferecer serviços de medicina, exames, reembolso de quantias, medicamentos,
alimentação, com qualidade e adequação, para a recuperação do segurado.374
Os contratos de planos de saúde são regidos pela Lei 9.656 de 1988, porém,
como se tratam de contratos de consumo, em que o fornecedor é a operadora do plano375
e consumidor o segurado, rege-se também pelo Código de Defesa do Consumidor.376
Todavia, a Lei de planos de saúde prescreve em seu art. 35-G: “Aplicam-se
subsidiariamente aos contratos entre usuários e operadoras de produtos que tratam o
372
Nos termos da Medida Provisória nº 2.177-44 de 2001 que alterou a Lei 9.656 de 1988 em seu art. 1º,
inciso I:
“Plano Privado de Assistência à Saúde: prestação continuada de serviços ou cobertura de custos
assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem
limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou
serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não da rede credenciada, contratada ou
referenciada, visando à assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente
às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e
ordem do consumidor.”
373
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor, p. 490.
374
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor, p. 490.
375
De acordo com a Medida Provisória nº 2.177-44 de 2001 que alterou a Lei 9.656 de 1998 em seu art.
1º, inciso II, “Operadora de Plano de Assistência à Saúde: pessoa jurídica constituída sob a modalidade de
sociedade civil ou comercial, cooperativa, ou entidade de autogestão, que opere o produto, serviço ou
contrato de que trata o inciso I deste artigo.”
376
Confirma essa assertiva, GREGORI, Maria Stella. Planos de saúde: a ótica da proteção do
consumidor. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007, p. 118 e 119: “Já no tocante aos sujeitos que
figuram na relação de consumo, pode-se afirmar, com tranqüilidade, que as empresas que prestam
serviços de assistência à saúde, mediante remuneração, são consideradas típicas fornecedoras. Prestam
um serviço condicionado a evento futuro, mediante recebimento de contraprestação pecuniária. Atuam
tais empresas, a rigor, como intermediárias, gestoras, cuja função é reter os recursos recebidos, reuni-los
em um fundo comum para, quando da ocorrência de um evento, dar-lhe a devida cobertura, seja
financeira, seja assistencial por meio de rede própria, credenciada, ou referenciada. Enquadram-se, com
efeito, na descrição do caput do art. 3º, inserindo-se, dessa forma, em um dos pólos da relação de
consumo.
No outro pólo, estão os consumidores, seus dependentes ou agregados, que adquirem ou utilizam esses
produtos ou serviços, como destinatários finais, considerados típicos consumidores, de acordo com o art.
2º, caput do CDC, ou consumidores equiparados, conforme os arts. 2º, parágrafo único; 17 e 29 do CDC.
Portanto, as relações entre os consumidores e as empresas que oferecem serviços de assistência à saúde
estão amparadas pelo Código de Defesa do Consumidor.”
inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei as disposições da Lei 8.078, de 1990”. 377 Ora! Se as
relações travadas entre as partes são relações de consumo o Código de Defesa do
Consumidor não se aplica subsidiariamente.
Essa regra parece inconstitucional na medida em que a defesa do consumidor é
direito de índole fundamental, promovido pelo Estado na forma de lei específica,
consoante art. 5º, inciso XXXII da Carta Magna brasileira. O Código do Consumidor,
como Lei especialíssima na tutela de todas as relações de consumo, aplica-se
prioritariamente aos contratos entre usuários e operadoras de planos de saúde e a Lei
que os rege, também se aplica imediatamente em suas especificidades, desde que não
contrarie o referido Código. Outra interpretação feriria o titular de um direito
fundamentalíssimo de ser defendido e protegido, tutelado também pelo art. 170, inciso
V, da Constituição da República de 1988, como princípio da ordem econômica e
financeira; previsto muito antes de a Lei 8.078, de 1990 entrar em vigor, no art. 48 do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da referida Carta.
Com efeito, se houver antinomia entre a Lei de planos de saúde e os princípios
ou as regras do Código de Defesa do Consumidor prevalecerão os enunciados
normativos do segundo que regem todas as relações de consumo haja vista sua ordem
hierárquica superior, posto que oriundos de mandamento constitucional que incide com
superioridade sobre as legislações setoriais.378
Essas mesmas observações servem para as seguradoras de saúde cuja
regulamentação ficou a cargo da Lei 10.185 de 2001, que vedou sua operação em quais
quer outros ramos ou modalidades que não a saúde.
377
Grifou-se.
378
Posição pioneira nesse sentido, é a de MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do
consumidor, p.633: “Ainda hoje a lei especial de 1998 determina, em seu art. 35-G, que se aplicam
‘subsidiariamente aos contratos entre usuários e operadoras de produtos que tratam o inciso I e o § 1º do
art. 1º desta Lei as disposições da Lei 8.078, de 1990’. Repita-se que este artigo da lei especial não está
dogmaticamente correto, pois determina que norma de hierarquia constitucional, que é o CDC (art. 48 do
ADCT), tenha apenas aplicação subsidiária à norma de hierarquia infraconstitucional, que é a Lei
9.656/98, o que dificulta a interpretação da lei e prejudica os interesses dos consumidores que queira
proteger. Sua ratio deveria ser a aplicação cumulativa de ambas as leis, no que couber, uma vez que a Lei
9.656/98 trata com mais detalhes dos contratos de planos privados de assistência à saúde do que o CDC,
que é norma principiológica e anterior à lei especial. Neste sentido, importante repetir que há
superioridade hierárquica do CDC, que deveria ser aplicado prioritariamente, como concorda parte da
doutrina.”
Outro marco nessa matéria constitui a entrada em vigor da Lei 9.961 de 2000,
que cria a Agência Nacional de Saúde Suplementar, a ANS, e estabelece sua
competência e finalidade.379
No caso específico da pessoa idosa, a Lei de planos de saúde – nos termos da
Medida Provisória nº 2.177-44 de 2001 – tentou, pioneiramente, tutelar o consumidor
idoso prevendo, no inciso I do art. 35-E, que a legislação tivesse efeitos retroativos no
sentido de sujeitar à autorização da Agência Nacional de Saúde qualquer variação na
contraprestação pecuniária para consumidores com mais de sessenta anos, nos contratos
de assistência privada à saúde. No entanto, a Confederação Nacional de Saúde propôs
Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando todo o conteúdo do art. 35-E. O
Supremo Tribunal Federal decidiu:
“Medida cautelar deferida, em parte, no que tange à suscitada violação
do artigo 5º, XXXVI, da Constituição, quanto ao artigo 35-G, hoje,
renumerado como artigo 35-E pela Medida Provisória 1908-18, de 24
de setembro de 1999; ação conhecida, em parte, quanto ao pedido de
inconstitucionalidade do § 2º do artigo 10 da Lei 9656/1998, com a
redação dada pela Medida Provisória 1908-18/1999, para suspender a
eficácia apenas da expressão ‘atuais e’. Suspensão da eficácia do
artigo 35-E (redação dada pela MP 2.177-44/2001) e da expressão
‘artigo 35-E’, contida no artigo 3º da Medida Provisória 1908-
18/99.”380
379
Art. 1º da Lei 9.961 de 2000: “É criada a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, autarquia
sob o regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde, com sede e foro na cidade do Rio de Janeiro-RJ,
prazo de duração indeterminado e atuação em todo território nacional, como órgão de regulação,
normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde.”
Art. 3º da Lei 9.961 de 2000: “A ANS terá por finalidade institucional promover a defesa do interesse
público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas
relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no
País.”
380
STF, Medida Cautelar Em Ação Direta de Inconstitucionalidade 1. 931-8 Distrito Federal. Requerente:
Confederação Nacional de Saúde – Hospitais Estabelecimentos e Serviços – CNS. Requeridos: Presidente
da República e Congresso Nacional. Relator: Ministro Maurício Corrêa. Julgada em: 21.08.2003. [Grifou-
se]
381
Doravante será utilizada a palavra plano para se referir aos planos ou seguros de saúde já que a Lei
10.185 de 2001 opera o seguro na forma do art. 1º, inciso I e § 1º da Lei 9.656 de 1998 que utiliza a
terminologia plano. Lei 10.185 de 2001, art. 1º: “As sociedades seguradoras poderão operar o seguro
enquadrado no art. 1º, inciso I e § 1º, da Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, desde que estejam constituídas
como seguradoras especializadas nesse seguro, devendo seu estatuto social vedar a atuação em quaisquer
outros ramos ou modalidades.”
como fornecedora do serviço de saúde em um contrato oneroso, cativo e de longa
duração382 e o usuário do plano é consumidor, um vulnerável: economicamente, ou
tecnicamente, ou cientificamente, ou em face à publicidade maciça ou mesmo em todas
essas modalidades de vulnerabilidade.383 Se idoso, o consumidor é, juridicamente, um
hiper vulnerável, pois somadas às suas vulnerabilidades de consumidor, possui também
as de caráter psicofísico e social em virtude da idade avançada.384
O elemento da catividade encontra-se relacionado com o cumprimento do tempo
de carência visto que, se o consumidor mudar de plano, terá de passar por esse período
novamente com outra operadora a fim de receber a assistência securitária.
A carência consiste em um período determinado no início do contrato, durante o
qual não há possibilidade de o consumidor usar integralmente os serviços oferecidos
pelo plano. Por conta da carência, o consumidor pode não ter o direito de,
imediatamente, ter acesso a exames, consultas ou internações oferecidas pelo plano,
embora já pague a ele. Só com a transposição desse prazo o consumidor terá o gozo
irrestrito de tudo àquilo que seu contrato dispuser. Dessa forma, o consumidor fica
382
MARQUES, Cláudia Lima. Solidariedade na doença e na morte: sobre a necessidade de ‘ações
afirmativas’ em contratos de planos de saúde e de planos funerários frente ao consumidor idoso. In:
Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Organizador: SARLET, Ingo Wolfgang. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 208 e 209, explica o que vem a representar um contrato cativo de
longa duração, verbis: “Com o avançar da idade do consumidor, com o repetir de contribuições ao
sistema e com o criar de expectativas legítimas de transferência de riscos futuros de saúde, os
consumidores só tem a perder saindo de um plano. Assim, por exemplo, passados mais de 15 anos de
convivência e cooperação contratual, rescindir o contrato ou terminar a relação contratual seria altamente
negativo para os consumidores. Há o dever de boa-fé de cooperar para a manutenção do vínculo e para a
realização das expectativas legítimas dos consumidores. [...] Efetivamente, o contrato de planos de saúde
é um contrato para o futuro, um contrato assegurador do presente, em que o consumidor deposita sua
confiança na adequação e qualidade dos serviços médicos intermediados ou conveniados, deposita sua
confiança na previsibilidade da cobertura leal destes eventos futuros relacionados com saúde. É um
contrato típico da pós-modernidade: um fazer de segurança e confiança, um fazer complexo, um fazer em
cadeia, um fazer reiterado, um fazer de longa duração, um fazer de crescente essencialidade. É um
contrato oneroso e sinalagmático, de um mercado em franca expansão, onde a boa-fé deve ser a tônica das
condutas.”
383
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor, p. 320.
384
Consoante MARQUES, Cláudia Lima. Solidariedade na doença e na morte: sobre a necessidade de
“ações afirmativas” em contratos de plano de saúde e de planos funerários frente aos consumidor idoso,
p. 194: “Tratando-se do consumidor ‘idoso’ (assim considerado indistintamente aquele cuja idade está
acima de 60 anos) é, porém, um consumidor de vulnerabilidade potencializada. Potencializada pela
vulnerabilidade fática e técnica, pois é um leigo frente a um especialista organizado em cadeia de
fornecimento de serviços, um leigo que necessita de forma premente de serviços, frente á doença ou à
morte iminente, um leigo que não entende a complexa técnica atual dos contratos cativos de longa
duração denominados de ‘planos’ de assistência à saúde...”
preso, cativo ao contrato firmado e dependente do fornecedor em quem confiou para lhe
prestar os serviços de saúde.
Embora pela portabilidade prevista em lei desde o início do ano de 2009 haja,
para o consumidor, a possibilidade migrar para outro plano de saúde similar ao seu, a
facilitação de sua mobilidade não descaracteriza a natureza cativa e de longa duração
desses contratos, afinal, o período de carência permanece vigente para se gozar dos
serviços de qualquer tipo de plano.
Observe-se que para auferir os benefícios da portabilidade o consumidor de um
plano de saúde deve tê-lo contratado a partir de janeiro de 1999 ou adaptado-o à Lei nº
9.656 de 1998.
A regra da portabilidade só resguarda consumidores de planos de saúde
familiares ou individuais, o que já diminui sobremaneira seu campo de abrangência.
385
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol 3. 11ª ed. Atualizado por:
FICHTNER, Regis. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 70.
386
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, Vol 3, p.70.
387
MARQUES, Cláudia Lima. Solidariedade na doença e na morte: sobre a necessidade de ‘ações
afirmativas’ em contratos de planos de saúde e de planos funerários frente ao consumidor idoso, p. 194:
“Tratando-se de consumidor ‘idoso’ (assim considerado indistintamente aquele cuja idade está acima de
60 anos) é, porém, um consumidor de vulnerabilidade potencializada. Potencializada pela vulnerabilidade
fática e técnica, pois é um leigo frente a um especialista organizado em cadeia de fornecimento de
serviços, frente à doença ou à morte iminente, um leigo que não entende a complexa técnica atual dos
contratos cativos de longa duração denominados de ‘planos’ de serviços de assistência à saúde...”
388
Conforme aduz ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 302: “Um fenómeno similar
de despersonalização das relações contratuais e de automatismo na atividade destinada a constituí-las é
patenteado pela praxe de contratação standartizada, através do emprego de condições gerais, módulos e
formulários, predispostos antecipadamente, por uma parte, para uma massa homogénia e indiferenciada
de contrapartes (contratos de massa): aqui a aceitação – do consumidor, do utente, do inquilino, etc. –
resume-se, no máximo, a um simples acto de adesão mecânica e passiva ao esquema pré-formulado,
muito longe do significado que, na época clássica do liberalismo contratual, se atribuía ao conceito de
‘declaração de vontade’: também aqui a declaração contratual se traduz num comportamento socialmente
tipicizado. No fenómeno dos contratos standard, há, pois, um outro aspecto saliente, que consiste no
abuso de poder económico que a parte ‘forte’ ( predisponente) exerce em prejuízo das partes ‘débeis’, a si
contrapostas no mercado (‘aderentes’)...”
389
Assim, ROPPO, Enzo. O contrato, p. 317: “... Ele não é livre – como vimos – de discutir e contribuir
para determinar o conteúdo do regulamento contratual; mas não é livre, sequer, na alternativa de contratar
ou não contratar, porque quando a adesão ao contrato standard constitui o único meio de adquirir bens ou
serviços essenciais e indispensáveis á vida de todos os dias, trata-se, na realidade, de uma escolha
obrigada...”
Apesar dessa inegável desigualdade entre os contraentes, torna-se alentador para
a parte vulnerável ter conhecimento de que a iniciativa privada, que põe tais planos à
disposição dos consumidores, incorre em limitações na sua autonomia, posto que se
encontra subordinada à jusfundamentalidade do direito à saúde.
Trata-se da tutela objetiva dos direitos fundamentais, instituída para além da
tutela subjetiva que cuida de identificar as pretensões do indivíduo contra o Estado. A
dimensão objetiva dos direitos fundamentais exige que o Poder Público não só se
abstenha de lesar direitos fundamentais, mas ainda que proteja aqueles que podem
sofrer danos dessa ordem por agressões vindas de terceiros como as operadoras dos
planos de saúde.390 Atualmente, mostram-se rotineiras as relações jurídicas entre
privados marcadas pela desigualdade de condições entre os sujeitos. Desse modo, é de
todo importante a compreensão de que a parte fraca, porque titular de um direito
fundamental, é também titular de um direito subjetivo à proteção por parte do Estado
contra abusos do contraente detentor do poder econômico. 391
Parece claro o poder de uma operadora de planos de saúde em face do
consumidor idoso que nela deposita a confiança de ter suas legítimas expectativas
atendidas quando moribundo. Por conta disso, a eficácia horizontal dos direitos
fundamentais entre particulares revela-se tão importante, pois se demonstra capaz de
humanizar as relações onde, por desigualdades explícitas, possa ser violada a dignidade
da pessoa humana. Logo, a atividade econômica deve regular-se por imposições estatais
que minimizem a inferioridade do idoso diante das suas necessidades existenciais de
obtenção da saúde, mediante prestações oriundas de um ator privado cujos interesses,
são, evidentemente, patrimoniais. 392
390
Nesse sentido, SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004, p. 133-143.
391
Cf. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Apontamentos sobre a aplicação das normas de direito
fundamental nas relações jurídicas entre particulares. In: A Nova Interpretação Constitucional:
Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Organizador: BARROSO, Luís Roberto. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003, p. 163 “... O Estado não tem apenas o dever de respeitar os direitos fundamentais
dos cidadãos, mas tem o dever de fazer com que outros cidadãos os respeitem. Assim, o titular de um
direito fundamental é também titular de um direito subjetivo à proteção do Estado contra intervenções de
terceiros.”
392
HESSE, Konrad. Derecho constitucional y derecho privado. Tradução de: GUTIÉRREZ, Ignácio.
Madrid. Civitas, 1995, p. 78 e 79: “Pressupõem uma situação jurídica e fática aproximadamente igual dos
interessados. Onde falta tal pressuposto, e a autonomia privada de um conduz a falta de liberdade do
outro, desaparece todo o fundamento e se traspassa todo o limite, o indispensável equilíbrio deve ser
encontrado por outra via, a da regulação estatal, cuja eficácia freqüentemente requer uma conexão de
preceitos de Direito Público e Privado.” [ traduziu-se livremente do espanhol]
Emblemático, nesse diapasão, trata-se do chamado “caso Lüth”, leading case
onde a Corte Constitucional alemã pronunciou-se, pioneiramente, sobre a incidência dos
direitos fundamentais não só em face do Estado, mas também frente a particulares.
O aduzido caso revela um cineasta que apoiara o regime nazista,Viet Harlan, em
situação de estréia de seu novo filme. Erick Lüth, então presidente do Clube de
Imprensa em Hamburgo conclama distribuidores das fitas, donos de cinemas e teatros, e
aos alemães decentes a não distribuir, não apresentar e não assistir ao filme.
Lüth é processado pelo produtor e pelo distribuidor da obra por perdas e danos
no juízo cível, com base no disposto no parágrafo 826 do BGB: “quem, contrariando os
bons costumes, causar dano a outrem ficará obrigado a indenizá-lo.” Assim, Lüth é
condenado em 22 de novembro de 1951 pelo Tribunal Estadual de Hamburgo, sob pena
de multa ou de prisão determinada judicialmente, a deixar de convidar os donos dos
teatros e distribuidores a não exibir o filme e, ao público alemão, a não assisti-lo.
O Tribunal Estadual de Hamburgo vislumbra, por meio da atitude de Lüth, um
convite ao boicote, conduta considerada contrária aos bons costumes.
Observe-se que a sentença do juízo cível só analisa o caso com base na
legislação civil pátria. A decisão não cogita dos mandamentos constitucionais. Há, em
juízo cível, perfeita subsunção do fato à regra do BGB.
Porém, Lüth recorre ao Tribunal Constitucional Alemão com base no direito
fundamental à liberdade de opinião – no Brasil mais comumente chamado de liberdade
de expressão – presente no art. 5º da Lei Fundamental Alemã em seu número 1,
especialmente em sua primeira frase que dispõe: “Toda pessoa tem o direito de
manifestar e difundir livremente sua opinião, por escrito e por meio da imagem e de
esclarecer sem entraves em fontes acessíveis a todos.”
A sentença do Tribunal Constitucional reforma a que condenou Luth com base
nos seguintes argumentos: i. uma sentença de um tribunal estadual pode violar um
direito fundamental se não levar em conta o próprio direito fundamental; ii. A proibição
da expressão de Lüth faz com que ele não possa influenciar outras pessoas a se unirem à
sua opinião no que diga respeito à reparação em favor de Harlan; iii. Todos os poderes
do Estado, inclusive o Judiciário, recebem diretrizes de impulso da Constituição cujos
valores não são neutros, porém objetivos e optam pelo livre desenvolvimento da
personalidade e da dignidade do ser humano. Desse modo, todas as decisões de Direito
Civil devem estar de acordo com o espírito da Constituição; iv. Uma sentença que
desconsidera a vinculação do Direito Civil aos direitos fundamentais viola os direitos
fundamentais; v. A liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais mais
supremos, pois é expressão direta da personalidade humana na sociedade e é, em certo
sentido, o fundamento de toda liberdade; vi. São os limites do direito fundamental que
vão determinar o teor normativo das leis gerais; vii. Nesse sentido, contra a liberdade de
expressão de Harlan, o autor do filme, que o art. 5 não protege a expressão de uma
opinião por si, mas pelos efeitos espirituais ou prejudiciais a terceiros que possam advir
dessa manifestação. Nesse caso, deve haver uma ponderação dos bens jurídicos.393
Por igualdade de razão, do mesmo modo que o direito fundamental à liberdade
de expressão incidiu horizontalmente numa relação entre privados, hodiernamente, cada
vez mais, é importante que outros direitos fundamentais umbilicalmente ligados à
dignidade da pessoa humana possuam essa incidência nas situações privadas,
especialmente naquelas em que a prestação do contrato de natureza existencial será
oferecida por um agente que atua no mercado, portanto, cuja atividade tem, a priori,
cunho mercantilista.394
393
Consultou-se a compilação de SCHWABE, Jürgen. In: Cincuenta años de jurisprudencia del tribunal
constitucional federal alemán. Montivideo: Fundação Konrad Adenauer, 2003. Nos termos da ementa da
sentença: “1. Os direitos fundamentais são, antes de tudo, direitos de defesa do cidadão em face do
Estado, sem embargo, nas disposições sobre direitos fundamentais da Lei Fundamental incorpora-se
também uma ordem de valores objetiva, que, como decisão fundamental constitucional, é válida para
todas as esferas do direito.
2. No direito civil desenvolve-se indiretamente o conteúdo legal dos direitos fundamentais, por meio das
disposições de direito privado. Abrangem, antes de tudo, disposições de caráter coercitivo, que são
realizáveis de maneira especial pelos juízes, mediante cláusulas gerais.
3. O juízo cível pode violar, com sua sentença, direitos fundamentais – parágrafo 90 BverGG – , quando
desconhece os efeitos dos direitos fundamentais no direito civil. O Tribunal Constitucional Federal
examina as sentenças dos tribunais civis somente por violações aos direitos fundamentais, mas não de
maneira genérica, por erros de direito.
4. Disposições de direito civil também podem ser as ‘as leis gerais’ no sentido do art.5 número 2 da LF e
podem limitar os direitos fundamentais à liberdade de opinião.
5. As leis gerais para o estado democrático livre, devem ser interpretadas à luz do especial significado do
direito fundamental da liberdade de opinião.
6. O direito fundamental do art. 5 LF protege não só a expressão de uma opinião como tal, mas também
os efeitos espirituais que se produzem por meio da expressão de uma opinião.
7. A expressão de uma opinião, que contém um chamado ao boicote não viola necessariamente os bons
costumes do parágrafo 826 do BGB, pois podem estar justificadas constitucionalmente mediante a
liberdade de opinião ao ponderar todas as circunstâncias do caso.” [ traduziu-se livremente do espanhol]
394
Consoante SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
constituição federal de 1988, p. 112-113: “Para além dessa vinculação (na dimensão positiva e negativa)
do Estado, também a ordem comunitária e, portanto, todas as entidades privadas e os particulares
encontram-se diretamente vinculados pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Com efeito, por sua
natureza igualitária e por exprimir a idéia de solidariedade entre os membros da comunidade humana, o
princípio da dignidade da pessoa vincula também no âmbito das relações entre os particulares. No que diz
com tal amplitude desse dever de proteção e respeito, convém que aqui reste consignado que tal
constatação decorre do fato de que há muito já se percebeu – designadamente em face da opressão
socioeconômica exercida pelos assim denominados poderes sociais – que o Estado nunca foi (e cada vez
A perspectiva em casos de relações contratuais travadas no espaço privado entre
pessoas idosas e operadoras de planos de saúde é de que, estas últimas, são titulares do
poderio econômico, razão pela qual representam perigo para o gozo do direito
fundamental à saúde desses consumidores hiper vulneráveis.395 Incumbe, pois, ao
Estado, protegê-los. Muitas vezes caberá ao intérprete determinar que, no caso em
espécie, seja invocado o direito fundamental frente a violação provinda de um
particular.396
menos o é) o único e maior inimigo das liberdades Que tal dimensão assume particular relevância em
tempos de globalização econômica, privatizações, incremento assustador nos níveis de exclusão e, para
além disso, aumento do poder exercido pelas grandes corporações internas e transnacionais...”
395
BILBAO UBILLOS, Juan María. En que medida vinculan a los particulares los derechos
fundamentales? In: Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Organizador: SARLET, Ingo
Wolfgang. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 302: “ São evidentes, com efeito, as analogias
entre o poder público e o poder privado, um poder que aflora como tal naquelas situações caracterizadas
por ‘uma disparidade substancial entre as partes’. Esta falta de simetria permite que a parte que por razões
econômicas ou sociais se encontra em ‘posição dominante’ condicione a decisão da parte ‘débil’. O que
se exerce nesses casos é um poder formalmente privado (no que concerne à sua fonte e aos sujeitos
implicados), mas que se exerce com formas de coação e autoridade similares substancialmente às próprias
dos poderes públicos.” [ traduziu-se livremente do espanhol]
396
BILBAO UBILLOS, Juan María. En que medida vinculan a los particulares los derechos
fundamentales?, p. 311: “ A lógica dos direitos fundamentais conduz indefectivelmente a esse cenário,
aponta para um crescente protagonismo dos juízes, um protagonismo que não conduz necessariamente ao
caos ( nos sistemas de case law não reina precisamente o caos), mas sim um Estado de Direito
eminentemente jurisdicional.” [ traduziu-se livremente do espanhol]
A assertiva de BILBAO UBILLOS confirma-se no Brasil atual mediante a análise de precedente no qual
o Poder Judiciário reconheceu a afronta de terceiro aos direitos fundamentais dos consumidores idosos
numa relação de natureza privada encontra-se no Agravo de Instrumento nº 06663/ 2005 do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro em que figurava como agravante o Banco Itaú S. A. e como agravado
o Ministério Público. Do voto da relatora Desembargadora
Helda Lima Meireles colhem-se os seguintes argumentos extraídos da ementa do voto: “Agravo
inominado. Artigo 557, § 1º, CPC. Ação civil pública. Instalação e mantença, de maneira permanente e
regular, de caixa convencional para atendimento prioritário de portadores de deficiência e mobilidade
reduzida, no andar térreo da agência do Banco-réu, em Cabo Frio, sob pena de multa diária. Pretensão
amparada na Lei Maior da República, no Estatuto do Idoso, no CDC e na Lei Estadual n º 4.347/04.
Alegação de ausência de legitimidade ativa do Ministério Público, falta de interesse de agir e ausência
dos pressupostos exigíveis para concessão da liminar.
1- O aspecto referente à disponibilidade dos direitos individuais homogêneos não afasta a possibilidade
de tratamento coletivo da presente quaestio, pois é assente o entendimento no sentido de que a relevância
social da matéria, ou a extensão do direito a que se pretende tutelar, atribui a esse mesmo direito a
natureza indisponível.
2- Via eleita – ação civil pública – cabível, e presença da necessidade da propositura da ação.
Configuração do interesse de agir.
3- A ponderação das repercussões da liminar concedida revela sua correção, não sendo teratológica.
Proteção da dignidade humana e da saúde. Incidência da Súmula nº 59 deste Tribunal de Justiça.
4- Razoabilidade do prazo fixado para cumprimento da obrigação imposta (cinco dias) e da multa diária
pelo descumprimento (hum mil reais), diante da possibilidade econômica da Instituição Financeira.
