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Texto enviaclo em 30.06.2021 Aprovado em (04.11.2022 *Doutor em Teologia pela Pontificia Universidade Catblica do Rio de Janeiro (PUCRI. Professor da Faculdade Unida de Vitéria. Contato: osvaldo@ faculdadeunida.com.br DOI - 10.23925/2236-9937.2022v28p193-218, Autor, leitor, texto. Sobre leitura como jogo e seus referenciais pragmaticos Author, reader, text. About reading as a game and its pragmatic referentials Resumo Proposta de solugéo do conflito das intengdes (intentio auctoris, intentio lec- foris © intentio operis) conforme expresso em Interpretacéo € superinterpretacdo, de Umberto Eco. O caminho metodolégico con- siste nos seguintes passos: a) com base em Johan Huizinga, aplicar a nogao de jogo a pré- tica de leitura, estabelecendo 0 fato de que as regras de interpretago constituem funcao especifica de cada jogo de leitura; b) discernir 08 tipos de jogos de leitura com base nos trés tipos de pragmatica: estatica, politica e heu- ristica: c) com base em Peirce, assumir cada uma das trés instancias de sentido o papel de referencial semidtico de um especifico tipo de jogo de leitura; d) concluir que a pluralidade de interpretagdes possiveis de um texto constitui fung&o da aplicac&o das regras intemas de cada jogo de leitura. Conclui-se, de um lado, que jogos estéticos e jogos politicos de leitura produzem potencialmente infinitas interpreta- G0es @ que apenas jogos heuristicos de lei- tura efetivamente podem impor limites para a interpretacao, e, de outro, que o resultado de cada um desses jogos de leitura s6 pode ser avaliado com base nas suas proprias regras. 193 ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 Palavras-chave: intentio auctoris; intentio lectoris; intentio operis; jogos de leitura Abstract A proposal to solve the conflict of intentions (intentio auctoris, intentio lec- toris and intentio operis) as expressed in Umberto Eco's Interpretation and su- perinterpretation. The methodological path consists of the following steps: a) based on Johan Huizinga, apply the notion of game the practice of reading, es- tablishing the fact that the rules of interpretation constitute a specific function of each reading game (play-element); b) discern the types of reading games based on the three types of pragmatics: aesthetics, politics and heuristics, c) based on Peirce, assume each of the three instances of meaning as the semiotic referen- ce of a specific type of reading game; d) conclude that the plurality of possible interpretations of a text is a function of the application of the internal rules of each reading game. It is concluded, on the one hand, that aesthetic and political reading games potentially produce infinite interpretations and that only heuristic reading games can effectively impose limits on interpretation, and, on the other hand, that the result of each of these reading games it can only be assessed on the basis of its own rules. Keywords: intentio auctoris; intentio lectoris; intentio operis; rea- ding games Introdugao nterpretacao e superinterpretacdo, disse Rabenhorst (2002, p. 14), “é um livro interessante nado apenas porque condensa as principais ideias de Eco acerca da interpretagado, mas também porque contém uma réplica aos seus criticos’1. Concordemos com Rabenhorst, e con- sideremos 0 fato de que, em suas obras, Umberto Eco concilia herme- néutica e semidtica, dois dos temas do presente artigo. Como sintese, portanto, das principais ideias de Eco sobre a relacao entre intentio auc- toris, intentio lectoris e intentio operis, Interpretagao e superinterpretagao 1. Rabenhorst nomeia o livio de Eco como Interpretago e sobreinterpretacdo, e em todo seu artigo usa o termo sobreinterpretagao, nao superinterpretagao, que, todavia, 60 termo utilizado na edigao da Martins Fontes utilizada neste artigo e que se optou por empregar. — 194 — ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 presta-se a servir de base para a tentativa de recolocar a questaéo, de um lado, e, de outro, de apontar para o problema de sua insuficiente dis- cusso e, a nosso ver, inadequada solugao para o problema do “conflito das intencgdes”. Na obra citada, avaliando negativamente as duas clas- sicas abordagens hermenéuticas, intengao do autor e intencao do leitor, Umberto Eco prop6e uma alternativa: “Existe a intengao do texto” (ECO, 1993, p. 29). O interesse do presente artigo é sugerir que o enfrenta- mento da disputada questao hermenéutica tem disso levado a termo de modo inadequado, porque tem descuidado do elemento pragmatico da questao. Tem-se procurado tratar do conflito das intengdes — autor, tex- to, leitor - sem, ao mesmo tempo, considerar a estratégia pragmatica de leitura. Na pratica, procura-se normatizar determinada metafisica de apro- ximacao a textos, sem identificar, primeiro, a agao pragmatica a que essa mesma leitura esta contextualmente vinculada. Como resultado, finda-se por se tentar estabelecer como norma universal para qualquer ato de lei- tura. No presente artigo quer-se assentar a declaragdo de que 0 recurso a determinada intentio € fun¢do pragmatica, sendo determinada diretamen- te pela estratégia pragmatica de leitura adotada pelo intérprete. 