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Editor responsável: Hugo Xavier

Título original: ‫( أﻟﻒ ﻟﻴﻠﺔ وﻟﻴﻠﺔ‬Alf laylah wa-laylah)


Título em português: As Mil e Uma Noites
Autores: Anónimos
Ano de publicação: séculos XIV-XVIII
Revisto por Marcelino Amaral
Conversão para ebook: www.arinos.in

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1.a edição digital, Setembro de 2020

ISBN 978-989-8872-56-2
Preâmbulo

Origens históricas d’As Mil e Uma Noites


Entre mito e realidade

O Livro d’As Mil e Uma Noites tem a particularidade de se ter tornado


simultaneamente, não só um dos livros mais conhecidos, mas também um
dos mais desconhecidos da literatura universal. Não sendo necessário
demonstrar porque se tornou tão conhecido, urge, no entanto, explicar
porque é que este conjunto de textos é muito mais desconhecido do que
geralmente se julga, a ponto de que quase tudo o que é associado às
estranhas e espantosas histórias d’As Mil e Uma Noites não ter, na
realidade, um vínculo sustentável a esse corpo de textos. As suas histórias,
submetidas ao crivo do Orientalismo1, foram alteradas, ampliadas e
encurtadas, não havendo os tradutores hesitado em acrescentar histórias que
foram recolhendo aqui e acolá, ou mesmo inventado os seus próprios contos
«autenticamente orientais». Por outro lado, do exaustivo interesse por parte
dos orientalistas europeus resultaram vários mitos que persistem até hoje.
Por exemplo, apesar de ser verdade que várias histórias têm origens
possíveis e paralelos fora do mundo estritamente árabe, ainda hoje persiste
o mito de que As Mil e Uma Noites terão tido por origem um livro persa que
se terá traduzido para árabe. Mas teria sido mesmo?
As referências mais antigas a um texto com título similar remontam pelo
menos ao século ix. Uma delas é um minúsculo texto num manuscrito em
papel conservado no Instituto Oriental da Universidade de Chicago, datado
de inícios do século ix e estudado por Nadia Abbott2, onde consta o título
de uma obra chamada As Mil Noites e contendo o que parece ser o início de
uma história, com a fala de Dinarzade (Dīnāzād), pedindo a alguém
interpelado aparentemente pela expressão «minha delícia»3, possivelmente
a irmã Xerazade, que lhe contasse um conto. O conteúdo deste manuscrito,
em péssimo estado e com várias palavras que o tempo tornou ilegíveis, é
constituído por dois fólios interligados, dos quais constam fórmulas
jurídicas, frases soltas, o rascunho de uma carta, e até o esboço de uma
figura humana, mas é no conteúdo de duas das suas quatro páginas que se
faz referência às Noites. Numa dessas páginas é indicado o título As Mil
Noites e na página seguinte constam 16 linhas, com a já referida fala de
Dinarzade. Este manuscrito tem ainda a particularidade de ser não só um
dos fragmentos literários árabes mais antigos (com excepção de
pergaminhos contendo o texto alcorânico), como, muito provavelmente, o
mais antigo conservado em papel, um novo material que foi introduzido no
mundo árabe entre os séculos viii e ix. E esta hipótese parece ser
corroborada pelas pesquisas mais recentes de Raif Georges Khoury4 que o
data do fim do século VIII, quase um século antes da data que consta em
cada uma das quatro páginas (Ṣafar do ano hegeriano de 266,
correspondente a Outubro de 879).
Além deste raríssimo manuscrito, existem outras referências dignas de
atenção. Assim, na obra As Pradarias de Ouro, da autoria de Almaçudi5,
redigida na primeira metade do século X, o autor afirma que vários relatos
pretensamente históricos que circulariam por via oral e escrita eram
inventados e, na realidade, eram traduções de contos persas, hindus e
gregos. E que, de entre estes, se destacava, passo a citar:

«O livro Hazār Afsānah, cuja tradução de persa para árabe é Os


Mil Contos, visto que “conto” em persa se diz “afsānah”. E as
pessoas chamam a este livro As Mil Noites6. Trata-se da história do
rei, do vizir, da filha do vizir chamada Xerazade [Shīrazād], e da
escrava desta chamada Dinarzade [Dīnāzād7].»

E Almaçudi continua fazendo comparações entre o livro Os Mil Contos e


outros do mesmo género, tais como o livro Sindbad, O Sábio8.
Antes de se abordar a questão de uma pretensa tradução do persa,
convém mencionar outro autor que faz referência às Noites. Trata-se de
Annadime, falecido em finais do século X. Este autor, no seu Catálogo9,
menciona que foi durante as primeiras dinastias persas que se começou a
escrever livros de contos com animais que falavam, e a guardá-los nas
bibliotecas, e que tal tendência foi cultivada durante o Império Arsácida, e
que os Sassânidas ainda deram mais importância ao género. Conforme diz
Annadime na referida obra:

«[…] os árabes traduziram estes livros para a língua árabe, e


foram traduzidos por aqueles que dominavam a eloquência e a
retórica, que os reviram, poliram e embelezaram, compondo obras
similares do mesmo género [sic]. E o primeiro livro deste género foi
o livro Hazār Afsānah, que significa Os Mil Contos. E foi escrito
porque um dos reis persas, quando se casava com uma mulher,
passava a noite com ela e matava-a no dia seguinte. Então casou
com uma filha de reis, daquelas que eram sábias e sabidas, chamada
Xerazade [Shahrāzād]. Quando ela se juntou com ele, pôs-se a
contar-lhe contos, cuja narração interrompia no final da noite, o que
levava a que o rei lhe poupasse a vida e a pedir, na noite seguinte,
que completasse a narrativa. E assim fez Xerazade durante mil
noites, durante as quais o rei fez amor com ela, até que ela gerou um
filho dele, e em lho mostrando, e havendo ela explicado a sua
artimanha, o rei apreciou a sua sabedoria, dela se enamorou e
poupou-lhe a vida.»

E, logo de seguida, afirma o mesmo Annadime:

«A verdade, se Deus ma concede, é que o primeiro a narrar


contos durante a noite foi Alexandre [O Grande], que tinha pessoas
que o divertiam e lhe narravam contos durante a noite. Mas ele não
o fazia pelo prazer, mas sim para se instruir e se fortalecer. E foi
assim que os reis, depois dele, utilizaram o livro Hazār Afsānah, que
contém mil noites e quase duzentos contos, porque cada conto pode
ser contado ao longo de várias noites. E eu já vi várias cópias
completas. Mas a verdade é que se trata de um livro frio e fraco.»
E Almaçudi continua fazendo algumas comparações com a literatura do
mesmo género, tais como o livro Calila e Dimna ou o livro Sindbad, o
Sábio. Estas não são as únicas referências às Noites provenientes de fontes
literárias ou fragmentos de manuscritos, mas são as mais pertinentes para
efeitos deste Preâmbulo.

Um dos mais conceituados especialistas contemporâneos d’As Mil e Uma


Noites, Aboubakr Chraïbi10, demonstra que estes textos, cuja fiabilidade
histórica é, de resto, questionável, não podem constituir prova de que no
século ix já existisse o livro d’As Mil e Uma Noites, nem que este tivesse
sido uma tradução do persa. Em primeiro lugar, os vários testemunhos que
se reportam aos séculos ix/x aludem a um tipo de histórias que se assemelha
mais às fábulas ou aos exemplos morais, sendo o livro Hazār Afsānah
comparado a Calila e Dimna, um livro de fábulas morais que alegadamente
terá sido traduzido do persa por Ibn Almufaqqaa, e que é frequentemente
comparado às fábulas de La Fontaine. No entanto, os manuscritos d’As Mil
e Uma Noites que chegaram até hoje, sendo o mais antigo do século XIV,
não se caracterizam pela existência de fábulas morais com animais que
falavam, um estilo de resto delas quase ausente, com algumas excepções
esporádicas. Destas, as mais notáveis são precisamente as duas histórias
contadas a Xerazade pelo seu pai, quando aquela lhe pede para ser oferecida
em casamento ao rei Xariar, e a história do marido e do papagaio (que
também consta do livro Sindbad, o Sábio). Além destas, as histórias O
Filho do Rei e a Ghula, O Invejoso e o Invejado, e O Sábio Dubane, não
sendo fábulas, caracterizam-se por serem histórias relativamente curtas,
cuja intenção é menos divertir o leitor através de coisas estranhas e
espantosas – como é corrente n’As Mil e Uma Noites – e mais instruir
moralmente. Esta meia dúzia de histórias talvez sejam as poucas que
ficaram do que teriam sido As Mil Noites que fazemos remontar ao século
ix. Por outro lado, não chegou aos dias de hoje nenhum fragmento, por mais
curto que fosse, de um pretenso original persa.
Importante para perceber o contexto será referir que na época a que se
reportam as citações e autores previamente mencionados houve um grande
debate intelectual que opôs as tradições literárias árabes, baseadas na poesia
e nos contos, e as persas, baseadas nas fábulas. Desse debate resultou uma
síntese em que vários intelectuais persas adaptaram para árabe peças
literárias de tradição persa, juntando-lhes poemas da tradição árabe. É neste
quadro que surge a necessidade de atribuir uma origem persa às Noites,
mesmo que eventualmente essa origem tenha sido forjada, fosse como
forma de enaltecer as tradições persas e de dar autoridade ao texto em
questão, fosse, pelo contrário, uma forma de renegar a baixa categoria
literária que lhe atribuem os vários intelectuais árabes da época que lhe
faziam referência, denunciando os elementos estrangeirados e menos nobres
que caracterizariam as tradições persas face às árabes. Acreditar que As
Noites são a tradução de um livro persa é, em termos comparativos, tão
válido quanto acreditar que o pretenso manuscrito desaparecido que
Umberto Eco usou para redigir O Nome da Rosa tenha existido realmente.
Assim, tudo leva a crer que nunca terá existido um original persa; tal
como, e mais importante, o livro referido como sendo uma tradução do
Hazār Afsānah seria muito diferente daquele que veio a ser As Mil e Uma
Noites. A única certeza que se pode ter é a de que o quadro principal com
um enredo que engloba as personagens Xerazade, Dinarzade, o rei e o vizir,
já existia na época. Tudo o resto é uma incógnita.
Muitas das histórias que se encontram n’As Mil e Uma Noites (apesar de
nelas se encontrarem elementos paralelos a histórias de tradição oral
existentes fora do mundo estritamente árabe, nomeadamente nas tradições
persa, indiana e até chinesa) aparentam ser histórias que fazem parte das
tradições orais árabes, e várias delas encontram-se – geralmente com
modificações que tanto podem ser meramente superficiais como, noutros
casos, estruturais – em outras recolhas de contos de títulos diversos que
remontam à mesma época.
Por exemplo, a história O Mercador e o Génio é uma versão evidente da
história de Khurafa que, segundo reza a lenda, remonta a uma conversa
ocorrida entre Muhammad, o profeta mais importante dos muçulmanos, e
sua mulher Aicha, sobre Khurafa, que era um beduíno pertencente à tribo
de Udhra, e que certo dia foi confrontado por três génios. Khurafa só
conseguiu salvar a vida depois de três transeuntes surgidos por acaso terem,
cada um, contado uma história espantosa para agradar aos génios. Note-se
que este nome, Khurafa (Khurāfah), significa em árabe conto ou lenda e é,
aliás, o que figura nos textos anteriormente citados para traduzir o título
Hazār Afsānah para árabe (Alf Khurāfah, isto é, Os Mil Contos).
As características árabes são evidentes, englobando não só elementos
pré-islâmicos e islâmicos, como também alguns elementos que provieram
dos cristãos e judeus da Arábia. Por exemplo, na história O Pescador e o
Ifrite, o ifrite, que é um génio ou demónio mais possante, depois de ser
libertado pelo pescador invoca o nome do profeta Salomão. É certo que
Salomão também é considerado profeta na religião islâmica, visto que esta
segue a tradição profética abraâmica. Mas as referências aos selos de
Salomão onde estava inscrito «O Grandiosíssimo Nome» (al-ism al-aʿẓam)
reportam-se a tradições mais especificamente judaicas, tratando-se de uma
invocação da expressão haShem em hebraico, que significa «O Nome»11,
uma forma para designar Deus no judaísmo, sendo que neste conto Deus é
várias vezes referido precisamente por «O Grandiosíssimo Nome».