5- Agravo inominado desprovido.” [ grifou-se]
Por outro lado, há que se considerar em que medida a autonomia privada de um
contraente possa ser restringida pelo Poder Público, no intuito de protegê-lo, quando em
situação de fraqueza. Para os pensadores liberais, a autonomia privada era atributo de
todos os cidadãos que, livres e iguais, não necessitavam da intervenção estatal no
domínio de suas autodeterminações.397 Contudo se reconhece, especialmente nos dias
de hoje, que onde não há igualdade entre os atores privados que se relacionam, a esfera
de autonomia da parte débil revela-se muito pequena. Isto posto, chega-se a conclusão
de que não é o Estado que primeiramente intervém para equalizar uma situação de
desigualdade, mas antes, é a situação de desigualdade que impede que haja, com efeito,
a manifestação límpida da autonomia privada, demandando interferência estatal.398
Nos contratos de planos de saúde o consumidor idoso busca um bem
fundamental para si: a proteção da sua saúde, direito de ordem prioritária na velhice,
razão pela qual, nesses casos, a tutela do Estado para o alcance desse objeto deve ser a
mais incisiva. Se a saúde não tivesse a qualidade de essencial para a pessoa, ou seja, se
fosse supérflua, menor seria o intervencionismo estatal na relação privada. Mas, quanto
mais essencial for o bem da vida sujeito a uma situação relacional, mais vulnerável
também se encontra o consumidor, pois necessita dele. É que quando se tem
necessidade vital de um produto ou de um serviço, a pessoa humana não está livre para
prescindir de tal bem.399 Por isso, entre outros fatores como a hiper vulnerabilidade
397
Essa perspectiva de análise é bem ilustrada por HELD, David. Modelos de democracia. Madrid:
Alianza Editorial, 2001, p. 335:‘... O estado existe para salvaguardar os direitos e liberdades dos cidadãos,
que são, em último termo, os melhores juízes de seus próprios interesses; o estado é a carga que os
indivíduos têm que suportar para garantir seus próprios fins; e o estado deve estar restrito enquanto ao seu
âmbito, e limitado enquanto à sua prática, para garantir o máximo de liberdade possível a cada cidadão. O
liberalismo tem estado e está preocupado com a criação e defesa de um mundo em que os indivíduos
‘livres e iguais’ possam prosperar com o mínimo de estorvo político. [Traduziu-se livremente do
espanhol]
398
BILBAO UBILLOS, Juan María. En que medida vinculan a los particulares los derechos
fundamentales?, p.334: “Quanto maior seja a desigualdade de fato entre os sujeitos da relação, maior será
a margem de autonomia privada cujo sacrifício é admissível porque falta então o pressuposto ou
fundamento da proteção dessa autonomia. Dito de outro modo, o grau de autonomia real das partes pode
ser um critério válido e útil para resolver os possíveis conflitos. Quanto menor seja a liberdade da parte
‘débil’ da relação, maior será a necessidade de proteção.” [Traduziu-se livremente do espanhol]
399
Nesse sentido, manifesta-se NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, p. 453: “Os contratos que versem sobre a aquisição ou utilização de bens que,
considerando a sua destinação, são tidos como essenciais, estão sujeitos a um regime tutelar, justificado
pela necessidade de proteção da parte vulnerável – assim entendida a parte contratante que necessita do
bem em questão –; e, vice-versa, no extremo oposto, os contratos que tenham por objeto bens supérfluos
regem-se predominantemente pelos princípios do direito contratual clássico, vigorando aqui a regra da
mínima intervenção heterônoma.”
jurídica do idoso, o dirigismo estatal apresenta-se intenso nas relações entre privados
nas quais a prestação da saúde é o objeto do contrato. 400
Nessa medida, em um pacto cujo objeto é a saúde de um ser humano idoso
prestada pela livre iniciativa propõe-se, diante da incidência de princípios
constitucionais nas relações interprivadas, que se dê menos intensidade ao princípio da
liberdade negativa e da igualdade formal, nos quais se baseia a livre iniciativa, e, da
mesma forma, menor densidade ao princípio infraconstitucional da autonomia privada,
que, por sua vez, rege com primazia, as relações contratuais onde há igualdade entre os
contraentes. Parte-se, para tanto, do seguinte entendimento: quando não há, em essência,
igualdade entre os contraentes, terão proeminência os princípios fundamentais da
igualdade substancial e da solidariedade social na interpretação de um caso concreto.401
Sabe-se, porque corriqueiro, que pessoas idosas por muitos anos asseguradas em
sua saúde mediante planos privados não gozam da pretendida assistência no momento
em que mais precisam, por argumentos arbitrários das prestadoras de saúde que não
medem esforços para alegar que o consumidor não tem o direito que pleiteia,
principalmente se esse direito custa caro. A iniciativa privada visa prioritariamente ao
lucro e não a objetivos humanitários, razão pela qual o ser idoso depara-se com o
400
Ao analisar a autonomia privada e a igualdade a que alude a Constituição portuguesa PRATA, Ana. A
tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982, p. 105-106, formula raciocínio
que se considera também pertinente para a Constituição brasileira: “Uma imposição constitucional de
actuação estatal pautada pela remoção dos obstáculos a uma efectiva igualdade entre os cidadãos não
pode, desde logo, a um nível geral, deixar de determinar uma orientação legislativa e jurisdicional no
sentido de integrar as posições de desequilíbrio contratual através de medidas tuteladoras da capacidade
negocial real das partes contratualmente débeis. Isto é, para além dos pontuais – embora importantes –
afloramentos de uma directa tutela constitucional de categorias contratuais mais fracas, pode-se extrair da
Constituição uma orientação – que há-de ter um papel informador e directivo na concepção de institutos
civilísticos muito importante – de tutela das posições contratualmente débeis, que não pode deixar de se
repercutir na forma de entendimento e de aplicação do princípio da autonomia privada em termos gerais e
que, em alguma medida, há-de poder ser directamente invocável judicialmente.”
401
TEPEDINO, Gustavo. Do sujeito à pessoa humana. In: Editorial da Revista Trimestral de Direito
Civil. Rio de Janeiro: Renovar. v. 2. Abril/Junho/2000: “Entre controvérsias, aplausos e objeções, o
direito civil assistiu ao deslocamento de seus princípios fundantes, do Código Civil para a Constituição,
em difusa experiência contemporânea, da Europa Continental à América Latina. Tal realidade, vista por
muitos com certo desdém, na tentativa de reduzi-la a fenômeno de técnica legislativa - ou mesmo à mera
atecnia -, revela processo de profunda transformação social, em que a autonomia privada passa a ser
remodelada por valores não patrimoniais, de cunho existencial, inseridos na própria noção de ordem
pública.” [grifou-se]; WIEACKER, Franz, História do direito privado moderno. Tradução de:
HESPANHA, A. M. Botelho. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1967, também revela a importância da
Jurisprudência dos valores na determinação da função social dos direitos privados: “O combate no séc.
XIX entre formalismo e naturalismo, jurisprudência dos conceitos e realização de finalidades
(jurisprudência dos interesses e aplicação teleológica da lei) atingiu na moderna jurisprudência das
valorações um certo grau de equilíbrio; na determinação destes valores coube uma certa influência à
relação entre o espaço de liberdade e a função social dos direitos privados.” [grifou-se].
paradoxo de ter pagado pelo cuidado de sua saúde e não obtê-lo. Parece que o grande
perigo enfrentado pelo regime democrático brasileiro não é mais o golpe de Estado, mas
“o golpe do mercado”, pois se revela inadmissível que o Estado brasileiro, ao alcançar a
democracia, um modelo de inclusão social e se encontrar calcado no princípio
fundamental da dignidade da pessoa humana permita tamanha mercantilização da saúde,
condição inarredável de vida. 402 403
Ademais, a Constituição da República, por força do art. 6º, assevera que a saúde
é direito fundamental social. Ao atribuir fundamentalidade ao direito à saúde a
Constituição permite aos atores sociais que exercem a livre iniciativa na forma do art.
199 aufiram lucro, considerando, contudo, que seus benefícios econômicos nesse tipo
de negócio se reduzem pelos matizes fundamentais do direito à saúde, estreitamente
ligados às condições de vida do ser humano e ao princípio maior da sua dignidade.
Nesse sentido, remonta-se também ao fundamento constitucional da livre iniciativa que
se encontra nos valores sociais que ela provê.404 Ao tratar-se de obrigação contraída
pelo consumidor de pagar periodicamente para que sua saúde seja assistida por um ator
privado, o valor social da livre iniciativa encontra-se exatamente na prestação do
sinalagma contratual, ou seja, o direito à saúde, que, além de fundamental é, nesses
casos, o próprio objeto do contrato.
402
Consoante TEPEDINO, Gustavo. Direitos humanos e relações jurídicas privadas. In: Temas de
Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 57: “Na democracia capitalista globalizada, de pouca
serventia mostram-se os refinados instrumentos de proteção dos direitos humanos, postos à disposição
pelo direito público, se as políticas públicas e a atividade econômica privada escaparem ao mecanismo de
controle jurídico, incrementando a exclusão social e o desrespeito à dignidade da pessoa humana. Na era
dos contratos em massa e na sociedade tecnológica, pouco eficazes mostram-se os mecanismos
tradicionalmente empregados pelo direito civil, como a responsabilidade civil fundada na culpa, sendo
indiscutíveis os riscos sociais decorrentes da atividade econômica, mais e mais sofisticada, impondo-se a
busca de soluções de índole objetiva, preferencialmente preventivas, não meramente ressarcitórias, em
defesa de uma melhor qualidade de vida e da realização da personalidade.”
403
Veja-se também DORNELLES, João Ricardo Wanderley. Globalização, direitos humanos e a
violência na modernidade recente (versão completa)*. In: Temas Emergentes de Direitos Humanos.
Coordenador: GUERRA, Sidney. Campos dos Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2006, p.
320: “A partir de 1980, no Brasil, algumas formas de violência podem ter diminuído, como as
perseguições e violações por motivos políticos. No entanto, outras violações aumentaram, como a dos
direitos sociais, as execuções extrajudiciais, as violências físicas dos agentes de Estado contra populações
marginalizadas ou em situação precária, no campo e na cidade. O mesmo ocorreu com a violência do
mercado livre, sem regulação, na era neoliberal.[ Grifou-se]
404
Segundo AMARAL, Francisco. A interpretação jurídica segundo o código civil. In: Revista do
Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Vol. 1. Nº 1. Outubro/Dezembro de 1989, p. 37: “No direito
brasileiro, são princípios constitucionais, superiores, que se projetam no direito privado, os princípios da
dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.” [Grifou-se]
Se, por via de argumentos liberais como a força obrigatória de um contrato
lesivo, ou da livre manifestação da vontade do consumidor hiper vulnerável, retiram
dele a prestação da saúde para privilegiar aspectos econômicos favoráveis à empresa, a
atividade dela afasta-se da valoração social que lhe é atribuída pela Constituição.
Significa dizer que o exercício da atividade econômica deve atentar não só para os
lucros que visa a auferir, mas também para o alcance das necessidades existenciais e das
expectativas geradas em razão do tipo de atividade que executa. Quanto mais proteção
constitucional recebem, tanto o objeto de um contrato quanto o titular do direito
subjetivo, tal como a pessoa idosa, mais atenta deve estar a livre iniciativa para que
atinja os valores sociais, que a torna também, merecedora da tutela constitucional. Além
disso, há de ser extinta a concepção de que fornecedores de planos de saúde e seus
consumidores idosos são adversários,
Em toda relação contratual onerosa há algo que é dado em contrapartida do que
é recebido. Nos contratos de plano de saúde o idoso é, antes, paciente da prestadora do
serviço. Mas não é apenas isso. O consumidor idoso também se afigura como parceiro e
aliado do fornecedor com quem contrata a proteção de sua saúde, já que a empresa não
se sustentaria ou sequer existiria não fosse os recursos de seus segurados, logo, a
existência dos pacientes idosos que pagam pelo serviço de saúde é condição de
sustentabilidade dos planos.405
Numa palavra: o tratamento que a Constituição da República dá à atividade
econômica – tanto no art. 1º, inciso IV, que subordina a livre iniciativa à persecução dos
valores sociais, quanto no art. 170, que se refere à ordem econômica em seu caput – é
no sentido de mantê-la atrelada à existência digna de todos e à justiça social.406
Observe-se que pessoas que se asseguram contra a doença por planos privados
de saúde podem ser pobres ou ricas. Contudo, as que discutem cláusulas abusivas ou
impedimentos lesivos levantados pelo plano em momentos dramáticos de suas vidas,
precisando da tutela do Judiciário para usufruir um direito, não são ricas. Essas pagam
pelo serviço de saúde e depois decidem acerca de se restituírem ou não pela via do
405
GREGORI, Maria Stella. Desafios após dez anos da lei de planos de saúde, p. 80.
406
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
p. 171: “A justiça social passa a ser o princípio estruturante da atividade econômica inserta no artigo 170
da Constituição. É, na realidade, a adoção expressa de um novo credo em matéria constitucional, em que
o paradigma adotado ultrapassa os sistemas das liberdades meramente formais desaguando nos direitos
sociais econômicos. E esta autêntica mudança social e econômica projeta-se intensamente na própria
estrutura contratual e no tráfico jurídico.”
Judiciário. São os contribuintes pobres ou os que não possuem condições de arcar com o
tratamento do qual necessitam, que morrem ou sofrem demasiadamente ao aguardar
uma posição favorável do órgão jurisdicional.
De todo modo, o reconhecimento da lesão no âmbito do contrato constitui um
avanço que se realiza pelo dirigismo do Estado na esfera privada, fazendo com que
pactos onde vigoravam a desigualdade no conteúdo das prestações sejam revistos de
modo que se viabilize o equilíbrio contratual.
2- A lesão em contratos de plano de saúde realizados com o consumidor
idoso: hipóteses de incidência e análise de casos
407
Cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 1-35,
passim.; ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Do contrato. Teoria geral. 3 ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1987, p. 265-266; DA SILVA, Luís Renato Ferreira. Revisão dos contratos: do código civil ao
código do consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 70, cuja ressalva elucida que a única assertiva
segura a ser feita sobre a lesão é ter sido versada pelo Direito Romano. As demais asserções sobre a sua
origem nos textos legais, a hermenêutica aplicada ao instituto, sua ideologia, são tratados
contraditoriamente pelos juristas romanistas.
408
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos, p. 10.
409
Cf. MIRABELLI, Giuseppe. Rescissione (Diritto Civile). In: Novissimo Digesto Italiano. Torino:
UTET, V. 15, 1968, p. 580.
410
O Código de Justiniano dizia, segundo tradução de PEREIRA, Caio Mário da Silva, Lesão nos
contratos, p. 13.:“ ‘Se tu ou teu pai houver vendido por preço menor uma coisa de maior preço, é
eqüitativo que, restituindo tu o preço aos compradores, recebas o fundo vendido intercedendo a
autoridade do juiz, ou, se o comprador o preferir, recebas o que falta para o justo preço. Menor porém
presume-se ser o preço, se nem a metade do verdadeiro preço foi paga.’ ”
411
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos, p. 34, verbis: “Foi conceituada a lesão como um
vício de apuração objetiva do próprio contrato...”
valor do bem, estaria configurada a lesão, que daria direito ao lesado de rescindir o
contrato, obtendo de volta a coisa, ou de receber o seu valor restante.412
Relata-se ainda que, com o renascimento do estudo do Direito Romano pela
Escola de Bolonha, o instituto da lesão volta ser analisado pelos glosadores, os quais,
tendo dificuldade de concebê-lo como um instituto autônomo, desligado dos vícios de
consentimento, acrescentam à sua configuração um elemento anímico do comprador, o
chamado dolus re ipsa 413.
Por sua vez, os canonistas criam a laesio enormissima, no caso de a vantagem
obtida com a lesão da outra parte ultrapassar dois terços do valor do bem. 414 Já na Idade
Moderna, o Código de Napoleão acolhe a lesão como vício do consentimento415
aplicada, todavia, apenas em situações excepcionais como em casos de partilha e
compra e venda imobiliária, onde trata da venda de imóveis por preço menor que 7/12
do valor de mercado.416 A ideologia liberal do Code não permitiu grande expansão à
lesão, mas ao espírito individualista e à diretriz de plena liberdade contratual.
No Brasil, embora a lesão tenha constado das Ordenações do Reino, que aqui
vigoraram antes e depois de proclamada a Independência,417 “em homenagem ao
412
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos, p. 35, “O que se observa coma a laesio enormis
do Direito Romano é isto: foi criada como um vício objetivo do próprio contrato, e como tal aplicada.”
413
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos, p. 40, “Aquele que vende a coisa por menos de
metade, certamente foi enganado pelo comprador. Não é possível que alguém seja levado a um ato desta
sorte, sem a preexistência de qualquer hábil manobra da outra parte. Mas, nada falando os textos a
respeito, nem acusando as circunstâncias de que se revestia uma tal venda o processo fraudulento, era
preciso imaginar o modo de se ligarem os dois fenômenos. Uma venda assim só se compreenderia pelo
dolo do comprador. E este dolo estava entrosado no próprio contrato, caracterizado na essência suspeita
do ato - dolus re ipsa.”
414
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos, p. 45, “Foi devido aos canonistas que se criou a
chamada laesio enormissima, sem fundamento na lei romana. Quando o vendedor era enganado além dos
dois terços do valor da coisa, considerava-se que os princípios que regiam a lesão enorme eram
insuficientes para atender a esta situação, e imaginaram-se novos: a lesão enormíssima não apenas viciava
o contrato, tornando-o rescindível, mas ia além, importando na sua inexistência como ato jurídico.”
415
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos, p. 59, “O Código Civil francês adotou , pois, a
rescisão dos contratos lesivos, enunciando no art. 1.118 o princípio, segundo o qual a lesão é um vício do
consentimento, compreendido que está este inciso na seção encimada pela epígrafe Du Consentement”;
GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações, 2 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1980, p. 28 comenta a respeito da ideologia que inspirou o dispositivo legal do Code que
contém positivada a lesão, “...Quando alguém se encontra em tais condições que, se tivesse conhecido
toda a extensão da lesão não teria celebrado o contrato, não se pode dizer que consentiu, pois ninguém
consente espontaneamente em grandes perdas.”
416
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 171.
417
Cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos, p. 89.
princípio da autonomia da vontade, vários Códigos, dentre os quais o nosso,
suprimiram-na.”418 Ainda assim, leis posteriores ao Código Civil brasileiro de 1916,419
inclusive em sede constitucional,420 positivaram a repressão à usura real e, com o
advento da Lei da Economia Popular, formulou-se importante construção que, através
da instituição penal do crime de usura, entendeu serem nulos os contratos em que esta
fosse manifesta por contrariar o artigo 145 do Código Civil brasileiro de 1916.421
No entanto, apenas com o advento do Código de Defesa do Consumidor, a lesão
é abertamente positivada no Brasil seguida pelo Código Civil de 2002 em seu art. 157.
No caso de planos de saúde prestados à pessoa idosa serão analisadas as
hipóteses de lesão previstas no Código de Defesa do Consumidor por tais planos
configurarem relações de consumo. A lesão é, por três vezes, mencionada na legislação
consumerista para situações diferenciadas de desequilíbrio contratual presente no
momento da contratação.
A lesão está contida na primeira parte do inciso V, do artigo 6º, do Código do
Consumidor, como direito básico desse agente, razão pela qual a referida Lei concede
ao consumidor lesado o direito de modificar as cláusulas contratuais que estabeleçam
prestações desproporcionais.422 Está contida também no artigo 39, inciso V, como
418
Cf. GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações, p. 27.
419
Cf. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Aspectos do código de defesa do consumidor. In: Revista
AJURIS. V. 52. Porto Alegre. Julho/1991, p. 178-179.
420
Cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos, p. 129: “A Constituição de 1934 reflete esta
animadversão à usura que se apossou da consciência coletiva, ao estatuir no art. 117, parágrafo único, a
proibição da usura, punida na forma da lei.”; também na p. 130, “Simultâneo ao golpe de estado de 10 de
novembro de 1937, a Carta Constitucional, então outorgada, repisou o princípio no art. 142, num inciso
simples e peremptório: ‘A usura será Punida’.
Atravessando o Estado Novo, o mesmo preceito foi conservado pelo Constituinte de 1946, numa fórmula
de horizontes mais amplos: ‘A usura, em todas as suas modalidades, será punida na forma da lei.’”
421
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos, p. 163, “Na lei de Economia Popular, a intenção
do legislador foi a punição do delito de usura, a que não podia ficar estranha a conseqüência cível.’
Diante deste dispositivo Caio Mário aduz na p. 167: ‘Esse é o delito de usura real, isto é, o instituto penal
da lesão. Sua projeção juscivilística é manifesta. Delito, ilícito penal. E, como é nulo o ato jurídico
quando for ilícito o seu objeto (Código Civil, art.145, nº II), aí teríamos a nulidade dos contratos em que
uma das partes, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade da outra, obtém lucro
patrimonial excedente de um quinto do valor corrente ou justo.”;
GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações, p. 31, manifestou posição
divergente: “Diferentes, assim, no fundamento, na configuração, na sanção que se lhes aplica e por tantos
outros traços incisivos, lesão e usura são desenganadamente inassimiláveis. O esforço que se vem fazendo
no sentido de adaptar a usura ao conceito de lesão mais não passa do que vã tentativa para salvar uma
noção completamente decadente, travestindo-a com indumentária que se não ajusta à sua envergadura.”
422
Cf. DA SILVA, Luís Renato Ferreira. Revisão dos contratos: do código civil ao código do
consumidor, p. 92, “No Brasil, em face do diploma dos consumidores, sustenta-se a possibilidade de
prática abusiva, que veda ao fornecedor de produtos ou serviços exigir do consumidor
vantagem manifestamente excessiva,423 e, enfim, consta positivada na regra do artigo
51, inciso IV, como cláusula abusiva, que dispõe serem nulas de pleno direito as
cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos ou serviços que estabeleçam
obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em
desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou com a eqüidade.
Estabelece ainda o parágrafo primeiro deste mesmo artigo os casos em que se presume a
vantagem, sem desconsiderar, contudo, outras possíveis presunções.424
Na jurisprudência encontram-se inúmeros casos em que, evidenciada a lesão, a
relação contratual modifica-se em parâmetros que visam a alçar o equilíbrio contratual
em planos de saúde realizados com pessoas idosas.
O primeiro caso sob análise trata de plano de saúde contratado em 1986. Na
época do julgamento a consumidora, já possuía 72 anos de idade e havia sofrido queda
com fratura de braço necessitando, para tanto, de uma prótese. A operadora do plano, na
situação, a apelante, negou-se a autorizar e custear a implantação da prótese necessária
ao restabelecimento da apelada sob o argumento de ausência de cobertura e
inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor e da Lei 9.656 de 1998. Do voto
do desembargador relator que nega provimento ao recurso extraem-se os seguintes
argumentos:
“Não é crível e juridicamente aceitável, que a apelada suporte os
custos de um plano de saúde por cerca de 20 anos e, no último
quadrante de sua vida, já acometida de doenças e fraquezas típicas da
idade avançada, veja negada a cobertura para este ou aquele
revisão por incidência do art. 6º, V, que refere à revisão de cláusulas contratuais que estabeleçam
prestações desproporcionais, o que não é outra coisa senão a figura da lesão.”;
também DE ALMEIDA, João Batista. A revisão dos contratos no código do consumidor. In: Revista de
direito do Consumidor. São Paulo. Revista dos Tribunais. V. 33. Janeiro/Março/2000, p. 145, “...O código
de defesa do consumidor estabeleceu como direito básico do consumidor a modificação das cláusulas
contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais (art. 6º, V, 1ª parte), o que coincide com a noção
de lesão.”
423
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos, p. 211, “Numa aproximação notória e até
mesmo vocabular com os extremos da lesão, o art. 39, ao cogitar de ‘práticas abusivas’ por parte do
fornecedor (genericamente considerado) proíbe exigir do consumidor ‘vantagens manifestamente
excessivas’. Nesta passagem está presente um dos requisitos da ‘lesão qualificada’ - a prestação
‘exageradamente exorbitante da normalidade’ ou desproporcional ao que o fornecedor oferece.”
424
Em regra, presume-se exagerada, segundo o § 1º do art. 51, a vantagem que, nos termos dos incisos
seguintes: “I – ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;
II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de
tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual;
III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do
contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.”
procedimento cirúrgico, para este ou aquele complemento, porque o
plano não oferece cobertura.
Quando determinada cirurgia está coberta pelo plano, deve ser
entendido que todos os suprimentos médicos indispensáveis ao bom
êxito do ato médico também estejam, sob pena de se encontrar o
consumidor em desvantagem exagerada. Agora na difícil condição de
paciente, literalmente “aberto” na mesa de operações e discutindo com
o plano se ele está pagando esta ou aquela prótese. Além da ofensa à
própria dignidade da pessoa humana, o comportamento dos planos de
saúde beira a própria conduta criminosa.
Cobrir a operação cirúrgica e não cobrir o material indispensável ao
pleno sucesso do ato é o mesmo que negar eficácia ao contrato.”425
425
TJRJ. Apelação Cível nº 29.414/2005. 16ª Câmara Cível. Apelante: Golden Cross Assistência
Internacional de Saúde Ltda. Apelada: Maria da Conceição Morais de Andrade Luna. Relator:
Desembargador Rogério de Oliveira Souza. Julgada em: 8.11.2005. [grifou-se]
426
TJRJ. Apelação Cível nº 9.574/06. 4ª Câmara Cível. Apelante: CABERJ- Caixa de Assistência à
Saúde. Apelado: João Petillo. Relator: Desembargador Sidney Hartung Buarque. Julgada em: 9.05.2006.
[grifou-se]
Em precedente semelhante cuja ementa se transcreve, observa-se referência à clausula abusiva prevista no
contrato para negar provimento ao recurso : TJRJ. Agravo de Instrumento nº 2004.002.24085. 6ª Câmara
No terceiro caso analisado, o plano de saúde negou o pagamento de despesas
relativas à implantação de stent em decorrência de cirurgia de angioplastia em paciente
idoso, alegando limitações contratuais nesse sentido. A operadora do plano apelou da
decisão de primeiro grau que a condenou não só a arcar com tais despesas, mas também
à indenização por dano moral. Extrai-se parte do voto do relator no recurso de apelação:
“O recurso de apelação interposto pela Ré não merece acolhimento
devendo ser mantida a condenação. Com efeito, a condenação da parte
Ré ao custeio das despesas relativas ao procedimento cirúrgico e ao
pagamento da indenização por danos morais é a única medida que se
afigura justa, uma vez que em jogo está a vida da pessoa que necessita
a realização da intervenção cirúrgica com a implantação do stent e por
se tratar de fato que, induvidosamente, causaria abalo moral em
qualquer pessoa, principalmente, naquelas mais idosas e que se
encontram com a saúde debilitada.
No que concerne a alegação no sentido da ausência de previsão
contratual para o custeio da intervenção cirúrgica pleiteada no recurso
não merece acolhida uma vez que a hipótese versa sobre procedimento
de urgência, insuscetível de ser negada a cobertura pela seguradora
diante do risco iminente à vida da autora.
Assim, as limitações contratuais impostas são nulas de pleno direito e
não podem impedir que a cirurgia se realize com o conseqüente
custeio pela seguradora.
A alegação acerca da irretroatividade do Código de Defesa do
Consumidor e da Lei 9.656/98, também não merece acolhida, uma vez
que a relação entre as partes é nitidamente de consumo e o Código de
Defesa do Consumidor ao trazer normas protetivas ao consumidor
deve ser interpretado e aplicado, mesmo tendo a relação contratual
entre as partes se estabelecido antes da sua vigência.”427
Cível. Agravante: Golden Cross Assistência Internacional de Saúde LTDA. Agravado: Candido Bonfim
Leitão. Relator: Desembargador Francisco de Assis Pessanha. Julgada em:31.05.2005: “AGRAVO DE
INSTRUMENTO. SEGURO-SAÚDE. TRATAMENTO MÉDICO ATRAVÉS DE ATENDIMENTO
DOMICILIAR (HOME CARE). LIMITAÇÃO. CLÁUSULA ABUSIVA IMPRESSA EM
DOCUMENTO UNILATERAL.
A Constituição da República e o Código de Defesa do Consumidor são diplomas legais que se
complementam para prestigiar a dignidade da pessoa humana, o resguardo da saúde do cidadão, a
proteção aos idosos e afastar as cláusulas abusivas redigidas nos contratos.
Havendo negativa da empresa de seguro-saúde em prestar assistência ao associado, deve o julgador
superar eventuais limitações contratuais e agir para preservar a vida do ser humano com a saúde
extremamente fragilizada e que poderá vir a falecer se o tratamento recomendado vier a sofrer solução de
continuidade. [...]
RECURSO DESPROVIDO” [grifou-se]
427
TJRJ. Apelação Cível nº 2006.001.17226. 13ª Câmara Cível. Apelante: Bradesco Saúde S/A. Apelado:
Sônia Tereza Ramos Nasser. Relator: Desembargador Carlos Santos de Oliveira. Julgada em: 06.07.2006.
[grifou-se]
Observe-se que a própria Lei dos Planos de Saúde em seu art. 13 parágrafo único, inciso
II, letra b, prevê que: “são vedadas a suspensão do contrato e a denúncia unilateral,
salvo por fraude ou não pagamento da mensalidade por período superior a sessenta dias,
a cada ano de vigência do contrato.”
Do voto sobreleva o seguinte:
“Ademais, o nobre representante ministerial trouxe à colação aresto do
Egrégio STJ, 3ª Turma, no Recurso Especial nº 602.397 do Rio
Grande do Sul, relatado pelo Ministro Castro filho, publicado em 1º de
agosto do ano passado, cuja ementa, que tudo sintetiza, é assim
redigida: “é nula, por expressa previsão legal, e em razão de sua
abusividade, a cláusula inserida em contrato de plano de saúde que
permite a sua rescisão unilateral pela seguradora, sob simples
alegação de inviabilidade de manutenção da avença.”
Por fim bem argumentou o “parquet” ser inaceitável que pessoas
idosas, de uma hora para outra, fiquem sem assistência de uma
entidade hospitalar de renome, sem o concurso de sua vontade, sem
justa causa para tal.”428
428
TJRJ. Agravo de Instrumento nº 22239/2005. 6ª Câmara Cível. Agravante: OMINT Serviços de Saúde
LTDA Agravado: Amarino Carvalho de Oliveira e outros. Relator: Desembargador Luiz Felipe Haddad.
Julgada em: 27.04.2006 [grifou-se]
429
TJRJ. Apelação Cível nº 2005.001.32472. 9ª Câmara Cível. Apelante: Grupo Hospitalar do Rio de
Janeiro Apelado: Therezinha da Silva Soares. Relator: Desembargador Roberto de Abreu e Silva. Julgada
em: 14.02.2006. [grifou-se]
Por derradeiro, aponta-se precedente que reconheceu a abusividade de cláusula
contratual, uma vez que fora prevista no contrato possibilidade de rescisão unilateral por
parte do plano de saúde, usada por ele quando pessoa idosa se negou a aceitar o
aumento da prestação de seu contrato. A 4ª Turma do STJ decidiu, por unanimidade,
manter a decretação da nulidade da referida cláusula, conforme entendimento prévio do
TJSP:
430
STJ. Recuso Especial nº 242.084-SP. 4ª Turma. Recorrente: Unimed Ribeirão Preto – Cooperativa de
Trabalho Médico. Recorrida: Catharina Zema da Silva. Relator: Ministro Aldir Passarinho Junior. Julgado
em: 25.04.2006.
práticas abusivas da parte forte. Cláusulas abusivas e práticas do mesmo jaez são
revistas pelo Poder Judiciário no intuito de tutelar a pessoa consumidora de planos de
saúde, especialmente a idosa, pois, como dispõe o art. 39, inciso IV, “é vedado ao
fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: prevalecer-se da
fraqueza ou da ignorância do consumidor tendo em vista sua idade, saúde,
conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços.”