1. Sintese da posigdao de Umberto Eco em Interpretacao e superinterpretagao Tanto o problema que Eco quer enfrentar no capitulo “Interpretagao e historia” de /nterpretagao e superinterpretagao (ECO, 1993, p. 27-50), quanto a solugao do semidlogo italiano para esse problema, encontra-se condensado na seguinte citagao: Poderlamos objetar que a tinica alternativa a uma teoria radical da interpretacao voltada para o leitor ¢ aquela celebrada pelos que dizem que a Unica interpretagao valida tem por objetivo descobrir a intenc&o original do autor. Em alguns dos meus escritos recentes, sugeri que entre a inteng&o do autor (muito dificil de descobrir e frequentemente itrelevante para a interpretacao de um texto) @ a intengao do intérprete que (...) simples- mente “desbasta 0 texto até chegar a uma forma que — 195 — ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 sirva a seu propésito” existe uma terceira possibilidade Existe a intenedo do texto (ECO, 1993, p. 29). Eco coloca a sua direita os defensores da intentio auctoris, a sua esquerda os defensores da intentio lectoris, avalia negativamente ambas. as posigGes hermenéuticas e, entaéo, propéde sua alternativa: a intentio operis. Da intentio auctoris, Eco tem a dizer que sua inadequabilidade instrumental advém do duplo fato de ser dificil de determinar e de fre- quentemente ser inutil para a interpretagao de um texto. Eco nao de- dicara muito esforgo e tempo a essa avaliacao negativa, porque seus “adversarios” no capitulo em questao sao os tedricos de recorte pds- -moderno (ECO, 1993, p. 30; RABENHORST, 2002, p. 1-2), mais alinha- dos a questéo hermenéutica da intencao do leitor (DANTAS, 1998, p. 159-160). O problema com que Eco se depara é a declarada infinidade de interpretagdes potenciais de um texto, diante de cuja tese Eco se poe de modo critico: Dizer que a interpretagao (enquanto caracteristica basi- ca da semidtica) 6 potencialmente ilimitada nao significa que a interpretacao nao tenha objeto e que corra por conta prépria. Dizer que um texto potencialmente nao tem fim ndo significa que todo ato de interpretagao pos- sa ter um final feliz” (ECO, 1993, p. 27-28). Eco esta claramente referindo-se aos postulados amiude relaciona- dos as escolas hermenéuticas de intengao do leitor, a respeito das quais ja dissera que “desbasta 0 texto até chegar a uma forma que sirva a seu proposito” (ECO, 1993, p. 292). O “final feliz” que nao estaria garantido a toda e qualquer tentativa de submeter um texto aos caprichos herme- néuticos do leitor denuncia que determinadas propostas de interpretagaéo de um texto devem ser consideradas malsucedidas. “O que quero dizer aqui € que existem critérios para limitar a interpretagao” diz Eco (1993, p. 46), referindo-se um pouco adiante a posigao adversaria nesses termos: “poder-se-ia dizer que um texto, depois de separado de seu autor (...) 2. Aqui, Umberto Eco dectara referir-se @ uma citagao de Richard Rorty. — 196 — ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 das circunstancias concretas de sua criag€o (...) flutua (por assim dizer) no vacuo de um leque potencialmente infinito de interpretacdes possiveis (ECO, 1993, p. 48), mas quanto a isso manifestando posigao muito dife- rente: “nao (se) estaria autorizado a dizer que a mensagem pode signi- ficar qualquer coisa. Pode significar muitas coisas, mas ha sentidos que seria despropositado sugerir” (ECO, 1993, p. 50). “Fundamentalmente, postula que ha graus de aceitabilidade de interpretagdes” (DANTAS, 1998, p. 162). Em resumo: um texto tem potencialmente muitos sentidos, mas ndo todos os sentidos. A quest&o contra a qual Umberto Eco se bate é o numero poten- cial de leituras possiveis e adequadas de um texto. Sua declaragao “ha sentidos que seria despropositado sugerir’ (ECO, 1993, p. 50) parece suportar a conclus&o de que, para Eco, nao ha interpretagdes adequa- das infinitas de um texto. Sem perder de vista que a questao da intengaéo do autor, ainda que mencionada mais de uma vez no capitulo, recebe apenas o condescendente tratamento ja citado — é dificil e frequente- mente irrelevante —, 0 problema de Eco é a implicagao do potencial infi- nito de interpretagdes pressuposta na intentio lectoris, porque, como se viu acima, é aos autores defensores dessa posicao hermenéutica que nosso autor se dirige. Eco é categorico em declarar que nao é possivel admitir que um leitor possa fazer com 0 texto 0 que bem desejar. A partir da conclusdo de certo exemplo de que se utiliza no final de seus argu- mentos, Eco declara que 0 leitor “nao estaria autorizado a dizer que a mensagem pode significar qualquer coisa” (ECO, 1993, p. 50). Perceba- se a questao normativa que anima a declaragao: “existem critérios para limitar a interpretagao” (ECO, 1993, p. 46). Voltaremos a tendéncia nor- mativa da discussao semidtico-hermenéutica. Com efeito, nas palavras de Rabenhorst (2002, p. 16), “o semidlogo italiano volta a_ insistir na ideia de um minimo de aceitabilidade de uma interpretagao”. Aconclusao de Rabenhorst sobre essa mesma discussdo é a seguinte: Osemidlogo italiano volta a insistir na ideia de um minimo de aceitabilidade de uma interpretagao na — 197 — ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 base de um consenso da comunidade. Nesse ponto, porém, n&o ha grandes discordancias entre as ideias de Eco e as do modelo proposto pela desconstrucao. Afinal, nem mesmo o desconstrucionista mais radical negaria o fato de que a despeito de toda a polissemia, existe uma possibilidade de compreensao intersubjetiva (...). NZo podemos atribuir as palavras e aos textos qualquer sentido em fungao dos nossos desejos, pois estamos situados em uma comunidade interpreta tiva que produz significados de forma ptiblica e conven- cional (ROBENHORST, 2002, p. 16). O que em Eco encontra-se menos explicito, a normatizacao da in- terpretacaéo, em Rabenhorst vai explicitado: “Nao podemos _ atribuir as palavras e aos textos qualquer sentido em fungao dos nossos