Outro elemento que fornece pistas sobre a génese d’As Mil e Uma Noites
é a própria língua em que as suas histórias estão redigidas. Aqui convém
abrir um parêntesis para explicar o que é a língua árabe, visto que este
termo é usado como se de uma só língua se tratasse, quando na realidade o
árabe seria mais exactamente descrito como um conjunto de várias línguas.
Por um lado, existe o árabe padrão, que por sua vez pode ser dividido em
eras cronológicas. Por exemplo, o árabe clássico corresponde às mais
antigas formas registadas por escrito da língua padrão, enquanto o árabe
moderno corresponde às formas usadas hoje em dia, sendo possível
discernir épocas intermédias entre ambos. Onde acabam umas épocas e
começam outras é motivo de debate, mas o conjunto do árabe padrão usado
em todas as épocas é referido em árabe pela expressão al-ʿarabīyah al-
fuṣḥá, que literalmente significa «[a língua] árabe mais eloquente». Esta
língua padrão, cujas bases ficaram definidas pelo Alcorão, e cujas primeiras
gramáticas e cânones foram posteriormente estabelecidos pelos persas12, ao
contrário do que afirma uma certa crença popular, nunca foi uma língua
nativa falada nos tempos da revelação alcorânica. Trata-se de uma língua
artificial, resultante da junção de vários falares da Arábia, que servia não só
como língua franca entre os diferentes árabes, cada qual com os seus
falares, como também enquanto língua usada para produzir uma certa
eloquência de discurso bem patente na poesia árabe pré-islâmica, cuja
importância era fulcral na produção cultural da época, sabendo-se aliás da
existência de encontros e concursos intertribais dedicados à poesia. Foi
nessa língua eloquente que o Alcorão foi revelado, segundo afirma a
tradição islâmica, pelo arcanjo Gabriel a Muhammad, e é esta mesma língua
que é hoje em dia usada nos países de língua oficial árabe. É certo que a
língua teve evoluções desde os tempos da revelação alcorânica, em inícios
do século VII, até aos dias de hoje, mas ainda assim é possível afirmar que
as bases gramaticais e ortográficas sofreram poucas alterações
significativas.
Convirá acrescentar também que existem diversas variantes do árabe
coloquial, que não são corruptelas do árabe padrão, como antigamente se
considerava, mas sim descendentes dos vários falares árabes antigos. As
várias línguas árabes coloquiais, que são as línguas realmente nativas dos
falantes árabes, e muitas vezes referidas com pouca exactidão por
«dialectos», coincidem hoje em dia mais ou menos com as actuais
fronteiras nacionais. Isso acontece porque há uma certa tendência, visto ser
esta a língua real falada pelas pessoas, para se desenvolver um registo
nacional dessas línguas falado informalmente nas televisões e rádios, que
geralmente coincide com a língua árabe que se fala na capital do país, ou
noutra cidade de prestígio cultural. No entanto, note-se que há várias
línguas árabes que são transnacionais13.
Por outro lado, é o árabe padrão que tem vínculo oficial, e que é usado
pelo Estado, escolas, jornais, telejornais, livros, etc., em suma, na grande
maioria dos registos escritos; enquanto o registo coloquial só é usado
informalmente, no dia-a-dia ou em programas de televisão e rádio, tais
como concursos e debates, passando por filmes, sendo usado na escrita
sobretudo em peças de teatro, guiões de cinema, anúncios publicitários,
chats, etc. Na realidade, hoje em dia há um debate em vários países de
língua oficial árabe sobre qual dos dois registos deve ser o oficial, e cada
vez mais escritores produzem literatura em árabe coloquial, apesar de em
nenhum país haver uma convenção ortográfica oficial de uma língua árabe
coloquial, sendo ela escrita ao gosto pessoal de cada um. Por último, ambos
os registos da língua interagem um com o outro, havendo mesmo o que se
chama árabe médio, usado em situações meio formais, e que é uma língua
intermédia entre os dois registos14. Fechando o parêntesis e regressando à
língua do texto d’As Mil e Uma Noites, uma das características principais
que salta à vista na leitura dos mais antigos manuscritos é precisamente que
a língua usada não é o árabe padrão ou eloquente, que caracteriza as Belles
Lettres árabes, mas sim o árabe médio, muito mais próximo do árabe
coloquial e da língua «real» falada no dia-a-dia.
É de notar, pois, que as histórias d’As Mil e Uma Noites costumam ser
classificadas dentro do género «literatura popular», mas esta classificação
levanta alguns problemas. É certo que a língua usada leva a crer que a sua
redacção se trata de uma criação dita «popular», mas como definir o
«popular»? E o que faz algo ser genuinamente «popular»? E como se
poderá saber se os seus redactores pertenciam ao «povo autêntico»? E o que
é o «povo autêntico»? O termo «popular» acaba por ser demasiado poroso e
servir um discurso que delimita, através de critérios duvidosos, o que deve
ser o povo «genuíno» e o «autêntico», por oposição às elites que são, na
realidade, quem define esses mes-mos critérios de forma a produzir uma
ideologia de acordo com as suas ambições político-culturais. De certa
maneira, foi o que aconteceu, por exemplo, durante o Romantismo, cujas
ideias foram fulcrais na elaboração dos vários nacionalismos europeus,
desejosos de definir um ideal de nação assente em conceitos tais como o
«povo autêntico» ou o «genuinamente popular». A expressão «literatura
oral» também é, por sua vez, pouco exacta, pois no caso d’As Mil e Uma
Noites não existe garantia alguma de que estes textos tenham sido
transcritos directamente de um relato oral, desconhecendo-se onde
exactamente acaba a voz do contador de histórias e começa a voz dos
relatores e copistas dos manuscritos. Assim, para evitar os conceitos
ambíguos de «popular» e «oral», e tendo em conta o árabe médio em que
são redigidos estes manuscritos, prefere-se aqui designar este tipo de
literatura, que nitidamente se desmarca das Belles Lettres, por literatura
média árabe.
A língua usada n’As Mil e Uma Noites e a sua espontaneidade é
comparável a outros exemplos de literatura dita «oral» ou «popular», como
por exemplo os chamados «contos populares portugueses». Mas se muito se
sabe sobre o contexto em que estes foram recolhidos, produzidos e
divulgados através das várias colectâneas elaboradas por figuras
influenciadas pelo Romantismo, como Adolfo Coelho, Consiglieri Pedroso
ou Teófilo Braga, entre outros, nada se sabe sobre quem redigiu as
primeiras versões da literatura média árabe, nas quais se incluem diversos
livros, uns mais conhecidos do que outros, como as próprias Mil e Uma
Noites, O Sábio Sindbad, Sindbad, o Marinheiro, As Cento e Uma Noites,
ou ainda As Histórias Espantosas e As Estranhas Novas, todos de autor(es)
desconhecido/a(s), e com algumas histórias e/ou elementos de histórias
partilhados entre si, e todos eles, ao que parece, assaz desconhecidos do
público português.
Sobretudo a partir da língua usada, mas também dos diversos erros
ortográficos, morfológicos e sintácticos, sendo que estes erros
eventualmente podem ser características das cópias que chegaram aos dias
de hoje e talvez não constassem dos originais (não se sabe), é muitíssimo
pouco provável que estas histórias tenham sido elaboradas por
conhecedores profundos das Belles Lettres árabes, algo que diferencia As
Mil e Uma Noites dos já referidos «contos populares portugueses», que,
como foram recolhidos por intelectuais, já foram submetidos a algum tipo
de tratamento editorial, mesmo que mínimo. Mais, curiosamente a língua
usada é absolutamente o oposto da língua em que alegadamente foi
traduzido para árabe, segundo o já citado Annadime, o livro persa Hazār
Afsānah (As Mil Noites), de que ele afirma ter visto «várias cópias
completas», e que este género de livros teria sido traduzido «por quem
dominava a eloquência e a retórica, que os reviram, poliram e
embelezaram». Ora, se tal livro nos séculos ix e x estava traduzido em árabe
eloquente, isto é, em árabe padrão, os manuscritos que chegaram até hoje
com As Mil e Uma Noites, datando o mais antigo do século XIV, não estão
em árabe padrão. Tudo leva pois a crer que se há alguma coisa de comum
entre As Mil Noites e As Mil e Uma Noites pouco mais será do que o quadro
principal da história com Xerazade, o rei e o seu vizir, e talvez meia dúzia
de contos mais pequenos.
Outro ponto muito interessante é o de que os elementos orais presentes,
assim como os conteúdos, ora mais explicitamente ora mais subtilmente,
contêm críticas à opressão exercida pelas autoridades, assim como revelam
ocasionalmente concepções religiosas e morais que colidem com os padrões
estabelecidos pelos teólogos da época. Isso não significa que houvesse
algum tipo de resistência contra o Islão, muito pelo contrário, o que há é um
Islão prático e de uso mais «popular» que se diferencia das práticas
estabelecidas pela ortodoxia dos textos. Por exemplo, o principal centro de
opressão política n’As Mil e Uma Noites resulta sobretudo dos caprichos de
reis pagãos, que ainda não se salvaram através do Islão e que, portanto,
sendo desprovidos de princípios justos, não estão em condições de outorgar
justiça nem de dirigir uma sociedade pelo caminho certo, apesar de haver
algumas excepções, em que reis aparentemente pagãos também outorgam
justiça no final da história, como por exemplo o rei da China na história O
Corcunda e o Rei da China15. Em contrapartida, os chefes muçulmanos,
fictícios ou reais, como por exemplo o célebre califa Harune Arraxide,
caracterizam-se por serem exemplares que praticam a justiça económica,
social e até marital. Ora, este califa reinou entre 786 e 809, sendo muito
improvável que figurasse nas já referidas versões primitivas d’As Mil
Noites, e muito possivelmente terá sido a figura à qual os contadores de
histórias recorreram para defender ideais de justiça social dentro de um
quadro político de soberania islâmica com o qual se identificariam, mesmo
que não fosse nos moldes vigentes da época em que essas histórias tinham
sido elaboradas. A figura histórica do califa Harune Arraxide é mitificada
para encarnar os ideais da liderança islâmica correcta e bem guiada, que se
contrapõem à injustiça sofrida por diversos personagens, e possivelmente
pelas pessoas na época em que estas histórias foram produzidas.
É por isso tentador rever estas histórias à luz daquilo que James Scott
denomina little tradition ou hidden transcript16. Scott argumenta que os
grupos subordinados desenvolvem estratégias de resistência que passam
despercebidas aos grupos hegemónicos, e que uma dessas estratégias passa
pelas histórias orais. Seriam, pois, As Mil e Uma Noites um desvio oral de
um livro originalmente escrito em árabe padrão chamado As Mil Noites,
através do qual um grupo de pessoas desfavorecidas expressava o seu
descontentamento político e económico? Tal hipótese, perante o pouco que
se sabe, corre o risco de ser demasiado especulativa, mas minimamente
sustentável. Não é por acaso que As Mil e Uma Noites foram amplamente
ignoradas, senão mesmo desprezadas, pelas Belles Lettres árabes, e o
mesmo se aplica às suas versões primitivas redigidas supostamente em
árabe padrão, as únicas que ainda assim mereceram ser mencionadas pela
historiografia da literatura árabe («a verdade é que se trata de um livro frio e
fraco», dizia Annadime). Porém, esta situação inverte-se e As Mil e Uma
Noites voltam a estar nas luzes da ribalta no mundo árabe quando, por
pressão e influência orientalistas, sai a primeira edição impressa em árabe
no Egipto (em 1835), após o sucesso de traduções assaz duvidosas feitas na
Europa. Como veremos mais à frente, o texto desta versão árabe, na
realidade, apesar do título, é totalmente diferente das versões manuscritas,
havendo sido redigido, não em árabe médio, mas em árabe padrão segundo
os cânones vigentes da great tradition, e havendo o texto sido limpo,
embelezado, aperfeiçoado, com histórias que foram encurtadas para dar
espaço a outras cuja ligação às Noites foi criada a posteriori. E estas
versões, as únicas que têm circulado no mundo árabe, geralmente com o
menção «edição original e integral» na capa, são posteriormente
recuperadas pelo nacionalismo árabe que, na senda dos nacionalismos
europeus, procura demonstrar o génio criativo do povo e a unidade
linguística proporcionada pelo árabe padrão – apesar de esta não ser a
língua nativa de vivalma e muito menos ter sido a língua em que os
manuscritos foram redigidos, vendo nesse texto uma prova da autenticidade
do povo árabe. Por isso, é caso para dizer que perante as versões árabes
impressas que circulam, as traduções dos orientalistas europeus não são
muito piores, mas já lá chegaremos.
Por último, para finalizar, é imperioso referir a importância dos
contadores de histórias no mundo árabe. Num mundo em que ainda não
havia rádio ou televisão, era normal em todos os grupos sociais con-tar-se
histórias. Estas eram contadas tanto em ambientes familiares e fechados,
geralmente por pessoas ligadas à família, como em ambientes públicos,
como os mercados populares, por contadores de histórias profissionais. Ora,
no século XV, que terá sido talvez o apogeu da transmissão escrita e oral
d’As Mil e Uma Noites, e que os orientalistas, sem qualquer prova histórica,
consideravam ser o início da decadência da civilização árabe, uma teoria
entretanto ultrapassada, deu-se uma revolução que teve consequências
globais. Trata-se da descoberta de uma nova droga: o café. As suas
sementes, originárias da África Oriental, terão sido possivelmente pela
primeira vez tostadas e usadas para preparar a bebida chamada café no
Iémene em meados do século XV, e no século XVI a nova bebida já se
havia espalhado pela Turquia, Pérsia e Norte de África, e daqui para a
Europa e para todo o mundo. A própria palavra café tem uma das suas mais
prováveis etimologias no árabe qahwah, através do turco kahve e do
italiano caffè. Esta bebida irá trazer um novo espaço de convívio social ao
mundo árabe, também dito hoje em dia, em português, de café. Os cafés na
Síria e no Egipto, países onde se formaram As Mil e Uma Noites, passam a
ser um lugar de eleição, não só para os contadores de histórias, como
também para poetas e músicos. Paulo Lemos Horta17 refere que a vida
efusiva destes cafés, de grande frequentação popular, foi descrita por vários
viajantes europeus, que se espantavam com a quantidade de gente que os
frequentava e o sucesso de alguns desses contadores. Apesar de a génese
d’As Mil e Uma Noites ser anterior ao café como espaço de convívio social,
é possível que este tenha contribuído para a sua circulação e difusão, sendo
talvez (não se sabe ao certo) uma temporada de histórias, em que cada
episódio corresponderia a uma noite, pois sabe-se que era prática comum o
contador de histórias abandonar o café inesperadamente a meio de uma
história, de forma a que os seus ouvintes regressassem ao mesmo café na
noite seguinte para a conclusão da mesma.
A tradição de contar histórias não se desvaneceu completamente. Vários
canais de rádio árabes continuam a ter os seus contadores de histórias, mas
estes já não utilizam o árabe coloquial e sim o árabe padrão. Um dos poucos
sítios onde ainda se pode encontrar contadores de histórias em locais
públicos, que usam o árabe coloquial, é a Praça Jemaa el-Fna, em
Marraquexe, e o ambiente em que essas histórias aí são contadas e a vida de
um desses contadores e do seu filho sucessor na profissão foram
recentemente captadas pela lente de Thomas Ladenburger, no filme Al-
Halqa — In The Storyteller’s Circle18.
Perante tudo isto, uma questão pertinente que se coloca é saber se As Mil
e Uma Noites se terão formado entre os contadores de histórias, em
ambientes frequentados pelos mais desfavorecidos, e posteriormente
passadas para a escrita, ou se se terão formado primeiro na forma escrita e
depois sido recuperadas pelos contadores de histórias. Ou ainda se terá sido
uma mistura de ambas as dinâmicas.