Verifica-se, contudo, que a existência de uma cláusula lesiva não há de, por si,
invalidar o contrato. É que o Código de Defesa do Consumidor preconiza a conservação
dos contratos na medida das justas expectativas de ambas as partes contraentes. Nos
casos analisados, observou-se que o contrato subsistiu a despeito da nulidade das
cláusulas abusivas de modo que houve, efetivamente, proteção e defesa do consumidor.
Na forma em que dispõe o art. 51, § 2º, da legislação consumerista: “A nulidade de uma
cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência,
apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes.”
431
Nesse diapasão o magistério de MACEDO JÚNIOR. Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do
consumidor. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 172: “... Cooperar é associar-se com outro para benéfico
mútuo ou para divisão mútua de ônus. Nesta segunda definição encontramos o elemento da mutualidade
[...] Note-se que a mutualidade se reporta ao benefício e não à existência de uma contraprestação formal
da relação contratual. A mutualidade de benefícios reporta-se ao elemento material e substantivo objeto
das transações e, neste sentido, define-se a partir da idéia de equilíbrio substancial nas trocas.”
prêmios. “É assim que operam as sociedades de seguros mútuos, pois nelas os
associados dividem entre si os prejuízos que a qualquer deles advenham dos riscos por
todos enfrentados.”432 “Vê-se, portanto, que uma empresa de saúde e uma seguradora
têm que constituir um fundo comum com recursos alheios.”433
Tanto a Lei 9.656 de 1998, quanto a Lei 10. 185 de 2001, tratam unicamente de
disposições a respeito de planos ou seguros privados de assistência à saúde. A saúde
afigura-se como bem imaterial, existencial e não patrimonial: “apresenta-se mais como
aspecto inseparável da pessoa, vista como valor unitário.”434 Desse modo, para além da
mutualidade comum em contratos de seguros comuns, nesse especificamente estudado,
algo a mais une as pessoas que participam da carteira de uma determinada operadora de
planos: o princípio da solidariedade social.435
Há de se esclarecer ainda que, pelo fato de o consumidor idoso ter reconhecidas
suas condições intrínsecas de inferioridade de vigor físico e, muitas vezes, até de
embaraço social, recebe tutela privilegiada na forma da Lei, que incide sobre as relações
privadas de toda ordem, e não poderá, pelo amparo legal que lhe é auferido, ser afastado
do acesso à saúde privada. Na forma do art. 14 da Lei dos planos privados de assistência
à saúde ninguém poderá, por motivo de idade, ser impedido de participar do contrato.
432
RODRIGUES, Silvio. Direito civil: dos contratos e das declarações unilaterais de vontade. 28 ed.
Vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 331.
433
LOPES, José Reinaldo de Lima. Consumidores de seguros e planos de saúde (ou, doente também tem
direitos). In: Saúde e Responsabilidade: Seguros e Planos de Assistência Privada à Saúde.
Coordenadores: MARQUES, Cláudia Lima, LOPES, José Reinaldo de Lima, PFEIFFER, Roberto
Augusto Castellanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 32.
434
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil, p. 159.
435
Consoante MACEDO JÚNIOR. Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor, p. 175:
“A relação de solidariedade, em contraste com a relação de cooperação, refere-se a um conjunto de regras
mais amplo e complexo. Ela se reporta a um conjunto de regras de julgamento que impõem um certo tipo
de vinculação essencial entre as suas partes, que as torna articuladas e reciprocamente afetadas, tendo em
vista uma medida que se desenvolve no interior mesmo desse conjunto. Assim, por exemplo, dentro de
um ethos comunitário, o dever de responsabilidade ou de ajudar, “ser solidário” em relação a membro
deste grupo é definido relacionalmente, a partir da lógica interna desta mesma comunidade. No âmbito do
Direito Social, o conceito de justiça social realiza a tarefa de ser de medida cambiante e reflexionante
deste grau de vinculação, vale dizer, do esquema de solidariedades.”
Com o Estatuto do Idoso, as pessoas idosas passaram também, pela exegese do art. 15, §
3º, a estarem protegidas contra a cobrança de valores diferenciados pelos planos de
saúde em razão da idade nas prestações periódicas que realizam, pelo fato de essa
prática revelar-se discriminatória, portanto, vedada.436 Todavia, é certo que pessoas
idosas adoecem mais e usam mais o plano que as pessoas jovens. Por isso, se reconhece
vivamente nos planos de saúde o princípio da solidariedade social, que abarca a
mutualidade, mas representa mais que ela, pois possui valor moral que implica
cooperação.437 “A solidariedade enquanto preocupação de uns com os outros com base
num sentimento de comunidade e valores comunitários assume um caráter
eminentemente moral”.438
Tem-se discutido, a propósito, a aplicação do Estatuto do Idoso no que diz
respeito aos reajustes de contraprestações pecuniárias por mudança de faixa etária nos
pactos anteriores a ele, firmados na vigência da Lei 9.656 de 1998, ou mesmo
anteriormente a ela, quando regidos apenas pelo Código de Defesa do Consumidor. O
vértice da questão encontra-se no entendimento de alguns intérpretes de que, aplicado o
Estatuto a esses contratos, haveria retroatividade da Lei que protege o idoso, o que
ofenderia o princípio da irretroatividade das leis adotado pelo Brasil no art. 5º, inciso
436
O mesmo raciocínio solidarístico em questões que envolvem a saúde de pessoas mais vulneráveis é
utilizado em relação aos portadores da AIDS. Segundo MACEDO JÚNIOR. Ronaldo Porto. Contratos
relacionais e defesa do consumidor, p. 270-271: “Um exemplo disto é a interpretação jurídica que proíbe
a exclusão da proteção a vítimas da Aids e portadores do vírus HIV em contratos de saúde. Tal cláusula
obrigatória importa no aumento do custo dos planos de saúde, e pode significar desvantagem para alguns
consumidores melhor protegidos que se consideram fora do grupo de risco de contaminação do HIV. A
inclusão da cláusula obrigatória de não-exclusão, contudo, pode ser defendida do ponto de vista da
racionalidade voltada para a necessidade específica de alguns consumidores. Neste caso, a racionalidade
fundante da opção pelas cláusulas obrigatórias seria tanto a necessidade específica daqueles que contraem
a doença, como a identidade do grupo afetado (tanto a “need-orientation” como a “person-orientation). O
princípio jurídico justificador desse tipo de necessidade seria a idéia de solidariedade, implícita no
conceito de Justiça Social.”
437
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor, p. 492-493: “Os contratos
de planos de assistência à saúde são contratos de cooperação, regulados pela Lei 9.656/98 e pelo Código
de Defesa do Consumidor, onde a solidariedade deve estar presente não só como mutualidade [...], mas
como cooperação com os consumidores, como divisão paradigmático-objetiva e não subjetiva da
sinistralidade, como cooperação para a manutenção dos vínculos e do sistema suplementar de saúde,
como possibilidade de acesso ao sistema e de contratar, como organização do sistema para possibilitar a
realização das expectativas legítimas do contratante mais fraco... Aqui está presente o elemento moral,
imposto ex vi lege pelo princípio da boa-fé, pois solidariedade envolve a idéia de confiança e cooperação.
Confiar é ter a “expectativa mútua de que [em um contrato] nenhuma parte irá explorar a vulnerabilidade
da outra”. Em outras palavras, o legislador consciente de que este tipo contratual é novo, dura no tempo,
de que os consumidores todos são cativos e de que alguns consumidores, os idosos, são mais vulneráveis
do que os outros, impõe a solidariedade na doença e na idade e regula de forma especial as relações
contratuais e as práticas comerciais dos fornecedores.”
438
MACEDO JÚNIOR. Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor, p. 177.
XXXVI, da Constituição da República e no art. 6º e incisos da Lei 4.657 de 1942,
conhecida como Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro.
439
TJRJ. Apelação Cível nº 2006.001.49125. 5ª Câmara Cível. Apelante: Vera Lucia Cozac. Apelado:
Bradesco Saúde S.A. Relator: Desembargador André Gustavo Corrêa de Andrade. Julgada em:
1º.11.2006. [grifou-se]
Torna-se necessário pontuar que o art. 6º da Lei 4.657 de 1942 inicia-se
proclamando que “a Lei em vigor terá efeito imediato e geral”. Essa é a regra. As
exceções são as ressalvas de respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à
coisa julgada.
O voto analisado parece não ter certeza do que quer proteger. Ora fala do ato
jurídico perfeito, que, consoante dicção legal exposta no § 1º do referido art. 6º,
consubstancia “o [ato] já consumado segundo a lei vigente ao tempo que se efetuou”, o
que não abarca os efeitos dos atos jurídicos de uma relação continuativa em que, cada
prestação de trato sucessivo, revela-se um novo efeito do ato jurídico; ora remete ao § 2º
do mesmo art. 6º, que se refere aos direitos adquiridos, nos seguintes termos:
“Consideram-se adquiridos assim os direitos que seu titular, ou alguém por ele, possa
exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição
preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.”
440
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol. I, p. 575.
441
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol. I, p. 564.
pré-pactuada, mas sim uma nova Lei de ordem pública a incidir nos efeitos que, em sua
vigência, produz o negócio jurídico.
442
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Vol 1. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 98.
443
Nesse sentido observa PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol. I, p. 138: “...
O direito, precisamente pela necessidade de se acomodar às exigências novas, tem necessidade de
formular novos conceitos e estabelecer novos preceitos, sob a influência do princípio, segundo o qual a
nova lei traz consigo a presunção de que é melhor e é mais perfeita que a antiga, e de que atende ao
reclamo indisfarçável do progresso jurídico. A qualificação dessa melhoria não pode ser aferida por um
rígido paradigma abstrato, mas deve ser buscada com critério relativo, dentro das contingências
ambientais: melhor, porque mais conveniente à solução dos problemas da hora que passa.”
extrema desvantagem, violando as regras dos artigos 6º, V, e 51, IV, do Código de
Defesa do Consumidor”, entende-se também de maneira diversa.
444
TJRJ. Apelação Cível nº 2006.001.17477. 2ª Câmara Cível. Apelante: Sul América Companhia de
Seguro Saúde. Apelado: Jorge Paulo Ramos. Relator: Desembargador Carlos Eduardo da Fonseca Passos.
Julgada em: 17.04.2006. [grifou-se]
reajustes das mensalidades com base exclusivamente no alçar da idade
de 60 anos, pela própria proteção oferecida pela Lei dos Planos de
Saúde e, ainda, por efeito reflexo
da Constituição Federal que estabelece norma de defesa do idoso no
art. 230. A abusividade na variação das contraprestações pecuniárias
deverá ser aferida em cada caso concreto, diante dos elementos que o
Tribunal de origem dispuser. Por fim, destaque-se que não se está aqui
alçando o idoso a condição que o coloque à margem do sistema
privado de planos de assistência à saúde, porquanto estará ele sujeito a
todo o regramento emanado em lei e decorrente das estipulações em
contratos que entabular, ressalvada a constatação de abusividade que,
como em qualquer contrato de consumo que busca primordialmente o
equilíbrio entre as partes, restará afastada por norma de ordem
pública.”445
Situação ideal seria a propositura de ação civil pública que contemplasse os
interesses coletivos de todos os idosos de não terem, sob pena da adequada coerção do
Direito, seus contratos de plano de saúde reajustados por majoração de idade.
Se julgada procedente ação dessa natureza evitar-se-ia o acúmulo de processos
individuais a serem julgados além de atingir positivamente, de uma só vez, a vida de
todos os idosos brasileiros consumidores dos serviços particulares de saúde.
A tutela jurisdicional pela via coletiva é estudada e recomendada a fim de
tutelar os direitos transindividuais das pessoas idosas no 5º capítulo.
3.1- Os reajustes das prestações pecuniárias pagas pelo consumidor idoso
445
STJ. Recurso Especial nº 809.329. 3ª Turma. Embargante: AMIL Assistência Médica Internacional
LTDA. Embargado: Oracy Pinheiro Soares da Rocha. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Julgado em:
25.03.2008.
O mesmo tribunal decidiu posteriormente no mesmo sentido e sobre a mesma matéria enfrentando,
porém, novas questões: STJ. Recurso Especial nº 989380. 3ª Turma. Recorrente: Ministério Público do
Estado do Rio Grande do Norte. Recorrida: UNIMED Natal Cooperativa de Trabalho Médico . Relatora:
Ministra Nancy Andrighi. Julgado em: 06.11.2008, verbis: “Direito civil e processual civil. Estatuto do
Idoso. Planos de Saúde. Reajuste de mensalidades em razão de mudança de faixa etária. Vedação. O
plano de assistência à saúde é contrato de trato sucessivo, por prazo indeterminado, a envolver
transferência onerosa de riscos, que possam afetar futuramente a saúde do consumidor e seus
dependentes, mediante a prestação de serviços de assistência médico-ambulatorial e hospitalar,
diretamente ou por meio de rede credenciada, ou ainda pelo simples reembolso das despesas. Como
característica principal, sobressai o fato de envolver execução periódica ou continuada, por se tratar de
contrato de fazer de longa duração, que se prolonga no tempo; os direitos e obrigações dele decorrentes
são exercidos por tempo indeterminado e sucessivamente. Ao firmar contrato de plano de saúde, o
consumidor tem como objetivo primordial a garantia de que, no futuro, quando ele e sua família
necessitarem, obterá a cobertura nos termos em contratada. O interesse social que subjaz do Estatuto do
Idoso, exige sua incidência aos contratos de trato sucessivo, assim considerados os planos de saúde, ainda
que firmados anteriormente à vigência do Estatuto Protetivo. Deve ser declarada a abusividade e
conseqüente nulidade de cláusula contratual que prevê reajuste de mensalidade de plano de saúde calcada
exclusivamente na mudança de faixa etária – de 60 e 70 anos respectivamente, no percentual de 100% e
200%, ambas inseridas no âmbito de proteção do Estatuto do Idoso. Veda-se a discriminação do idoso em
razão da idade, nos termos do art. 15, § 3º, do Estatuto do Idoso, o que impede especificamente o reajuste
das mensalidades dos planos de saúde que se derem por mudança de faixa etária; tal vedação não envolve,
portanto, os demais reajustes permitidos em lei, os quais ficam garantidos às empresas prestadoras de
planos de saúde, sempre ressalvada a abusividade. Recurso especial conhecido e provido.”
É importante ressaltar que as prestações pagas por usuários de planos de saúde
não se reajustam apenas por variação de faixa etária. Se a pessoa idosa está resguardada
do reajuste por idade – uma de suas modalidades – o mesmo não ocorre em relação aos
“anuais” ou “por aumento de sinistralidade”. Atente que as maiores reclamações dos
consumidores de contratos de planos de saúde referem-se aos reajustes em geral.446
Os reajustes anuais têm por escopo manter o equilíbrio econômico da operadora
em razão da perda do poder aquisitivo da moeda pela inflação.447 Todavia, são
conhecidos também como reajustes “por variação de custos assistenciais”, decorrentes
da majoração do preço de serviços como exames, atendimento clínico ou hospitalar,
honorários médicos, entre outros, cobrados pelos seus prestadores ao plano. Para a
ANS, subdividem-se em reajuste por variação de custos assistenciais de pessoa física e
de pessoa jurídica.
Ressalte-se que as pessoas físicas que celebraram contratos antes da vigência da
Lei 9.656 de 1998 terão reajustes anuais na forma do disposto pelo art. 28 da Lei 9.069
de 1995, que instituiu o Plano Real, e de acordo com os índices pactuados entre
consumidores e fornecedores, a não ser que os referidos pactos tenham sido adaptados à
Lei 9.656 de 1998.448
Nos demais ajustes dessa espécie – em que se enquadram aqueles firmados pelo
indivíduo ou pela família pessoalmente e as autogestões não patrocinadas, isto é,
financiadas com recursos exclusivos do consumidor – os reajustes são indicados pela
ANS e só podem ocorrer uma vez por ano, na data do aniversário do contrato.
Os índices máximos admitidos pela ANS foram, no período que compreende
maio de 2005 ao final de abril de 2006, de 11, 69%, conforme a Resolução Normativa
99 de 2005; no período concernente a maio de 2006 a abril de 2007, de 8,89%,
446
Disponível no site www.idec.org.br, consultado em 04.04.2007.
447
Disponível no site www.idec.org.br, consultado em 04.04.2007.
448
Dispõe a Medida Provisória 2.177 de 2001 que altera a Lei 9.656 de 1988 em seu art. 35 § 5º: “A
manutenção dos contratos originais pelos consumidores não-optantes tem caráter personalíssimo, devendo
ser garantida somente ao titular e a seus dependentes já inscritos, permitida apenas a inclusão de novo
cônjuge e filhos, e vedada a transferência da titularidade, sob qualquer pretexto a terceiros.” Observe-se
também o § 6º: “Os produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei, contratados até 1º de
janeiro de 1999, deverão permanecer em operação, por tempo indeterminado, apenas para os
consumidores que não optarem pala adaptação às novas regras, sendo considerados extintos para fins de
comercialização.”
conforme disposição da Resolução Normativa 128 de 2006. Observe-se que as
operadoras de saúde ficam condicionadas ainda à avaliação e à autorização da ANS para
a aplicação dos reajustes uma vez que os percentuais indicados podem ser inferiores,
dependendo da operadora.449
Já nos contratos com pessoas jurídicas, as regras para o reajuste anual ou de
custos deve estar previamente posta no contrato. Esses contratos são divididos,
consoante orientação da ANS, em contratos com patrocinador e contratos sem
patrocinador. Nesses últimos, a pessoa jurídica responsável pela agregação do grupo
não se responsabiliza pelo pagamento à operadora, de modo que os pagamentos são
feitos diretamente pelos consumidores. Por isso, a ANS entende que, nos planos
realizados com pessoa jurídica sem patrocinador, os índices dessa espécie de reajuste
devem ser ditados por ela.
Por outro lado, a ANS posiciona-se no sentido de não estabelecer os índices dos
contratos com pessoa jurídica patrocinadora, sendo esses caracterizados pelo fato de a
pessoa jurídica ser, total ou parcialmente, responsável pelo pagamento das
450
contraprestações pecuniárias à operadora de saúde. Nesse sentido, a ANS leva em
consideração uma suposta mobilidade desses contratos, pela inexistência de carência e
por haver oferta mais competitiva entre as operadoras, além da maior capacidade de
negociação dos contratantes que são empresas ou entidades sindicais.451
Há severas críticas às posturas da ANS nessa espécie de reajuste.
A primeira delas diz respeito ao conformismo diante da própria denominação do
reajuste anual como “decorrente de custos assistenciais”. Compreende-se que, por trás
dessa denominação, exista uma grande abertura para que os planos de saúde se utilizem
de índices de reajustes abusivos, sob o pálio de tal variação de custos, que não
correspondam exatamente à variação inflacionária no período mínimo de um ano. Essa
449
SCHIMITT, Cristiano Heineck. Reajustes em contratos de planos e seguros de assistência privada à
saúde. In: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais. Outubro/Dezembro/2006,
p. 60 e 61.
450
SCHIMITT, Cristiano Heineck. Reajustes em contratos de planos e seguros de assistência privada à
saúde. p.62.
451
MACERA, Andréa Pereira e SAINTIVE, Marcelo Barbosa. O mercado da saúde suplementar no
Brasil. Disponível em : www.fazenda.gov.br , p. 27, consultado em Outubro, 2004.
atitude das operadoras estaria a ofender frontalmente o Código de Defesa do
Consumidor em seu art. 51.452
Em segundo lugar, o fato de a ANS estabelecer tratamento diferenciado em
relação à sua atuação na fixação de índices de reajuste anual entre os planos realizados
com pessoa física e aqueles realizados com pessoa jurídica – também chamados de
planos coletivos – revela-se, de todo, despido de razão.
O que ocorre é que os consumidores dos planos coletivos têm os índices de
reajuste de seus contratos determinados pelas operadoras, de maneira unilateral e
esvaziada de regulação, o que só lhes prejudica. Inclusive, a política de omissão da ANS
com relação aos reajustes dos contratos coletivos acaba por criar ambiente propício para
que as operadoras desestimulem a comercialização de planos individuais, já que se
apresenta mais favorável indicar os índices ao seu alvedrio, livre de qualquer
intervenção. Outra conseqüência reside na criação de duas categorias distintas de
consumidores: aqueles que podem ser submetidos a um aumento a critério exclusivo das
operadoras e aqueles que se encontram submetidos à regulação da ANS e aos seus
critérios para a fixação do índice de reajuste cabível.
Nada justifica esta posição da ANS, já que a agência foi criada, na forma do art.
3º da Lei 9.961 de 2000, seja consentido frisar, tendo por ‘finalidade institucional
promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as
operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadoras e consumidores,
contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no País.’
Isto posto, parece ser atribuição da ANS regular os reajustes de todas as
operadoras de saúde, sem qualquer tipo de diferenciação, pois, mesmo quando o
contrato se estabelece com pessoa jurídica, ela é mera intermediária de uma relação
travada entre operadora e consumidores – funcionários, sindicalizados ou associados –
representados. Atente que a única exigência da ANS para esses reajustes é que lhes
sejam informados pela Internet em até 30 dias após a sua aplicação, como disposto no
art. 2º da Instrução Normativa nº 13 de 2006, proveniente da Diretoria de Normas e
Habilitação dos Produtos. O parágrafo 2º deste mesmo artigo ainda esclarece que, para
452
Art. 51 do código de Defesa do Consumidor:
“São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos ou
serviços que:
X- permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral.
XIII- autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato após sua
celebração.”
cada período de 12 meses, deverá a operadora comunicar à ANS se houve reajuste,
revisão ou manutenção da prestação pecuniária. 453
Ora, a regulação existe para incrementar a eficiência dos sistemas críticos, por
meio de métodos interventivos regulatórios que coíbam falhas sociais em relações
interprivadas consideradas sensíveis pelos legisladores, como, no caso, todo tipo de
assistência privada à saúde.454
Por fim, pesquisa datada de meados de 2006 anunciou que 76,2% dos novos
contratos de plano de saúde figuravam-se como coletivos e que esse percentual tenderia
a aumentar a cada ano. A pesquisa anunciou também que num universo de mais de 36
milhões de usuários de planos de saúde, mais de 30 milhões não tinham seus contratos
regulados pela agência.455 Portanto, a omissão da ANS quanto à regulação dos reajustes
de contratos coletivos abarcaria a maior parte do mercado destes, o que se avalia como
inadmissível, tendo em vista que a regulação de todo o setor é de sua competência.
Passando o exame para outro tipo de reajuste que ocorreria por aumento de
sinistralidade, convém assinalar que ele consiste na majoração da mensalidade por parte
da operadora em razão da variação a maior dos sinistros, tais como, cirurgias, doenças e
tratamentos médico-hospitalares, dentro de determinado período de tempo.
Considera-se tal reajuste ilegal, pois faz parte da atividade da operadora suportar
os riscos da atividade que exercita, dentre elas, fazer o cálculo das probabilidades e fixar
o valor das mensalidades, reajustáveis, como já se viu, uma vez ao ano.456 Transferir tais
riscos periódicos ao consumidor, mesmo se previstos em contrato, é colocá-lo em
desvantagem exagerada, o que constitui cláusula abusiva, proibida na forma do art. 51,
inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor.
De acordo com a Resolução Normativa nº 19 de 2002 ainda havia a
possibilidade de um reajuste “por revisão técnica” nos planos de saúde contratados até
1º de janeiro de 1999. No entanto, desde a 76ª reunião da Diretoria Colegiada da ANS,
realizada em 19 de outubro de 2003, decidiu-se não mais aplicar esse tipo de reajuste.
Resta claro, pelo exposto, que se ao consumidor idoso é vedada a majoração da
prestação pecuniária paga em razão do avanço de sua idade, ele terá, pelo menos, sua
453
Disponível no site www.ans.gov.br, consultado no dia 10.04.2007.
454
NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Direito regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 136.
455
Disponível em www.idec.org.br, consultado em 04.04.2007.
456
Conforme admitido pela Lei nº 9.069 de 1995, que criou o Real.
mensalidade aumentada anualmente. O reajuste anual parece suficiente para manter o
contrato atualizado com as variações inflacionárias, de tal modo que permita a
manutenção do equilíbrio econômico e financeiro da operadora de saúde.
Para o consumidor que possui gastos mais altos para manter sua existência digna
na terceira idade, trata-se de um avanço poder contar com certa estabilidade no que
concerne aos custos da proteção privada de sua saúde. Essa conquista do Estatuto do
Idoso coaduna-se, vale a pena acentuar, com as diretrizes constitucionais de igualdade
substancial e de solidariedade social que a sociedade brasileira, apesar de todas as
mazelas ainda existentes, passa a viver.
Portanto, parecem estar mutuamente obrigados, a prestadora do plano de saúde,
o Estado, a família, e a sociedade, a participar da realização dos sub-princípios da
proteção integral e prioritária segundo o melhor interesse dessas pessoas de idade
adiantada. A extensão que se dê aos sub-princípios da proteção integral e prioritária
guiados pelo princípio do melhor interesse da pessoa idosa dirige, evidentemente, não
só posturas do Estado, da família e da generalidade anônima das pessoas que compõem
a sociedade, mas também do espectro de sociedade representado pela cadeia de
consumidores jovens que integram o plano, o qual, por natureza de seguro em
modalidade especial disciplinada pela Lei 9. 656 de 1988, não perde seu caráter de
mutualidade que, em contratos de planos de saúde, implica mais: cooperação, divisão de
riscos entre os contraentes, numa palavra, solidariedade.457
Observa-se, pelo exposto, que pela incidência horizontal do princípio
constitucional da igualdade substancial num caso concreto, o princípio também
constitucional da solidariedade social ganha força, posto que ambos se complementam e
reforçam seu conteúdo marcadamente humanístico. Eles se ocupam menos da segurança
jurídica no mundo dos negócios que envolvem situações jurídicas existenciais – como a
prestação pelo plano de saúde a pessoas idosas – e implementam justiça contratual onde
há desigualdades de fato.
Em suma, tanto a eficácia horizontal irradiante do direito fundamental à saúde
nas relações interprivadas, quanto a lesão como técnica de repressão das cláusulas
457
PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalitá constituzionale, p. 340: “A questão [do idoso] se
coloca em termos de justiça distributiva e requer esforço do Estado baseado no princípio da solidariedade
e no pluralismo público-privado das intervenções estatais. Um esforço que diz respeito não
exclusivamente à República, mas também aos particulares individualmente e as formas associativas
alternativas e voluntárias, enquanto genuínas expressões do humanismo social.” [Traduziu-se livremente
do italiano e se acrescentou “do idoso”]
abusivas e a regulação legislativa e administrativa nos reajustes de prestações
pecuniárias pagas pelo consumidor idoso aos planos, relacionam-se com o fenômeno de
funcionalização do direito privado, que relativiza a esfera de autonomia privada nos
negócios jurídicos no sentido de poder visualizá-la não mais num sentido meramente
individuocentrista, mas também numa perspectiva funcional.
458
Tomou-se emprestado esse subtítulo cuja formulação originária pertence à AMARAL, Francisco.
Direito civil – introdução, p. 365.
459
Consoante BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 32: “Num primeiro momento afirmam-se os
direitos de liberdade, isto é, todos aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Estado e reservar para
o indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado.”
460
Assim, PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada, p. 8 e 9.
461
GOMES, Orlando. Contratos. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 22.
contratos de adesão firmados entre operadoras de planos de saúde e pessoas idosas, que
possuem necessidade de ajustar tais contratos da maneira que lhes são oferecidos. Não
se quer dizer, entretanto, que não exista autonomia privada por parte do consumidor e
da operadora, mas ela apresenta-se hoje mitigada, especialmente quando a vontade é
emitida pela pessoa idosa, notadamente hiper vulnerável em termos jurídicos.462
462
MARQUES, Cláudia Lima, ao versar sobre o mesmo tema utiliza a expressão ‘vulnerabilidade
especial’ para o consumidor pessoa idosa em Solidariedade na doença e na morte: sobre a necessidade
de “ações afirmativas” em contratos de plano de saúde e de planos funerários frente aos consumidor
idoso, p. 194: “A vulnerabilidade econômica destes aposentados e pessoas com mais de 60 anos é clara,
ainda mais frente a fornecedores organizados em cadeia [...] denominei esta vulnerabilidade de especial.
Efetivamente, parece-me que, nestes contratos cativos de longa duração com pessoas naturalmente mais
afetadas com problemas de saúde, como os idosos, é identificável uma vulnerabilidade especial do
consumidor ‘fraco’...”
463
Classicamente entendeu-se que a função de determinado negócio seria alcançada se houvesse
liberdade do sujeito jurídico, nos seguintes temos apresentados por PRATA, Ana. A tutela constitucional
da autonomia privada, p. 12 e 13: “.... Isto é, desvaloriza-se a função porque se confia que o seu
preenchimento resultará tão somente da liberdade do sujeito jurídico: a utilização dessa liberdade basta
para garantir o funcionamento em termos óptimos da vida econômica e social. [...] Finalmente, importa
acentuar que a tendência que progressivamente se veio afirmando, de tornar essencial para a definição do
negócio jurídico a ideia da função que ele desempenha, corresponde, por paradoxal que se afigure, a
algum subverter do conceito. Não porque, como já se disse, a noção clássica não contenha uma idéia de
função, mas porque essa noção é justamente contraditória com a que hoje tende a afirmar-se.”
464
PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalitá constitucionale, p. 341: “Ao enfrentar a
problemática do idoso, é preciso inspirar-se no critério que, reconhecendo o caráter central da pessoa,
realize a finalidade de ‘domesticar’, mediante a prevalência do político sobre o econômico, as férreas leis
econômicas intervindo sobre fatores sobre os quais se fundam essas leis. A proteção do idoso se traduz
em uma forma de proteção e promoção da pessoa .” [Traduziu-se livremente do italiano]
465
PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalitá constitucionale, p. 141-142.