desejos” (ROBENHORST, 2002, p. 16). Trata-se da interdic&o da criativi- dade do leitor e, como veremos, de seu direito pragmatico de, para citar as palavras criticas de Eco, “desbasta(r) o texto até chegar a uma forma que sirva a seu propédsito” (ECO, 1993, p. 29). Por que razao o leitor nao tem esse direito? Porque esta preso, nas palavras de Rabenhorst, a “uma interpretagao na base de um consenso da comunidade”? E desde quando a situacao do intérprete teve algum papel na discussdo tablada por Eco? Se a posigdao do intérprete — sua vinculagéo material a uma comunidade de interpretag&o — pode ser usada para restringir sua liber- dade, porque essa mesma posicAo nao é algada igualmente a condigaéo de critério pragmatico ou referencial semidtico para o enfrentamento da espinhosa quest&o dos limites da interpretagdo? Ora, se Rabenhorst esta bem informado da interpretagao da frase de Paul Valéry — “nao ha verdadeiro sentido de um texto” (RABENHORST, 2002, p. 1), segundo a qual ela significaria que “um texto pode ser utilizado da forma mais livre possivel” (HABENHORST, 2002, p. 2), por que nao se percebe que, nesse sentido, resulta contraditoria a declaragao de que “nao podemos atribuir as palavras e aos textos qualquer sentido em fun¢ao dos nossos desejos” (RABENHORST, 2002, p. 16)? Pode ou nao 0 leitor usar “um texto (...) da forma mais livre possivel” (HABENHORST, 2002, p. 2)? Se “nao ha verdadeiro sentido de um texto” (RABENHORST, 2002, p. 1)’, — 198 — ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 ent&o deve-se concluir que qualquer leitor pode usar livremente qualquer texto e dar a ele o sentido que desejar. No entanto, ao mesmo tempo, se diz que “nao podemos atribuir as palavras e aos textos qualquer sentido em funcao dos nossos desejos” (ROBENHORST, 2002, p. 16). 0 cobertor é curto demais... Resulta confusa a situagao. Rabenhorst pensa té-la esclarecido e entéo resolvido com uma declaragao de Umberto Eco: “se 0 uso de um texto é ilimitado, a sua interpretagao n&o o é” (Rabenhorst, 2002, p. 9). E, sempre segundo Rabenhorst, para demonstrar essa tese, Eco analisa a cléssica opo- sigdo entre a interpretacéo come busca da intentio auc- toris (0 que o autor quis dizer), e a interpretacao como atribuigao de uma intentio lectoris (0 que, no texto, 0 destinatario encontra com relagao ao seu proprio siste- ma de significagéo). Entre a defesa do carter autotélico de um texto e a defesa da recepeao do leitor, Eco esco- Ihe uma via intermedidria, a saber, a do respeito a inten- tio operis (a intencao da propria obra) (RABENHORST, 2002, p. 9). Ainda que Dantas considere que Eco “postula que ha graus de acei- tabilidade de interpretac6es e que isto resulta do devido respeito pela dia- lética da intentio operis com a intentio lectoris” (DANTAS, 1998, p. 162), vimos anteriormente, ratificado imediatamente acima por Rabenhorst, que Eco defende uma alternativa para as intencdes do autor e do leitor — a intentio operis: “existe uma terceira possibilidade. Existe a intengao do texto” (ECO, 1993, p. 29). Descartam-se, portanto, a intengao do autor ea intengao do leitor e assume-se, universal e normativamente, a inten- Gao da obra: “interpretar é emitir uma conjectura sobre a intentio operis, tomando o texto como um todo organico. Tais conjecturas sao a principio infinitas, mas a partir de um teste de coeréncia textual, algumas delas serao descartadas” (RABENHORST, 2002, p. 9). Nesse caso, “o limite da interpretagdo é dado, em primeiro lugar, pela ideia segundo a qual um texto é um todo coerente” (RABENHORST, 2002, p. 9). Observe-se que se fala do texto como um todo coerente, ao mesmo tempo em que — 199 — ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 se assenta sua condig&o polissémica (RABENHORST, 2002, p. 15 e 16). Nesse sentido, a polissemia se reduz a um ntimero limitado de jogos hermenéuticos aceitos pela comunidade de interpretagao. Insista-se: ha algo de confuso na discusséo. Ha mesmo certa pressa em se contornar 0 problema da articulagdo entre os conceitos de polis- semia textual e consenso hermenéutico. Nao se discute, por exemplo, em que condigées concretas de vida faz sentido falar-se de consenso intersubjetivo. Na verdade, em lugar algum da discussdo se desceu ao mundo concreto da leitura, As condigdes pragmaticas de leitura, aos jo- gos potenciais de leitura. Ao menos no que diz respeito a discussao, semidtica e hermenéutica se articularam em condigées ideais, quando se deveria articula-las nas condi¢des concretas da leitura. A discussao permanece o tempo todo em nivel metafisico e tende o tempo todo a interdigao do que, aos olhos dos teéricos ouvidos, parece infragdo de limites. Pois bem, e quem estabeleceu os limites? 2, Leitura como jogo e pragmatica da leitura A proposta do presente artigo € postular uma solugao pragmatica para o problema da disputada questao dos limites da interpretagao. Parte-se do principio de que a interdigao retorica das interpretagdes com base na autoridade consensual da comunidade de interpretagao cons- titui uma saida artificial, idealista e, de qualquer forma, deslocada da realidade. A comunidade pode classificar uma interpretagao como de- sautorizada, mas nao tem qualquer poder para, de um lado, impedir que sejam produzidas ad infinitum, e, de outro, que toda e qualquer pessoa se submeta a autoridade dessa comunidade. Tanto assim que na propria comunidade de interpretagao ha inumeras escolas, produzindo diferen- tes leituras, cada qual eventualmente tratando as demais como infratoras dos limites por ela estabelecidos. A situag&o no resulta muito diferente do quadro das