Os manuscritos

As versões primitivas d’As Noites ter-se-ão formado por volta do século


ix, durante o Califado Abássida (séculos viii-xiii), possivelmente na cidade
de Bagdade. Como foi dito anteriormente, estas versões primitivas
difeririam consideravelmente dos manuscritos que chegaram aos dias de
hoje, que se teriam formado durante o Império Mameluco (séculos xiii-xvi),
na Síria e no Egipto, sendo que os respectivos manuscritos dividem-se em
dois ramos, o sírio e o egípcio. O primeiro reúne os manuscritos mais
antigos, e o segundo reúne uma maior quantidade de manuscritos de
elaboração posterior. Isto não significa por si só que As Mil e Uma Noites se
teriam formado primeiro na Síria e depois sido transmitidas para o Egipto, e
na realidade nos manuscritos sírios encontram-se certos coloquialismos que
indicam alguma influência do árabe coloquial cairota. Muito possivelmente
houve uma inter-influência entre as duas tradições, a síria e a egípcia, mas
esta última ou só começou a produzir manuscritos mais tarde, e as histórias
circulariam sobretudo por via oral, ou então os primeiros manuscritos não
chegaram até aos nossos dias.
A presente tradução segue sobretudo o manuscrito mais antigo que se
conhece, depositado actualmente na Bibliothèque nationale de France, com
as cotas Arabe 3609-3611 (doravante referido como manuscrito A),
constando no catálogo desta biblioteca19 como sendo um manuscrito do
século XIV. Como o manuscrito não contém a data em que foi redigido, esta
é discutível. No entanto, alguns dos seus leitores mais antigos assinaram o
seu nome e colocaram a data da sua leitura em algumas das páginas.
Muhsin Mahdi20, que foi responsável pela única edição crítica do texto
árabe d’As Noites a partir das mais antigas fontes, nomeadamente do
manuscrito A, julga que uma dessas datas não está escrita em números, mas
em letras21, e interpreta essas letras como sendo 1425, 1445, ou 1455 (uma
das letras não é claramente legível). Não sendo necessariamente
surpreendente que as datas correspondam ao calendário cristão, não deixa,
no entanto, de ser estranho, mas não impossível, que o mês mencionado
(shaʿbān) na mesma nota pertença ao calendário islâmico. Por outro lado, o
nome de um dos seus donos mais antigos também figura, um tal Shaykh at-
Tāj, mas sem data. No entanto, figura o nome de um neto seu, com a
menção do seu próprio punho de que leu o livro no ano hegeriano (AH) de
943, correspondente ao ano de 1536 do calendário gregoriano, assim como
a assinatura do filho do neto, com a data de 955 AH. Mahdi faz as contas e,
recuando três gerações, estima que Shaykh at-Tāj estaria na posse deste
manuscrito no ano 883 AH, que corresponde a 1473 do calendário
gregoriano. Ora, Mahdi estima ainda que, tendo em conta o tipo de papel
usado e a caligrafia, este manuscrito terá sido redigido um século antes de
estar na posse de Shaykh at-Tāj, isto é, em finais do século XIV. No
entanto, apesar da explicação de Mahdi ser bem fundamentada, Chraïbi22 é
mais cauteloso, e, na dúvida, considera que só a data de 943 AH/1536 AD é
um dado adquirido, e por isso considera este manuscrito como sendo
anterior ao ano de 1536 AD.
Além deste manuscrito, o ramo sírio, excluindo manuscritos forjados
numa época altamente vincada pelo Orientalismo, conta ainda com mais
dois manuscritos: o da Biblioteca Apostólica Vaticana (Codex Vaticanus
Arabo 782, séculos xv-xvi, doravante referido como manuscrito B), e o da
John Rylands Library em Manchester (Arabic MS 647, 1750-1771,
doravante referido como manuscrito C). Este último23 foi copiado para o
médico inglês Patrick Russell, quando este esteve destacado na cidade de
Alepo entre 1750 e 1751. Mahdi24 afirma que a caligrafia árabe é de época
recente e de mão europeia, havendo sido muito possivelmente o próprio
Russell a redigir a cópia. A cópia aparenta, no entanto, ser razoavelmente
fidedigna e alguns elementos parecem ser mais antigos que o manuscrito A.
Há que ter em atenção que os manuscritos B e C não são cópias directas do
manuscrito A. Na realidade, teoriza-se que terá havido pelo menos uma
versão matriz, que se terá possivelmente formado algures entre os séculos
xiii e xiv, com diversas fontes de inspiração, tais como as já referidas
versões primitivas, os contadores de histórias e diversas fontes literárias,
versão essa que não sobreviveu até aos dias de hoje. Terá sido de uma cópia
desta versão matriz, chamemos-lhe cópia X, que foi produzido o manuscrito
A. E terá sido a partir de outra cópia daquela cópia da versão matriz,
chamemos-lhe cópia Y, que foi produzido o manuscrito B. E da cópia Y de
onde foi produzido este manuscrito resultaram outras cópias, e cópia atrás
de cópia, resultaram na cópia de onde o manuscrito C foi copiado, apesar de
não ser de excluir que este manuscrito C tenha sido copiado directamente
da cópia Y, tendo em conta as semelhanças entre B e C.
Dentro do ramo sírio existe ainda o manuscrito do India Office Records,
actualmente na British Library (com a cota Arabic MS 2699, anterior a
1811, e doravante referido como manuscrito D). Este manuscrito terá sido
copiado na Índia, quase certamente do manuscrito C, aquando a estadia de
Patrick Russell na Índia. Apesar de o copista ter feito diversas alterações e
correcções ortográficas, sintáticas e de estilo, ele tem a sua importância pelo
facto de só metade do manuscrito C ter sobrevivido. A relação entre estes
quatro manuscritos é descrita no seguinte diagrama:
Regressando ao manuscrito C, uma das suas características peculiares é a
sua introdução, a qual é reproduzida nesta tradução, logo no início a seguir
a «Em Deus confio» e antes de «Era uma vez». Apesar de ser o único
manuscrito em que esse texto introdutório aparece, e sendo a sua cópia
tardia, não é de excluir que ele tenha sobrevivido desde a hipotética versão
matriz. Mas também não é de excluir que seja uma adição tardia e até
mesmo uma fraude introduzida por Russell (ou pelo copista ao seu serviço).
O leitor deve, pois, ter em atenção que no texto do manuscrito A só consta:
«Em nome de Deus, o Todo-Misericordioso, o Mui Misericordioso; Em
Deus confio; Era uma vez […]». Trata-se da única excepção em que nesta
tradução se recorreu a outro manuscrito que não fosse para colmatar uma
lacuna do manuscrito A.
Ora, o manuscrito A tem quatro folhas de texto que desapareceram e
porções do texto que se tornaram ilegíveis. Houve, pois, necessidade de
recorrer a outros manuscritos para completar essas lacunas. Além do mais,
várias partes do texto parecem ter sobrevivido nos manuscritos B e C, e até
mesmo em manuscritos posteriores do ramo egípcio, mas não no A.
Relativamente aos manuscritos do ramo egípcio que ocasionalmente foram
usados, são os seguintes: Arabe 3615, Bibliothèque nationale de France,
século XVIII; Gayangos 49, Biblioteca de la Real Academia de la Historia
(Madrid), séculos xviii-xix; Arabic 207, Christ Church Library (Oxford),
século XVIII; Ms. Bodl. Or. 550-551, Bodleian Library (Oxford), 1764;
Arabe 3612, Bibliothèque nationale de France, século XVII. Para cumprir
este objectivo, seguiu-se em grande medida, mas não exclusivamente, a
edição do texto do manuscrito A estabelecida por Mahdi25, havendo este
usado, para estabelecer o texto comparado, todos os manuscritos já
referidos.
Outro busílis do manuscrito A é o facto de a última história, a do rei
Camarezzamane, estar incompleta. Tal como na edição de Mahdi, decidiu-
se acrescentar a conclusão dessa história a partir de outro manuscrito,
nomeadamente o Ms. Bodl. Or. 550-551, Bodleian Library (Oxford).
Apesar de ser um manuscrito produzido já em fase tardia e de pertencer ao
ramo egípcio, a análise comparativa dos vários textos disponíveis leva a
crer que a conclusão da história de Camarezzamane reproduzida neste
manuscrito estará suficientemente próxima da hipotética versão matriz,