De qualquer maneira, o contrato não subsiste esvaziado da vontade. Essa ainda
representa a força motriz de todo ajuste, compreendido também como esfera de
expressão do livre desenvolvimento da pessoa humana, uma das manifestações do
princípio constitucional da sua dignidade. Mas a vontade está limitada ao que a lei, com
seu intervencionismo, determina. E como se mantém atualíssima a máxima de que
“entre o forte e o fraco é liberdade que oprime e a lei que liberta”466, os olhos do
intérprete hão de se voltar para o que a Lei brasileira aduz no sentido de a liberdade de
contratar exercitar-se, na forma do art. 421 do Código Civil brasileiro, em razão e nos
limites da função social do contrato.
De acordo com o disposto no art. 421 do Código Civil brasileiro, cuja incidência
abrange todos os tipos de contratos – empresariais, de pessoas em situação de igualdade
material; civis, entre pessoas que não são empresárias nem consumidoras; de consumo,
entre consumidores e fornecedores em situação de desigualdade substantiva – estão
sujeitos e limitados à função social que desempenham. Cumpre esclarecer que, no ajuste
de fornecimento da saúde por planos privados, sua função social encontra-se também no
fornecimento adequado da saúde e não na obtenção de lucros astronômicos esquivando-
se de prestá-la por meio de cláusulas contratuais no mínimo discutíveis que, se impõem
grave prejuízo ao consumidor vulnerável, mais prejudiciais são para o consumidor idoso
hiper vulnerável.467
Busca-se uma nova roupagem para a autonomia privada de modo que ela esteja
agora funcionalizada à persecução de objetivos sociais e solidarísticos como impõem os
objetivos da Constituição da República de uma ordem livre, justa e solidária,
implantada também com base nos paradigmas do Estado Social. “A autonomia privada
466
Frase célebre do Padre Lacordaire, no original: ‘Entre le fort e le flaibe c`est la liberté qui opprime et
la loi qui affranchit’
467
Trata-se aqui da função social do contrato como imposição de deveres positivos aos contraentes na
forma defendida por MARTINS-COSTA, Judith, citando Almeno de Sá em Notas sobre o princípio da
função social dos contratos. In: Rervista Literária de Direito. Agosto/ Setembro/2004, p. 19: “... A partir
dessa concepção percebe-se decorrerem várias eficácias próprias ao art. 421, que podem ser repartidas
nos dois grandes grupos acima sinalizados, quais sejam, as eficácias intersubjetivas e eficácias
transubjetivas.
No primeiro grupo está a possibilidade de imposição de deveres positivos aos contratantes, pois o direito
subjetivo de contratar (direito de liberdade) já nasce conformado a certos deveres de prestação. A eficácia
positiva visa impulsionar ‘condutas dirigidas a um activo favorecimento e promoção de justificados
interesses da contraparte, o que vem adquirir um particular relevo, ainda que não exclusivamente, no
domínio das perturbações que possam ocorrer no decurso da execução do contrato.’”
como poder de autodeterminação não encontra mais justificativa e mérito em si: o juízo
de merecimento sobre o ato de autonomia privada é positivo apenas quando o ato
corresponda a uma função que o ordenamento considere útil e social”468
Isto posto, não há mais espaço para uma liberdade absoluta e os institutos de
direito privado não devem apenas arcar com as restrições provindas da ordem pública.
Além disso, eles devem ser restabelecidos conforme a legalidade constitucional.469
Assim “serão legítimas quaisquer medidas interventoras no âmbito da iniciativa
económica privada que tenham por objecto ou finalidade a salvaguarda dos direitos
fundamentais dos cidadãos.’470 Frise-se, pois, a necessária intervenção legislativa e
judicial no âmbito de contratos de plano de saúde realizados com a pessoa idosa, pelo
fato de o objeto desses ajustes tratar-se da prestação privada da saúde, direito de índole
fundamental e prioritário na terceira idade.
468
PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalitá constitucionale, p. 138. [traduziu-se livremente
do italiano]
469
TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In:
Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 21.
470
PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada, p. 208.
471
Caput do art. 170 da Constituição da República brasileira de 1988.
472
Nesse sentido, TEPEDINO, Gustavo. Contornos constitucionais da propriedade privada. In: Temas
de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 279: “A construção, fundamental para a compreensão
das inúmeras modalidades contemporâneas de propriedade, serve de moldura para uma posterior
elaboração doutrinária, que entrevê na propriedade não mais uma situação de poder, por si só e
abstratamente considerada, o direito subjetivo por excelência, mas ‘una situazione giuridica soggetiva
tipica e complessa’, necessariamente em conflito ou coligada com outras, que encontra a sua legitimidade
na concreta relação jurídica na qual se insere.”
Desse modo, a função social do contrato trazida a lume pelo Código Civil
insere-se no movimento de funcionalização dos direitos subjetivos que não mais
representam apenas o facultas agendi, um poder assegurado pela ordem jurídica.473 “É
também verdade que o direito subjetivo não é expressão ilimitada do poder individual,
capaz de se exercer com o sacrifício dos outros indivíduos ou de maneira absoluta.”474
Portanto, o poder de contratar, como expressão da autonomia privada, segue
funcionalizado às situações jurídicas existenciais que venha a estabelecer, com destaque
para as operações contratuais cujo objeto é a prestação da saúde, situação digna da
máxima tutela.475
Importa considerar nesse viés, que não se exaure na estrutura dos institutos
jurídicos, mas que vai ao encontro das suas funções, que o direito agora se opera como
instrumento de direção social,476 incorporado à sociologia jurídica, num sentido de
promover as condutas objetivadas.477.
473
Cf. MARTINS-COSTA, Judith e BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes teóricas do novo código
civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 158: “Atualmente admite-se que os poderes do titular de um
direito subjetivo estão condicionados pela respectiva função, e a categoria do direito subjetivo, posto que
histórica e contingente como todas as categorias jurídicas, não vem mais revestida pelo ‘mito
jusnaturalista’ que a recobria na codificação oitocentista, na qual fora elevada ao status de realidade
ontológica, esfera jurídica de soberania do indivíduo.”
474
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol I, p. 33.
475
Aponta-se para a observação de BETTI, Emílio. Teoria geral do negócio jurídico. Tomo I. Tradução
de: DE MIRANDA, Fernando. Coimbra: Coimbra Editora, 1969, p. 348: “O direito – e já antes do direito,
a consciência social – aprova e protege a autonomia privada, não na medida em que segue um capricho
momentâneo, mas naquela que em que persegue um objectivo e típico interesse para a modificação do
estado de facto e se dirige a funções sociais dignas de tutela.”
476
BOBBIO. Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução de:
VERSIANI, Daniela Beccaria. Barueri: Manole, 2007, p. 79.
477
LAFER, Celso. Apresentação à edição brasileira. In: DA Estrutura À Função: Novos Estudos De
Teoria Do Direito. Barueri: Manole, 2007, p. LII.
478
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-
constitucional. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 221: “São amplas e, logo, imprecisas as bases conceituais
da função social do contrato, ora amarradas à cláusula geral de solidariedade, ora à quebra do
individualismo, tendo em vista a igualdade substancial, ora a tutela da confiança dos interesses
envolvidos e do equilíbrio das parcelas do contrato.”
proprietário que não der à sua propriedade a devida função social acometem-se sanções
oriundas da Constituição, tais como, no âmbito da cidade, parcelamento ou edificação
compulsórios, imposto sobre a propriedade predial e territorial progressivo no tempo ou
mesmo desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública, assim como,
no campo, desapropriação mediante indenização com títulos da dívida agrária; ao
contratante que não observar o que se designou como função social do contrato, não há,
prevista em lei, qualquer punição pelo descumprimento do preceito.
Portanto, definir o significado de uma função social para o contrato é tarefa para
a doutrina e a jurisprudência desenvolverem. Nesse sentido, “devemos tentar recolher
da estrutura dos textos legais o que a letra não diz diretamente, a sua voz possível, para
assim iniciar a responsável construção da sua dogmática.” 480
479
Segundo LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. Tradução de: DE
FRADERA, Vera Maria Jacob. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 312: “A função permite o
exercício de faculdades como as que se reconhecem ao proprietário, mas ao mesmo tempo se impõem
deveres, como os que resultam do uso regular desse direito conforme a uma finalidade social. Esta tarefa
impõe ao titular o dever de cumprir ou de desenvolver uma atividade tendente a lograr o objetivo
proposto. Para tais fins a função outorga poderes, faculdades, direitos e deveres num feixe unificado pela
finalidade que lhe confere homogeneidade.”
480
MARTINS-COSTA, Judith. Notas sobre o princípio da função social do contrato, p. 17.
481
Nas palavras de MARTINS-COSTA, Judith. Notas sobre o princípio da função social do contrato, p.
17: “Tendo em conta, pois, uma perspectiva estrutural do Código Civil, constata-se, de imediato, que o
art. 421 indica três sendas que vale a pena trilhar: a) inaugura a regulação, em caráter geral do direito
contratual; b) refere a função social como limite da liberdade de contratar; e c) situa a função social como
fundamento da mesma liberdade.”
Direito Privado, através da interferência do Estado nas relações havidas entre os
particulares, em atenção às exigências do bem comum, do interesse coletivo.”482
482
HIRONAKA, Giselda M. Fernandes Novaes. A função social do contrato. In: Revista de Direito Civil.
Ano 12, nº 45, julho/setembro/1988, p. 147.
483
DA SILVA, Luis Renato Ferreira. A função social do contrato no novo código civil e sua conexão com
a solidariedade contratual. In: O Novo Código Civil e a Constituição. Organizador: SARLET, Ingo
Wolfgang, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.137.
484
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 380.
485
MARTINS-COSTA, Judith. Notas sobre o princípio da função social do contrato, p. 20.
486
Posição sustentada por BUENO DE GODOY. Claudio Luiz. Função social do contrato: os novos
princípios contratuais. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 110-130, passim, da qual se comunga.
487
Cf. NALIN, Paulo. A função social do contrato no futuro código civil brasileiro. In: Revista de Direito
Privado. Ano 3, nº 12. Outubro/ Dezembro/2002, p. 56.
contratual”.488 Aqui considera-se função como “um poder de agir sobre a esfera jurídica
alheia, no interesse de outrem, jamais em poder do próprio titular”489 e social o que diz
respeito a um interesse socialmente útil, no caso de contratos de planos de saúde
pactuados com a pessoa idosa, de uma utilidade existencial baseada na essencialidade
de seu objeto.490
488
MARTINS-COSTA, Judith. Notas sobre o princípio da função social do contrato, p. 19.
489
Formulação de COMPARATO, Fábio Konder. Direito empresarial: estudos e pareceres. São Paulo:
Saraiva, 1990, p. 9.
490
TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloisa Helena, BODIN DE MORAES, Maria Celina e outros.
Código civil interpretado conforme a constituição da república. Vol II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
14: “É também com base na função social do contrato que se postula uma diferenciação entre contratos à
luz da essencialidade do bem de cuja aquisição ou utilização se trate.”
491
ALEXY. Robert. Teoria de los derechos fundamentales, p. 86.
492
Consoante AMARAL, Francisco. Os princípios jurídicos na relação obrigatória. In: Revista Forense.
Rio de Janeiro. Vol. 381. Setembro/Outubro de 2005, p. 75: “No campo das obrigações, sua principal
expressão [o autor refere-se à expressão da autonomia privada] está no art. 421, que reafirma a liberdade
contratual, desde que exercida nos limites da função social do contrato, o que é uma das manifestações da
socialidade do direito e, por isso mesmo, um dos limites intrínsecos ao exercício dos direitos subjetivos.”
setembro de 2002, o enunciado de número 23, de acordo com o qual “a função social do
contrato prevista no artigo 421 do novo Código Civil não elimina o princípio da
autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes
estejam interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da
pessoa humana.”
493
TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloisa Helena, BODIN DE MORAES, Maria Celina e outros.
Código civil interpretado conforme a constituição da república. Vol II, p. 14: ‘Sustenta-se que há uma
função social específica a ser reconhecida a contratos que tenham por objeto, por exemplo, serviços
essenciais e que é essa função que justifica, em última instância, a tutela específica que se criou, tanto na
lei, quanto na jurisprudência, aos serviços essenciais.’
494
COMPARATO, Fábio Konder. Direito empresarial: estudos e pareceres, p. 6-7.
495
Consoante BUENO DE GODOY. Claudio Luiz. Função social do contrato: os novos princípios
contratuais, p.121.
jurídica, que se relacionam com o contrato ou são por ele atingidos.
Tais interesses dizem respeito, dentre outros, aos consumidores, à
livre concorrência, ao meio ambiente, às relações de trabalho.”496
A boa-fé não deve ser definida de maneira geral, pois tal tentativa seria incapaz
de abarcar o alcance e a riqueza de sua noção.497 “A boa fé traduz um estágio
juscultural, manifesta uma Ciência do Direito e exprime um modo de decidir próprio de
certa ordem sócio-jurídica.”498
Relata-se que, a princípio, o Direito Romano fez referência apenas a fides, que
significa fé499 e, posteriormente, houve uma evolução tanto no que diz respeito à
expressão, como no que diz respeito ao seu significado, “da fides, passou-se à fides
bona e à bona fides.”500 Ao longo de séculos, a boa-fé passou por vários processos de
diluição e de difusão, razão pela qual possui uma ambivalência e capacidade de
renovação que permanece até os nossos dias.501
Atualmente, a doutrina divide a boa-fé em subjetiva e objetiva. A má-fé
constitui-se a antítese da boa-fé subjetiva, pois revela a intenção de lesar alguém. A boa-
fé subjetiva consiste num estado de ânimo do sujeito. “Diz-se ‘subjetiva’ justamente
496
TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do código civil
de 2002. In: A Parte Geral do Novo Código Civil: Estudos Na Perspectiva Civil-Constitucional.
Coordenador: TEPEDINO, Gustavo. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. XXXII. [Grifou-se]
497
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina,
1997, p. 17-18.
498
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil, p. 18.
499
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil, p. 54.
500
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil, p. 71.
501
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil, p. 147
porque, para sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação
jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção.”502
A boa-fé subjetiva comporta um estado de conhecimento ou desconhecimento
que serve para aplicação em temas concernentes ao Direito das Coisas, tais como, à
matéria de frutos ou benfeitorias, ou em relação à usucapião, por exemplo.503
Já a boa-fé objetiva consiste em atitudes de fidelidade, honestidade, retidão e
probidade. Não se trata de um simples estado de ânimo, mas de ações próprias do
homem reto nas suas condutas no âmbito social. “Traduz um valor ético que se exprime
em um dever de lealdade e correção no surgimento e desenvolvimento de uma relação
contratual.”504 Para se observar se há boa-fé objetiva “levam-se em consideração os
fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se
admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo.”505
Agir de boa-fé objetiva equivale a agir lealmente em relação ao outro que é seu
parceiro contratual, considerando suas justas expectativas depositadas no vínculo.
No Brasil a boa-fé objetiva apresenta-se codificada. Foi tratada pioneiramente
no Código de Defesa do Consumidor como princípio norteador de toda interpretação na
seara consumerista no art. 4º, inciso III, que cuida de viabilizar os princípios em que se
funda a ordem econômica, sempre com base na boa-fé, e no art. 51, inciso IV, que
considera abusivas as cláusulas incompatíveis com a boa-fé.
Atualmente, a boa-fé está contida também no Código Civil brasileiro de 2002,
no artigo 113, como regra de interpretação, com a seguinte disposição: “Os negócios
jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da sua
celebração.”; no artigo 187, que normatiza o abuso do direito, definindo limites:
“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé ou
pelos bons costumes” e no artigo 422, criando deveres, ao dispor: “Os contratantes são
502
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional.
São Paulo: RT, 2000, p. 411.
503
DE AZEVEDO, Antônio Junqueira. Responsabilidade pré-contratual no código de defesa do
consumidor: estudo comparativo com a responsabilidade pré-contratual no direito comum. In: Revista de
Direito do Consumidor. Vol. 18. Abril/Junho/1996, p. 25.
504
AMARAL, Francisco. A interpretação jurídica segundo o código civil. In: Revista do Tribunal
Regional Federal da 1ª Região. Vol. 1. Nº 1. Outubro/Dezembro de 1989, p. 37.
505
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, p.
411.
obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os
princípios de probidade e boa-fé.”506
À boa-fé objetiva atribuem-se três funções: de cânone hermenêutico-integrativo,
de norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos e de norma de criação de
deveres jurídicos.507
Como norma de criação de deveres jurídicos a boa-fé objetiva reponsabiliza-se
pelo fiel cumprimento dos ‘chamados deveres principais, ou deveres primários da
prestação – constituindo estes o núcleo da relação obrigacional e definindo o tipo
contratual’508 bem como dos deveres secundários509 e ainda os chamados deveres
laterais, anexos ou instrumentais,510 em cuja classificação inserem-se os deveres de
informação.
A informação adequada impõe ao fornecedor, de maneira geral, o dever de
prestar esclarecimentos claros, corretos, de maneira ostensiva, em português, sobre a
prestação da saúde que oferece ao consumidor, bem como de outras características de
506
Embora a boa-fé objetiva tenha surgido com o advento do Código de Defesa do Consumidor mister
salientar que ela já era prevista como regra de interpretação na esfera contratual no artigo 131 do Código
Comercial e na opinião de vários juristas. Veja-se, a propósito, TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA,
Heloisa Helena, BODIN DE MORAES, Maria Celina e outros. Código civil interpretado conforme a
constituição da república. Vol II, p. 15: “A boa-fé como princípio contratual fora consagrada
expressamente no CDC (arts 4º, III e art. 51, IV). Muito antes, porém, a boa-fé encontrava-se prevista no
art. 131 do CCom como regra de interpretação contratual. A despeito da inexistência de preceito genérico
que consagrasse o dever de agir com boa-fé no âmbito das relações contratuais em geral, a doutrina
apontava a incidência da boa-fé em todo e qualquer contrato. Em obras dedicadas aos contratos, muitos
autores definiam, mesmo no sistema do Código anterior, a boa-fé como princípio cardeal dessa
disciplina.”
507
Essa proposição foi elaborada por WIEACHER, Franz. El principio general de la buena fé. Tradução
de: LOS MOZOS. Jose Luis. Madrid: Civitas, 1982, e seguida por vários juristas brasileiros.
508
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, p.
437.
509
Segundo MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo
obrigacional, p. 438: “Os deveres secundários, por sua vez, subdividem-se em duas grandes espécies: os
deveres secundários meramente acessórios da obrigação principal, que se destinam a preparar o
cumprimento ou assegurar a obrigação principal (v.g., na compra e venda o dever de conservar a coisa
vendida ou de transportá-la, ou o de embalá-la), e os deveres secundários com prestação autônoma, os
quais podem revelar-se como verdadeiros sucedâneos da obrigação principal (como o dever de indenizar
resultante da impossibilidade culposa da prestação, ou o dever de garantir a coisa, mediante a prestação
de garantia autônoma, tal qual o contrato de garantie à la première demande, conhecido no comércio
internacional), podendo ainda ser autônomos ou coexistentes com o dever principal (v.g., o dever de
indenizar, por mora ou cumprimento defeituoso, que acresce à prestação originária).”
510
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, p.
438. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor, p. 220, utiliza para a
denominação dos direitos anexos também a palavra secundários.
como ela será prestada: o alcance e os limites de seu plano de saúde. Ademais, os riscos
da pactuação devem se apresentados com transparência por meio de relatórios
formulados a partir de situações já averiguadas inclusive, no que toca o preço desse
serviço, para que o consumidor pactue com a maior segurança possível do que poderá e
do que não poderá auferir, desde que o “não poderá” não seja uma cláusula abusiva,
passível de desconsideração.
Os deveres de informação tratam-se de verdadeiras obrigações no sentido de que
“a relação contratual obriga não somente ao cumprimento da obrigação principal (a
prestação), mas também ao cumprimento das várias obrigações acessórias ou dos
deveres anexos àquele tipo de contrato”511
Quer-se dizer, portanto, que no contrato de plano de saúde é dever da operadora
não só prestar o serviço de saúde, mas também atender aos deveres anexos de
informação que são próprios deste ajuste, tais como, no período pré-contratual,
conhecido como fase das tratativas: o tipo de plano, a rede de médicos, dentistas,
clínicas, hospitais, laboratórios conveniados, os riscos, a qualidade do serviço, a
cobertura do plano, assim entendidos seu período de carência e suas exclusões de
responsabilidade com a máxima clareza, atentando para a hiper vulnerabilidade desse
consumidor que, se na terceira idade resolve pactuar um contrato dessa natureza, está
mesmo a necessitar da tutela de sua saúde. 512
Observando a obrigação como um processo, todos os dados oferecidos como
informação durante a fase pré-contratual deverão acompanhar a obrigação, integrando-
a, e hão ser, tal e como propostos, oferecidos na fase de execução como meio de
impedir a violação do princípio da transparência, decorrente da boa-fé objetiva e
previsto no art. 6º, incisos III e IV do Código de Defesa do consumidor como direito
básico. Assim, o consumidor que desde a juventude se assegurou da doença por meio de
511
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor, p. 220.
512
Segundo o magistério de MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor, p.
227: “Esta inversão de papéis, isto é, a imposição pelo CDC ao fornecedor do dever de informar sobre o
produto ou o serviço que oferece (suas características, seus riscos, sua qualidade) e sobre o contrato que
vinculará o consumidor, inverteu a regra do caveat emptor (que ordenava ao consumidor uma atitude
ativa: se quer saber detalhes sobre o plano de saúde, informe-se, descubra o contrato registrado no Rio de
Janeiro ou em São Paulo...atue ou nada poderá alegar) para a regra do caveat vendictor (que ordena ao
vendedor ou corretor de planos de saúde que informe sobre o conteúdo deles, riscos, exclusões, limitações
etc.”
plano privado de saúde merece, nessa etapa da vida, auferir informações contínuas e
estritamente adequadas à vulnerabilidade de sua idade pelo fornecedor.
Faz-se imprescindível firmar, que, por suas condições intrínsecas, o consumidor
idoso também se encontra hiper vulnerável face à publicidade enganosa ou abusiva
advinda dos planos de saúde.513
De tal maneira, o princípio da boa-fé objetiva como dever de informar
adequadamente a pessoa idosa apresenta-se essencial nos contratos de plano de saúde
visto que, sobrelevam nesses ajustes, a causa fim do contrato e a necessária proteção
contra condutas que firam o direito desse consumidor especial – hiper vulnerável em
questões relacionadas à assistência privada de sua saúde e mais suscetível às práticas
emocionais e agressivas de venda – de estar plenamente ciente de todas as condições do
ajuste celebrado para que não se deixe enganar e aufira a necessária tutela jurídica do
seu direito fundamental e prioritário à saúde também na esfera privada.
À guisa de conclusão da análise da proteção da saúde do idoso prestada pela
iniciativa privada, cumpre anotar que o princípio do seu melhor interesse só alcançará
concretude se as operadoras de planos de saúde se pautarem nos mandamentos do
Estatuto do Idoso que coloca o ator social que protege como destinatário de
prerrogativas absolutamente legítimas.
É necessário também que essa concepção seja a dos jovens e adultos que
compõem as carteiras de tais planos pois, ao fim e ao cabo, chegarão à velhice gozando
das mesmas prerrogativas que o princípio do melhor interesse do idoso provê.
513
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor, p. 391: “Apesar de não
mencionar isso expressamente, o art. 37 do CDC preocupa-se com o idoso exposto à publicidade, como
prática comercial (art. 29 do CDC). A publicidade discriminatória contra idosos é proibida, como aquela
que ‘seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde e
segurança’ (art. 37, § 2º do CDC). Como consumidor equiparado, o idoso pode ser induzido em erro (§ 1º
do art. 37), como demonstra caso judicial envolvendo denominação de clínica geriátrica que incluiu, em
seu nome, nome de hospital famoso no local de comercialização de seus serviços. Assim ementa:
‘Propriedade industrial-Marca nominativa-Nome de hospital-Uso da mesma expressão em nome
comercial de sociedade geriátrica-Antecipação de tutela no sentido de abstenção-Agravo de Instrumento.
A geriatria é um ramo da medicina que se ocupa com as doenças dos idosos. Assim, quando uma
sociedade comercial, em seu nome, usa o vocábulo ‘geriátrico’, sucedido de expressão idêntica ao nome
de um hospital, em princípio induz, perante o público, que a sociedade comercial é uma entidade ligada
ao hospital, porquanto se ocupa com atividade afim. Agravo desprovido’ (TJRS, 5ª Câm. Cív., AGI
598023299, rel. Dês. Irineu Mariani, j. 26.03.1998.)Em outras palavras, as exigências de boa-fé em
relação ao consumidor idoso são mais altas, há que se reconhecer sua vulnerabilidade em matéria de
saúde (por exemplo, limitando a publicidade de remédios e dos profissionais da medicina), há que
reconhecer que é mais suscetível às práticas emocionais e agressivas de venda, muitas proibidas pelo
art. 39 do CDC.” [grifou-se]
5º Capítulo: A Política Nacional do Idoso e o Estatuto do Idoso como precursores
de movimentos democráticos a serem desenvolvidos no Estado brasileiro em prol
dos direitos da pessoa idosa
1- O exercício da cidadania do idoso no estado democrático de direito
A Política Nacional do Idoso e o Estatuto do Idoso constituem marcos
legislativos para a tutela da pessoa idosa no Brasil.
O Estatuto, posterior à Política Nacional do Idoso, surge a partir de movimentos
sociais que visam a garantir cuidado especial ao grupo de pessoas vulneráveis pelo
estado adiantado da idade que lhes torna mais frágeis biopsicosocialmente.514 Sua
514
Para GONH, Maria da Glória Marcondes. Movimentos Sociais, ongs e terceiro setor: perspectivas
para a solução das questões da velhice no Brasil. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia. Organizadores:
DE FREITAS, Elizabete Viana, PY, Ligia, NERI, Anita Liberanesso, CANÇADO, Flávio Aluízio Xavier,
GORZONI, Milton Luiz, DA ROCHA, Sônia Maria. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002, p. 1023:
“Movimentos sociais são ações coletivas de caráter sociopolítico, construída por atores pertencentes a
finalidade não é atribuir à pessoa idosa superioridade jurídica em relação às demais.515
Pelo contrário. O que se objetiva é colocar a pessoa idosa no mesmo nível de
possibilidades jurídicas das jovens, pois, com a idade avançada, o ser humano perde, em
grande medida, a vitalidade, tornando-se mais fragilizado não só no campo pisicofísico,
mas também socialmente.516 O Estatuto do Idoso pretende assegurar à pessoas dessa
faixa etária, situação jurídica e social de igualdade em relação às demais e pretende,
pelos procedimentos que contém positivados, dar eficácia social às aludidas
situações.517
diferentes classes e camadas sociais. Eles politizam suas demanadas e criam um campo político de força
social na sociedade civil. Suas ações estruturam-se a partir de repertórios criados sobre temas e problemas
em situações de conflitos, litígios e disputas. As ações desenvolvem um processo social e político-cultural
que cria uma identidade coletiva para o movimento, a partir de interesses comuns de seus participantes.
Essa identidade que decorre da força do princípio da solidariedade é construída a partir da base
referencial de valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo.”
515
Observe-se, seguindo o raciocínio de GONH, Maria da Glória Marcondes. Movimentos Sociais, ongs e
terceiro setor. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia, que o Estatuto do Idoso provém de movimentos
sociais com objetivo de inclusão de grupos vulneráveis de toda ordem, p. 1022 : “O Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA), a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), a Reforma Sanitária que levou à
criação do SUS (Sistema Único de Saúde), a Política Nacional do Idoso, a criação de dos diferentes
conselhos diretores de políticas dos direitos da mulher, das pessoas portadoras de deficiências e dos
idosos, a criação dos conselhos nacionais, estaduais e municipais dos idosos e a implementação de outras
estruturas de mediação entre o Estado e a sociedade civil são exemplos vivos da conquista e da força da
participação organizada dos cidadãos. Trata-se, ademais, da geração de espaços de negociação e de
equacionamento de conflito de interesses, reflexo do surgimento de uma cultura participativa nova na
sociedade brasileira.”
516
A vulnerabilidade da pessoa idosa encontra-se não só na sua maior propensão física à doença, mas
também na sua fragilidade psíquico-social que advém da certeza da proximidade da morte. Nesse sentido,
PY, Ligia e TREIN, Franklin. Finitude e infinitude: dimensões do tempo na experiência do
envelhecimento. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia, p. 1013: “Apontamos para a velhice como um
momento especial da vida do indivíduo, quando se encontra em condições de vulnerabilidade frente e a
maiores possibilidades de adoecer, não mais com a consciência da finitude, apenas, que lhe consagrou a
maturidade, mas, agora, com a consciência da própria morte.”
517
Segundo SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. p. 223 a 225, a eficácia da
norma vigente pode ser vista pelo viés jurídico e pelo viés social estando ambas, contudo, em íntima
conexão: “ ... Podemos definir a eficácia jurídica como a possibilidade (no sentido de aptidão) de a norma
vigente ( juridicamente existente) ser aplicada aos casos concretos e de – na medida de sua aplicabilidade
– gerar efeitos jurídicos, ao passo que a eficácia social ( ou efetividade) pode ser considerada como
englobando tanto a decisão pela efetiva aplicação da norma ( juridicamente eficaz ), quanto o resultado
concreto decorrente – ou não – dessa aplicação. [...] Na verdade, o que não se pode esquecer é que o
problema da eficácia da eficácia do Direito engloba tanto a eficácia jurídica, quanto a social. Ambas – a
exemplo do que ocorre com a eficácia e a aplicabilidade – constituem aspectos diversos do mesmo
fenômeno, já que situados em planos distintos ( o do dever-ser e o do ser ), mas que se encontram
intimamente ligados entre si, na medida em que ambos servem e são indispensáveis à realização integral
do Direito.”
Por meio dos mecanismos trabalhados nesse capítulo pretende-se alcançar não só a aplicabilidade da
norma no sentido da eficácia jurídica, mas a aplicabilidade da norma no que tange aos direitos da pessoa
idosa a lhe dar, como resultado concreto, eficácia social.