interpretagées da Biblia na miriade de denominagées her- deiras da Reforma: cada igreja |é a mesma Biblia que todas as demais, — 200 — ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 mas a lé de modo a produzir determinada interpretacao, concluindo por infratoras da régua da correta interpretagdo todas as demais. Perceba- se como a conclusao dos arrazoados de Rabenhorst poderiam se aplicar perfeitamente ao mundo absolutamente confuso da hermenéutica ecle- siastica: “nado podemos atribuir as palavras e aos textos qualquer sentido em fun¢ao dos nossos desejos, pois estamos situados em uma comunidade interpretativa que produz significados de forma publica e convencional” (ROBENHORST, 2002, p. 16). Essa declaragao é valida para a interdicao que, por exemplo, igrejas batistas interpdem a interpre- tagdes nao batistas, mas igualmente validas para interdigdes que igrejas assembleianas interpdem a interpretagSes nado assembleianas. Trata-se de uma declarac&o de carater politico. Quer-se prescrever uma norma, em lugar de descrever um fendmeno e de serem apreendidas as suas leis. Nao se vai resolver o problema do limite das interpretacgdes, porque, no mundo real, as interpretagdes so virtualmente infinitas. O que se nos apresenta como tarefa é compreender a materialidade da questao, descrevé-la e lidar com ela. Nesse sentido, para propor uma soluc&o para a espinhosa questéo do limite das interpretagdes, comecemos pelo tratamento do ato de lei- tura como um jogo. Ja com Orlandi (1998, p. 16) se poderia falar da “im- portancia de se pensar a lingua enquanto capaz de jogo”, mas a rigor a referéncia é ao conceito de cultura como jogo, de Johan Huizinga (2005). “Huizinga nao foi o primeiro pensador a ver o homem e a sociedade sub specie ludi’ (ANCHOR, 1978, p. 63), mas “foi de fato o primeiro a ter compreendido, de modo sistematico” a relagdo entre aspectos da sociedade aparentemente sem relacéo mUtua, mas que se articulavam pela fungao de jogo (play-element) de que se constituiam (EHRMANN; LEWIS; LEWIS, 1968, p. 31). Para Huizinga, a cultura humana funciona como jogo: “é no jogo e pelo jogo que a civilizagao surge e se desen- volve” (HUIZINGA, 2005, p. 2). O jogo seria mesmo anterior a propria cultura, uma vez que a cultura pressupde uma sociedade humana que, por sua vez, se constitui na forma de sua distintiva capacidade de jogar — 201 — ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 (CIMIANO, 2003, p. 32). Segundo Huizinga, toda a opera¢ao da cultura se da com base em regras estabelecidas internamente a ela e validas exclusivamente nesse jogo, e n&o necessariamente em outro. E tanto uma questdo ontolégica — toda cultura funciona como um jogo — quanto histérica — cada cultura estabelece as regras com que se deve jogar nessa determinada cultura. N&o apenas a cultura como uma grandeza se estabelece na forma de jogo, mas as diferentes estruturas internas da cultura, também. Huizinga discute como a linguagem, as competi¢ées, o Direito, a guerra, a ciéncia, a poesia. a Filosofia e a arte se desenvolvem como jogos culturais, cada qual com regras proprias de funcionamento, que se alteram inclusive com o passar do tempo (ANCHOR, 1978, p. 63). Huizinga considera a funcionalidade de jogo tao relevante para a compreens&o da historia humana que escreveu no Prefacio de Homo Iudens: “existe uma terceira func&o, que se verifica (...) na vida humana (...) e € tao importante como 0 raciocinio e o fabrico de objetos: 0 jogo. Creio que, depois de Homo faber e talvez ao mesmo nivel de Homo sapiens, a expressao Homo |u- dens merece um lugar em nossa nomenclatura” (HUIZINGA, 2005, p. 1). Huizinga aponta, descreve e analisa uma série de caracteristicas do jogo. Aque nos interessa aqui é 0 fato de que, nele, tudo se da em razao. das regras estabelecidas para o movimento das pegas no tabuleiro, das pessoas no circulo magico. As regras nao s&o ontolégicas: sao mate- riais. Sao criadas para o jogo e so fazem sentido no jogo. Tudo é jogo, mas no xadrez, as pegas se movem de uma forma, e na dama, de outro. “Reina dentro do dominio do jogo uma ordem especifica e absoluta. E aqui chegamos a sua outra caracteristica, mais positiva ainda: ele cria ordem e é ordem” (HUIZINGA, 2005, p. 17). Observe-se: no dominio do Jogo. Mas dominio de que jogo? De todo jogo. Mas que ordem especifica e absoluta? A ordem que vale para esse jogo. E a ordem que vale para esse jogo deriva das regras desse jogo: “todo jogo tem suas regras. Sao estas que determinam aquilo que ‘vale’ dentro do mundo temporario por ele circunscrito” (HUIZINGA, 20085, p. 18). — 202 — ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 Anog&o imediatamente acima tem implicacdes fundamentais para a relagao entre semidtica e hermenéutica: a leitura constitui um jogo, uma pragmatica. A leitura esta fundada na adesao livre do leitor ao jogo de ler. E 0 leitor/jogador lera/jogara conforme as regras da leitura/do jogo que ele leitor/jogador estabelece. Quando os tedricos da leitura determi- nam um limite para a interpretac&o de textos, o que, na pratica, fazem, € apoderar-se do jogo como se toda e qualquer leitura fosse sempre 0 mesmo jogo, submetido as mesmas regras. No caso que vimos de tratar, os donos do suposto jogo universal de leitura aparecem na forma da “comunidade de interpretagao” (RABENHORST, 2002, p. 16), a quem caberia o poder de, por meio de consenso, estabelecer a procedéncia ou improcedéncia de determinados movimentos de pega no tabuleiro. Mas a questo €é: toda leitura é realmente sempre o mesmo tipo de jogo? Em outros termos: toda leitura esta submetida 4s mesmas