apesar de eventualmente ser muito mais longa do que a que nele constaria.
No entanto, como este manuscrito segue uma numeração de noites
completamente diferente da do manuscrito A, e não fazendo sentido
adicionar noites como se elas fizessem ainda parte deste manuscrito,
decidiu-se colocar a conclusão desta história num apêndice à parte, no
segundo volume desta tradução.
Outra questão muito curiosa prende-se com o facto de, nos manuscritos
mais antigos, nem sempre Xerazade interromper a história ao romper da
aurora, deixando o rei Xariar a arder de curiosidade para ouvir o resto, dado
adquirido que geralmente se associa às Noites, e que já Annadime no século
X referia, como já foi anteriormente mencionado. Várias vezes, a história
termina mesmo no final da noite, e apesar de Xerazade mencionar que na
noite seguinte contará uma história ainda mais espantosa, ela só a inicia na
noite seguinte. Porque não aproveitaria então Xariar para a matar? Seria
mesmo pela curiosidade em ouvir a nova história? Ou seria, como sugere
Mahdi26, que o rei Xariar, ao escutar as histórias de Xerazade, se terá
apercebido do enorme poder, inteligência e força das mulheres, e dos
feitiços que eram capazes de lançar, levando-o a ter medo de a matar e das
consequências fatais e terríveis que tal decisão poderia acarretar para a sua
própria vida? Pelo contrário, as primeiras edições impressas, assim como os
vários manuscritos em que se baseiam, muitos deles tardios e forjados,
como se verá mais à frente, usam sempre, e de forma coerente, a divisão em
noites para quebrar as histórias a meio. Mas, e se o objectivo de Xerazade
não fosse pôr o rei a arder de curiosidade, mas sim aterrorizá-lo?
Por último, mas não menos importante, uma característica comum a
todos os manuscritos anteriores às primeiras traduções feitas para francês e
inglês é que nenhum contém mil e uma noites. O manuscrito Arabe 3612 é
sem dúvida aquele que contém maior quantidade de noites, perfazendo o
seu total 870 noites, e talvez seja a tentativa mais antiga que se conhece de
reunir 1001 noites. No entanto, não se sabe se a parte que falta se perdeu ou
se o seu redactor não encontrou mais histórias para acrescentar. O que se
sabe, através da análise comparativa, é que as repetições, cortes e
organização caótica levam a crer que a sua redacção partiu com certeza de
uma iniciativa individual e não de uma cópia feita a partir de um original
completo contendo 1001 noites27.
Quanto ao manuscrito A, interrompe-se abruptamente na 281.a noite, no
antepenúltimo verso do primeiro poema28. Por sua vez, as suas duas últimas
páginas com texto escrito, atendendo à caligrafia usada, foram
aparentemente adicionadas por uma mão europeia para completar a 281.a
noite, e no final contêm a menção: «E assim termina a terceira parte das
estranhas e espantosas histórias d’As Mil e Uma Noites […]». Acontece,
porém, que a divisão em três volumes deste manuscrito não fazia parte da
sua divisão original, mas ainda assim foi suficiente para alimentar o mito de
um quarto volume desaparecido. Ora, os manuscritos A, B e C
interrompem-se todos no mesmo ponto da história de Camarezzamane,
aproximadamente na mesma noite. Isto significa que as cópias de onde
foram copiados estes manuscritos muito possivelmente já estariam
incompletas. Por sua vez, os manuscritos do ramo egípcio contêm mais
histórias, as quais não figuram nos manuscritos do ramo sírio. Mas fariam
estas histórias parte do conjunto original d’As Mil e Uma Noites, e estaria
de facto este conjunto dividido literalmente em 1001 noites?
Sobre esta questão, os especialistas dividem-se. Por exemplo, Mahdi
considera que o conjunto original pouco mais teria do que a história final de
Camarezzamane e que nunca chegou a ter 1001 noites. Assim, as histórias
que figuram no ramo egípcio e não no sírio, seriam acréscimos tardios. Mas
para Chraïbi é plausível que o conjunto contivesse de facto 1001 noites e as
histórias do ramo egípcio não seriam acrescentos tardios, mas histórias que
sobreviveram naquele ramo e não no outro. Mais: algumas histórias teriam
mesmo sobrevivido com formas mais antigas em outras colectâneas de
histórias que não As Mil e Uma Noites, tais como as já referidas As Cento e
Uma Noites (século XVIII), ou ainda As Histórias Espantosas e As
Estranhas Novas (século XIV), ou até mesmo nas primeiras edições
impressas, como a célebre versão de Bulaq (1835). Assim, Chraïbi acredita
ser possível reconstituir uma versão original completa d’As Mil e Uma
Noites, trabalho que tem desenvolvido nos últimos anos. No entanto, não há
nenhuma prova irrefutável de que este livro tenha tido alguma vez de facto
1001 noites. E se as versões primitivas com o título As Mil Noites — tendo
em conta o que já foi dito sobre as várias referências bibliográficas antigas
que lhe são feitas — talvez contivessem 1000 noites, por sua vez tornou-se
evidente que As Mil Noites e As Mil e Uma Noites não são o mesmo livro,
nem versões diferentes do mesmo livro, mas que este último é um desvio e
uma apropriação levada a cabo por contadores de histórias, que usaram a
seu bel-prazer alguns elementos do primeiro, entre diversas outras
influências. Assim, mesmo se o primeiro compreendesse 1000 noites, tal
facto nunca poderá constituir-se como prova de que o segundo contivesse
1001 noites.
Ora, o título As Mil e Uma Noites tem um cunho sobretudo simbólico,
significando uma sucessão interminável de noites com longas histórias,
lembrando até certo ponto a simbólica dos números que acompanha a
tradição literária semita, patente por exemplo na Bíblia. A obsessão pela
contagem exacta de 1001 noites talvez não passe disso mesmo: uma
obsessão, e um desejo de perfeccionismo que, como é patente nas
sucessivas contradições que acompanham não só As Mil e Uma Noites, mas
todas as histórias orais, contradiz na realidade o espírito original da obra. É
mesmo possível que o livro circulasse sobretudo pelas mãos dos contadores
de histórias, como um guião de trabalho, e não como um livro corrente.
Esta suposição não é meramente especulativa, e vários relatos de viajantes
europeus referem que em várias cidades do mundo árabe e otomano era
corrente as livrarias alugarem livros aos contadores de histórias, e que estes
conseguiam reunir grandes ajuntamentos quando contavam histórias em
espaços públicos.
Por outro lado, não deixa também de ser verdade que As Mil e Uma
Noites é precisamente uma obra que nunca conheceu uma versão final e que
foi sendo tecida, torcida, descosida, retalhada e retecida ao longo dos
tempos, como um emaranhado de histórias disseminado pela oralidade e
fixado na escrita. Por isso, qualquer história, talvez mesmo
independentemente da sua origem, poderia também fazer parte deste
espólio. O que é certo é que as versões posteriores foram limpando estes
textos, sendo o culminar desse processo a edição impressa em árabe de
Bulaq (1835), que será discutida brevemente na parte relativa às primeiras
edições impressas em língua árabe d’As Noites.
Por tudo isto, entendeu-se ser necessário publicar em Portugal uma
edição d’As Mil e Uma Noites baseada no manuscrito mais antigo que se
conhece, que apesar de todas as suas incongruências é, muito
possivelmente, aquele onde ficou mais bem conservado o espírito das
histórias que se contavam na época em que este corpo de histórias se
desenvolveu. Mais: todas as histórias que aí figuram foram nitidamente
encurtadas e guilhotinadas nas edições impressas, cujo critério assentava na
quantidade acrítica de histórias que se poderia acrescentar a torto e a direito
para se perfazer a maior quantidade de noites possível, de preferência o
número exacto de 1001 noites. O objectivo desta nossa tradução foi, pois,
dar a conhecer a versão mais antiga que se conhece com este título, sem as
diversas purgas, acrescentos e modificações sofridos nas edições mais
recentes, tanto nas árabes como nas suas traduções.