Ao tempo que o Estatuto protege o idoso dos agravos ocasionados pela idade
avançada – que pode lhe acarretar debilidades pelo seu reduzido vigor físico, incluindo,
por vezes, enfermidades; das agressões que lhes são dirigidas nos ambientes público e
privado, nesse último, especialmente nas relações familiares e contratuais, – não pode
ser considerado uma Lei assistencialista.518 Observa-se antes, que o Estatuto possui
matizes protecionistas que, a fim de remover obstáculos ao efetivo desenvolvimento da
pessoa idosa, atribuem a ela alto grau de autonomia para traçar os rumos de sua vida
com liberdade de escolha na forma dos já analisados arts. 2º e 10 que implicam
responsabilidade ainda que na doença, conforme dispõe o art. 17.519
Assim é que, informado pelos princípios constitucionais da dignidade da pessoa
humana e da cidadania, o referido Estatuto confirma tais princípios em seus arts. 2º e 3º,
ao despertar e estimular os idosos a buscar tratamentlo compatível com sua dignidade
de seres humanos numa atitude pró ativa que, no ambiente público, desenvolve-se a
partir da democracia participativa, no exercício da cidadania.520
518
BORGES, Cláudia Maria Moura. Gestão participativa em organizações de idosos: instrumento para a
promoção da cidadania. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia. Organizadores: DE FREITAS, Elizabete
Viana, PY, Ligia, NERI, Anita Liberanesso, CANÇADO, Flávio Aluízio Xavier, GORZONI, Milton
Luiz, DA ROCHA, Sônia Maria. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002, p. 1037 defende posturas da
sociedade compatíveis com o direito fundamental à liberdade e a autonomia das pessoas expressos na
Constituição da República e também no Estatuto do Idoso, especialmente no art 10 § 2º. A autora diz:
“Mudanças sociais significativas podem derivar da alteração de conceitos arraigados que, ao preconizar
uma postura paternalista e assistencialista, dificultam a inserção do idoso na sociedade. Ao contrário, a
busca da consolidação de uma política de direitos, onde o idoso é considerado como um cidadão com
direitos e deveres, significa em investir em sua melhor adaptação social.” Dispõe o § 2º do art. 10 da Lei
10.741 de 1º de outubro de 2003; “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física,
psíquica e moral, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, de valores, idéias e
crenças, dos espaços e dos objetos pessoais.” [grifou-se]
519
PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalitá constituzionale, p. 340: “As diversas normas, que
se inspiram na idade avançada, devem para tanto ser dotadas de uma justificativa racional, de modo tal a
assumir a devida relevância, nos diversos setores do ordenamento jurídico, como intervenções estatais
destinadas a remover eventuais obstáculos de fato ao efetivo desenvolvimento do idoso.” [Traduziu-se
livremente do italiano]
520
A concepção de cidadania para as pessoas idosas no ambiente contemporâneo é reconstruída para além
do direito do cidadão de votar e ser votado. Trata-se de uma nova cidadania ou de uma cidadania
redefinida, de forma que pessoas idosas participam de movimentos sociais (lutas políticas) em busca do
direito à igualdade na sua alteridade em face das pessoas jovens, como mostra, a partir de um discurso
genérico, ou seja, não elaborado especialmente para idosos, DAGNINO, Evelina. Cultura, cidadania e
democracia: a transformação dos discursos e práticas na esquerda latino-americana. In: Cultura e
Política Nos Movimentos Sociais Latino-Americanos: Novas Leituras. Organizadores: ALVAREZ, Sonia
E., DAGNINO, Evelina, ESCOBAR, Arturo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000, p. 86: “A nova
cidadania assume uma redefinição da idéia de direitos, cujo ponto de partida é a concepção de um direito
a ter direitos. Essa concepção não se limita a provisões legais, ao aceso a direitos definidos previamente
ou à efetiva implementação de direitos formais abstratos. Ela inclui a invenção/criação de novos direitos,
que surgem de lutas específicas e de suas práticas concretas. Nesse sentido, a própria determinação do
significado de ‘direito’, e a afirmação de algum valor ou ideal como direito, são, em si mesmas, objeto de
A obviedade de que o Estatuto do Idoso apresenta avanço legislativo nas
questões referentes aos direitos das pessoas idosas não pode encobrir a necessidade de
se desenvolver uma dogmática a partir dele, voltada especialmente para a eficácia social
de seu conteúdo normativo, especialmente no cuidado em que o Poder Público e a
Iniciativa Privada devem destinar à saúde da pessoa idosa. Considera-se errôneo supor
que a vigência de uma Lei, por si, faça com que ela seja efetivada em sua amplitude
teleológica e sistemática em prol das pessoas idosas. Note-se que tal grupo vulnerável
mereceu específica atenção em sede legislativa pela evidente marginalidade na qual se
encontra e a promulgação da citada Lei é fruto de movimentos sociais que visam,
também por intermédio do Direito, à inclusão desse segmento da população brasileira.
Objetiva-se que, por meio do Estatuto do Idoso afinado com os princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da liberdade positiva, da
igualdade material e da solidariedade social, outras ações sejam implementadas nas
esferas públicas e privadas em busca da emancipação jurídico-social da pessoa idosa.521
Nesse sentido, o Estatuto do Idoso apregoa, em seu art. 46, que a política de
atendimento ao idoso não será realizada apenas por meio de ações governamentais, mas
pelo conjunto articulado delas com outras não governamentais da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios. As políticas que visam a atender as necessidades
dos idosos são dever do Estado e da sociedade, razão pela qual a Política Nacional do
Idoso, que traçou pioneiramente as ações a serem desenvolvidas para esse fim,
continuam em vigor na forma disposta pelo art. 47 do Estatuto do Idoso. 522 E a Política
lutas políticas. [...] Além disso, essa redefinição inclui não somente o direito à igualdade, como também o
direito à diferença, que especifica, aprofunda e amplia o direito à igualdade.”
521
Dar eficácia social às Leis que preconizam mudança no status quo têm sido, há muito, preocupação de
juristas e sociólogos. Antes do Estatuto do Idoso já havia a Constituição da República de 1988 e leis
protecionistas dos vulneráveis pela idade avançada, como a 8.842 de 1994 que, na forma do art. 53 do
Estatuto do Idoso, continuou a vigorar supervisionando, acompanhando, fiscalizando e avaliando políticas
nacionais para as pessoas idosas, as quais sempre encontraram dificuldades em concretizar-se. Nesse
sentido, BORGES, Cláudia Maria Moura. Gestão participativa em organizações de idosos, p. 1038: “A
Constituição Federal de 1998 veicula um conceito de cidadão que não estava presente nas cartas
anteriores, pois considera a assistência social , a previdência social e a assistência à saúde direitos de todo
cidadão. A partir dos novos princípios constitucionais, tanto a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS
– Lei 8742/93), como a Política Nacional do Idoso (PNI – Lei 8842/94) reafirmam estes conceitos,
considerando o idoso como cidadão com direitos e deveres. Para que essa legislação possa efetivamente
contribuir para a melhoria das qualidades de vida dos mais velhos, é preciso traduzi-la em políticas
públicas e sociais que possibilitem o alcance dos objetivos de proteção e de inclusão social deste
contingente populacional.”
Compreende-se que o grande desafio de agora, consiste em dar ampla e irrestrita eficácia social não só as
políticas traçadas pela Lei 8.884 de 1994, mas também ao Estatuto do Idoso.
522
Dispõe o art. 47 do Estatuto do Idoso: ‘ São linhas de ação da política de atendimento:
Nacional do Idoso tem por finalidade claríssima, plasmada em seu art. 1º “assegurar os
direitos sociais do idoso, criando condições para promover sua autonomia, integração e
participação efetiva na sociedade.” Essa perspectiva de pessoas idosas autônomas no
que diz respeito às suas individualidade e socialidade é confirmada pelas diretrizes da
Política Nacional do Idoso, que em seu art. 3º, inciso I, aponta para a garantia dos seus
direitos de cidadania e de participação na comunidade como dever da família, da
sociedade e do Estado. Mais: a referida Lei também elege como finalidade o dever do
idoso de participar das políticas em seu benefício.
Significa que a pessoa idosa não é uma destinatária inerte das ações em sua
promoção, mas sim participativa, capaz de argumentar, argüir, contra-argumentar,
convencer e justificar suas proposições de forma atuante. Dessa maneira deve ser
compreendido o inciso IV, do referido artigo 3º da Política Nacional do Idoso: “o idoso
deve ser o principal agente e o destinatário das transformações a serem efetivadas
através desta política.” Corroborando com essa diretriz, o 3º artigo do Estatuto do Idoso
refere-se expressamente à efetivação, com absoluta prioridade, do direito à cidadania
das pessoas idosas.
Nesse contexto, torna-se essencial preparar o espaço público para que o cidadão
idoso nele possa transitar e se desenvolver.523 O Estado brasileiro constitui-se
democrático524 e de direito.525 Mas a democracia não se revela de uma só maneira, haja
(2) é um Estado em que o direito identifica coma ‘razão do Estado’ imposta e iluminada por ‘chefes’; (3)
é um estado pautado por radical injustiça e desigualdade na aplicação do direito.”
526
FINLEY, M. I. Política. In: O Legado da Grécia: Uma Nova Avaliação. Organizador: FINLEY. M. I.
Tradução de: DE ALMEIDA, Yvette Vieira Pinto. Brasília: UNB, 1998, p. 32.
527
WINTON, R. I. e GARNSEY, P. Teoria Política. In: O Legado da Grécia: Uma Nova Avaliação.
Organizador: FINLEY. M. I. Tradução de: DE ALMEIDA, Yvette Vieira Pinto. Brasília: UNB, 1998, p.
49.
528
FINLEY, M. I. Política. In: O Legado da Grécia: Uma Nova Avaliação, p. 38.
529
FINLEY, M. I. Política. In: O Legado da Grécia: Uma Nova Avaliação, p. 45.
diferentes posições que cada membro do povo gozava,530 para muitos estudiosos, na
polis Atenas a democracia se desenvolveu de forma sofisticada e complexa, usando
inclusive da via participativa.531
Neste contexto, verifica-se outro legado de Atenas: o de uma igualdade formal,
onde os homens, em verdade, não são iguais como participantes do processo
deliberativo, bem como não apresentam condições de vida assemelhadas. Registra-se
essa faceta da democracia ateniense, principalmente porque, ainda hoje, por volta de
dois mil e quinhentos anos após a relatada experiência, várias formas de governo
mantinham, ou ainda mantêm as mulheres fora do debate democrático. Os negros e
pardos também sofrem por desigualdades explícitas, resquícios dos regimes
escravocratas que, até pouco tempo, vigoravam no continente americano, inclusive no
Brasil. Aliás, genericamente, a desigualdade entre os homens é problema enfrentado não
só por mulheres e afro-descendentes, mas por um contingente muito maior de
vulneráveis que se destacam em situações concretas nas democracias da atualidade. A
fim de confirmar esta assertiva, basta lembrar da situação de inferioridade social
enfrentada também por índios, homo-afetivos, deficientes físicos e mentais,
desempregados, menores abandonados, e pessoas idosas, objeto específico desse
trabalho, porque fazem parte de minorias qualitativas em virtude de suas fragilidades
específicas no âmbito pessoal e também no contexto social do Brasil contemporâneo.
Contra a pessoa idosa alia-se ao preconceito e à marginalização com que a sociedade
oprime todas essas minorias, sua situação de vulnerabilidade psicofísica decorrente da
própria idade.
Sobremaneira importante, e oriundo do legado grego, revela-se também a
exaltação que os vivos faziam dos mortos de guerras, para preservar o civismo dos
530
Observe-se que HORNBLOWER, Simon. Creacioony desarrollo de las instituiciones democráticas en
la antigua Grecia. In: Democracia. El Viaje Inacabado, Organizador: DUNN J., Barcelona: Tusquests
Editores, 1995, p. 25, atenta para o fato de que essa era uma democracia de excluídos, tais como as
mulheres e os escravos.
531
HORNBLOWER, Simon. Creacioony desarrollo de las instituiciones democráticas en la antigua
Grecia, p. 13. Também MARCONDES, Danilo. Iniciação da história da filosofia: dos pré-socráticos a
Wittgenstein. 7 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 41, aponta para a forma de democracia
desenvolvida na Grécia por volta de 500 a. C. : “A democracia representa exatamente a possibilidade de
se resolverem, através do entendimento mútuo, e de leis iguais para todos, as diferenças e divergências
existentes nessa sociedade em nome de um interesse comum. As deliberações serão tomadas, assim, em
reuniões de cidadãos, as assembléias. Isso significa que as decisões são tomadas por consenso, o que
acarreta persuadir, convencer, justificar, explicar. [...] a linguagem, o diálogo, a discussão rompem com a
violência, o uso da força e do medo, na medida em que, em princípio, todos os falantes têm no diálogo os
mesmos direitos (isegoria): interrogar, questionar, contra-argumentar.”
vivos, e, nesse sentido, a virtude cívica aparece indissociável do regime político, ou
seja, da esfera pública da vida das pessoas na polis.532
O civismo também está presente na tradição republicana renascentista, em que
virtude significa patriotismo e espírito público, ou seja, o modelo republicano busca o
bem da comunidade acima do bem pessoal e familiar.533
Contemporaneamente, os axiomas republicanos têm sido repensados a partir do
que foi chamado de “humanismo cívico”534, de modo a colocar “no espaço da vida
pública o local privilegiado da manifestação dos valores mais elevados da condição
humana”535, recuperando-se, ainda, a importância das discussões que envolvem temas
do interesse da coletividade.536 Compreende-se, assim, que a experiência republicana
não deve ser resgatada materialmente, mas há uma apologia do resgate teórico.537 Esse
resgate visa, atualmente, a formular idéias de acordo com a capacidade de agir de
nossos municípios, estados ou países, em nome dos interesses deles próprios. 538
Mas todo resgate precisa ser conjecturado com seu tempo. Portanto, considera-se
acerca da “elaboração de um conjunto de proposições em torno das condições de
manutenção da igualdade de direitos em uma sociedade cuja natureza é objetivamente
competitiva”539 e onde pessoas e grupos em situação de inferioridade social, como as
idosas, encontram-se marginalizadas.
O que parece muito interessante na tradição republicana, revisitada à luz do atual
momento histórico, social e ideológico, é estimular o homem a valorizar tanto o espaço
quanto o bem público e a se preocupar com temas afeitos à comunidade, afastando o
individualismo exacerbado, numa perspectiva solidarista. 540
532
TUCIDIDES. Historia da guerra do peloponeso. 2 ed. Tradução de: CURY, Mario da Gama. Brasília:
UNB, 1986, p. 100.
533
HELD, David. Modelos de democracia, p. 63.
534
Expressão de BIGNOTTO, Newton. Pensar a República. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 52.
535
BIGNOTTO, Newton. Pensar a República, p. 52.
536
BIGNOTTO, Newton. Pensar a República, p. 52.
537
BIGNOTTO, Newton. Pensar a República, p. 61.
538
BIGNOTTO, Newton. Pensar a República, p. 63.
539
BIGNOTTO, Newton. Pensar a República, p. 62.
540
Ensina TAVARES, Ana Lúcia de Lyra. A Urbs e a noção de espaço publico. In: Direito Público
Romano e Política. Organizadores: TAVARES, Ana Lúcia de Lyra, CAMARGO, Margarida Lacombe e
MAIA, Antonio Cavalcanti. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 154-155, que: “Em seu sentido clássico, a
Propõe-se, então, o debate público, pela via da cidadania participativa, acerca
dos valores de uma sociedade que deve tender não para o individuocentrismo, mas para
o homem imerso numa esfera humanista e plural. Nesse ambiente, faz-se obrigatório
não apenas existir, mas coexistir e, nesse sentido, cooperar, colaborar, compartilhar e
participar por meio da cidadania, visando ao desenvolvimento e à emancipação da
coletividade em geral e dos grupos vulneráveis na sociedade contemporânea marcada
por diferenças de toda ordem.
O ideal de igualdade, ainda que meramente formal na Grécia antiga, até hoje é
almejado não só em bases formais, diante da lei, mas também de maneira substancial,
atenta às distintas necessidades de determinado grupo, que dependem de suas
especificidades.
Note-se, pois, que há ideais que não se perdem no passar do tempo para a
consecução de uma democracia desejável.
Nesse sentido, o legado da liberdade – maior apótema da tradição liberal –
revela-se cada vez mais importante para uma democracia em sua acepção negativa
541
(poder fazer ou não fazer) , mas, principalmente, na sua acepção positiva (possuir
meios para fazer ou não fazer) 542, e a fraternidade, que, até muito depois da tradição
liberal não passou de retórica, deve ser cultivada densamente, pois os seres humanos
precisam, para conviver, de se ajudar de maneira recíproca.
Observe-se que a tradição liberal se apresenta como marco para a democracia
fundada em atitudes de não-sujeição do homem, em certas circunstâncias, frente ao
próprio Estado, cujo poder passa a estar limitado pelo estímulo do exercício de direitos
expressão espaço público remete a locais específicos de manifestações que visam ao público ou aqueles
em que são examinados, debatidos e decididos assuntos de interesse público. São espaços,
institucionalizados ou não, na medida em que constituem lugares tradicionais de discussão e deliberação.
Como notamos em trabalho anterior, os espaços públicos na Antiguidade identificam-se aos centros de
decisão da res publica, ao foro, às assembléias, aos tribunais, às praças e aos mercados. Debruçando-nos
com mais vagar sobre o assunto, pudemos observar que, na verdade, não apenas os locais, mas
determinadas atividades e/ou situações conduziram à construção de um verdadeiro espaço público.
Modernamente, a concepção de espaço público abarca não apenas os locais físicos das reuniões de
interresse público (não necessariamente vinculados à idéia de poder público, visto que, por exemplo, os
movimentos sociais não lhes são institucionalmente associados), mas o próprio procedimento que regula
os debates de interesse público, as regras que presidem os processos de discussão e de propostas de
interesse público.”
541
BOBBIO, Norberto. Liberdade e igualdade. Tradução de: COUTINHO, Carlos Nelson. 5 ed. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2002, p. 49. Veja-se também BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre liberdade.
Tradução de: FERREIRA, Wamberto Hudson. Brasília: UNB, 1981, p. 136-137.
542
BOBBIO, Norberto. Liberdade e igualdade, p. 51.Veja-se também BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios
sobre liberdade, p. 144.
positivos pelo cidadão.543 O legado da tradição liberal encontra-se, inclusive, na
separação entre homem e Igreja544 e, ainda, no incentivo ao aproveitamento das
oportunidades oferecidas pelo mercado, de acordo com o esforço pessoal de cada
homem, portanto, não mais por meio de uma herança de sangue.545 Liberdade e
igualdade para todos são os lemas do modelo liberal propagado não só pela França
revolucionária, mas também, pelos Estados Unidos da América.
Tanto a Declaração americana de Direitos do povo da Virgínia de 1776, quanto a
Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, reconhecem
pioneiramente, a existência de direitos humanos fundamentais.546 Há que se ressaltar
ainda a influência de filósofos franceses como Rousseau e Montesquieu sobre os
americanos revolucionários ao levarem o princípio democrático e a teoria da separação
de poderes à Constituição Americana de 1787.547 Com as Constituições mexicana de
1917 e alemã de Weimar de 1919, o segundo pós-guerra inaugurou a entrada
significativa dos direitos econômicos, sociais e culturais nas cartas constitucionais.548
Posteriormente, por meio da influência da Declaração Universal dos Direitos do
Homem de 1948, o valor da dignidade da pessoa humana passa a ser reconhecido nas
constituições posteriores à 2ª Grande Guerra.549 Com base em tal declaração obtém-se
também a afirmação universal e positiva dos direitos humanos em face do Estado que,
porventura, esteja violando-os550. Hodiernamente, através de movimentos sociais
levados a cabo pelo exercício da cidadania, politizam-se lutas nos espaços públicos e
privados. Caso travadas nesse último, tornam-se também lutas da coletividade, tendo
como objeto garantir a dignidade da pessoa humana por meio não só da eficácia
543
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 29-30.
544
WALZER, Michael. El liberalismo y el arte de la separación. In: Guerra, Política y Moral. Barcelona,
Buenos Aires, México: Paidós, 2001, p. 93.
545
WALZER, Michael. El liberalismo y el arte de la separación, p. 101.
546
Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 47.
547
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 48.
548
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 52, 53 e 90.
549
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p.104.
550
WALZER, Michael. El liberalismo y el arte de la separación, p. 30.
vertical, mas também horizontal dos seus direitos fundamentais, especialmente em
relação à saúde das pessoas idosas.551
É certo que os legados da Revolução Francesa e da Revolução Americana para a
construção de um modelo democrático adequado à realidade atual apresentam-se
imbricados, pois, tanto a revolução da burguesia francesa contra os privilégios
medievais do clero, da nobreza monárquica e dos senhores feudais; quanto a revolução
dos colonos americanos, partiram rumo à emancipação dos homens em busca da
liberdade e, dessa maneira, correlacionam-se.552 O impacto das duas revoluções no
cenário ocidental repercute até os dias atuais. Principalmente a Revolução Francesa e
seus princípios basilares “constituíram, no bem como no mal, um ponto de referência
obrigatório para os amigos e para os inimigos da liberdade, princípios invocados pelos
primeiros e execrados pelos segundos.”553
A liberdade e o poder de autodeterminação dos homens mostram-se
indispensáveis para o seu desenvolvimento e o alcance de melhores condições de vida
para si próprios e para a coletividade de que fazem parte. Não pode haver crescimento
baseado na escravidão e na opressão, porque seres humanos desenvolvem
preferencialmente seus dons e aptidões num ambiente onde possuam ferramentas para
que, efetivamente, possam ousar, experimentar, criar, por meio da liberdade positiva. O
regime democrático também favorece o desenvolvimento social e, aliando o princípio
da liberdade aos princípios democráticos da cidadania e da soberania popular, os povos
podem, paulatinamente, conseguir avanços em prol de uma democracia cada vez mais
551
A eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações contratuais privadas, especialmente
naquelas cujo objeto do contrato é a prestação da saúde merece atenção da sociedade já que os direitos
fundamentais de índole constitucional não estão confinados à esfera pública. Nesse sentido, movimentos
sociais que visam a assegurar a saúde da pessoa idosa em relações contratuais que ela trava com a
iniciativa privada tornam-se políticos, e dizem respeito, portanto, ao que é púbico, pois que afetam a
coletividade.
Essa assertiva parte da observação de DAGNINO, Evelina. Cultura, cidadania e democracia: a
transformação dos discursos e práticas na esquerda latino-americana, p. 95: “Ao formular uma visão
ampliada de democracia e operacionalizá-la em termos de luta pela cidadania, os movimentos sociais
transmitem também uma visão alternativa do que é considerado político nas sociedades latino-
americanas. A própria existência de movimentos sociais afetou as noções de sujeitos e espaços políticos
[...] Na medida em que participam da disputa entre os diferentes projetos de democracia, junto com outros
atores políticos que compartilham da mesma perspectiva, os movimentos sociais oferecem novos
parâmetros para essa disputa e aragem contra as concepções reducionistas da democracia e da própria
política. Ao politizar o que não é concebido como político, ao apresentar como público e coletivo o que é
concebido como privado e individual, eles desafiam a arena política a alargar seus limites e ampliar sua
agenda.” [grifou-se]
552
BOBBIO. Norberto. A era dos direitos, p. 89.
553
BOBBIO. Norberto. A era dos direitos, p. 92.
forte em legitimidade, com vistas também a assegurar os direitos fundamentais
constitucionais.
Dentre tais, o direito à saúde de índole social, é condição para o exercício do
direito à liberdade no exercício da cidadania posto que “os ideais deliberativos da
igualdade, da liberdade e da abertura só podem se concretizar se determinadas
condições sociais estão garantidas para todos os participantes.”554
Cidadania “é atributo das pessoas integradas na sociedade estatal, atributo
político decorrente do direito de participar no governo e direito de ser ouvido pela
representação política.”555 Compreende-se que o cidadão não possui somente o direito
de participar do governo elegendo líderes representantes do povo, porque a cidadania,
direito fundamental e político, lhe atribui certo grau de influência nas decisões do
governo. O poder político não consiste apenas no direito de participar do processo
eletivo votando e sendo votado. Se o cidadão elege seus representantes e só nas
próximas eleições vota de novo, distancia-se por longo período do processo
democrático, pois, nesse intervalo, idéias são debatidas, votadas, tornam-se leis.
Portanto, afastar a população do procedimento deliberativo pode fazer com que as
decisões do parlamento e do governo sejam apenas formalmente democráticas, mas
essencialmente oligárquicas, já que o poder estará concentrado nas mãos de poucos que,
embora eleitos pelo povo, decidem questões relevantes na vida de todos de maneira que
não aquela que o povo necessitaria ou desejaria. Tal conjuntura informa a chamada
democracia elitista, na qual o Legislativo não representa grupos de pessoas e suas
aspirações, mas uma elite detentora do poder econômico que se enriquece mais cada vez
que as políticas públicas se voltam para seus interesses.556
554
DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma
reconstrução teórica à luz do princípio democrático. In: A Nova Interpretação Constitucional:
Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Organizador: BARROSO, Luís Roberto. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003, p. 324.
555
DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo, p. 346-347.
556
Segundo DORNELLES, João Ricardo Wanderley. Direitos humanos e exclusão social no Brasil. In:
Fórum: Debates Sobre Justiça e Cidadania. Revista da Associação dos Magistrados do Rio de Janeiro. N.
13. Ano. 4, Janeiro/Fevereiro, s. d., p. 37: “Na prática, a democracia brasileira – para uma grande parte da
população – restringe-se ao ritual eleitoral. E, dessa forma, a democracia é limitada e está apoiada em um
estado de direito que pune, controla e violenta as diferentes minorias – que, em seu conjunto, se
transformam em imensas maiorias.” Também DE SOUZA NETO. Cláudio Pereira. Fundamentação e
normatividade dos direitos fundamentais, p. 324-325: “As teorias democrático-elitistas possuem como
um de seus elementos centrais o reconhecimento de que o poder econômico, em contextos de
desigualdade social, mantém com o processo político uma relação tendente ao estabelecimento de elites
políticas vinculadas às elites econômicas. Daí a importância de que a igualdade não e restrinja a sua
dimensão formal, mas se projete também para o campo econômico-social.”
Torna-se, nesse sentido, necessária a abertura do processo democrático pós
eleitoral, de modo que o cidadão opine em audiências públicas, participando ativamente
das questões que versem sobre seu direito à igualdade substancial, cobrando do Estado a
concretização dessa igualdade por meio de ações positivas.557 Só de tal maneira a
democracia alcançará sua legitimidade ideal, uma vez que os valores considerados
prioritários para a sociedade, de acordo com a ponderação casuística dos axiomas
positivados como princípios fundamentais pela Constituição da República, nortearão a
atuação do Estado em suas diversas dimensões, influenciando a vida dos cidadãos em
situações singulares e plurais.558
A cidadania, do modo mais extensivo que se propõe, trata-se, portanto, de
condição indispensável para que a democracia se legitime, a fim de atender não só ao
interesse da maioria, mas também das minorias, numa sociedade onde a dignidade
humana sobreleva como valor essencial e supremo, que dá unidade de sentido à
Constituição.559
Note-se, portanto, que o germe da ideologia da liberdade lançada pelos franceses
revolucionários deixa importante e inafastável legado para as civilizações
contemporâneas. Aliás, os apótemas da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e
fraternidade são axiomas que contêm vários direitos do ser humano.560
557
Nesse aspecto são importantes as considerações CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça
distributiva; elementos da filosofia constitucional contemporânea. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2004, p. 49: “Quando o constitucionalismo ‘comunitário’ brasileiro observa, na Constituição Federal, o
alargamento da positivação constitucional das aspirações por mais igualdade, não se refere, obviamente,
aos direitos dos cidadãos à ações negativas por parte dos Estado e, portanto, ao dever de abstenção, mas
sim aos seus direitos de ações positivas por parte do poder público, ou seja, dever de ação. Ao dever de
ação corresponde, portanto, o direito à prestações.”
Parece ser nessa linha de raciocínio que VIEIRA, José Ribas propõe ‘um constitucionalismo renovado,
558
Estado social cristalizado nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade. Uma vez universalizados
e concretizados, hão eles de compor a suam política de todos os processos de libertação do Homem.”
561
A assertiva é corroborada por PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada, p. 83, ao
dissertar sobre a liberdade proclamada pelos burgueses e fruto da Revolução Francesa anota que: “O
essencial a preservar para a sobrevivência da sociedade organizada capitalisticamente, não são todos os
direitos de liberdade, mas apenas aqueles que são directamente implicados pela organização económica,
isto é, a propriedade e a liberdade contratual.”
562
PRATA, Ana, A tutela constitucional da autonomia privada, propõe o que chama de ‘reformulação da
noção de liberdade jurídica’, de modo que a liberdade atinja a todos e não desconsidere a realidade social,
funcionando como meio para que a dignidade da pessoa humana se realize. A autora diz na p. 84: “ ... O
reflexo da contradição entre a concepção de homem como entidade individual e a inserção social real
deste, e a sua resolução só pode passar por uma reformulação da noção de liberdade jurídica, que não
aliene a realidade social, que tenha em conta o caráter instrumental da liberdade relativamente à
realização da dignidade humana, que não ignore o confronto inelutável entre o exercício da liberdade por
uns e a liberdade de todos numa comunidade.”
563
No entanto, faz-se importante a seguinte assertiva de DORNELLES, João Ricardo Wanderley.