regras? Aresposta € nao. Acima, deixamos de fundamentar os jogos de lei- tura na nogao de jogos de linguagem mencionados por Orlandi (1998, p. 16), optando pela fundamentagao da nogao de jogos de leitura em Huizinga. Mas até mesmo quanto a regras se poderia recorrer a autora citada: “o jogo de que falo é 0 jogo nas regras e sobre as regras da lin- gua” (ORLANDI, 1998, p. 16). Naturalmente, porque nao se pode falar de jogo sem falar de regras. Quanto aos jogos de leitura, pode-se assu- mir que ha trés tipos fundamentais, cada qual com suas proprias regras, nos termos das quais — e apenas nos termos das quais — 0 resultado da leitura pode ser avaliado. O que (me) parece um equivoco fundamental da discussao sobre a questao semidtico-hermenéutica do conflito das intengdes — autor, leitor, texto — € que ela se da como se toda e qual- quer leitura constituisse 0 mesmo tipo de jogo, ou, dito em outro recorte, fosse atualizagéo do mesmo tipo potencial de pragmatica. Mas ha trés tipos pragmaticos de leitura, cada qual com suas proprias regras e crité- rios. Nos termos com que Martins (2004, p. 52-53) discute a questao do sentido, convengées unilaterais sobre a determinagao do sentido de um — 203 — ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 texto constituem “logro”: “uma teoria geral da significancia envolve (...) uma sintaxe, uma semantica e uma pragmatica, imbricadas as trés como. condigées igualmente necessarias” (MARTINS, 2004, p. 53) E curioso que Eco evoque Peirce em seu capitulo aqui analisado (ECO, 1995, p. 27-28). Segundo Dosse (2018, p. 179), Peirce é um dos fundadores da tradigao pragmatica (MARTINS, 2004, p. 36). No entanto, citar Peirce nao levou Eco a aperceber-se da solugao pragmatica do conflito contra o qual ele tanto se debate e para o qual chega a pro- por uma “alternativa”. Para o historiador francés citado, deve-se falar de uma “verdadeira guinada pragmatica” (DOSSE, 2018, p. 187), para cujo aprofundamento aqui se recorre e recomenda o capitulo “Com 0 risco de agir” em O império do sentido: a humanizagéo das ciéncias humanas (DOSSE, 2018, p. 187-195). A luz da pragmatica, aqui compreendida como jogo e n&o apenas como referéncia aos atos de fala em distingao a linguagem (MARTINS, 2004, p. 38), mas, até certo ponto‘, a “relagao entre o signo e o seu utente ou intérprete” (MARTINS, 2004, p. 46), a determinacao do tipo de leitura a ser experimentado é de exclusiva competéncia do leitor. Eo que o leitor decide fazer, enquanto Ié, que determina 0 tipo de jogo que sera 3. “Com efeito, é uma limitagéio colocar a significag&o a ordem do signo ¢ do seu sentido. Mais, 6 um logro encerrar a significagao no signo (...). E também redutor encarar a signifi- cagéio como o contetido de um ato proposicional ...). E é um logro encerrar a significagao na clausura de uma frase’ (MARTINS, 2004, p. 52-53). 4. “At6 corto pont”, porque, em Martins, a nogao do jogo nao est presente, o a pragma- tica 6 assumida como uma relacao prética entre o iniérprete o texto. Na minha opiniao, falta & Semidtica do autor (MARTINS, 2004) justamente a nogao de atos de leitura como jogos marcados por regras préprias. Curioso, no entanto ressaltar que as condigdes para a concepgao da interpretagao como jogo estdo presentes na obra citada: “Para Peirce, no entanto, o que prima é a relagdo. E por essa razio nao é posstvel identificar objetos designadas como objetos reais no espago no tempo, 20 mesmo tempo que se insiste na abstracao da dimensao pragmatica da comunicacao ou da fala, no quadro de situa- gées precisas. Assim, nao 6 possivel. por principio, falar de ‘denotata’ como de objetos da dimonsdo semdntica, mas apenas do ‘dosignata’, isto 6, do objatos da roferdncia do signo, no quadro de sistemas semAnticos abstratos. Tanto mais que um sistema semén- tico abstrato da linguagem pode conter ‘designata’, que de modo nenhum podem ser identificados como ‘denotata’. E 0 caso dos unicémies, do Inferno e do Pai Natal’. Ora, a designagao é funcao do jogo, @ suas regras dai derivam. — 204 — ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 jogado, e, por isso, a que regras tanto 0 processo quanto o resultado da leitura esto submetidos. Nenhuma autoridade se situa acima da livre decisdo do leitor de ler conforme determinado jogo. Nao ha regra ou lei anterior a propria decisao pragmatica que, entao, por sua vez, determi- nara as regras a serem seguidas nesse jogo. Se ha uma “comunidade de interpretagao”, também ela deve jogar e julgar segundo as regras do tipo de jogo/leitura adotado pelo leitor®. Relacionando os tipos de jogo de leitura 4s modalidades pragmaticas discerniveis na agao humana, sem qualquer ordem hierarquica, o primei- ro tipo de jogo de leitura € 0 jogo estético. Trata-se de ler qualquer texto a partir da pragmatica estética (RIBEIRO, 2020, p. 608-609). Trata-se de ler esteticamente qualquer texto. A decisao de ler esteticamente, vale dizer a decis&o pelo jogo estético de leitura ou a decisdo pela pragma- tica estetica de leitura, cria determinada ordem e impéem determinadas regras a leitura, validas apenas e tao somente para esse tipo de leitura. Trata-se de uma leitura em que 0 leitor se eleva a si mesmo a condi- ¢ao de referencial semidtico de atualizagao da polissemia textual. Nesse tipo de leitura, o mundo subjetivo do leitor projeta-se no tecido textual e, porque sempre encontra nele condigées para isso, projeta no texto sua propria identidade. O resultado da leitura é uma hipostase do leitor. Era esse seu objetivo e é esse seu resultado. Nesse jogo, e apenas nele, o texto funciona como um objeto estético, no