A tradução de Antoine Galland

A primeira tradução que surge na Europa irá ter um impacto


determinante na história d’As Mil e Uma Noites, influindo mesmo no rumo
que as próprias edições impressas em árabe viriam a seguir. Trata-se da
tradução de Antoine Galland, publicada a partir de 1704 e até 1717 em doze
volumes, e que, na realidade, não pode ser considerada uma tradução, mas
sim uma adaptação. Originalmente Galland propusera-se traduzir um ciclo
de histórias da literatura árabe média, sem qualquer relação com As Mil e
Uma Noites, conhecido por Sindbad, o Marinheiro. No entanto, chegou-lhe
às mãos, por mero acaso, um outro manuscrito (que tudo indica lhe seria
desconhecido, apesar das suas viagens pela Turquia e pelo mundo árabe
levantino) contendo um conjunto de histórias de literatura árabe média,
intitulado As Mil e Uma Noites. Mais propriamente, trata-se do manuscrito
já referido como manuscrito A que, por esta razão, também é referido
nalguma literatura crítica como o manuscrito Galland.
O orientalista e arqueólogo apercebeu-se de que este texto era deveras
interessante, mas, deparando-se com o facto de conter só 281 noites, julgou
que lhe faltariam as restantes 720 noites. Assim, para ir acrescentando
noites, no final da 69.a Noite, quando termina a história d’O Carregador e
das Três Moças de Bagdade, em vez de introduzir, seguindo o manuscrito
A, a história d’As Três Maçãs, Galland introduz o ciclo de histórias de
Sindbad, o Marinheiro, proveniente do já referido manuscrito, com um
conjunto independente de histórias sem qualquer vínculo ou relação com As
Mil e Uma Noites, não se conhecendo nenhum manuscrito árabe ao qual as
histórias de Sindbad, o Marinheiro tivessem sido adicionadas. Esta adição,
feita a partir do 3.° volume, tem ainda a característica de, conforme Galland
avisa numa nota no início desse volume, terem sido simplesmente
eliminadas as falas entre Dinarzade e Xerazade, que constam no início e
final de cada noite. De facto, essas falas não poderiam existir nas histórias
de Sindbad, o Marinheiro, visto que estas não têm qualquer relação com
Xerazade ou Dinarzade nem estão divididas em noites. Curiosamente,
Galland havia adicionado essas falas onde elas também não constavam no
seu manuscrito árabe.
Só depois das sete viagens de Sindbad é que Galland regressa ao
manuscrito A e a partir da 90.a Noite da sua tradução insere a História das
Três Maçãs, que no manuscrito A começa na 69.a Noite, e reproduz a
mesma sequência desse manuscrito, sendo, no entanto, uma incógnita onde
terá ido ele desencantar a conclusão da história de Camarezzamane, que não
constava do seu manuscrito.
Com a publicação do 7.° volume, há outra nota de advertência ao leitor
que merece alguma atenção. Depois de o 6.° volume ter terminado na 236.a
Noite, Galland adverte que, doravante, para evitar o enfado do leitor, não
reproduzirá mais a divisão em noites que, segundo ele, nem seria do agrado
de todos os leitores árabes, e que haveria mesmo vários contos em árabe
d’As Mil e Uma Noites que não refeririam Xerazade, Dinarzade ou o rei
Xariar, nem estariam divididos em noites29. Esta constatação de Galland é
obviamente falsa, e é curioso que seja feita, assim como a falta de
sinceridade intelectual patente na construção da sua tradução, por quem
havia afirmado, na já mencionada nota ao 3.° volume, que o seu objectivo
era preservar «o génio e o carácter dos contos orientais tão religiosamente
quanto possível».
Tendo Galland eliminado a divisão em noites, e livrando-se, portanto, da
complicação de a sua tradução não conter exactamente 1001 noites, não
descansou, porém, enquanto não encontrou mais histórias que pudesse
incluir a torto e a direito n’As Mil e Uma Noites. Assim, em 1707 dá-se em
Paris um importante encontro entre Galland e um cristão maronita oriundo
de Alepo, de nome Hanna Diab, que havia sido trazido por um viajante
chamado Paul Lucas. Este havia prometido a Diab um cargo na corte de
Luís XIV como tradutor, mas na realidade tudo indica que ele o havia
trazido mais como um troféu das suas via-gens pelo Oriente e uma
curiosidade para apresentar à corte. De facto, quando Diab é apresentado à
corte em Versalhes, para entretimento desta, não só Lucas lhe pede para se
vestir com trajes tipicamente orientais que lhe forneceu, o que ele faz
envergando mesmo um chapéu de pele proveniente do Cairo e sem qualquer
relação com os trajes cerimonias de Alepo, como também lhe pede que
transporte uma gaiola com duas criaturas curiosas que haviam sido trazidas
de Tunes30.
É precisamente Diab, que conhecia bem os ambientes onde circulavam as
histórias orais de Alepo, quem irá contar a Galland um conjunto de 16
histórias. Tudo indica que Galland não ouviu estas histórias na língua nativa
de Diab, o árabe coloquial de Alepo, mas em francês, língua que Diab
também dominava. Apesar de Galland nos seus diários não mencionar
nenhuma ligação entre as histórias de Diab e As Mil e Uma Noites, acabou
por incluir 10 dessas histórias na sua tradução. Estas histórias são
conhecidas precisamente por «histórias órfãs», porque de todas, com
excepção de uma31, não se lhes conhece qualquer versão manuscrita árabe
anterior à tradução de Galland. Deste conjunto de histórias constam
algumas bem conhecidas, como as de Aladino ou de Ali Babá e os Quarenta
Ladrões. Apesar de estas continuarem actualmente a ser incluídas nas
edições árabes correntes, e em manuscritos forjados produzidos
posteriormente à publicação das Noites de Galland, sabe-se hoje, e sem
margem para dúvida, que são traduções do francês para árabe.
Assim, o contributo de Hanna Diab na tradução de Galland, inicialmente
ignorado e cada vez mais reconhecido, é inquestionável, mas onde acaba a
mão de Diab e começa a de Galland nem sempre é evidente. Horta32
compara as notas de trabalho de Galland e o diário deste com o resultado
final, por exemplo, da história de Ali Babá33, para chegar à conclusão de
que Galland moralizou a história, que na versão contada por Diab seria
sobretudo uma história para maravilhar, com um cunho nitidamente
materialista, em que Ali Babá era pobre e a quem, para usar uma expressão
dos nossos dias, saiu a «sorte grande» ao ter descoberto a senha para aceder
aos tesouros acumulados pelos quarenta ladrões. Este materialismo
caracteriza de facto não só as histórias d’As Mil e Uma Noites, como
também a literatura média árabe, resultado talvez do facto de os seus
ouvintes serem sobretudo pessoas faltas de recursos materiais. Ao invés,
nas versões de Galland, assim como nas histórias produzidas por classes
mais distintas e abastadas, destinadas a um público dessa mesma classe,
esse materialismo é visto como algo grosseiro e por isso a pobreza
geralmente é enaltecida como forma de superioridade espiritual, sendo a
riqueza material desprezada. Como afirma Ibn Khaldun, o fundador da
História e da Sociologia modernas, nos seus Prolegómenos34, «o dinheiro
circula entre súbditos e governante, em ambos os sentidos. Assim, se o
governante o retiver para si mesmo, o dinheiro fica perdido para os
súbditos». As Mil e Uma Noites podem ser vistas como um tratado político
e económico, que descreve a revolta dos súbditos perante o despotismo dos
governantes e o açambarcamento das riquezas colectivas, levado a cabo por
estes, tal como é referido num dos poemas das Noites:

Tanto tempo persistiram em nos governar,


Mas tão rápido o seu poder se desvaneceu.
Porque não foram justos, o destino respondeu
Com infortúnios e martírios para os desgovernar.
E de manhã escarnecemos dos antigos amos:
«Olho por olho, o destino não censuramos!
Foi graças aos acrescentos de Galland e ao mito, por ele iniciado, de uma
versão completa com 1001 noites, que tanto tradutores como editores das
versões árabes se puseram a acrescentar diversos excertos sem qualquer
ligação com As Mil e Uma Noites. No entanto, não se trata aqui de fazer
uma censura moral ao processo criativo de Galland, onde a falsificação e o
plágio são correntes. Pois se os manuscritos em que esta tradução que o
leitor tem em mãos são, eles mesmos, o fruto provável de um desvio feito
por contadores de histórias a partir de uma versão primitiva de um livro
chamado As Mil Noites, não se havendo eles poupado em levar a cabo
diversos plágios, porque havia Galland de o fazer? É certo que Galland o
poderia ter feito anonimamente, tal como fizeram os autores d’As Mil e
Uma Noites, e que se pode tecer críticas tendo em conta que Galland, assim
como os diversos tradutores que lhe sucederam, usou estes textos sob o
prisma do Orientalismo. Tal como afirma Mahdi35, tanto Galland como os
vários tradutores que lhe sucederam «tentaram provar que as Noites são
uma obra que, de facto, reflecte os costumes e os modos dos Orientais.
Académicos que usaram as Noites sem ter em conta as suas características
ficcionais tentaram também comprovar as suas próprias noções de carácter
nacional e religioso». Na realidade, a obra de Galland acabou por «reforçar
a ignorância ocidental sobre os países árabes onde as histórias supostamente
tinham tido origem»36.
No entanto, não é menos importante fazer também uma crítica a Galland
enquanto tradutor. Este não se limitou a cortar partes significativas do
manuscrito que tinha em sua posse, tais como os poemas ou o vocabulário
sexualmente mais explícito, nem a acrescentar longos excertos de sua
autoria e histórias de outros manuscritos sem ligação às Noites, para criar
uma versão mais moralista, romântica e sentimental. Galland comete vários
erros de tradução37 que põem em causa o seu conhecimento de língua árabe
e até dos hábitos e costumes que tenta explicar ao longo do texto. Não
hesitou em alterar várias histórias, por vezes para resolver as contradições e
lacunas intrínsecas ao manuscrito A, mas também porque por vezes não leu
a história do princípio ao fim antes de a traduzir, alterando os seus finais
para que fossem coerentes com o que havia alterado.
As invenções de Galland são, muitas vezes, despropositadas. Assim, por
exemplo, no final da 1.a Noite, depois de Xerazade iniciar a sua primeira
história, Galland escreve: «Nesta altura, ao reparar que era dia e sabendo
que o sultão [Xariar] se levantava muito cedo, para fazer a sua oração e
reunir o Conselho, Xerazade deixou de falar.»38 Parece que Galland faz
aqui referência à primeira das cinco orações diárias que os crentes
muçulmanos devem praticar, mas o problema é que em momento algum
d’As Mil e Uma Noites é dito que o «sultão» era muçulmano ou que alguma
vez tivesse feito alguma oração durante a aurora ou outra altura do dia ou
da noite. Na realidade, uma hermenêutica muito mais plausível do texto
árabe leva o leitor a crer que Xariar era pagão, e que um dos objectivos das
histórias de Xerazade era atestar a superioridade moral do Islão e das
religiões do Livro.
Um exemplo possível para avaliar a qualidade da tradução de Galland, e
os critérios moralistas pelos quais se regeu, é a História das Três Moças de
Bagdade. Compare-se o excerto do início 31.a Noite da versão de Galland,
em seguida reproduzido, com a nossa tradução, cuja parte equivalente
começa também logo no início da 31.a Noite e acaba no início do segundo
parágrafo da 32.a Noite («Mas ao cair da noite, elas disseram ao carregador:
“Meu senhor, seja decente, calce as suas sandálias e por amor de Deus vire-
nos as costas agora mesmo.”»):