Direitos humanos e exclusão social no Brasil. In: Fórum: Debates Sobre Justiça e Cidadania. Revista da
Associação dos Magistrados do Rio de Janeiro. N. 13. Ano. 4, Janeiro/Fevereiro, s. d., p. 37: “As
expectativas de ampliação das liberdades públicas e de efetivação das prática sociais e políticas
democráticas são corroídas com a manutenção dos ‘pontos negativos oligárquicos’, das incivilidades de
um não estado de direito. É justamente esse quadro que possibilita o preconceito contra inúmeros
segmentos sociais – pobres, favelados, trabalhadores sem terra, moradores de rua, prostitutas,
homossexuais, jovens – principalmente das classes populares, idosos, afro descendentes, indígenas,
portadores de deficiência física, etc. Esses segmentos sociais são entendidos como disfuncionais para o
modelo capitalista neoliberal, chamados por Zygmunt Bauman de ‘consumidores falhos’ ou ‘lixo
humano’. [Grifou-se]
564
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 7 ed. Tradução de: NOGUEIRA, Marco Aurélio. São
Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 32-33.
instrumentais”565, para que se alcancem igualdade política e, ainda, oportunidades
isonômicas, – econômicas e sociais – envolvidas pela idéia de liberdade substantiva
para todos os homens.566
2 – O modelo democrático no Brasil pós regime ditatorial e os direitos
fundamentais da igualdade, da liberdade e da solidariedade na Constituição da
República brasileira de 1988
565
Expressão usada por SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de: MOTTA, Laura
Teixeira. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 11.
566
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade, p. 11.
567
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Introdução: o estado de direito e os não-privilegiados na América Latina.
In: Democracia, Violência e Injustiça, O Não Estado De Direito Na América Latina. Organizadores:
MÉNDEZ, Juan E., O’DONNELL, Guillermo, PINHEIRO, Paulo Sérgio. Tradução de: PINHEIRO, Ana
Luiza. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 11.
568
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Introdução: o estado de direito e os não-privilegiados na América Latina,
p. 11.
569
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Introdução: o estado de direito e os não-privilegiados na América Latina,
p. 14 e 22.
Acrescente-se que os idosos de hoje tiveram, em sua juventude num regime
ditatorial, reduzidas oportunidades de se educar para o exercício da cidadania
participativa com vistas à solução dos problemas que lhes afetam.570
Portanto se reconhece que há óbices ao exercício da democracia participativa
pelos idosos, que devem ser conhecidos e enfrentados tais como: pessoas com nível
educacional apropriado para argumentar, formular perguntas, contra-argumentar, de
modo a auferir convencimento pelo poder de persuasão; gozo de tempo para se
empreenderem esforços; disposição para se esforçar; medidas adequadas para os fins
objetivados entre outros, como a dificuldade imposta pela burocracia aos movimentos
populares para desestimular os cidadãos da discussão e da deliberação.571
E esses entraves não podem ser desconsiderados sob pena de se promover uma
democracia participativa de grupos vulneráveis desarticulada, sem poder de
convencimento em face da superioridade de preparo das elites que possuem o status
572
quo. Nesses quadros, é possível que se consiga participação formal dos grupos
vulneráveis que não alcance, por conseguinte, a inclusão social dos seus
marginalizados.573
O grupo vulnerável das pessoas idosas brasileiras deve, antes, ser educado para o
exercício da participação e, mais do que isso, incentivado a educar-se e a almejar a
participação como meio não só de alcançar os resultados pretendidos, como também de
570
Segundo BORGES, Cláudia Maria Moura. Gestão participativa em organizações de idosos:
instrumento para a promoção da cidadania. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia, p. 1040: “O
processo de redemocratização que está em curso restabeleceu-se principalmente com a promulgação da
Constituição de 1988, mas, na prática, não são muitas as mudanças na vida dos cidadãos brasileiros. Os
que hoje têm 60 anos, em sua grande maioria, tiveram pouco acesso à educação formal e, por força do
regime de governo vigente entre 1961 e 1984, tiveram pouquíssimas chances de encabeçar ou mesmo de
fazer parte de propostas de gestão democrática ou participativa.”
571
MATOS, Nelson Juliano Cardoso Matos. Teoria do estado: uma introdução crítica ao estado
democrático liberal (notas críticas à teoria hegemônica da democracia a partir do paradigma
participacionista). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 204-208.
572
Cf. BORGES, Cláudia Maria Moura. Gestão participativa em organizações de idosos: instrumento
para a promoção da cidadania, p. 1040, a respeito da insuficiente educação formal dos idosos de hoje no
Brasil.
573
Para evitar esse resultado BORGES, Cláudia Maria Moura. Gestão participativa em organizações de
idosos, p. 1039-1041, estuda minuciosamente o que chama de gestão participativa e examina um conjunto
de comportamentos do grupo com vistas a consolidar o processo participativo. Destaca-se a observação
que a autora faz na p. 1039: “A metodologia empregada para o alcance dos objetivos pode ter passos
variados, mas deve guiar-se por participação ativa, realização de reuniões permanentes de planejamento e
de avaliação por grupos, rotação de responsabilidades, tomada de decisões por consenso, socialização das
informações, disciplina e vigilância coletivas, descentralização e integração, e formação de espaços fora
do ambiente específico do projeto. Os pilares do processo participativo são capital humano e social dos
participantes.” [grifou-se]
promover sua auto-estima, sua integridade perante a sociedade e a capacidade de
institucionalizar suas proposições.574
Convenha-se ainda que, proceder comparação dos mandamentos constitucionais
que têm como objetivo construir uma sociedade livre, justa e solidária, com o
deprimente palco de oprimidos pelas mazelas das grandes cidades e do campo em certos
locais onde não há infra-estrutura para se viver, como serviços básicos de água potável,
luz, esgoto, saneamento e um meio ambiente apropriado para uma existência saudável,
revela-se, de todo, paradoxal.575 A gestão orçamentária da União, dos Estados do
Distrito Federal e dos Municípios devia empenhar recursos para suprir esse mínimo de
condições essenciais para a vida humana, pois, no espectro apresentado, não pode
576
existir liberdade positiva e muito menos justiça social. Os bens são tão mal
distribuídos que o Brasil se afigura mundialmente como um dos países mais desiguais
em qualidade de vida.577 Uma das razões desse fenômeno encontra-se no fato irrefutável
de o Brasil, em muitos aspectos, seguir o modelo econômico dos Estados Unidos, onde
há concentração de riquezas produzida pela globalização neoliberal em proporções
escandalosas.578 579
574
BORGES, Cláudia Maria Moura. Gestão participativa em organizações de idosos, p. 1040, manifesta-
se nesse sentido: “Administrar serviços, programas e projetos direcionados aos idosos, a partir destes
conceitos, pode otimizar resultados e proporcionar melhoria significativa na auto-estima e na qualidade
de vida deste segmento, renovando a esperança e a motivação de enfrentamento das dificuldades.”
575
Aqui se faz cabível o resgate da concepção de urbs, consoante TAVARES, Ana Lúcia de Lyra. A Urbs
e a noção de espaço publico, p. 162: “Assim, do próprio termo urbs, designado inicialmente Roma, a
cidade das cidades, derivam os vocábulos urbano, urbanismo, indicativos da vida nas cidades, dos
sistemas de vida nelas em vigor. Estes últimos têm sido objeto de estudos cada vez mais numerosos, na
medida em que a qualidade de vida nas grandes cidades se degrada, por fatores de natureza diversa e que
levam muitas vozes a reivindicar um direito à cidade, i. e., a condições dignas de vida urbana.”
576
Aliás, é importante destacar que desde o ano de 1994 consta positivado no parágrafo único do art. 8º
da Lei 8. 842, que: ‘Os ministérios da saúde, educação, trabalho, previdência social, cultura, esporte e
lazer devem elaborar proposta orçamentária, no âmbito de suas competências, visando ao financiamento
de programas nacionais compatíveis com a política do idoso.’
577
FRY, Peter. “Cor e estado de direito no Brasil”. In: Democracia, Violência e Injustiça, O Não Estado
De Direito Na América Latina. Organizadores: MÉNDEZ, Juan E., O’DONNELL, Guillermo,
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Tradução de: PINHEIRO, Ana Luiza. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 209.
578
Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. A globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002, p.
34, que faz tal asserção referindo-se aos Estados Unidos. Considera-se pertinente usar a mesma colocação
para o modelo brasileiro.
579
A propósito manifesta-se DORNELLES, João Ricardo Wanderley. Globalização, direitos humanos e a
violência na modernidade recente (versão completa)*. In: Temas Emergentes de Direitos Humanos.
Coordenador: GUERRA, Sidney. Campos dos Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2006, p.
321: “Também o Estados Unidos, que serve de referência para as teorias evolucionistas, não pode servir
de exemplo. O desenvolvimento econômico e a estabilidade da institucionalidade democrática, em uma
São ainda muitíssimo discrepantes da realidade do dia-a-dia os objetivos,
também constitucionais, de erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais, porque o contexto de grandes iniqüidades econômicas
só faz ampliar as disparidades entre ricos e pobres.580 A Constituição também proclama
a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e
quaisquer outras formas de discriminação e, ao invés, convivemos com toda espécie de
exclusão e violência por conta desses preconceitos que se mantêm.581 Apesar de na
Constituição da República Federativa do Brasil possuir, em seu artigo 1°, referência a
um Estado Democrático de Direito que tem, nos incisos II e III, como princípios
fundamentais a cidadania e a dignidade da pessoa humana, sabe-se dos oceanos de
exclusão na esfera da política e de indignidade social em que vários seres humanos
subsistem.
Parece que o caminho a ser trilhado a fim de modificar tais situações de
descrença e de iniqüidades sociais, ainda que paulatinamente, encontra-se na efetivação
de uma democracia participativa dos membros das várias classes e grupos sociais.582 As
pessoas que se encontram à margem da dignidade humana precisam exercitar sua
sociedade liberal, não asseguram a diminuição das diferentes formas de violência. Os acontecimentos
recentes na cidade de Nova Orleans, após a passagem do furacão Katrina, revelaram uma sociedade
desigual, violenta e socialmente injusta. Para muitas correntes críticas ao modelo hegemônico, a
sociedade capitalista liberal de massas favorece uma série e violências sociais, formas de exclusão,
intolerâncias raciais, etc.”
580
PINHEIRO, Paulo Sérgio. “Introdução: o estado de direito e os não-privilegiados na América
Latina”, p. 22.
580
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Introdução: o estado de direito e os não-privilegiados na América Latina,
p. 23.
581
Consoante DORNELLES, João Ricardo Wanderley. Direitos humanos e exclusão social no Brasil. In:
Fórum: Debates Sobre Justiça e Cidadania. Revista da Associação dos Magistrados do Rio de Janeiro. N.
13. Ano. 4, Janeiro/Fevereiro, s. d., p. 36: “A democracia, em sociedades como a brasileira, apóia-se em
um estado de direito formal que pune preferencialmente os segmentos vulneráveis, não lhes garantindo
segurança e o acesso à justiça. São as ‘não-elites’. Os vulneráveis são aqueles a quem se dirige a violência
sem lei.”
582
Segundo GUTMANN, Amy. Identity in democracy. Princeton e Oxford: Princeton University Press,
2003, p. 193: “Em políticas democráticas são particularmente importantes as identidades dos grupos por
causa dos números somados (pelo menos quando eles são meticulosamente contados). Sem habilidade
para engajar num grupo de ação coordenado, maiorias singulares estão menos longe dos politicamente
influentes e efetivos. Indivíduos desavantajados que são tratados injustamente não podem moldar um
esforço bem sucedido, afastados de um movimento social, sem aliados à sua causa. Aliados podem tornar
fácil organizarem-se baseados nas mútuas identidades preferíveis a interesses pessoais, especialmente
onde haveres coletivos estão em jogo. Indivíduos que não se identificam com a causa não possuem razões
pessoais para se sacrificar por um movimento social. A identidade com um grupo pode promover essa
razão e promover benefícios intangíveis assim como inclusão social que motivam indivíduos a trabalhar
juntos para combater a injustiça.” [ traduziu-se livremente do inglês]
cidadania e ter voz ativa para reivindicarem o que precisam diretamente, e não só por
representantes que elegem e depois os esquecem.583 A democracia meramente
representativa constitui seu modelo elitista que só promoverá os grupos vulneráveis até
onde convier às elites.584
Por tais razões, os cidadãos idosos, como minoria qualitativa, têm que atentar
para a necessidade de se unirem a fim de implementar, por procedimentos
institucionalizados, vias de participação que façam com que suas vozes sejam
ouvidas.585 Do mesmo modo, o processo de inclusão social passa pela conscientização
de que os menos abastados de toda ordem, terão força política maior numa sociedade de
mercado, se inseridos em associações ou sindicatos, bem mais próximos de um ideal
comum, por isso, engajados na busca de soluções que atendam seus associados.586 A
partir da capacidade de organização, participação e de representação substantiva por
seus pares, grupos socialmente vulneráveis como o formado pelas pessoas idosas
ganham projeção pública, o que torna tangível a possibilidade de confirmação das suas
583
DORNELLES, João Ricardo Wanderley. Direitos humanos e exclusão social no Brasil. In: Fórum:
Debates Sobre Justiça e Cidadania. Revista da Associação dos Magistrados do Rio de Janeiro. N. 13.
Ano. 4, Janeiro/Fevereiro, s. d., p. 37: “Os governos democraticamente escolhidos, ao adotarem políticas
restritivas, de acordo com o receituário neoliberal, foram incapazes de solucionar os problemas sociais,
não aplicando políticas públicas com o objetivo de acabar com a incivilidade social, o arbítrio, a violência
e a ação desregulada e voraz do mercado. Prevalece uma histórica cultura oligárquica por meio das
práticas sociais e políticas de negação da cidadania, baseadas no clientelismo, no assistencialismo e na
intimidação da população mais pobre e miserável. O bem público acaba por se submeter às necessidades
dos interesses particulares.”
584
Cf. COHEN. Jean L. e ARATO. Andrew. Sociedad civil y teoría política. Tradução de: MAZZONI,
Roberto Reyes. México: Fondo de Cultura Econômica, 2000, p. 24: “O modelo elitista de democracia
orgulha-se de propiciar uma explicação operativa e empiricamente descritiva das práticas e dos estados
cuja forma de organização política se considera democrática. Nele não há nenhuma pretensão de que os
votantes estabeleçam a agenda política ou tomem decisões políticas eles não engendram os temas a tratar
nem elegem as políticas. De sobra, os líderes (partidos políticos) agregam os interesses e decidem quais
terão de ser relevantes politicamente. Ademais, eles selecionam os temas e estruturam a opinião pública .
A verdadeira função do voto é simplesmente eleger elites políticas que aspiram ao poder e aceitar sua
liderança.” [traduziu-se livremente do espanhol] [grifou-se]
585
Para BORGES, Cláudia Maria Moura. Gestão participativa em organizações de idosos: instrumento
para a promoção da cidadania. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia, p. 1040: “Para que se possa
propor um processo de gestão participativa ou democrática de serviços prestados a idosos, é preciso, antes
de tudo, acreditar no potencial dos mais velhos e na sua capacidade de gerir a própria vida, considerá-los
como cidadãos com direito e deveres e vê-los como sujeitos sociais que têm papéis sociais significativos.”
586
Essa proposição é defendida por COHEN. Jean L. e ARATO. Andrew. Sociedad civil y teoría política,
p. 9: “Não obstante, a legalização dos sindicatos, as negociações coletivas, a co-determinação e outros
elementos similares atestam a influência da sociedade civil sobre a econômica e permitem que esta última
desempenhe uma papel mediador entre a sociedade civil e o sistema de mercado.” [traduziu-se livremente
do espanhol]
posições e de suas reivindicações.587 Dessa maneira, pensa-se que o grupo vulnerável da
terceira idade passaria a deter condições mais favoráveis para alcançar emancipação
social e jurídica num regime capitalista – modelo econômico adotado pelo Brasil –, bem
como na era da globalização – fenômeno inafastável em nossos tempos –, desde que
numa moldura social e democrática, a qual proceda à “transformação de trocas
desiguais em trocas de autoridade compartilhada”588 assim como a “construção de
mecanismos de controlo democrático”589 aliados à efetiva fundamentabilidade aos
direitos do humanos, previstos para todos em sede constitucional e para os homens em
suas situações singulares como prevêem legislações especiais, entre elas, por exemplo, a
Consolidação das Leis do Trabalho para os assalariados, o Estatuto da Criança e do
Adolescente, para pessoas deixa faixa etária e o Estatuto do Idoso para as pessoas
idosas.590
Desse modo, parece haver condições a fim de que se constituam instrumentos
para uma globalização contra-hegemônica, imbuída de valores sociais e humanistas. 591
No caso brasileiro deve considerar-se fortemente o que os princípios
fundamentais contidos no artigo 1º da Constituição preceituam: o Estado Democrático
de Direito brasileiro ergue-se sobre pilares básicos: um de ordem internacional-pública,
587
DA ROCHA. Sônia Maria, GOMES, Maria das Graças Cunha e LIMA FILHO, João Batista. O
protagonismo social da pessoa idosa: emancipação e subjetividade no envelhecimento. In: Tratado de
Geriatria e Gerontologia. Organizadores: DE FREITAS, Elizabete Viana, PY, Ligia, NERI, Anita
Liberanesso, CANÇADO, Flávio Aluízio Xavier, GORZONI, Milton Luiz, DA ROCHA, Sônia Maria.
Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002, p. 1034 assinalam que: “Os espaços públicos refletem a
aglutinação da vontade pública, consolidada em formas de participação política horizontais
(associativismo voluntário). Neste sentido, a sociedade civil, com seu conjunto de associações voluntárias
independentes do sistema econônomico e político-administrativo, absorve, condensa e conduz, de
maneira ampliada, para a esfera pública, os problemas emergentes das esferas privadas do mundo da
vida.”
588
Expressão de SANTOS, Boaventura de Souza. A globalização e as ciências sociais, p. 74.
589
SANTOS, Boaventura de Souza. A globalização e as ciências sociais, p. 74 .
590
GUTMANN, Amy, em Identity in democracy, p. 193, enfatiza que: “Além do mais, identidades dos
grupos são, longe, tipicamente mais do que instrumentos de políticas públicas para seus membros. Elas
provêem suporte mútuo e um senso de pertença que por outro lado poderia estar faltando na vida de
muitas pessoas e algumas o fazem sem incutir injustiça aos outros. Isto significa que completamente a
parte das demandas de justiça, nós podemos apreciar quereres das pessoas – de fato igualmente
necessidades – de mútuo suporte e senso de pertencimento que a identidade de grupos pode prover.
Identificando que grupos provêem mútuo suporte nas bases da mútua identidade também pode ajudar a
mitigar as inseguranças da vida econômica e social em sociedades capitalistas competitivas.” [traduziu-se
livremente do inglês]
591
Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma concepção multicultural dos direitos humanos. In:
Reconhecer Para Libertar: Os Caminhos do Cosmopolitismo Multicultural. Rio de Janeiro: Civilização,
2003, p. 438 e ss.
a soberania; dois de ordem político-democrática, a cidadania e o pluralismo político;
outros dois de caráter humanista e social, a dignidade da pessoa humana e os valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa.
A dignidade da pessoa, como fundamento do Estado pátrio, redimensiona as
construções jurídicas para o alcance prioritário do que afeta o ser humano, a lhe atribuir
dignidade em qualquer situação. A livre iniciativa e o trabalho têm sua
fundamentabilidade reconhecida desde que visem aos valores sociais, ou seja, sua
qualificação como fundamentais decorre do fato de proporcionarem atendimento das
expectativas e necessidades sociais.592 E a cidadania é o instrumento do povo para
manifestar sua vontade política não apenas para eleger representantes ou se fazer eleger.
Ela deve ser antes, manifestação contínua do cidadão em quaisquer assuntos que afetem
a dignidade humana de pessoas ou grupos vulneráveis.
Nesse sentido, formas de democracia representativa e formas de democracia
direta e participativa devem se conciliar, a fim de mobilizar setores sociais para a
implementação de políticas públicas prioritárias. 593
Ademais, como já assinalado, o conceito de democracia representativa deve ser
revisto. Torna-se, pois, necessária “a distinção entre a representação política e a
argumentativa do cidadão.”594 A representação política, por instrumento do voto, dirige-
se aos Poderes Executivo e Legislativo, mas a representação argumentativa dos
cidadãos, cabe a eles diretamente – seja consentido frisar, desde que aparelhados com
efetivo poder de negociação – e também ao Poder Judiciário.
Com o Poder Judiciário a atuar de maneira racional e argumentativa, oxigenam-
se os excessos ou as lacunas dos outros poderes sujeitos a lobbies, acordos, pressões que
o dinheiro e as relações de poder proporcionam e que afetam diretamente direitos do
cidadão. O Judiciário tem o munus da pulverização da atuação desses dois poderes num
Estado Democrático tripartite, por via da reflexão do processo político e pela
592
Essa perspectiva é trabalhada por LEITE, Fábio Carvalho. Os valores da livre iniciativa como
fundamento do estado brasileiro, In: Direito, Estado e Sociedade, nº 16, Rio de Janeiro: Pontifícia
Universidade Católica, 2000, passim, veja-se, especialmente, p. 81.
593
SADER. Emir. Para outras democracias. In: Democratizar a Democracia: Os Caminhos Da
Democracia Participativa. Organizador: SANTOS, Boaventura de Souza. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002, p. 649- 678.
594
ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no estado social democrático: para a relação entre direitos
do homem, direitos fundamentais, democracia e jurisdição constitucional. In: Revista de Direito
Administrativo. Tradução: HECK, Luís Afonso. Vol. 217, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 66.
interpretação constitucional dos direitos fundamentais. “Se um processo de reflexão
entre coletividade, legislador e tribunal constitucional se estabiliza duradouramente
pode ser falado de uma institucionalização que deu certo dos direitos do homem no
estado constitucional democrático.”595
Portanto, não há democracia sem uma forte estrutura de direitos fundamentais, já
que eles são a base de um Estado de Direito e o Estado de Direito propicia,
simultaneamente, a existência dos direitos fundamentais.596
Note-se que, no Brasil, a dignidade humana é o princípio fundamental vetor e o
maior dos direitos fundamentais, que dá unidade axiológica ao sistema de direitos
humanos derivados dele.597 A dignidade da pessoa humana trata-se do grande manancial
conformado por outros valores essenciais numa democracia e assentados na
Constituição brasileira de 1988: tratam-se da igualdade, da liberdade e da
solidariedade.598 Esses axiomas são ambivalentes, pois se apresentam, ao mesmo tempo,
como direitos fundamentais e princípios constitucionais no ordenamento jurídico
brasileiro. Verifica-se, portanto, que o arcabouço axiológico dos apótemas da
Revolução Francesa insurge como pilar para a contínua construção de um Estado de
Direito democrático.
595
ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no estado social democrático, p. 66.
596
Nesse sentido, PERES LUÑO. Antonio E. Los derechos fundamentales, p. 19: “O constitucionalismo
atual não seria o que é sem os direitos fundamentais. As normas que sancionam o estatuto dos direitos
fundamentais, junto àquelas que consagram a forma de Estado e as que estabelecem o sistema econômico,
são as decisivas para definir o modelo constitucional de sociedade. Sem que se queira considerar estas
três questões como compartimentos estanques, toma-se conta de sua inseparável correlação. Assim, dá-se
um estreito nexo de interdependência, genético e funcional, entre o Estado de Direito e os direitos
fundamentais, já que o Estado de Direito, para existir, exige e implica garantir os direitos fundamentais,
principalmente porque esses exigem e implicam, para sua realização, ao Estado de Direito.” [Traduziu-
se livremente do espanhol e se grifou]
597
A abordagem da dignidade como princípio máximo constitucional e fonte dos direitos fundamentais é
abordada por vários autores. Cf.: TEPEDINO, Gustavo. Premissas Metodológicas para a
constitucionalização do direito civil, p. 1-22, passim, também BARBOZA, Heloisa Helena. Princípios do
Biodireito, especialmente na p. 61, também BODIN DE MORAES. Maria Celina, O conceito de
dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo, p. 109-146, passim, também SARLET,
Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição de 1988, p. 81-
149, passim; também MARTINS-COSTA, Judith. Os direitos fundamentais e a opção culturalista do
novo código civil, In: Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Organizador: SARLET,
Ingo Wolfgang. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 69-73, passim.
598
Parte-se para análise dos direitos fundamentais da liberdade, da igualdade e da solidariedade como
conteúdos do princípio da dignidade da pessoa humana a partir da colocação de SARLET, Ingo
Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, que, na p. 56, explica: “...Na essência, todas as
demandas na esfera dos direitos fundamentais gravitam, direta ou indiretamente, em torno dos
tradicionais e perenes valores da vida, liberdade, igualdade e fraternidade (solidariedade), tendo, na sua
base, o princípio maior da dignidade da pessoa.”
Embora em sua origem francesa o direito à liberdade tenha sido explorado
principalmente na sua acepção negativa, com a não-intervenção estatal nos negócios
mercantis, é imperioso que, numa democracia também participativa, ele funcione no seu
modelo positivo, como autodeterminação. Assim, liberdade é atributo da cidadania, que
tem como objetivo especial a discussão pública dos cidadãos acerca de temas afeitos à
comunidade em que se inserem. Desse modo, afigura-se necessária a cultura de debate e
de deliberação pelos cidadãos do que lhes diga respeito direto (considerando as
especificidades de um grupo, como, por exemplo, o das pessoas idosas) ou indireto
(considerando as demandas de outros grupos que interessam os primeiros porque ambos
convivem na mesma esfera social, como outros seguimentos da sociedade discutindo,
por exemplo, questões que afetam a qualidade de vida das pessoas idosas). Nesse
sentido, liberdade, na acepção democrática, consubstancia também direito fundamental
político, que garante a participação de todos e que fortalece a cidadania e a legitimidade
dos atos do governo, pois os interessados, diretos e indiretos, participam do processo
deliberativo.599 Revela-se, pois, indispensável uma “cidadania inclusiva”,600 de modo
que o processo de argumentação e deliberação gere inserção social, pela colaboração de
todos os envolvidos, na medida de sua experiência.601
A igualdade, outro ícone da Revolução Francesa, desenvolveu-se naquele
momento só no sentido do homem perante a lei, já que isso se fazia necessário, a fim de
consolidar o capitalismo, desconsiderando, portanto, desigualdades de fato sempre
existentes.602
Mas atualmente, novas injunções demonstram pluralismo na vida das pessoas,
pois, na alteridade que lhes faz únicas, experimentam realidades diversas, como a
decrescência do vigor físico nas pessoas mais velhas em face da vitalidade juvenil.
Porém, há identidade de todos na sua condição de humanos e é necessário que, não só,
599
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade, p. 24.
600
Expressão usada por DAHAL. Robert. Sobre a democracia. Tradução de: SIDOU, Beatriz. Brasília:
UNB, 2001, p. 112.
601
Cf. HABERMAS Jürgen. A inclusão do outro. Tradução de: SPEBER, George e SOETHE, Paulo
Astor. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 55.
602
O raciocínio elaborado para justificar a igualdade mesmo onde havia desigualdade contratual,
especialmente nas relações de trabalho é bem desenvolvido por PRATA, Ana. A tutela constitucional da
autonomia privada, p. 87: “Porque todos os indivíduos são iguais, é possível aplicar-lhes a lei (hipotética,
abstracta e geral), mas, simultaneamente, é a lei, com tais características, que assume como iguais os
indivíduos, isto é, é porque são iguais à face da lei que são iguais entre si.”
mas também por meio do Estado Democrático, lhes seja garantida igualdade material
em situações de desigualdade substancial.603 Se há algo que une uma pessoa às outras é
sua condição humana. Assim, o sentido de pertencer a uma comunidade de iguais, ainda
que na alteridade, deve fazer com que todos percebam que ninguém é só e que não se
pode estar sempre só. Precisa-se do outro e outro também precisa de outros tantos até
por conta da pluralidade das pessoas e das atividades exercidas por elas. Nessa medida,
é fundamental que cada ser e que cada agrupamento humano reconheça a necessidade
peculiar do outro, para que a vida social possa se harmonizar e, até mesmo, para que as
pessoas se complementem. Dessa compreensão advém o respeito por equiparações via
determinação legal, por meio de ações afirmativas, entre outros instrumentos que visam
à igualdade real.604 Em verdade, o bem feito ao vulnerável é revertido num ambiente
social favorável também aos mais abastados. Basta pensar não só, mas
emblematicamente, nas questões de segurança. Note-se que a exclusão social é, em
grande parcela, responsável pela violência dos pobres contra os ricos, efeito rebote da
indiferença desses em relação àqueles.605
603
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, corrobora
com o que se sustenta e acrescenta conceber o princípio da igualdade atrelado não apenas a um Estado de
Direito, mas a um Estado Social de Direito, p. 341: “O Estado social é enfim Estado produtor da
igualdade fática. Trata-se de um conceito que deve iluminar sempre toda a hermenêutica constitucional,
em se tratando de estabelecer equivalência de direitos. Obriga o Estado, se for o caso, a prestações
positivas; a promover meios; se necessário, para concretizar comandos normativos de isonomia.” Antes,
na p. 341, ao expor a importância do princípio da igualdade, diz: “Conduzido para fora das esferas
abstratas, o princípio da igualdade, inarredavelmente atado à doutrina do Estado social, já não pode
ignorar o fator ideológico nem tampouco as demais considerações de natureza axiológica. Ideologia e
valores entram assim a integrar o conceito de igualdade, provocando uma crise para a velha igualdade
jurídica do antigo Estado de Direito.”
604
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade. (O direito
como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA). Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 5:
“Essas políticas sociais, que nada são do que tentativa de concretização da igualdade substancial ou
material, dá-se a denominação de ‘ação afirmativa’ ou, na terminologia do direito europeu ‘discriminação
positiva’.”
605
DORNELLES, João Ricardo Wanderley. Globalização, direitos humanos e a violência na
modernidade recente (versão completa)*. In: Temas Emergentes de Direitos Humanos. Coordenador:
GUERRA, Sidney. Campos dos Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2006, p. 315: “Direta ou
indiretamente, a violência se alimenta das desigualdades. E a desigualdade em escala global ampliada e
em ritmo acelerado, produzida pela globalização hegemônica neoliberal, expande a exclusão social, a
precarização da vida, através da abstenção do Estado da responsabilidade pública social, sendo uma pré-
condição para a generalização e da violência.”