qual o leitor encontra as condi¢ées ideias para projetar seu mundo, seu gosto, sua idiossincrasia, seus valores, seus sonhos, suas dores e alegrias. Cada leitor, uma lei- tura. A polissemia, isto é, “o sentido multiplo” (BATOREO, 2005, p. 237), € a caracteristica textual que permite o fendmeno da leitura estética, do jogo estético de leitura, e a pluralidade de resultados € o produto natural dessa pragmatica estética de leitura. “Na polissemia, a produgao da di- 5. Nao se trata aqui de relacionar certos tipos de leitura — 0 drama teatral, por exem- plo — & nogdo de jogo, como é 0 caso de BASTOS, 2002. Nao se trata de jogar algum tipo de jogo didético ou liidico em tomo da leltura, mas de reconhecer a leitura como um conjunto de praticas culturais que se expressam na forma de jogo, nos termos de HUIZINGA, 2005. — 205 — ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 ferenca” (ORLANDI., 1998, p. 15). Nao ha comunidade de interpretagéo que possa interditar qualquer leitura desse tipo, sequer mesmo avalia-la a partir de limites normativos, quaisquer que sejam. Pode-se até des- gostar do jogo de leitura estético-pragmatica, como parece ser 0 caso de Martins, quando declara que “nossa proposta pedagogica nao nos apro- xima, com efeito, da pragmatica hedonista e estetizante” (MARTINS, 2004, p. 15). A decis&o pelo jogo € também uma questao de gosto. O segundo tipo de leitura encontra-se no limite do jogo que se acaba de descrever. Da mesma forma que 0 jogo estético de leitura, trata-se também de projetar no texto cosmovisées préprias da comunidade de leitura, mas agora nao mais a de um leitor, mas de um grupo de leitores, ainda que se trate de um Unico leitor a ler. Nos dois casos, pode-se fa- lar com propriedade de “dimens&o pragmatica da produ¢&o de sentido” (MARTINS, 2004, p. 85). No momento da leitura, e porque assim se de- cidiu, nao € o mundo idiossincratico do leitor que se projeta no texto, mas os contetidos ideoldgicos positivos do grupo a que oleitor se vincula para esse jogo. Trata-se de jogo politico de leitura, vale dizer, da pragmatica politica de leitura ou da atualizac&o politica de um texto (RIBEIRO, 2020, p. 609-612). Estética e politica sdo duas das trés pragmaticas, e ambas sao possiveis por forga da polissemia textual. A diferenga fundamental entre elas é que no primeiro caso trata-se da projegao idiossincratica e solipsista de um mundo particular, subjetivo, pessoal, ao passo que no caso da pragmatica politica trata-se de controlar 0 processo de leitura por meio de valores e normas estabelecidas por uma comunidade de lei- tura a que 0 leitor se submete. Dois casos: leitores que optam por fazer leituras baseadas em determinado tedrico, por exemplo, uma leitura fou- caultiana de A pata da Gazela, e leitores catdlicos de Romanos. Nos dois casos, 0 resultado da leitura esta previamente determinado. Nesse jogo de leitura, tem-se de, conforme o caso, produzir um resultado valido para a comunidade foulcaultiana ou catdlica. Observe-se que, todavia, nin- guém é obrigado a fazer leituras a partir de Foucault ou do Vaticano. O leitor decide livremente ler a partir desses critérios comunitarios, sujeitos — 206 — ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 ao crivo avaliativo das respectivas comunidades. As regras desse tipo de leitura constroem-se no sentido de sempre garantir que o resultado da leitura esteja em plena conformidade com o que previamente a comuni- dade postula como um resultado procedente. Outra diferenca: dado que a leitura estética tem como Unica regra a projecdo do mundo do leitor no texto, toda leitura estética é a priori valida. No entanto, no caso da leitura politica, sendo a regra do jogo a projegao no texto nao dos valores sub- Jetivos do leitor, mas da comunidade de leitura a que, por qualquer razéo que seja. 0 leitor livremente se vincula, segue-se que nem toda leitura € adequada, de sorte que ai vale a interposicao de limites de interpreta- ¢ao. Porque, de um lado, um texto pode ser lido de qualquer forma, de outro, qualquer texto pode ser lido ao modo foucaultiano, mas nem toda leitura de um texto é e necessariamente precisa ser foucaultiana. Finalmente, o terceiro tipo de jogo de leitura é 0 jogo heuristico (RIBEIRO, 2020, p. 612-617). Nele, o que se quer nao é projetar mundos. no texto, seja o do leitor, seja o da comunidade de leitura. O que se quer é, em uma diregao, recuperar o sentido original que o autor pretendeu dar ao texto, ou, noutra direcao, compreender o texto como objeto de investigagao cientifica. Aqui, no primeiro caso, a polissemia é um obsta- culo a ser criteriosamente vencido, porque a clausura® da intentio aucto- ris encontra-se submersa na polissemia intrinseca do veiculo historico- -material de sua expressao. No segundo, a polissemia é um fendmeno a ser estudado e compreendido. De qualquer forma, néo estamos diante de estratégias de leitura cujo interesse é a fruicdo do texto a partir dos gostos idiossincraticos do leitor (pragmatica estética) nem de estratégias de leitura cujo objetivo é estabelecer a identidade expressiva do texto a partir da cosmovisao normativa de um grupo (pragmatica politica). Na pragmatica heuristica, quer-se compreender seja a mensagem original do texto, seja o texto como tecnologia humana. As regras desse tipo de jogo nao guardam nenhuma relagao com as regras dos dois outros tipos, e os resultados serao nao apenas diferentes, quanto sujeitos a distintas 6. Para a nogo de clausura em contextos semidticos, cf. MARTINS, 2004, p. 53. — 207 — ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 formas de validac&o, porque, nesse sentido, “a pragmatica desloca (...) 0 conceito de verdade do dominio do enunciado para 0 dominio do ato de enunciagao” (MARTINS, 2004, p. 85). “Verdade”, nao — ressalvemos: sentido, e, para 0 que aqui nos interessa, “ato de enunciacao” nao: jogo de leitura. Portanto: a pragmatica desloca o conceito de sentido do do- minio do enunciado para 0 dominio do jogo de leitura. Arelacao entre cada um desses tipos jogos de leitura e a polissemia textual finda por revelar certo parentesco com a relagao entre tipos de discurso e o fenédmeno da polissemia: Isso tudo reafirma a import&ncia de se pensar a lingua enquanto capaz de jogo e a discursividade como inscri- a0 desses efeitos linguisticos na historia. A distingao que faco entre discurso ficaria assim posta: a. discurso autoritario: ha contengao da polissemia (...); b. Discurso polémico: ha controle da polissemia (...): c. discurso It- dico: ha a polissemia aberta (ORLANDI, 1998, p. 16). 3. Resolvendo pragmaticamente 0 conflito das intengdes — autor, texto, leitor Interpretagéo e superinterpretagéo comega com uma referéncia a Peirce: “em meus escritos mais recentes, elaborei a ideia peirceana da semidtica ilimitada” (ECO, 1995, p. 27-28). E, imediatamente, acrescen- ta: “procurei mostrar que a nogéo de uma semidtica ilimitada nao leva a conclusao de que a interpretagdo nado tem critérios” (ECO, 1995, p. 28). Como se viu, esse € 0 problema com que Eco se vé em debate. Também como se viu, Eco concluira que existe uma intentio operis que deve ser- vir como critério para que a comunidade de interpretagao estabelega os consensos critico-normativos para a validac&o das leituras. Até aqui, considerou-se equivocada a abordagem das teorias de interpretagao, porque descuidam da questao da leitura como jogo e do fato de que a lei- tura nao constitui um unico tipo de pratica, sendo possivel identificar trés modalidades pragmaticas distintas de leitura, cada qual estabelecendo — 208 — ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 regras e critérios diferentes para a interpretagao, com base apenas em que determinado tipo de interpretacao pode ser avaliado. O problema do postulado do limite de interpretagdes de Eco é que ele constitui um caso de desconsidera¢ao pela pragmatica da leitura, pressupondo uma solu- Gao universal para toda e qualquer tipo de leitura. Leitura estética, leitura politica e leitura heuristica sao jogos distintos de leitura, validos todos, e com regras e critérios que s6 valem para 0 tipo respectivo particular de leitura. O quadro avaliativo muda tao substancialmente que se chega a concluir necessariamente que ha jogos de leitura sem qualquer limi- te possivel, jogos de interpretacdo com limites previamente definidos e modos de leitura com limites extremamente rigidos, que Eco classificou como muito dificeis (ECO, 1995, p. 29). A conclusdo a que Eco chega quanto a haver um limite para a interpretagao de um texto resulta inade- quada porque postulada como que para toda e qualquer interpretagao, e no caso de interpretacdes pragmaticas estéticas, mas, em ultima anali- se, também para interpretagdes pragmaticas politicas, consideradas em seu conjunto potencial. as leituras sao potencialmente infinitas e abso- lutamente coerentes com as regras internas de cada jogo pragmatico. E preciso agora relacionar 0 conflito das intengées — autor, leitor, texto — ao conceito de leitura como jogo e ao fato de que o ato de leitura se atualiza sempre em determinada e restrita camara pragmatica. O fato de Eco ter comecado seu capitulo com a mencao de Peirce é oportuno, porque Peirce €é um dos proponentes da semiotica triddica (MARTINS, 2004, p. 31-32), com cuja nog&o se pode avangar na solugao do pro- blema do conflito das intengdes no contexto da interpretagado de textos. Asemidtica de Peirce estabelece que 0 sentido emerge a partir de trés elementos necessarios: 0 intérprete, 0 objeto e o referencial, ou, nos termos do autor por ultimo citado, “representamen, interpretante e ob- jeto” (PEIRCE, 1995; MARTINS, 2044, p. 39). O sentido constitui uma — 209 — ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 faculdade da mente humana’, que, a luz de um referencial, projeta-se no objeto. O sentido nao esta nos objetos, mas na mente humana, que, por sua vez, serve-se de um referencial para seu procedimento hipostatico. Para a quest&o do conflito das intengSes — autor, leitor, texto - deve- -se perguntar pelo papel que cada um desses trés elementos representa no jogo hermenéutico. Parece adequado considerar que é justamente o papel de referencial pressuposto pela semidtica peirceana acima referi- da. Fujamos da tautologia: toda interpretagao, obviamente, é produzida por um intérprete, de sorte que toda leitura é feita por um leitor. Mas com isso apenas se aponta para a primeira dimensdo da semidtica peirceana: o intérprete. No caso da leitura de textos, esse intérprete é leitor. Logo, temos, de um lado, 0 intérprete: 0 leitor, e, de outro, o objeto: o texto. E aqui que a discuss4o da literatura parece negligenciar o fato de que, nomeados apenas leitor e texto, nado estamos em condigées de avaliar adequadamente a pratica da leitura, porque falta o terceiro elemento da equagao: o referencial. E é aqui que cada uma das intencgdes — autor, leitor e texto — exerce seu papel semidtico-pragmatico fundamental. Um leitor qualquer toma nas maos um texto qualquer. Com base em que referencial ele atualizara 0 sentido do texto? Esse leitor pode eleger-se a si mesmo como referencial de leitura. Assim, 0 leitor lera 0 texto com base em si mesmo como referencial. Esse