A necessidade de harmonização e a possibilidade de complementação dos seres
humanos advêm de sua própria condição de “animal político”606. Se não é possível viver
sem conviver, torna-se imperiosa a solidariedade nas relações sociais.607
Nesse contínuo, se os direitos à liberdade e à igualdade apresentam-se mais
antigos, embora essenciais no espaço político democrático, o direito à solidariedade
social, que na Revolução Francesa recebeu o nome de fraternidade, com forte conteúdo
moral e religioso, parece só ter sido valorizado em sua acepção política no final do
século XIX e início do século XX em diante.608 Apesar disso, atualmente “o discurso
solidarista corresponde a uma nova forma jurídico-política.”609 Já não se pensa mais
numa democracia apartada da solidariedade social, porque “a democracia só pode
encontrar sua verdadeira essência em suas múltiplas forças potenciais. Sua experiência
repousa sobre a multiplicidade de suas faces e no seu caráter pluralista.”610
Outra faceta do solidarismo, essencial para a construção de uma democracia de
inclusão, está contida no ideal de tolerância. E aqui, apesar das nuances morais desta
virtude, seu enfoque é político. Assim, quando os homens não são capazes de sentir
amor e respeito pela alteridade, resta-lhes fazer uso da tolerância.611 Desse modo,
compreende-se não ser possível exigir que os seres humanos sintam-se solidários, mas é
admissível a exigência de que ajam solidariamente, de acordo com o Direito posto.612
606
Expressão consagrada por ARISTÓTELES em, Política. Tradução de: GUIMARÃES, Torrieri. São
Paulo: Martins Claret, 2003, p. 14, § 9 da obra de Aristóteles.
607
Mais uma vez torna-se interessante o resgate da Urbs na concepção de espaço público dos dias
hodiernos. TAVAREZ, Ana Lúcia de Lyra. A Urbs e a noção de espaço publico, explica na p. 170 que:
“Os diversos significados que a concepção do espaço público da Urbs faz emergir fortalecem a convicção
de ser plural a noção que deles pode se deduzida. O espaço público urbano é um espaço de realização das
atividades comunitárias, de natureza política, econômica, jurídica e religiosa, mas é também um espaço
de projeção social, de desempenho de determinados ritos, de assunção de certos comportamentos, de
busca da solidariedade social.”
608
FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar,
1998, p. 187.
609
FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade, p. 187.
610
FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade, p. 276.
611
COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. Tradução de: BRANDÃO,
Eduardo. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 188.
612
Como coloca BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da solidariedade. In: Os Princípios da
Constituição de 1988. Organizadores: PEIXINHO, Manuel Messias, GUERRA, Isabela Franco,
NASCIMENTO FILHO, Firly. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 188, nota 77: “Não se quer exigir
que alguém sinta algo de bom pelo outro; apenas que se comporte como se o sentisse. Um único exemplo
será o bastante para demonstrar que não há dificuldades em se exigir, não apenas do Pode Público mas
também dos particulares, o dever de respeito e solidariedade para com o(s) outro(s). O patrão que dava a
Portanto, o ato de solidarizar se impõe, para que a democracia dos Estados de Direito de
hoje subsista fortificada pela inserção global de todos que fazem parte de dada
sociedade.613
O processo de inclusão por via da solidariedade aproxima-se também da
igualdade, porque, em vários sentidos “os indivíduos esperam uns dos outros uma
igualdade de tratamento que parte do princípio de que cada pessoa considere cada uma
das outras como ‘um dos nossos’.”614 No âmago do direito à solidariedade, encontram-
se os ideais de proximidade, pertença, comunhão, partilha, reciprocidade.615 A
solidariedade também está relacionada com a liberdade, pois, no “ ‘desenvolvimento
como liberdade’, as liberdades instrumentais ligam-se umas às outras e contribuem com
o aumento da liberdade humana em geral.”616
Mas cabe ressaltar que, nem sempre, solidariedade e liberdade caminham de
mãos dadas. Em certos momentos, para que o direito à solidariedade se implemente, hão
de ser afastadas liberdades negativas e a igualdade no sentido formal.
Observe-se que o conteúdo de liberdade, de igualdade e de solidariedade terá
expressão mais ou menos restrita quando num caso concreto. Afinal, todos os vieses de
um caso demandam sopesamento, por meio da ponderação.
seu empregado favorito, além do salário, uma quantia a mais às vésperas das festas natalícias foi, durante
algum tempo julgado bondoso, generoso, solidário. O legislador, entendendo que não deveria contar com
esse comportamento voluntário, e que devia estendê-lo a todos os empregados, estabeleceu a obrigação de
ser solidário aos empregadores, por ocasião do Natal, determinando o pagamento do chamado 13º
salário.”
613
Observe-se, nesse particular, as críticas de ALVAREZ, Alejandro Bugallo. Os princípios da
vulnerabilidade e da autonomia no estatuto do idoso: pressupostos e aplicações. Mimeo, 2008: “Não
obstante a retórica habitual ressalte a velhice, na prática, a mesma é expressão de solidão, abandono e
perda. O mesmo acontece em relação à solidariedade, onde se verificam déficits e distorções não só na
medida vertical e, portanto, nas políticas públicas que tornem efetiva a cidadania ativa dos idosos, como
também no plano horizontal, em que se constata a ausência de diálogo intergeneracional.”
614
HABERMAS Jürgen. A inclusão do outro, p. 42.
615
HÄRBELE, Peter atesta que o Tribunal Constitucional Federal alemão, baseado na Lei Fundamental
compreende que a noção de dignidade humana está atrelada à idéia de igual dignidade do outro. Veja-se,
a propósito. El estado constitucional. Tradução de: FIX-FIERRO, Héctor. México: Universidad Nacional
Autônoma de México, 2001, pp. 171-172: “Os conceitos científico-sociais da identidade comprovam
ademais outra idéia jurídica: na dignidade humana se concebe incluída também a relação com o tu. O
reconhecimento da ‘igual dignidade humana do outro’ constitui a ponte dogmática em direção a
adequação relativa ao tu da dignidade humana [...] A referência ao ‘outro’, ao ‘tu’, ao ‘próximo’, ao ‘tu’ e
ao ‘irmão’ ( no sentido da fraternidade de 1789), hoje também ‘a irmã’, é uma parte integral do princípio
jurídico-fundamental da dignidade humana.” [traduziu-se livremente do espanhol]
616
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade, p. 25.
A partir da Constituição de 1988 e de seu conteúdo democrático e
emancipatório, o Brasil deu passos largos rumo ao desenvolvimento social, de modo
que, em qualquer tempo vindouro, liberdade, igualdade e solidariedade serão sempre
direitos fundamentais no estado pátrio, pois compõem o princípio maior da dignidade da
pessoa humana. Firmada a fundamentalidade desses direitos e princípios do estado
democrático, seja consentido frisar não ser possível que, como direitos, porque
fundamentais, jamais se restrinjam e de que, como princípios constitucionais, tenham o
mesmo nível de intensidade na interpretação de um caso concreto.
Na hipótese de colisão entre eles, haverá balanceamento e um receberá peso
maior que o outro, e este outro será relativamente ou absolutamente afastado,
dependendo do juízo de ponderação e de proporcionalidade exigido em face da exata
situação, concreta ou abstratamente elaborada, sempre em prol da preponderância do
princípio da dignidade humana da pessoa idosa.617 Observe-se que a dignidade da
pessoa humana deve ser sempre encontrada na ponderação casuística desses princípios
que conformam o seu conteúdo. Porém, o princípio fundamental da dignidade da pessoa
humana é imponderável.
Diante dessa realidade, percebe-se que “a ponderação como parte de um exame
de proporcionalidade [...] é o problema nuclear da dogmática dos direitos fundamentais
e a razão principal para a abertura dos catálogos de direitos fundamentais.”618
Cabe ressaltar ainda – pelo fato do que se está prestes a referir incrementar o
exercício da ponderação, tornando-a mais sofisticada – que os ambivalentes direitos e
princípios fundamentais da liberdade, da igualdade e da solidariedade possuem no
universo contemporâneo, significados polivalentes.
A polivalência da liberdade e da igualdade relaciona-se com seus múltiplos
sentidos: à liberdade negativa, em face da lei, adiciona-se o direito à liberdade positiva,
autodeterminada, que se desenvolve por meio da cidadania argumentativa e
participativa; à igualdade formal de todos perante a lei, alia-se o direito à igualdade
substancial entre os homens, a fim de tornar equânimes suas oportunidades de
desenvolvimento. No mesmo sentido de emancipação social, agrega-se à liberdade
617
Segundo ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no
estado de direito democrático. In: Revista de Direito Administrativo. Tradução: HECK, Luís Afonso.
Vol. 217. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 68, “Não existe catálogo de direitos fundamentais sem
colisão de direitos fundamentais e também um tal não pode existir.”
618
ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no estado constitucional democrático, p. 63.
positiva e à igualdade substancial o que se conhece, nesses novos dias, por solidariedade
social, que induz à colocação de todos, com seus argumentos, identidades, alteridades e
pluralismos, porque, apesar das diferenças que os separam, a humanidade e a inserção
na vida em sociedade impõem uma aproximação inclusiva dos homens.619
Para arrematar numa palavra: “temos o direito a ser iguais quando a diferença
nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos
descaracteriza.”620
3- Instrumentos para assegurar a eficácia social dos direitos da pessoa idosa
3.1- As ações afirmativas
Com vistas a alcançar para os vulneráveis situação de igualdade substancial e
por meio da solidariedade social, as ações afirmativas apresentam-se como instrumentos
adequados a viabilizar a igualdade dos grupos sociais em situação de desigualdade de
fato. A Política Nacional do Idoso e Estatuto do Idoso, cujos planos de ação e abertura
incentivam o implemento de outros programas sociais em prol da pessoa idosa, são
exemplos de ações afirmativas com vistas ao direito à igualdade material dos idosos e
da superação de sua marginalização diante da sociedade utilitarista, sobremaneira
ocupada com o custo-benefício, que privilegia a produção, a competitividade, a
celeridade, a eficiência e a bela aparência de tudo que é novo. A velhice, por todas as
suas vicissitudes, aproxima-se de outros valores como a experiência, a sabedoria e a
certeza de não ser possível competir com o processo de envelhecimento, em virtude da
sua naturalidade, porque envelhecer e morrer são inerentes à natureza do ser humano. 621
Nessa altura, conclama-se o direito à igualdade substantiva, por tratar
igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, o que induz ao oferecimento de
619
Baseando-se em Michael Walzer, CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva, p. 88
arremata bem este ponto: “Mas é a tolerância política a regra da democracia. É ela que permite uma
confrontação ativa desatas convicções, crenças e engajamentos singulares. Ainda que as identidades
sociais sejam irredutíveis a qualquer padrão único ou universal, ainda que o particularismo seja a marca
da natureza humana, nada disso inviabiliza uma coexistência humana pacífica. Se o consenso definitivo é
inalcançável e se estamos condenados a viver em meio ao conflito, é a tolerância política que faz da
política democrática uma atividade permanente. É ela que obriga os indivíduos a argumentar, deliberar e
assumir responsabilidades permanentes.”
620
Frase cunhada por SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma concepção multicultural dos direitos
humanos, p. 458.
621
PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalitá constituzionale, p. 343: “Entre produção,
eficientismo de um lado e tutela da pessoa do outro, freqüentemente verificam-se confrontos que o
sistema tem resolvido a favor do personalismo e em detrimento de uma concepção fundada
exclusivamente na análise econômica do direito e sua valoração de custos e benefícios.” [Traduziu-se
livremente do italiano]
oportunidades concretas para os grupos socialmente inferiorizados.622 Num mundo
pluralista como o hodierno, a diversidade é algo comum, tendo em vista que as
necessidades das pessoas não são as mesmas e também dependem de condições
específicas em que cada agrupamento humano se insere.
Quando as diferenças são reconhecidas também pelo Poder Judiciário pode-se
dizer que ele atua no sentido de promover políticas públicas a partir do conteúdo de
igualdade e de solidariedade que emanam da sua decisão. Ademais, se sentenças
judiciais dão efetividade ao princípio da igualdade material alcança-se justiça social.623
Assim, é imperioso sejam as pessoas idosas colocadas em condições ideais de igualdade
em relação às jovens para, a um só tempo, obterem acesso universal e igualitário à
saúde consoante mandamento constitucional. Observe-se que, “com o objetivo de
colocar todos os membros da sociedade em condições iguais de competição pelos bens
622
Ensina HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da república federal da Alemanha.
Tradução de: HECK, Luís Afonso. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1988, p. 330: “O princípio da
igualdade proíbe uma relação desigual de fatos iguais; casos iguais devem encontrar regra igual; a questão
é, quais fatos são iguais e por isso não devem ser regulados desigualmente.”
623
Há julgados do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça que, efetivando os valores
da Constituição brasileira, aplicam o princípio da igualdade para tutelarem, em certas medidas, alguns
vulneráveis. Ao analisar o direito à igualdade das pessoas idosas opta por apresentar precedente que
concretiza o direito à igualdade substancial julgando correto o incentivo à contratação de pessoas, já não
tão jovens, portanto, mais vulneráveis no mercado de trabalho. STF. Ação direta de Inconstitucionalidade
n º1276- São Paulo. Relatora: Ministra Ellen Gracie. Julgada em: 29.08.2002. Publicada no Diário de
Justiça em: 29.11.2002.
Ementa:
“Ao instituir incentivos fiscais a empresas que contratam empregados com mais de quarenta anos, a
Assembléia Legislativa Paulista usou o carater extrafiscal que pode ser conferido aos tributos, para
estimular conduta por parte do contribuinte, sem violar os princípios da igualdade, da isonomia...’
Ao que parece, o princípio da igualdade substantiva é que norteou a política emanada do Legislativo e
confirmada pelo Judiciário.
Também acerca da ilegalidade do limite de idade no concurso de Fiscal de Tributos, STJ. Ação Rescisória
nº 1114- Rio Grande do Sul. Relator: Ministro Felix Ficher. Publicada no Diário de Justiça
em:21.10.2002.
Ementa:
‘ Ação Rescisória. Acórdão rescindendo proferido em recurso em mandado de segurança. Administrativo.
Matéria constitucional. Inaplicabilidade da Súmula 343/STF. Concurso público. Requisitos. Limite de
idade. CF, art. 7º, XXX.
Não se aplica a Súmula nº 343 do STF, pois a quaestio envolve violação a artigos da Lex Máxima.
II - A CF/88, em seu art. 7º, XXX, aplicável aos serrvidores públicos por força do art. 39, § 2º, proíbe a
infundada diferenciação na admissão para o serviço público por motivo de sexo, idade, cor, ou estado
civil. Hipótese em que o limite máximo de idade de 35 anos fixado para o concurso público para Fiscal de
Tributos Estaduais é ilegal por falta de razoável amparo jurídico. Tal exigência não se justifica por não
ser indispensável para o bom cumprimento da função a ser exercida. Precedentes. Pedido rescisório
procedente.”
da vida considerados essenciais, faz-se necessário, muitas vezes, favorecer uns em
detrimento de outros.”624
Significa que, em questões de saúde, pessoas idosas, tal como crianças e
adolescentes, possuem pelo princípio do seu melhor interesse, tutela prioritária em face
de pessoas de outra faixa etária exatamente pelo fato da compleição psicofísica e social
das últimas se apresentar mais favorecida enquanto a das primeiras mais frágil. Percebe-
se, então, que para se concretizar o princípio de igualdade, é preciso promovê-la, não
por meio de ações reparatórias cujo objeto é indenizar um dano legado,625 mas sim por
instrumento de ações distributivas, que objetivam oferecer igualdade de oportunidades
às pessoas envelhecidas.626
Parece, portanto, mais fácil convencer a sociedade a solidarizar-se com as
dificuldades de uma etapa da vida que, em princípio, todos hão de passar; o que não
acontece no caso de discriminações positivas em razão de raça, deficiência psicofísica
ou sexualidade. De fato, as conseqüências do envelhecimento a afetar diretamente as
pessoas idosas poderão ser experimentadas por cada ser humano. É comum também que
o sofrimento pela falta de saúde adequada na terceira idade toque os jovens cujos afetos
a vivenciam e contribua para lhes dotar de uma consciência humanista acerca das
dificuldades naturais da idade avançada a ponto de se conduzirem para a efetivação
624
DA SILVA, Fernanda Duarte Lopes Lucas. Princípio constitucional de igualdade. 2 ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2003, p. 61.
625
No sentido de reparar efeitos cumulativos de discriminações sociais vividas no passado por minorias
raciais, étnicas, de crenças religiosas e outros, veja-se DOS SALES SANTOS, Augusto. Ação afirmativa
e mérito individual. In: Ações Afirmativas Contra As Desigualdades Raciais. Organizadora: LOBATO,
Fátima. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 96.
626
As ações distributivas baseiam-se na compreensão de que o comportamento ético – de um ser humano
para com outro – abarca o conteúdo da justiça distributiva conforme postulado por Aristóteles em Ética à
Nicômacos. Tradução de: CURY, Mário da Gama. 3 ed. Brasília: UNB, 1985, pp. 96-97: “...O justo nesta
acepção é o meio termo entre dois extremos desproporcionais, já que o proporcional é um meio termo, e o
justo é o proporcional. [...] O justo nesta acepção é portanto o proporcional, e o injusto é o que viola a
proporcionalidade. Neste último caso um quinhão se torna muito grande e o outro muito pequeno, como
realmente acontece na prática, pois a pessoa que age injustamente fica com um quinhão muito grande do
que é bom e a pessoa que é tratada injustamente fica com um quinhão muito pequeno.”
dessas políticas legislativas, que, se não implementadas nada valem, assim como
escritos numa folha de papel que não se concretizam.627
Se alguns agravos físicos ou psíquico-sociais próprios da velhice são inexoráveis
à condição humana, ações afirmativas consagradas pela Política Nacional do Idoso e
pelo seu Estatuto constituem conquista social brasileira, de sorte que não se referem a
medidas temporárias, mas definitivas, em prol do bem estar das pessoas idosas.628
Logo, ações afirmativas apresentam-se na forma de instrumentos promocionais
da igualdade substancial para grupos de pessoas vulneráveis que se afiguram como
minorias, como são, no Brasil, os idosos.629 Em nosso país é corriqueiro que, no sentido
numérico, “minorias” seja o termo adequado para os mais abastados de toda ordem.630
Há de atentar, por conseguinte, que aqui o significado de minorias não quer fazer,
necessariamente, alusão ao sentido numérico do termo.631 O que identifica as minorias
para o Direito é o contexto concreto de vulnerabilidade, de marginalização, ou ainda de
discriminação, em que se encontram os membros de um grupo ou uma pessoa em face
627
VIEIRA, Oscar Vilhena e DUPREE, A. Scott. Reflexão acerca da sociedade civil e dos direitos
humanos. In: SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos. Ano 1, Nº 1, 2004, p. 53: “Concedemos
aos outros os direitos que desejamos que nos concedam. Teoricamente, reciprocidade se relaciona com a
diferença. Ela nos dá uma razão para esperar que pessoas diferentes necessariamente devam ser tratadas
como desejamos ser tratados. Portanto, ouvimos porque queremos ser ouvidos, e respeitamos a
propriedade alheia porque queremos assegurar nossa propriedade. A reciprocidade não expressa
qualidade transcendental alguma, de bem ou de mal. Ela não implica que assassinato, tortura, fome,
analfabetismo e doenças evitáveis sejam maus em si mesmos. Reciprocidade significa que não posso
aceitar certas coisas para os outros, a menos que as aceite para mim mesmo.”
628
Embora dissertando exemplificativamente a respeito de outras minorias, a posição de MADRUGA,
Sidney. Discriminação positiva: ações afirmativas na realidade brasileira. Brasília: Brasília Jurídica,
2005, também defende a existência de políticas afirmativas perenes, p. 60: “É o caso, por exemplo, das
comunidades indígenas e de quilombolas, cujas especificações, sobretudo as diretamente relacionadas a
sua identificação, saúde, habitat, requerem, por certo, o implemento de programas e políticas
governamentais de caráter permanente.”
629
Há autores que preferem o termo discriminação positiva de origem européia, a ação afirmativa, de
origem norte-americana como MAGRUGA, Sidney. Discriminação positiva: ações afirmativas na
realidade brasileira. A despeito da diferença do vernáculo tanto a ação afirmativa quanto a discriminação
positiva visam a alcançar, na prática, os mesmos resultados de igualdade de oportunidades para os
vulneráveis, marginalizados ou vítimas do preconceito.
630
O mesmo raciocínio é desenvolvido por PIRES, Maria José Morais. A discriminação positiva no
direito internacional e europeu dos direitos do homem. In: Revista de Documentação e Direito
Comparado, Lisboa, nºs 63 e 64, 1995, p. 52, referindo-se ao caso da África do sul como o mais flagrante
de minorias numéricas corresponde ao grupo dominante naquela sociedade.
631
No mesmo sentido, entre outros tantos, destaca-se MADRUGA, Sidney. Discriminação positiva:
ações afirmativas na realidade brasileira, p. 82, pela simplicidade e clareza que dá à idéia de minorias:
“Na identificação das minorias o critério quantitativo dá lugar a valores qualitativos dá lugar a valores
qualitativos, tais como os elementos sociais, econômicos e políticos aos quais s submete o grupo social,
tratado de forma desigual e injusta em comparação com os demais membros da sociedade.”
das maiorias, dado pelas situações de desigualdade fática vivenciadas entre elas e não
por meras questões numéricas. Quando se averigua que pessoas ou grupos sofrem por
exclusão social a ponto de precisarem da afirmação da sua igualdade material, torna-se
possível pensar que se tratam de minorias a necessitar de políticas públicas que visem à
sua emancipação. São, portanto, as situações postas que vão indicar quem gozará de
prerrogativas por meio de ações afirmativas.632
Numa palavra: “...A ação afirmativa tem por finalidade implementar uma
igualdade concreta (igualdade material), no plano fático, que a isonomia (igualdade
formal), por si só, não consegue proporcionar.”633 Portanto, a definição das ações
afirmativas deve abranger o seu caráter político, cujos objetos principais são a proteção
do direito constitucional à igualdade em substância e o afastamento de vulnerabilidades,
discriminações e preconceitos que afetam grupos compostos por seres humanos
considerados minorias, visando também à conscientização pedagógica de toda a
sociedade frente às intoleráveis desigualdades, de modo que essas, por meio dos
procedimentos afirmativos, sejam afastadas e que o imaginário coletivo as considere
execráveis.634
632
MADRUGA, Sidney. Discriminação positiva: ações afirmativas na realidade brasileira, p. 64
também elege as pessoas idosas como grupo vulnerável sujeito às políticas afirmativas em virtude de sua
saúde encontrar-se fragilizada perante as doenças que acometem principalmente pessoas dessa faixa
etária.
633
DE MENEZES, Paulo Lucena. Ação afirmativa (affirmative action) no direito norte-americano. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 29.
634
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade, p. 6 e 7:
“Concebidas pioneiramente pelo Direito dos Estados Unidos da América, as ações afirmativas consistem
em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da
igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem
nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até
mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes
de discriminação, mas também a discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade. De
cunho pedagógico e não raramente impregnadas de uma caráter de exemplaridade, têm como meta,
também, o engendramento de transformações culturais e sociais relevantes, inculcando nos atores sociais
a utilidade e a necessidade da observância dos princípios do pluralismo e da diversidade nas mais diversas
esferas do convívio humano. Constituem, por assim dizer, a mais eloqüente manifestação da moderna
idéia de Estado promovente, atuante, eis que sua concepção, implantação e delimitação participam todos
os órgão estatais essenciais, aí incluindo-se o Poder Judiciário, que ora se apresenta com o seu tradicional
papel de guardião da integridade dos sistema jurídico como um todo, ora como instituição formuladora de
políticas tendentes a corrigir as distorções provocadas pela discriminação. Construção intelectual
destinada a viabilizar a harmonia e a paz social, as ações afirmativas, por óbvio, não prescindem da
colaboração e da adesão das forças ativas, o que equivale dizer que, para o seu sucesso, é indispensável a
ampla conscientização da própria sociedade acerca da absoluta necessidade de se eliminar ou de se
reduzir as desigualdades sociais que operam em detrimento das minorias.”
Para colocar em prática o mecanismo afirmativo, revela-se essencial determinar
quem serão os beneficiários das ações afirmativas e como elas serão operacionalizadas,
de modo a não criar outras marginalizações e novas tiranias de valores e grupos.635
Desse modo, os programas em prol das minorias não devem provocar novas
discriminações por conta de uma super proteção dos que estavam antes à margem da
igualdade.636
No que toca as pessoas idosas é possível afirmar que sua proteção privilegiada, a
partir da exegese do Estatuto do Idoso imbricada com os princípios da Constituição da
República de 1988, não causa a referida tirania das antigas minorias. É que, enquanto
algumas pessoas idosas morrem, outras alcançam sessenta anos e passam a fruir da
tutela especial atribuída pela Lei. Assim, as pessoas jovens nunca serão minorias
qualitativas que sofrem pelos atributos conferidos às idosas. Note-se que essas possuem
tutela preferencial em face das jovens por uma questão de necessidade. Atente que,
também os jovens, já terão gozado da intervenção legal no sentido de seu melhor
interesse quando crianças e adolescentes. E não há mais quem diga que o Estatuto
dessas últimas fez com que se tornassem tiranas, porque efetivamente possuem
condições de vulnerabilidade particularíssimas que, depois de determinada idade,
cessam. A partir de então, os adolescentes que se tornam jovens terão responsabilidade
social para com idosos que serão um dia, bem como para com crianças e adolescentes
que foram.
O importante é cuidar da pessoa humana em suas circunstâncias e na medida de
suas necessidades. Para o direito não importa se o homem inicia sua vida, encontra-se
no meio ou no final dela. A vida está jungida ao princípio constitucional da dignidade e,
para que todos usufruam de igual dignidade social, determinados instrumentos
formulados pelo direito para as fases em que as vulnerabilidades são imanentes à
condição humana, contribuem para o alcance de igualdade material entre as pessoas na
sua alteridade de fato.
Saliente-se, pois, que o tratamento diferenciado na infância, na adolescência e na
velhice é cíclico, de modo que não há possibilidade de se argumentar que as pessoas
635
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Tradução de: GASCÓN, Marina. Madrid: Editorial
Trotta, 1995, p. 125: “Os princípios e os valores devem ser controlados para evitar que, adquirindo caráter
absoluto, se convertam em tiranos.” [traduziu-se livremente do espanhol]
636
DA SILVA, Fernanda Duarte Lopes Lucas. Princípio constitucional de igualdade, p. 64, afirma que,
não se pretende com a ação afirmativa apenas trocar os beneficiários de uma estrutura excludente para,
com isso, criar outra, formada agora por aqueles que eram considerados maiorias.
idosas exercem tirania em face das mais bem dotadas de atributos naturais inerentes à
juventude. Nesse sentido, “a discriminação razoável é autorizada e se faz mesmo
necessária, sob pena de se esvaziar o princípio, também constitucional, da igualdade
substancial.”637
Historicamente, as ações afirmativas objetivavam temas de interesse público em
sentido estrito, como a experiência de haver quotas para negros nas universidades
americanas, a fim de facilitar o acesso de todos à educação, uma vez que pessoas da
raça negra eram – e ainda são – minorias, no sentido de se apresentarem marginalizadas,
discriminadas, numa palavra: vulneráveis em relação à população de cor branca nos
Estados Unidos da América.638
Observa-se, na atualidade, que o mecanismo afirmativo também se constitui
adequado para enfrentar situações privadas nas quais o desequilíbrio entre as partes não
se mostra de interesse coletivo, como, por exemplo, a situação do sócio minoritário em
face dos majoritários em sociedades e associações.639 Esse alargamento de abrangência
637
TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. Minorias no direito civil brasileiro. In: Revista
Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, Ano 3. v . 10 Abril /Junho/ 2002, p. 155.
638
As pessoas da raça negra também sofrem marginalização e discriminação no Brasil onde já existem
ações afirmativas com o intuito de corrigir essas distorções tais como: a Constituição do Estado da Bahia
de outubro de 1989 que no seu art. 289 dispõe que sempre que for veiculada publicidade estadual com
mais de duas pessoas será assegurada a inclusão de uma da raça negra; projeto de Lei 650/99 que institui
ações afirmativas em prol da população brasileira afrodescendente, com ênfase em campanhas educativas;
destinação de cota de 20% no preenchimento de cargos e empregos públicos, nos acesso a vagas no curso
superior e nos contratos do FIES, no prazo de 50 anos modificação, gratuita e a pedido, do registro civil e
certidão de nascimento quanto à cor e características étinicoculturais; projeto de Lei 3.198/2000 que
institui o estatuto da igualdade racial, com ênfase nas áreas de saúde, educação, terras de quilombos, do
trabalho, dos meios de comunicação, além de e estabelecer sistema de cotas em concursos públicos e uma
ouvidoria permanente; portaria 1.156/2001 do Ministério de Estado da Justiça que instituiu o programa de
ações afirmativas do Ministério da Justiças, com ênfase no preenchimento de cargos de direção e
assessoramento superior , com estabelecimento de metas (porcentagem) de participação de certos grupos
como o composto por afrodescendentes; concorrência nº 3/2001 do STF que estabelece em edital a
contratação de serviços a observância de 20% de negros e negras no recrutamento e seleção de
profissionais pela contratanda; projeto de Lei nº 6.912/2002, que institui ações afirmativas em prol da
população brasileira afrodescendente, com destaque para campanhas educativas, incentivo a candidaturas
em cargos eletivos; destinação de cotas para o preenchimento de cargos e empregos públicos e no acesso
às universidades públicas e privadas; Lei 4.151/2003-RJ, que institui nova disciplina sobre o sistema de
cotas para estudantes da rede pública de ensino, negros, minorias étnicas e pessoas com deficiências para
o ingresso mas universidades públicas estaduais do Rio de Janeiro; projeto de Leinº 3.627/2004 com
instituição de sistema especial de reserva de vagas para estudantes egressos das escolas públicas, em
especial, negros e indígenas, nas instituições públicas federais de educação superior; Medida provisória
213/2004 que institui o programa universidade para todos, o PROUNI em prol de estudantes brasileiros
não portadores de diploma de curso superior, dentre os quais alunos e professores da rede pública, alunos
bolsistas da rede privada, pessoas com deficiência, negros e indígenas.