leitor 6 obrigado a escolher-se a si mesmo como referencial? Nao. Ele pode escolher como referencial os conteUdos positivos de determinada comunidade. Nesse caso, esse leitor nao mais lera o texto tendo por referencial a si mesmo, mas tendo como referencial um contetido positivo sustentado previamente por determinada coletividade a que ele se vincula. Além disso, esse leitor pode ainda escolher como referencial nado a si mesmo. nem a qualquer grupo, mas o autor do texto. Nesse caso, o leitor devera 7. “Talvez o mais importante para se entender sobre a mente cognitiva 6 que ela 6, de alguma forma, capaz de representar 0 mundo” (FODOR, 2007, p. 5). Provavelmente se poderia empregar a seguinte analogia: enquanto, na mente humana, o sentido 6 mor- folégico, a representacao é sintatica — 0 conjunto de sentides produzides pela mente humana atualiza-se sintaticamente na forma de uma cosmovisdo. — 210 — ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 atualizar o texto com base no sentido que o autor pretendeu dar — e deu —ao texto que escreveu e que agora é lido pelo leitor. Estamos diante de trés jogos de leitura completamente diferentes, e que dao & discussao das inteng6es do autor (intentio auctoris), do leitor (intentio lectoris) e do texto (intentio operis) a consisténcia tedrica necessaria. Se o leitor adota o autor do texto como referencial semidtico, entéo opera-se a lei- tura nos termos da intentio auctoris. Se o leitor opta por atualizar o texto com base nos conteudos positivos de uma determinada comunidade, ou se decide adotar-se a si mesmo como referencial da leitura, nas duas situagdes temos casos de intentio lectoris. Nao faz nenhum sentido per- guntar-se sobre qual das duas inteng6es sao corretas como referencial. E 0 jogo de leitura, vale dizer, a pragmatica de leitura que estabelece a procedéncia do referencial. Ha limites para a interpretagao? Depende do jogo de leitura. Se 0 leitor 16 um texto com base em si mesmo como referencial, entao nao ha qualquer limite possivel. De um lado, esse leitor projetara a si mesmo no. texto, dado que o referencial de leitura é o prdprio leitor. Essa leitura € perfeitamente adequada. De outro lado, haveré tantas leituras possiveis quanto leitores desse texto. Nenhuma leitura sera mais adequada do que outra, porque no jogo estético de leitura o referencial é o proprio leitor. Noutro caso, porque assumindo como referencial a comunidade de sen- tido a que se vinculam e submetem, leitores inseridos em jogos politicos de leitura projetarao no texto o conteudo positivo e normativo de seu gru- po de vinculagao, de sorte que resultara adequada justamente a leitura que expressar exatamente a identidade daquele grupo. Nesse sentido, se olhada cada interpretacao em si, adequadas sero apenas as leituras que expressarem exatamente a identidade do grupo de vinculagao do leitor, mas em Ultima andlise, havera tantas leituras politicas quanto gru- pos de leitura houver. Nesses dois casos, nao é possivel dizer que haja limites para a interpretagao, porque havera tantas interpretagées validas quantos leitores estéticos (jogos estéticos de leitura) ou comunidades de leitura (jogos politicos de leitura) houver. Respectivamente, num caso — 211 — ISSN - 2236-9937 Teoliterdria V. 12 - N. 28 - 2022 de modo absoluto e, no outro, em ultima andlise, a adog&o do leitor e a adogao da comunidade de leitores como referencial de leitura desau- toriza a declaragao normativa de que haja limites para a interpretagao. No caso da leitura cujo referencial € a propria comunidade de leitura, apenas internamente ao jogo se pode falar de um limite — limite esse estabelecido pelo préprio jogo, cuja regra diz que a leitura correta nesse caso é aquela que se expressa a partir da identidade da comunidade de leitura. Logo, é uma limitagao imposta a si mesmo pelo proprio jogo, de sorte que, se olhamos para todas as atualizag6es sociais da leitura politica, deparamo-nos com a constatacao irrefutavel de que sequer ai ha limites. Por exemplo, todas igualmente adequadas a regra do jogo da leitura politica de textos. quantas leituras diferentes nado se podem flagrar nas igrejas herdeiras da Reforma? Alguma dessas igrejas deve satisfagao a qualquer outra em relacao a leitura que faz? A leitura batista da Biblia constitui limite para a interpretagéo assembleianas? Caso totalmente contrario € aquele em que 0 leitor elegeu como re- ferencial para a interpretagao que levara a termo nao a si mesmo ou seu grupo de vinculagao ideolégica, mas o autor do texto interpretado. Nesse caso, dado que, a despeito da polissemia do texto, a fala do autor esta submetida a clausura de sentido, adequada sera a leitura que alcangar, na algazarra polissémica do texto, a “voz” do autor. Nesse caso, n&éo é que se possa sequer falar de mero limite de interpretagao: nesse tipo de jogo, a regra determina que o resultado adequado da leitura deve ser a plena identidade entre a intengao do autor e a interpretag&o do texto. De novo: trata-se da aplicagao da regra do proprio jogo, ndo de uma norma universal valida para toda e qualquer leitura. Estamos diante nao de uma limitagéo imposta por uma comunidade de consenso, mas uma regra interna a esse jogo — e sé a ele. Nesse tipo de leitura, o leitor s6 esta submetido a uma severa é restritiva imposi¢ao hermenéutica porque ele mesmo escolheu jogar esse jogo: atualizar a polissemia de um texto com base na inteng&o original de seu autor. E essa opcdo de leitura que determina e regra que, por sua vez, impée 0 limite de leitura. — 212 —

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