Esses dados foram colhidos da obra de MADRUGA, Sidney. Discriminação positiva: ações afirmativas
na realidade brasileira, pp. 127-129.
639
TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. Minorias no direito civil brasileiro, p. 138.
das ações afirmativas ocorre porque situações de desigualdade extrema, que atentam
contra o princípio da igualdade, podem ocorrer nos espaços públicos e privados e os
princípios constitucionais incidem, segundo a melhor doutrina, em relações de natureza
pública ou privada. 640
Anote-se que a situação de inferioridade das pessoas idosas encontra-se no ponto
de congruência entre a esfera pública e a privada. Se, no ambiente privado, os velhos
são maltratados ou enganados por sua vulnerabilidade que advém da idade, não se pode
dizer que esse problema contempla uma situação desprovida de interesse coletivo.
Ao contrário da hipótese de sócios minoritários oprimidos pelos majoritários nas
relações privadas de sociedade ou associação, onde inexiste interesse coletivo de
intervir na situação de desigualdade embora sua equalização seja adequada pela
circunstância de desequilíbrio entre eles,641 nas questões dos idosos há amplo interesse
particular deles mesmos, de sua famílias, mas também do Estado e da sociedade, posto
que, amparar a pessoa idosa é mandamento constitucional de índole fundamental e sua
proteção é de interesse público imediato confirmado pela Política Nacional do Idoso e
por seu Estatuto.
Repare que quando o parágrafo único do art. 3º do Estatuto do Idoso expõe,
exemplificativamente, dos incisos I a VIII, o que compreende a garantia de prioridade
dada à pessoa idosa, refere-se a finalidades cujos contornos serão desenhados, na
prática, por iniciativa de seus sindicatos, do Ministério Público, das sentenças judiciais,
das proposições da sociedade, da comunidade em que se inserem e também da iniciativa
privada.642
640
No sentido da incidência direta dos direitos constitucionais fundamentais nas relações entre privados
destaca-se pioneiramente no Brasil TEPEDINO, Gustavo. Direitos humanos e relações jurídicas
privadas, p. 66: “... A proteção dos direitos humanos não mais pode ser perseguida a contento se
confinada no âmbito do direito público, sendo possível mesmo aduzir que as pressões do mercado,
especialmente intensas na atividade econômica privada, podem favorecer uma conspícua violação à
dignidade da pessoa humana, reclamando por isso mesmo um controle social com fundamento nos
valores constitucionais. [...] A constituição da República, ponto de equilíbrio entre as diversas forças
políticas nacionais, oferece parâmetros para o exercício do necessário controle da atividade econômica
privada. Seja por seu caráter compromissório, seja pela maior estabilidade do processo legislativo
necessário à sua revisão, seja por sua posição hierárquica no ordenamento jurídico, deve ser utilizada sem
qualquer cerimônia pelo operador, aproveitando-se da opção do constituinte pela intervenção nos
institutos de direito civil, como propriedade, família, atividade empresarial, relações de consumo.”
641
Nesse sentido os próprios TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. Minorias no direito civil
brasileiro, p. 136.
642
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade, p. 41, refere-
se às ações afirmativas promovidas por diversos atores sociais: “Tratam-se de mecanismos de inclusão
concebidos por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com
Afastando-se um pouco da análise das ações afirmativas, mas tendo-as como
pano de fundo, cumpre assinalar que o Estatuto do Idoso possui mandamentos de índole
proibitória, bem como tipifica crimes contra a pessoa idosa do art. 96 ao art. 109 da Lei,
estabelecendo sansões a quem praticá-los, acrescidos das alterações nos arts. 110, 121,
133, 140, 141, 148, 159, 183, do Decreto-Lei nº 2.848 de dezembro de 1940, no art. 21
do Decreto-Lei nº 3.688 de outubro de 1941, no art. 1º da Lei 9.455 de abril de 1977, no
art. 18 da Lei nº 6.368 de outubro de 1976, de acordo com seus arts. 110 a 113. Nesses
casos, o direito funciona como técnica social específica capaz de encorajar condutas
lícitas e desencorajar as ilícitas por instrumento do princípio da imputação que persuade
o ser humano a agir de acordo com o dever ser sob pena de sanção atribuída pela ordem
jurídica.
Os enunciados normativos de índole proibitória e os que determinam
penalidades aos infratores dos preceitos legais têm também caráter educativo no
referido Estatuto. O que sobreleva nesta Lei e na Lei da Política Nacional do Idoso são
os enunciados normativos que direcionam para o respeito, a conscientização e a
humanização do Estado, da família, da sociedade, da iniciativa privada, para as
vicissitudes da terceira idade, de modo que, retornando às políticas afirmativas, afirma-
se que elas possuem ainda o condão de levar a sociedade à reflexão do seu porquê, o
que, em última análise, gera críticas ou aplausos.643 O importante é que a partir de uma
ação afirmativa promocional dos interesses de grupos socialmente inferiorizados, todos
são tocados por ela, pois os debates acerca da sua juridicidade aparecem na mídia, há
discussões sobre o tema, e as comunidades freqüentemente não sabem se ela implanta
realmente a justiça pois privilegia uns em detrimento de outros. O que se quer pontuar é
que a experiência de uma ação afirmativa não permite mais a indiferença em relação ao
644
Uma das mais influentes vozes na defesa do consumidor no Brasil atentou, antes da promulgação do
Estatuto do Idoso para a necessidade de se formularem ações afirmativas em benefício da pessoa idosa
consumidora de plano de saúde. Cf. MARQUES, Cláudia Lima. Solidariedade na doença e na morte, p.
222: “Sem querer realizar uma conclusão stricto sensu para este trabalho gostaria, porém, de frisar que
este estudo demonstrou de forma inequívoca a importância e a premência da ciência do Direito privado
assegurar uma necessária e mínima ‘solidariedade na doença e na morte’ através de uma engenharia mais
justa para estes contratos cativos de longa duração, de planos funerários e planos de saúde. A atuação de
‘discriminação positiva’ do consumidor idoso ainda é pequena no Brasil e o Direito do consumidor
representa apenas um aspecto das necessidades de ações afirmativas em favor dos idosos na sociedade
brasileira. Esperamos que o sistema jurídico brasileiro, em especial o Estado-legislador e o Estado-
executivo, possam realizar as necessárias ‘ações afirmativas’ para a proteção do consumidor idoso...”
645
Art. 9º da Lei nº 10. 741 de outubro de 2003.
atendimento domiciliar, incluindo internação nos meios urbano e rural, possibilitar a
reabilitação orientada pela geriatria e pela gerontologia no intuito de reduzir seqüelas
decorrentes de agravo, além de legislar acerca do atendimento especializado que terão
os idosos portadores de deficiência ou com limitação incapacitante, como ordena a Lei.
3.2 – As ações coletivas
No seguimento da análise dos mecanismos democráticos que visam a assegurar
o direito à igualdade substantiva das pessoas idosas, também devem ser apreciadas as
ações coletivas.
Para introduzir essa temática faremos referência às origens das ações de natureza
coletiva que remontam às class actions.
Observam-se, na tradição constitucional dos Estados Unidos da América,
movimentos do povo, de maneira direta, no exercício do poder político e, nesse
contexto, incluem-se as class actions.646
A class action norte-americana ainda pode ser definida como: “o procedimento
em que uma pessoa, considerada individualmente, ou um pequeno grupo de pessoas,
enquanto tal, passa a representar um grupo maior ou classe de pessoas, desde que
compartilhem, entre si, um interesse comum.”647 Relata-se que a origem das class
actions norte americanas remonta ao Direito inglês do século XVII648, do chamado Bill
of Peace que possibilitava, por instrumento da representatividade, propor ou sofrer
ações provenientes de um interesse comum, portanto, cujo número de representados era
tão grande que inibia ações individuais.
No Brasil, as influências das class actions têm incidência na averiguação das
possibilidades do mandado de segurança coletivo e da ação civil pública assegurarem
646
PERIN JUNIOR, Ecio. Aspectos Relevantes da tutela coletiva dos consumidores no direito italiano em
face do direito comunitário europeu: ‘class actions’ norte-americanas e a experiência brasileira. In:
Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n 38. Abril/ Junho/2001, p. 48: “um
dos institutos fundamentais do processo civil norte-americano, fundada sob a igualdade, pressupõe de fato
a existência de um número elevado de titulares em posições individuais de vantagem sobre o plano
substancial, permitindo um tratamento processual unitário e simultâneo em razão da presença em juízo de
um único expoente da classe.”
647
BUENO, Cássio Sacarpinella. As class actions norte americanas e as ações coletivas brasileiras:
pontos para uma reflexão conjunta, p. 93.
Nesse sentido, ALVIM, Arruda. A ação civil pública – sua evolução normativa significou crescimento
648
em prol da proteção às situações coletivas. In: A Ação Civil Pública Após 20 anos: Efetividade e
Desafios. Coordenador: MILARÉ, Edis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 75.
igualdade para todos os membros de determinada classe a pleitear judicialmente a tutela
de um interesse comum.649
Para parte da doutrina que tenta fazer um paralelo identificando os pontos em
comum da class action e do mandado de segurança coletivo brasileiro650, seria possível
ampliar seu sentido de modo que a expressão, entidade de classe, fosse entendida como
“qualquer coletividade de pessoas que se reunam em torno de objetivos comuns,
exatamente no sentido que a common law confere às class actions.”651
Esta proposta retrata modo plausível para o julgamento de questões que dizem
respeito a grupos que, notadamente, não possuem instrumentos adequados de acesso à
justiça por meio dos quais postulem seus interesses específicos. O mandado de
segurança coletivo, interpretado desse modo extenso, poderia tutelar esses grupos de
cidadãos vulneráveis, funcionando como meio de acesso à justiça e, simultaneamente, à
democracia de inclusão.
Por outro lado, outros posicionamentos doutrinários identificam na Lei da Ação
Civil Pública, nº 7. 347 de 24 de julho de 1985, com os acréscimos que lhe conferiram a
Constituição da República de 1988 e o Código de Defesa do Consumidor de 1990,
similaridade em relação às class actions norte-americanas, no sentido de ambas
buscarem a tutela coletiva e o acesso à justiça com efetividade.652
Portanto, a tutela coletiva de direitos no Brasil inspirada nas class actions for
damages norte-americanas, está presente na Lei nº 7. 347, que disciplina as ações civis
públicas, na Constituição da República de 1988, em seu art. 129, III, ao tratar da
649
BUENO, Cássio Sacarpinella. As class actions norte americanas e as ações coletivas brasileiras:
pontos para uma reflexão conjunta. In: Revista de Processo. Ano 21, nº 82, Abril/ julho/1996, p. 96:
“Parece que pode ser afirmado, neste contexto, que o vetor da igualdade justifica este tratamento como
ação coletiva: com uma penada, estará definida qual a situação normativa que deve ser a prevalecente.”
Cf. definição do art. 5º . LXX – “O Mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:
650
654
Nesse sentido, CAPPELLETTI, Mauro. A tutela dos interesses difusos. Tradução de: AZEVEDO,
Tupinambá Pinto. In: Revista Ajuris, nº 33, s. d., p. 169-182.
655
Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1990, passim.
encartando-se a Ação Popular, a Ação Civil Pública e o Mandado de
Segurança Coletivo como instrumentos concorrentes na defesa desses
direitos eclipsados por cláusulas pétreas.
5. Deveras, é mister concluir que a nova ordem constitucional erigiu
um autêntico ‘concurso de ações’ entre os instrumentos de tutela dos
interesses transindividuais e, a fortiori, legitimou o Ministério Público
para o manejo dos mesmos.
6. Legitimatio ad causam do Ministério Público à luz da dicção final
do disposto no art. 27 da CF, que o habilita a demandar em prol de
interesses indisponíveis.
7. Sob esse enfoque, se destaca a Constituição Federal no art. 230: ‘A
família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas
idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua
dignidade e bem estar e garantindo-lhes o direito à vida.’
Conseqüentemente a Carta Federal outorgou ao Ministério Público a
incumbência de promover a defesa dos interesses individuais
indisponíveis, podendo, para tanto, exercer outras atribuições previstas
em lei, desde que compatível com sua finalidade institucional (CF,
arts. 127 e 129).
8. O direito à saúde, esculpido na Constituição Federal e no Estatuto
do Idoso, é direito indisponível, em função do bem comum, maior a
proteger, derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem
pública que regulam a matéria.
9. Outrossim, o art. 74, inc. III, da lei 10.741/2003 revela a
autorização legal a que se refere o art. 6º do CPC, configurando a
legalidade da legitimação extraordinária cognominada por Chiovenda
como ‘substituição processual’.
10. Impõe-se, ressaltar que a jurisprudência hodierna do E. STJ admite
ação individual capitaneada pelo MP (Precedentes: REsp 688052/RS,
Ministro HUMBERTO MARTINS, DJ 17.08.2006; REsp 822712/RS,
Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJ 17.04.2006; REsp
819010/SP, Ministro JOSÉ DELGADO, DJ 02.05.2006).
11. O direito á saúde assegurado ao idoso é consagrado em norma
constitucional reproduzida nos arts, 2º, 3º e 15, § 2º do Estatuto do
Idoso (Lei 10.741/2003), senão vejamos:
Art. 2º O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta
Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou outros meios, todas as
oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e
mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual, e social,
em condições de liberdade e dignidade.
Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do
Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a
efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à
cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à
dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
(...)
Art. 15 É assegurada atenção integral à saúde do idoso, por intermédio
do Sistema Único de Saúde – SUS, garantindo-lhe o acesso universal
e igualitário, em conjunto articulado e contínuo das ações e serviços,
para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde,
incluindo atenção especial às doenças que afetam preferencialmente
os idosos.
§ 1º (...)
§ 2º Incumbe ao Poder Público fornecer aos idosos, gratuitamente,
medicamentos, especialmente os de uso continuado, assim como
próteses, órteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação
ou reabilitação.
12. Recurso especial provido para reconhecer a legitimidade ativa do
Ministério Público Estadual.”656
656
STJ. Recurso Especial nº 851.174- RS (2006/0104574-3). Recorrente: Ministério Público do Estado do
Rio Grande do Sul. Recorrido: Estado do Rio Grande do Sul. Primeira Turma. Relator: Ministro Luiz
Fux. Julgado em: 24.10.2006.
657
STJ. Recurso Especial nº 878.960-SP (2006/0187015-1). Recorrente: Ministério Público do Estado de
São Paulo. Recorrido: Município de Santos. Segunda Turma. Relator: Ministro João Otávio de Noronha.
Julgado em: 21.08.2007.
658
No mesmo sentido, GAVRONSKI, Alexandre Amaral. Das origens ao futuro da lei de ação civil
pública: o desafio de garantir o aceso à justiça com efetividade, p. 31.
judiciais forem julgadas favoravelmente a dada política pública em prol da pessoa idosa
tal precedente fará também política nesse propósito.659
Ademais, o art. 82 do Estatuto do Idoso dispõe que: “para a defesa dos interesses
e direitos protegidos por esta Lei, são admissíveis todas as espécies de ações
pertinentes” o que corrobora o princípio norteador do melhor interesse da pessoa
idosa.660
Para finalizar, considera-se pertinente a seguinte observação:
“O Estatuto do Idoso, por si só, não é suficiente para concretizar e
fazer cumprir as suas determinações, o que significa que cada vez
mais o movimento social dos idosos, tendo estes como verdadeiros
atores e protagonistas coletivos, deverá empenhar-se na luta pelos seus
direitos, por conquistas sociais e pela cidadania.
Enfim, essas conquistas só serão plenamente alcançadas se
revertermos a participação tutelada do idoso para uma proposta de
cidadania emancipada, onde o idoso se torne verdadeiramente a(u)tor
protagonista – ‘sujeito testemunha’ – de sua própria história, com a
co-participação de toda a sociedade, sem que os idosos dependam que
se lute por eles, mas que estejamos aliados na luta com eles.” 661
Conclusões
659
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A ação civil pública como instrumento de controle judicial das
chamadas políticas públicas, registra na p. 742 o reconhecimento da judiciabilidade das políticas
públicas.
660
Nesse sentido, DE PINHO, Humberto Dalla Bernardina. A tutela coletiva e o estatuto do idoso. In:
Revista da Emerj, nº 32, vol. 8/2005, p. 194: “O legislador quer deixar bastante claro que está disposto a
defender o interesse dos idosos a qualquer custo. Não se deve obstar, portanto, com o amparo nesse
dispositivo legal, qualquer argumento formal ou de natureza procedimental, devendo o juiz fazer uso do
princípio da fungibilidade em prol do idoso.
E mais, havendo dúvida, quer nos parecer que a interpretação deve ser sempre favorável ao idoso.”
661
PAZ, Serafim Fortes. Movimentos sociais: participação dos idosos. In: Tempo de Envelhecer:
Percursos e Dimensões Psicossociais Organizadores: PY, Ligia, DE SÁ, Jeanete Liasch Martins,
PACHECO, Jaime Lisandro e GOLDMAN, Sara Nigri. Rio de Janeiro: NAU, 2004, p. 249-250.
atribuir igualdade substancial, por meio de direitos especiais, onde há desigualdade de
fato. Todavia, a vulnerabilidade dos anciãos não se coaduna com a restrição dos seus
direitos de personalidade e da sua capacidade de fato, que permanecem incólumes.
2ª Apesar de haver várias teorias biológicas e psicológicas acerca do
envelhecimento humano, o que torna impossível um conceito homogêneo de idoso;
muito embora parte da doutrina já tenha se manifestado pouco à vontade com a
determinação da Política Nacional do Idoso e do Estatuto do Idoso, destinados a regular
os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos,
com o receio de cometer injustiças a partir da fixação de um critério meramente
cronológico, pensa-se que, na seara legal, não estabelecer um marco para o início do
gozo de direitos especiais em função da velhice seria mais problemático. A falta de uma
determinação legal de quem seja idoso para os fins da Política Nacional do Idoso e do
Estatuto do Idoso daria azo a subjetivismos de toda ordem, o que acabaria por
privilegiar uns em detrimento de outros, diante das novas legislações de cunho
protecionista da pessoa idosa. O critério adotado pela Política Nacional do Idoso e do
Estatuto do Idoso parece adequado posto que, além de informado por estudos da
Organização Mundial de Saúde a respeito do envelhecimento, coadunar-se com a
técnica legislativa brasileira de fixar a idade para o exercício de certos direitos e deveres
compatíveis com um determinado corte etário.
3ª O idoso doente possui vulnerabilidade exacerbada, razão pela qual deve ser
amplamente informado sobre as intervenções nos domínios de seu corpo e mente, a fim
de optar pelo tratamento que lhe for reputado mais favorável. A informação acerca do
tratamento proposto para o doente idoso será adequada se levar em conta também as
vulnerabilidades oriundas de seu estado de saúde. Serão determinantes dos
procedimentos médicos, as vontades manifestadas pelo idoso relativamente capaz,
desde que assistido. O idoso absolutamente incapaz será representado pelas pessoas a
que o parágrafo único do art. 17 do Estatuto do Idoso faz referência.
Diante de doença terminal, defende-se a possibilidade de o idoso optar por
tratamentos paliativos que não posterguem sua vida de maneira fútil, mas, ainda que ele
queira, não há que deixá-lo doente sem qualquer tipo de tratamento para o alívio das
dores e dos mal estares. Na certeza de doença incurável, o direito deve dar
preponderância à qualidade de vida da pessoa idosa em relação à quantidade, aplicando-
se, assim, o princípio da dignidade da pessoa humana no ambiente privado. Porém, se o
paciente idoso prefere a distanásia, é direito seu ter acesso a ela, pelo mesmo princípio
da dignidade da pessoa humana, que lhe dota de poder de autodeterminação.
Só a supremacia dos interesses coletivos limitará o exercício do consentimento
informado do doente idoso em caso de ele ser portador de enfermidade transmissível a
outras pessoas.
4ª Proclamar saúde de acordo com o critério da Organização Mundial de Saúde:
“um estado de completo bem-estar físico, mental e social além da ausência de afecção
ou doença” parece utópico na terceira idade, pois – ressalvados casos raros de anciãos a
gozar da saúde referida, que deverá ser preservada pela Medicina e pelo Direito –
comumente faz parte do envelhecimento um processo biológico intrínseco, declinante e
universal, no qual se podem reconhecer marcas físicas e fisiológicas inerentes, não mais
possíveis de se apagar.
Na maioria dos casos, considera-se mantido o estado de saúde da pessoa idosa
em termos médicos e jurídicos se, apesar de possuir determinada afecção, ela
experimenta qualidade de vida, capacidade funcional e preservação de sua autonomia.
5ª Dentre os direitos fundamentais de todas as pessoas, a saúde desponta como
direito de natureza prioritária da pessoa quando idosa. Identifica-se a saúde como direito
prioritário da pessoa idosa por três motivos. Em primeiro lugar, pela freqüência e pela
rapidez em que, na terceira idade, a saúde se esvai, tornando o idoso mais suscetível aos
agravos psicofísicos e ao alijamento social que colocam em xeque a vida saudável, sem
a qual não há uma existência envolta pela dignidade. Em segundo lugar, pelo fato de o
direito à saúde – aliado aos direitos à previdência ou à assistência e à moradia, todos de
índole fundamental social – funcionar como pressuposto para que se exercitem outros
direitos dos idosos, tanto individuais, quanto sociais. Em terceiro lugar, pela
necessidade de se conferir às pessoas idosas prioridade no acesso à saúde em face de
direitos concorrentes da mesma estirpe de pessoas de outras faixas etárias, em virtude da
menor capacidade de resistência do idoso para aguardar o tratamento de saúde.
6ª O art. 12 do Estatuto do Idoso inaugura uma nova regra de prestação de
alimentos às pessoas idosas a fim de melhor protegê-las.
Enquanto o Código Civil, em seu art. 1.696, determina que a obrigação
alimentícia recai, entre ascendentes e descendentes, nos parentes mais próximos em
grau e o art. 1.697 complementa que, só na falta de ascendentes a obrigação alimentar
caberá aos descendentes, de acordo com a ordem de sucessão e também que, só na falta
dos descendentes, a obrigação caberá aos irmãos; o referido art. 12 dispõe que “a
obrigação alimentar é solidária, podendo o idoso optar entre os prestadores.”
Desse modo, o idoso é senhor da opção de acionar o cônjuge ou o parente
melhor abastado como seu alimentante para que obtenha, o mais brevemente possível e
com maior certeza, a prestação da qual necessita sem justificar porque.
De certo modo, o alimentante também resulta beneficiado por esta regra, pois
não sofrerá grave prejuízo em sua fortuna já que, contrariamente ao regime de alimentos
do Código Civil em que não cabe solidariedade, na forma proposta pelo Estatuto do
Idoso ela consta instituída entre pais, filhos, netos, irmãos e cônjuge. Portanto, o
alimentante poderá, na forma do art. 283 do Código Civil, usar de seu direito de
regresso em face dos demais devedores solidários.
7ª Critica-se a inexistência de um conceito legal de idoso no Brasil, o que dá ao
legislador o arbítrio de fixar a idade que queira para a aferição dos direitos da pessoa
idosa sem um critério científico que justifique porque aquela idade foi escolhida para o
início da fruição de determinado direito. Esta situação merece críticas mais severas
quando impõe uma idade acima dos 60 (sessenta) anos para o gozo da assistência social
por pessoa idosa não só vulnerabilizada em razão da idade, mas também em razão de
sua condição miserável, na forma do art. 34 do Estatuto do Idoso.
8ª Todos os diversos direitos atribuídos aos idosos devem ser constantemente
perseguidos pelo Direito. Compreende-se que o gozo de outros direitos contribuem para
que o idoso aufira condições ainda mais saudáveis de vida. Entretanto, em
circunstâncias extremas, esses outros direitos podem até faltar, mas a saúde, no sentido
oposto ao da doença, não. Sem saúde não há vida em condições mínimas de dignidade
para o idoso, razão pela qual se reafirma que ela é direito prioritário da pessoa idosa.
9ª O dever de amparar da pessoa idosa previsto pelo art. 230 da Constituição da
República brasileira, implica a existência do direito subjetivo do idoso ao amparo. Tal
direito, pelo seu conteúdo de significado e por sua relevância atual, pode ser equiparado
aos direitos fundamentais e ter, em seu favor, o mesmo tratamento destinado a esses
pela interpretação do art. 5º, § 2º da Constituição, já que objetivo desse artigo é o de
expandir e aperfeiçoar o catálogo de direitos fundamentais por meio do critério da
atipicidade.
10ª A discussão sobre princípios é relativamente recente, iniciada no segundo
quartel do século passado. Desse modo, o Direito ainda não alcançou homogeneidade na
definição de princípios e se encontra em desenvolvimento a construção dos seus
significados e das suas possibilidades de aplicação na interpretação jurídica. Portanto,
mesmo que suscetíveis à crítica, as proposições acerca dos princípios apresentadas nesse
trabalho, contêm critérios desenvolvidos pelos teóricos a direcionar o intérprete na
visualização e na aplicação dos princípios, haja vista a necessidade inarredável de
encontrá-los no âmbito do ordenamento e de aplicá-los na tarefa de interpretação do
Direito dos dias atuais.
11ª Três princípios podem ser extraídos da interpretação do Estatuto do Idoso
iluminada pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: os sub-
princípios da proteção integral do idoso e da absoluta prioridade outorgada ao idoso que
conformam o princípio do melhor interesse do idoso.
12ª O princípio do melhor interesse do idoso constitui critério teleológico-
objetivo da interpretação a justificar a tomada de decisões em benefício do idoso, possui
dimensão de peso, a qual ganhará relevância no sopesamento com outros princípios que
com ele colidam, apresenta-se na modalidade de comando de otimização, ou seja,
ordena que o melhor interesse do idoso se realize na maior medida possível, de acordo
com as possibilidades jurídicas e fáticas dadas por um caso concreto ou formuladas em
abstrato, que envolvam o idoso. O referido princípio possui como qualidade a
determinação da realização de um fim juridicamente relevante, o melhor interesse do
idoso, que só será realizado se adotado certo comportamento: sua interpretação e
aplicação demandam avaliação da correlação entre o estado de coisas colocado como
fim – o melhor interesse do idoso – e os efeitos decorrentes dessa conduta tida como
necessária, isto é, a efetividade do princípio na prática.
13ª O sub-princípio da proteção integral e o sub-princípio da absoluta prioridade
consubstanciam um só princípio: o do melhor interesse do idoso. Isso ocorre porque os
princípios precisam, para se realizarem, de uma concretização através de sub-princípios
e valores singulares, com conteúdo material próprio. Mas o princípio do melhor
interesse do idoso é a idéia diretiva que serve de base a estes sub-princípios. Assim, da
mesma forma que a proteção integral e a absoluta prioridade compõem o princípio do
melhor interesse do idoso, este indica a direção dessa proteção e dessa prioridade, num
movimento de junção de significados que gera uma acepção compatibilizada: a pessoa
idosa faz jus à tutela integral e prioritária de acordo com seu melhor interesse.
14ª A regra do art. 1.641, inciso II, do Código Civil de que “é obrigatório o
regime da separação de bens no casamento de pessoa maior de 60 (sessenta) anos”
contraria o princípio do melhor interesse do idoso, na medida em que contraria o sub-
princípio da sua proteção integral por desrespeitar sua capacidade de fato e o
desenvolvimento livre de sua personalidade nas decisões acerca de sua vida privada. O
princípio do melhor interesse do idoso, extraído de Lei posterior ao Código Civil e
especialíssima na tutela do idoso ilumina a interpretação acerca dos interesses dessa
pessoa incidindo em face Lei ordinária anterior. Na ponderação da referida regra do
Código Civil com o arcabouço axiológico do princípio do melhor interesse do idoso –
que visa a preservar a saúde física e mental do idoso, além de seu aperfeiçoamento
moral, intelectual, espiritual e social em condições de liberdade e dignidade –
prevalecerá esse que, em última análise, tutela a integridade psíquica do idoso, substrato
de seu direito à saúde, tornando, pois, inválida a regra do art. 1.641, inciso II, do Código
Civil.
Ademais, a normativa constitucional, hierarquicamente superior às leis
ordinárias, elege como objetivo fundamental da República promover o bem de todos,
sem preconceitos de idade, na forma do art. 3º, inciso IV, razão derradeira pela qual se
defende a invalidade da regra do art. 1.641, inciso II, do Código Civil, por sua
inconstitucionalidade.
Com base nessa assertiva também se considera materialmente inconstitucional e,
por conseqüência, inválido, o dispositivo do art. 40, § 1º, inciso II, da própria
Constituição da República ao prescrever que o idoso, quando servidor público, terá de
se aposentar, compulsoriamente, aos setenta anos.
15ª Os direitos das crianças, dos adolescentes e dos idosos, conforme se extrai
das legislações pátrias, possuem várias aproximações. O princípio do melhor interesse
do idoso se constrói em analogia com o princípio do melhor interesse da criança e do
adolescente, porque crianças, adolescentes e idosos compartem a mesma característica
que os particulariza: a vulnerabilidade jurídica em razão da idade.
16ª Os princípios do melhor interesse da criança, do adolescente e do idoso são
construções doutrinárias extraídas do art. 5º, § 2º da Carta Constitucional, mas provêem
de momentos diferentes do mesmo dispositivo. O princípio do melhor interesse das
crianças e dos adolescentes decorre de tratado internacional ratificado pelo Brasil. O
princípio do melhor interesse do idoso decorre da não exclusão de outros direitos e
garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição.
Compreende-se que o princípio do melhor interesse do idoso é garantia de proteção das
pessoas idosas, decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana idosa em sua
unicidade de ser encanecido e, portanto, recepcionado pelo art. 5º, § 2º da Constituição.
17ª A Constituição da República dispõe em seu art. 227 que:
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e
ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
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