[…] a encantadora Amine foi mudar o seu vestido de sair à rua;


envergou o seu robe e prendeu-o pela cinta, para andar mais à
vontade; e preparou a mesa. Serviu várias espécies de manjares, e
colocou sobre um aparador garrafas de vinho e taças de ouro.
Depois disso, as damas sentaram-se e mandaram sentar a seu lado o
carregador, que estava satisfeitíssimo, mais do que se possa
imaginar, por se ver à mesa com três senhoras de tão extraordinária
beleza.
Depois de iniciarem a refeição, Amine, que estava perto do
aparador, pegou numa garrafa e numa taça, deitou um pouco para
beber, sendo a primeira a fazê-lo, segundo o costume dos árabes.
Em seguida deitou para as suas irmãs, que beberam uma após a
outra; e depois, enchendo pela quarta vez a mesma taça, entregou-a
ao carregador que, ao recebê-la, beijou a mão de Amine e cantou,
antes de beber, uma canção cujo sentido era assim: tal como o vento
leva consigo o bom aroma dos lugares perfumados por onde passa,
assim o vinho que ele ia beber, vindo da sua mão, recebia um gosto
mais delicado do que aquele que realmente tem. Esta canção alegrou
as damas, que por sua vez também cantaram. Enfim, o grupo esteve
de muito bom humor durante a refeição, que durou muito tempo,
sendo acompanhada de tudo aquilo que a podia tornar agradável.
O dia ia terminar em breve quando Safie, tomando a palavra em
nome das três damas, disse ao carregador:
— Levantai-vos e parti, é tempo de vos retirardes.39

As diferenças entre ambas as versões são flagrantes, e convém relembrar


que tanto a presente tradução como a de Galland se baseiam exactamente
no mesmo manuscrito. Em primeiro lugar, para comparar as duas traduções,
há que ter em conta que Galland decidiu atribuir os nomes Zubeida, Amina,
e Safia40 às três moças, que na história original não têm nome e são
simplesmente referidas pelas suas funções: «a dona da casa», «a moça que
soía abrir a porta», e «a moça que soía ir às compras»41. Tal como a grande
maioria dos contos d’As Mil e Uma Noites, A História das Três Moças de
Bagdade pauta-se por uma certa subversão das convenções sociais, com
mulheres independentes e com poder económico que se recusam a viver
com homens, mas que aceitam a companhia de um pobre mercador num
festim com contornos orgiásticos, mesmo tendo em conta que o seu «final
feliz» implica um retorno à normalidade patriarcal. A tradução de Galland
levou a que as Noites ganhassem uma fama pouco justa de histórias para
crianças, quando nada disso se trata. Mahdi questiona mesmo se o seu
carácter subversivo não poderá ser uma das razões pelas quais o(s) autor(es)
preferiram o anonimato42.
Note-se ainda, no excerto em cima mencionado, a adição da expressão
«segundo o costume dos árabes», que merece certa atenção, na senda do
que já foi dito sobre o uso que os orientalistas atribuíram a este texto como
forma de explicar os «costumes dos árabes», havendo contribuído mais para
uma campanha de desinformação do que para qualquer fim didáctico ou
informativo.
Em suma, as As Mil e Uma Noites de Galland não podem, de forma
alguma, ser consideradas a tradução de um livro de autor(es) anónimo(s),
mas sim uma adaptação da autoria do próprio Galland e de Hanna Diab, o
autor das chamadas «histórias órfãs», adaptação essa que usa o mesmo
nome do conjunto de histórias que lhe serviu de inspiração inicial.
Não deixa de ser pertinente, para fechar esta parte do Preâmbulo, referir
pelo menos mais duas traduções que se sucederam à de Galland. A
primeira, que continua a circular neste momento em Portugal, é a versão
francesa de Joseph Charles Mardrus, publicada entre 1899 e 1904. Apesar
de ser apresentada na folha de rosto como uma «tradução literal e completa
do texto árabe», a verdade é que está muito longe de ser literal, não
havendo Mardrus hesitado em fazer os seus acrescentos, de forma a
exagerar, à boa moda orientalista, as características «tipicamente» orientais.
Segundo nota do editor à edição original em francês, publicada com o título
Le livre des mille nuits et une nuit, Mardrus teria optado por traduzir a partir
da versão de Bulaq, não havendo hesitado, quando esta versão não era
plenamente satisfatória, em recorrer a detalhes presentes nas versões de
Calcutá II, de Habicht e «sobretudo em diferentes manuscritos». Os
contornos duvidosos que caracterizam a redacção destas três versões árabes
citadas serão discutidos mais à frente. Importa, no entanto, mencionar que,
na realidade, só sensivelmente metade da versão de Mardrus se inspira em
Bulaq. O restante é composto por histórias que Mardrus foi buscar
sobretudo a diversas traduções para francês de contos «orientais» feitas por
estudiosos da época, a maioria sem qualquer relação com As Noites,
incluindo até histórias não-árabes oriundas do Hindustão. Ao contrário de
Galland, Mardrus exagera todos os detalhes de teor sexual.
Outra tradução muito famosa, anterior à de Mardrus, desta vez para
inglês, é a de Richard Burton, publicada com o título The Book of the
Thousand Nights and a Night em 1885, em dez volumes, aos quais se
acresceram os dezassete volumes publicados entre 1886 e 1898, com o
título The Supplemental Nights to the Thousand Nights and a Night. Burton
não hesitou ainda em fazer uma enorme parafernália de notas e em incluir
apêndices com ensaios da sua autoria, cujos conteúdos soariam hoje em dia
a qualquer entendido na literatura e cultura árabes como, no mínimo,
ridículos. A tradução, baseada numa versão impressa conhecida por
segunda edição de Calcutá, que será referida mais à frente, em termos de
tradução não deixa de ser minimamente fiel, apesar do tom exageradamente
arcaico e excessivamente erudito que choca com o coloquialismo presente
no texto árabe, mesmo que de forma mais suavizada na edição seguida por
Burton43. A esse nível, Mardrus, apesar de todas as críticas que lhe possam
ser tecidas, soube transmitir essa forma mais oral de con-tar um conto
através do seu francês mais fluido.
Tendo em conta o que já foi dito, percebe-se que não faria qualquer
sentido fazer a tradução de uma das várias versões contendo 1001 noites.
Embora essas histórias acrescentadas tardiamente sejam sem dúvida
pertinentes, e merecedoras de fazer parte do património da literatura média
árabe e, portanto, de ser traduzidas. Como as histórias de Sindbad, o
Marinheiro, elas nunca fizeram parte d’As Mil e Uma Noites e, portanto,
caso algum dia venham a ser traduzidas para português directamente do
árabe, tal edição deverá ser feita à parte, como um conjunto de histórias
independentes. Assim, é evidente que se discorda da opinião de alguns
especialistas, como Paulo Lemos Horta44, que consideram que, apesar de
todo o processo de falsificação inerente à produção de manuscritos e
versões impressas, estas versões «completas» teriam a vantagem de as
histórias ter sido melhoradas de um ponto de vista literário, tendo as várias
contradições que caracterizam os manuscritos mais antigos sido eliminadas
para criar menos confusão ao leitor. Na realidade, estas versões
«completas» sacrificaram a qualidade em detrimento da quantidade de
histórias, e aquelas que provieram dos mais antigos manuscritos do ramo
sírio sobreviveram em versões muito mais reduzidas, e o seu tom coloquial
foi vertido para árabe padrão, para encaixar nas normas e convenções das
Belles Lettres árabes, eliminando-se todo um vocabulário muito sui generis,
e perdendo-se uma série de ironias e referências que as caracterizavam. Em
suma, a oralidade das histórias, própria da literatura média árabe, foi
simplesmente perdida.
Ainda assim, se não fosse a tradução de Galland será que As Mil e Uma
Noites teriam alcançado a divulgação e a influência que tiveram na
literatura universal?

As primeiras edições imprensas em árabe

Não se poderia deixar ainda de fazer aqui, mesmo que muito


sucintamente, uma referência descritiva das primeiras edições impressas em
árabe d’As Mil e Uma Noites. A primeira edição impressa foi produzida no
contexto colonial da Índia Britânica, na cidade de Calcutá, entre 1814 e
1818, e foi elaborada para ser usada como manual didáctico para os oficiais
britânicos da Companhia Britânica das Índias Orientais aprenderem árabe45.
Esta edição é referida geralmente como Calcutá I, para se diferenciar da
segunda edição de Calcutá (Calcutá II). Foi publicada em dois volumes,
cada um com 100 noites, e a sua base foi sobretudo o manuscrito
anteriormente referido como manuscrito D. O texto foi editado por um tal
Shaykh Aḥmad ibn Muhammad Shīrwānī al-Yamānī, que não hesitou em
corrigir várias partes e em alterar o final de pelo menos duas histórias e,
sobretudo, teve ainda a iniciativa de acrescentar por inteiro as histórias de
Sindbad, o Marinheiro sem a divisão em noites, no final do segundo
volume, após a 200.a noite. Sobretudo devido a uma mudança da política
colonial britânica, pela qual se tinha abdicado do ensino das línguas locais,
nativas ou não, a favor da administração directa em língua inglesa, os
britânicos deixaram de aprender essas línguas locais e passaram a ensinar
inglês aos seus súbditos e esta edição não teve continuidade ou grande
impacto.
A segunda edição a ser publicada em língua árabe é a edição de Habicht,
também dita de Breslávia, nome da cidade em que foi publicada por
Christian Maximilian Habicht entre 1824 e 1843, em doze volumes. A
edição, supostamente baseada num manuscrito proveniente da Tunísia foi
na realidade inteiramente redigida em Breslávia por Habicht e pela sua
equipa que, por seu turno, se baseou em diversos manuscritos,
nomeadamente o manuscrito forjado por um monge da Síria chamado
Dionysius Shāwīsh (mais conhecido na Europa pelo nome de Dom Denis
Chavis) e por Jacques Cazotte, em finais do século XVIII, e num outro
manuscrito, igualmente forjado pelo intelectual sírio Mīkhāʾīl Ṣabbāgh
(também conhecido por Michel Sabbagh), em inícios do século XIX, e no
qual ele apôs no colofão a data e o local da cópia: «Bagdade, 10 de Jumādā
II de 1115 [correspondente a 21 de Outubro de 1703]»46. A falsificação é
tão sofisticada que até inclui notas de margem elaboradas por hipotéticos
copistas e leitores. Mas ao contrário de outros manuscritos forjados ou da
própria edição de Habicht, o manuscrito de Sabbagh não inclui nem
Sindbad, o Marinheiro nem Ali Babá e os Quarenta Ladrões. Mais uma
vez, na edição de Habicht encontram-se as histórias órfãs que são, na
realidade, traduções do francês d’As Mil e Uma Noites de Galland. Além da
edição árabe, Habicht publicou ainda a sua própria tradução para alemão.
A terceira edição a ser impressa em árabe, a primeira a ser publicada num
país árabe, é a famosa edição de Bulaq datada de 1835 e publicada em dois
volumes. Não se sabe ao certo em que manuscritos se terá baseado esta
edição, mas também nela foram incluídas as histórias de Sindbad, o
Marinheiro, e é evidente que as histórias órfãs que aí se encontram,
incluindo o Aladino e a Lâmpada Mágica, Ali Babá e os Quarenta Ladrões,
etc., tal como acontece em todas as versões árabes onde elas constam, são
traduções para árabe da versão francesa de Galland e que, no seu conjunto,
se trata de mais uma falsificação tardia, apesar de algumas das suas
histórias poderem ter por base versões mais antigas do que as que constam
em alguns manuscritos anteriores, e daí esta edição continuar a suscitar
interesse entre os especialistas. Apesar de ter sido impressa pelo governo
egípcio, e de ser a única das primeiras edições impressas durante o século
XIX a ser exclusivamente preparada por intelectuais árabes num país árabe,
é possível afirmar que o foi sobretudo para agradar aos intelectuais
europeus, que ganharam acesso ao Egipto após as invasões napoleónicas e
estavam sedentos de encontrar uma versão original e «completa», em árabe,
das Noites, após o estrondoso sucesso de Galland. Para a edição de Bulaq,
reuniu-se todo um conjunto de histórias de forma a produzir uma edição
árabe «completa» e dividida em 1001 noites, pois estando os orientalistas
convencidos de que As Mil e Uma Noites só poderiam conter exactamente
1001 noites, nem uma a mais ou a menos, o governo egípcio soube
responder às suas ânsias. Esta edição está inteiramente redigida em árabe
padrão segundo o cânone das Belles Lettres árabes e por vezes a tradução de
expressões orais para a língua padrão roça o ridículo. Ainda hoje, esta é, por
excelência, a versão que mais circula no mundo árabe, com modifi-cações
feitas ao gosto de cada editor e sem qualquer aviso sobre as mes-mas, e é
vendida geralmente com uma menção na capa a dizer: «Edição completa e
original». As histórias que nela figuram e que são comuns aos manuscritos
mais antigos foram, na sua maior parte, extremamente encurtadas, para dar
espaço a outras cuja ligação às Noites foi forjada na época. Por exemplo,
logo no início do texto, a história dos reis irmãos, Xariar e Xazamane, é
mutilada de vários detalhes e falas, e toda a parte que, nesta tradução,
começa em «Lá pela meia noite, quis despedir-se da sua mulher e regressou
ao palácio» e acaba em «Perdeu o interesse por tudo, emagreceu e mudou
de cor», foi reformulada da seguinte maneira:

Lá pela meia-noite, Xazamane lembrou-se que se tinha esquecido


de uma coisa no palácio, e então lá volveu e, quando entrou,
encontrou a sua mulher a dormir na cama dele abraçada a um dos
escravos negros, e em vendo isto foi como se o mundo se houvesse
tornado negro ante os seus olhos, e disse de si para si: «Se isto
aconteceu e eu ainda nem sequer abalei da cidade, que fará esta puta
quando eu estiver ausente junto de meu irmão durante algum
tempo?» Então, desembainhou a espada e matou os dois na cama. E
volveu de imediato e ordenou que se desse início à viagem, e viajou
até chegar à cidade do seu irmão, que se alegrou com a sua vinda e
veio prontamente a recebê-lo; cumprimentou-o, e ficou radiante de
alegria até mais não, havendo mandado decorar a cidade em sua
honra. E hospedou-se com ele e divertiram-se a conversar, mas o rei
Xazamane recordou-se do caso da sua mulher, e a sua aflição
cresceu, a sua cor empalideceu e o corpo emagreceu.

A edição de Bulaq ao encurtar toda uma série de detalhes na história, tem


como objectivo agradar ao leitor, ao contrário do texto dos manuscritos
mais antigos cujo objectivo era agradar a quem escutava as histórias a
serem narradas pelos contadores e que, por isso, mencionam uma série de
detalhes que seriam narrados por estes de uma forma teatral, criando uma
atmosfera de surpresa, admiração e suspense perante o público. Veja-se
outro exemplo, na 97.a Noite da presente tradução, quando o vizir ordena o
seguinte aos seus homens:

«Ide à casa de pasto deste cozinheiro, levai convosco varas,


chibatas e afins, e parti tudo o que lá dentro houver, até os copos e
os pratos. E depois de haverdes deixado tudo em ruínas, atai as
mãos do cozinheiro com o seu turbante, e dizei-lhe: “Foste tu que
cozinhaste este horrível prato de sementes de romã!” E trazei-o até
aqui, enquanto eu vou e venho ao palácio do vice-rei [de Damasco].
E que ninguém lhe bata ou lhe faça mal, apenas atai-lhe as mãos e
trazei-o à força.»

Na edição de Bulaq, o mesmo vizir limita-se a ordenar o seguinte:

«Que vinte homens de entre vós se dirijam à casa de pasto deste


cozinheiro, a destruam, o atem com o seu turbante e o tragam à
força até junto de mim, mas sem lhe fazerem mal.»
Em suma, a ligação directa entre As Noites e o mundo dos contadores de
histórias, que é bem patente nos antigos manuscritos, passou a ser de um
grau muito ténue na edição de Bulaq, e perdeu-se a riqueza de detalhes a
favor de uma forma narrativa que privilegia a acção descrita o mais
resumidamente possível.
Por último, convém ainda mencionar a segunda edição de Calcutá,
referida geralmente por Calcutá II ou edição MacNaghten, publicada na
cidade homónima entre 1839 e 1842, em quatro volumes e editada por W.
H. MacNaghten, juntamente com Aḥmad ibn Muhammad, conhecido
também por Aḥmad Kabīr, e pelo assistente deste, cujo nome figura como
sendo Mawlawī Ṣāḥib ʿali Khān, ambos indianos. Esta edição baseia-se
num manuscrito trazido do Egipto pelo major Turner Macan. Esta edição –
que na realidade é uma versão melhorada da de Bulaq, contendo vários
detalhes provenientes do mais antigo manuscrito – foi muito aclamada na
época pelos especialistas, que a acolheram como sendo por excelência a
verdadeira edição completa e autêntica d’As Mil e Uma Noites, contendo
exactamente 1001 noites. Mais uma vez, o manuscrito na qual se baseia é
uma falsificação feita em moldes não muito diferentes das anteriores. Foi
nesta edição que Richard Burton se baseou para a sua tradução.

A presente tradução

As fontes em que esta tradução se baseia já foram previamente


mencionadas, e por isso faz-se aqui só uma breve resenha de algumas das
intenções que norteiam esta tradução. Em primeiro lugar, há que ter em
conta que esta é uma tradução corrente e não académica d’As Mil e Uma
Noites. Isso não significa que a presente tradução seja menos «séria» ou que
o tradutor tenha sido menos exigente, por exemplo nos passos mais difíceis
e problemáticos, e muito menos que o tradutor tenha feito algo mais
aproximado a uma versão ou adaptação. De resto, como já foi anteriormente
mencionado, versões e adaptações das Noites já os orientalistas produziram
quanto baste. O que isto significa é que as notas de rodapé foram reduzidas
ao mínimo, de forma a não interromper o proveito que a leitura
proporciona. De resto, nem se justificaria fazer uma tradução académica por
duas razões. A primeira é que em Portugal, um dos raros países europeus a
não dispor em qualquer universidade de uma licenciatura dedicada ao
ensino da língua árabe, da sua filologia e literatura, tal tipo de edição não
teria público. E a segunda razão, não menos importante, é a de que tal
edição implicaria um conjunto tão exaustivo de notas, incluindo
comparações com os mesmos passos em outros manuscritos e aspectos de
análise filológica tão minuciosos, que não só o texto se tornaria aborrecido
como o leitor ficaria completamente dependente das notas de rodapé para o
poder compreender, visto que muitas palavras não seriam traduzidas e ter-
se-ia de se usar os termos árabes em situações que não se justificariam
numa tradução corrente. Por exemplo, em vez de «oração» dever-se-ia usar
o termo «ṣalāt», visto que a «oração» na religião islâmica não implica só
um acto discursivo na acção de orar, mas também um acto corporal que é de
grande importância e indissociável do primeiro. Por sua vez, tal opção
implicaria também o uso de um sistema de transliteração académica das
palavras do texto árabe ao longo do texto em si, o que tornaria a leitura
ainda mais pesada para quem não está familiarizado com estes sistemas e
vocabulário; por isso, esta tradução não optou por essa modalidade (com
excepções pontuais ao longo deste Preâmbulo e das notas de rodapé, como
se explicará mais à frente). Uma tal parafernália de notas de rodapé poria
em risco a leitura de um livro que foi concebido para divertir o leitor. O
leitor que seja especialista ou entusiasta dos estudos da língua árabe
perceberá esta escolha, até porque esse leitor preferirá com certeza ler o
texto na língua original, em vez de suportar as traições inevitáveis a
qualquer tradução.
Ao longo desta tradução houve a preocupação de seguir o mais
literalmente possível o texto árabe. Apesar das críticas geralmente feitas ao
literalismo, cada vez mais se torna evidente que as «versões de tradutor»
resultam em originalidades derivadas em grande parte de ideias
preconcebidas sobre o outro e na excessiva sobreposição da voz do tradutor
à do autor, como já referimos, por exemplo nas críticas aqui tecidas à
tradução de Galland.
No entanto, isso não significa que haja um rigor obsessivo com a
literalidade, correndo-se o risco de produzir um texto incompreensível ou,
mais uma vez, cuja compreensão dependeria exclusivamente da leitura de
notas de rodapé. Por exemplo — apesar de ser uma opção assaz rara ao
longo desta tradução — entendeu-se usar a expressão explicativa «sala
anichada e abobadada» em vez da palavra que figura no texto árabe, īwān,
que designa um elemento arquitectónico que consiste numa sala,
geralmente abobadada, com três paredes fechadas e uma abertura para um
corredor ou átrio comum, sendo que essas salas estão geralmente um pouco
mais elevadas que o átrio comum. O īwān pode também ter a face aberta
virada, não para um espaço interior com ou sem tecto, mas para a parte de
fora do próprio edifício, como acontece, por exemplo, na madraça Mir-i-
Arab, em Bukhara, no Usbequistão. E, quando na 12.a e 13.a Noites
aparecem as expressões īwān al-khidmah e īwān al-mulk, que seriam,
respectivamente e literalmente, traduzíveis por
«īwān de trabalho» e «īwān da soberania real», optou-se simplesmente
por «salão de audiências». Mais uma vez, apesar de ser uma informação
que alguns leitores poderiam considerar útil, a sua inclusão, por uma
questão de coerência, implicaria o acrescento de uma miríade exaustiva de
notas de rodapé. No entanto, quando se julgou absolutamente necessário
justificar-se uma escolha, como quando na 32.a Noite se faz uma nota de
rodapé para explicar porque se optou por usar «dervixe» em vez de
«qarandalī», corruptela coloquial de «qalandarī», ou em certos casos
quando o texto árabe poderia ter mais de uma interpretação, não se hesitou
em fazer uma nota de rodapé.
Sobre esta ordem sufi, conhecida em árabe por Qalandarīyah, não deixa
de ser interessante citar uma anedota, mesmo que o seu valor histórico seja
questionável, e que é demasiado longa para ter sido incluída na já
mencionada nota de rodapé, nota essa que se limita a explicar de forma
sucinta quem eram estes dervixes mendicantes. No livro de viagens de Ibn
Battuta (n. 1304 em Tânger, f. entre 1368 e 1377), conhecido pelo seu livro
A Viagem de Ibn Battuta47, na primeira parte (Egipto), capítulo 4 (De
Almahalla Alkubra ao Cairo), sobre a sua visita à cidade de Damieta em
1326, narra o autor o seguinte:

[Na cidade de Damieta, no Egipto,] encontra-se a azóia48 do


xeque Jamaleddine Assawi, figura arquétipo da seita conhecida por
Qalandarīyah, cujos adeptos rapam as barbas e as pestanas. Na
época em que a visitei, residia nela o xeque Fath Attakruri. Relata-se
que a razão que levou o xeque Jamaleddine Assawi a rapar a barba e
as pestanas foi porque, sendo ele dotado de uma figura bonita e de
uma bela face, uma mulher das gentes de Saveh49 enamorou-se dele,
e pôs-se a escrever-lhe cartas; interpelava-o no caminho e tentava
seduzi-lo, mas ele abstinha-se e não lhe dava importância. E quando
tal comportamento a levou ao desespero, ela armou-lhe uma cilada e
fez com que uma velha que trazia uma carta selada na mão o
interpelasse em frente a uma casa, quando ele se dirigia para a
mesquita. Então, quando ele passou por ela, a velha perguntou: «Ó
meu senhor, sabe ler?» Ele respondeu: «Sim.» Ela disse: «Esta carta
foi-me enviada pelo meu filho, e eu gostaria que a lesse para mim.»
E ele disse-lhe: «Com certeza.» Mas quando abriu a carta, a velha
disse-lhe: «Ó meu senhor, o meu filho tem uma mulher que está no
vestíbulo da casa, será que teria a bondade de ler entre as duas
portas da casa [a interna e a externa] para que ela consiga ouvir?» E
ele assentiu, mas quando se posicionou entre as duas portas, a velha
fechou a porta [externa] e a mulher apareceu com as suas servas, e
rodearam-no, forçando-o a entrar na casa. A mulher pôs-se a seduzi-
lo, e quando ele se apercebeu de que não tinha salvação, disse-lhe:
«Se me queres, então mostra-me onde fica a casa das necessidades.»
Ela mostrou-lha, e ele entrou, trazendo água consigo. Acontecia que
ele tinha consigo uma navalha afiada, e então cortou a barba e as
sobrancelhas, e depois foi ter com ela, que achou a figura dele
horrível, reprovou o seu comportamento, e ordenou que ele saísse, e
assim Deus o preservou. E com esta figura ficou ele dali em diante,
e todos os que enveredavam na sua ordem sufi passaram a rapar a
cabeça, a barba e as sobrancelhas. E relata-se que quando ele chegou
a Damieta, instalou-se no cemitério, e nessa cidade havia um juiz
conhecido por Ibn Alamid que um dia, ao acompanhar o funeral de
um dos notáveis, viu o xeque Jamaleddine Assawi no cemitério e
disse-lhe: «Tu és o xeque herege.» E ele respondeu-lhe: «E tu és o
juiz ignorante que passa com a sua mula entre as campas, sabendo
que os mortos merecem tanto respeito quanto os vivos.» Ao que o
juiz ripostou: «Bem mais grave do que isso é rapar a barba como tu
fazes.» E ele perguntou-lhe: «Que queres dizer?» Então o xeque
soltou um grito e quando ergueu a cabeça tinha uma grandiosa barba
negra, e o juiz ficou espantado, assim como os que o
acompanhavam. O juiz desceu da mula para se aproximar, e o xeque
soltou um segundo grito e ficou com uma bela barba branca. E
depois soltou um terceiro grito e quando ergueu a cabeça não tinha
barba, tal como era inicialmente a sua figura. Então o juiz beijou-lhe
a mão e tornou-se seu discípulo, e construiu-lhe uma bela azóia, e
acompanhou-o durante toda a vida até o xeque morrer, havendo-o
enterrado naquela azóia. E, quando a morte visitou o juiz, ele havia
instruído em testamento que fosse enterrado à porta da azóia para
que quem nela entrasse a sua campa pisasse.

Ibn Battuta, volta a referir a mesma ordem sufi na III parte (O Hijaz),
capítulo 8 (Da cidade sagrada de Meca até à cidade virtuosa de Najaf),
quando refere a morte aparentemente recente do xeque Xihabeddine
Qalandar, que era, segundo as suas palavras, «um xeque virtuoso e muito
respeitado junto do seu monarca, e rapava a barba e as sobrancelhas como
se faz na ordem sufi dos Qalandaris […]»50. Por sua vez, Ibn Khaldun, nos
seus Prolegómenos, também se lhe refere51, e afirma que ao indagar junto
de um entendido nas ordens sufis sobre um tal Albajarbaqi, lhe foi
respondido que «Albajarbaqi pertenceu aos [sufis conhecidos por]
Qalandarīyah, que praticam a heresia de raparem a barba». É difícil saber
se este costume de rapar o cabelo, barba e sobrancelhas existia desde o
início nesta ordem de dervixes e se estava ou não realmente generalizado
entre todos os seus adeptos, mas o que é certo é que não subsistiu até hoje,
uma vez que esta ordem de dervixes desapareceu do mundo árabe, tendo
sobrevivido apenas entre os muçulmanos do Sul da Ásia e da Ásia Central.
A existência destes dervixes já era tão estranha no século XIX que os
manuscritos tardios e aqueles que foram forjados, assim como as edições
impressas em árabe d’As Mil e Uma Noites, já haviam substituído qalandarī
por ṣuʿlūk, palavra traduzível por «mendigo» ou «vagabundo». Na edição
de Bulaq, as mesmas três personagens são apresentadas como não-árabes
(aʿjām) e estrangeiros (ghurabāʾ), chegados de viagem da Anatólia (arḍ ar-
Rūm), «com barbas rapadas e bigodes retorcidos e finos, e são mendigos
[ṣaʿālik, plural de ṣuʿlūk]». Por sua vez, na versão francesa de Mardrus é
feito um acrescento explicativo: «tinham barbas rapadas e, além disso,
bigodes retorcidos e revirados, e tudo neles indicava que pertenciam à
confraria de mendigos chamada saâlik.»52 Através de uma nota de rodapé,
Mardrus comenta que estes saâlik são aquilo a que «os persas chamam
kalendars ou calendars.», e refere-se a cada um deles no singular, grafando
«saaluk» («saâlouk» na grafia francesa), forma mais próxima do árabe
coloquial para ṣuʿlūk. Na realidade, a expressão ṣuʿlūk é interpretada por
quem lê em árabe simplesmente como significando «mendigo» ou
«vagabundo», não sendo óbvio que se trate de dervixes mendicantes, e não
deixa de ser curioso que Mardrus tente recuperar na nota de rodapé a
palavra usada nos textos mais antigos, sem dar nenhuma explicação ao
leitor sobre quem seriam afinal estes «calendars». No fundo, as versões
árabes tardias que substituíram qalandarī por ṣuʿlūk contribuíram para que
a ironia e o estratagema de estes indivíduos se fazerem passar por dervixes
mendicantes ficassem de certa maneira perdidos (curiosamente, essa ironia
até Galland a havia compreendido).
Para reduzir o número de notas, por vezes tomou-se opções que, não
alterando necessariamente o sentido geral do texto, não deixam de ser
pequenos desvios. É o caso da palavra zaʿfrān, que se deveria traduzir
simplesmente por «açafrão» e foi traduzida por «flores de açafrão». Os
entendidos em culinária com certeza perceberão a razão lógica por trás
desta opção: é que em Portugal chama-se açafrão à curcuma, que é uma
especiaria barata que consiste na moagem e secura do bolbo de uma planta
da família do gengibre, cujo nome científico é Curcuma longa. Em
contrapartida, o açafrão propriamente dito são os pistilos de flores de
Crocus sativus — uma planta sem qualquer relação com a da curcuma —
que são colhidos à mão um a um, e cujo valor de venda por grama é
comparável ao do ouro. Ora, imagine bem o leitor ao ler, por exemplo, na
62.a Noite, que a personagem entrou numa câmara que tinha «um chão
recamado de açafrão». Se souber o que é realmente açafrão perceberá a
beleza da fragrância e o luxo por trás de tal cenário. Mas se interpretar
como sendo aquilo que se deveria chamar curcuma, a sensação será mais de
repulsa, pois um chão recamado de curcuma só pode ser bastante
desconfortável para o olfacto e para os olhos. Por isso, mesmo que pouco
correcto, visto que o açafrão são os pistilos da flor e não a flor por inteiro,
usou-se «flores de açafrão». Faria sentido fazer uma nota de rodapé a
explicar ao leitor o que é o açafrão ou usar um termo tão técnico da
botânica como pistilos? Optou-se por não o fazer.
Para dar ainda um último exemplo sobre esta questão, pode citar-se o
caso do nome específico das peças de vestuário. Alguns dos nomes usados
não se sabe com certeza absoluta a que peça de roupa corresponderiam,
visto que são nomes que não aparecem nos dicionários e na literatura
clássicos, ou quando aparecem não são acompanhados de uma descrição
clara, e cujo uso já havia desaparecido por volta do século xviii, altura em
que os orientalistas se puseram a recolher os nomes de peças de vestuário.
Por isso, para evitar um excesso de notas baseadas de resto mais em
incertezas e especulações do que em factos, ou a inclusão excessiva de
palavras estranhas ao leitor, que teria de recorrer permanentemente às notas
ou a um glossário, optou-se várias vezes por nomes genéricos ou
descritivos, como por exemplo «vestido de mangas curtas». O leitor deverá,
no entanto, ter em atenção que as roupas que figuram nas fantasias
orientalistas, nomeadamente em gravuras que acompanham várias edições
que usam o título As Mil e Uma Noites ou em desenhos animados
provenientes desse imaginário, muitas vezes não têm qualquer relação com
o vestuário usado na época e nos locais descritos. Por exemplo, uma das
peças de roupa que mais se vê nessas fantasias é um turbante muito
volumoso que é adornado de penas e jóias na parte frontal. Essa peça de
roupa de origem turcomana tornou-se conhecida no mundo árabe sobretudo
durante o Império Otomano (1299-1924) e, tendo em conta que as histórias
das Noites foram produzidas durante a Época Mameluca, e que as suas
versões primitivas são ainda mais antigas, torna-se pouco provável que esse
tipo de turbante fosse usado pelas personagens, pelo menos por aquelas que
aparecem nas histórias que decorrem na Síria ou do Egipto.
Pelas várias razões já apresentadas, não foram feitos acrescentos nem
foram exageradas partes do texto para que ele soasse mais exótico, à boa
maneira orientalista, nem sequer tal coisa seria necessária, pois o texto por
si só já é suficientemente exótico para qualquer leitor, independentemente
do contexto cultural de onde provenha.
Não é por acaso que o adjectivo árabe ʿajīb, que significa «espantoso,
maravilhoso, fabuloso», é dos mais usados ao longo d’As Mil e Uma Noites
e da literatura fantástica árabe de tradição oral, sendo este mesmo adjectivo
usado para designar este género de «histórias espantosas» ou
«maravilhosas» (ḥikāyāt ʿajībah). Note-se ainda que na forma plural
(ʿajāʾib) aparece numa das variantes mais longas com que por vezes se
designam As Mil e Uma Noites: ʿajāʾib wa gharāʾib ḥikayāt alf laylah wa
laylah, que se poderia traduzir por As Estranhas e Espantosas Histórias
d’As Mil e Uma Noites, ou, outra tradução possível para manter a rima que
muito caracteriza alguma prosa árabe assim como os títulos de livros, As
Maravilhosas e Espantosas Histórias d’As Mil e Uma Noites. O radical que
forma este nome é também usado no verbo «espantar-se», frequentemente
usado ao longo deste texto. O estranho, o fantástico, o maravilhoso e o
espantoso são moeda corrente na literatura média árabe.
Quanto à oralidade dos textos, procurou-se preservá-la recorrendo muitas
vezes a expressões populares reproduzidas em diversas fontes,
nomeadamente os chamados contos populares portugueses ou literatura
mais antiga baseada em contos orais, tal como o Orto do Esposo (século
xiv). A forma como as pessoas se tratam entre si também se baseia nestes
textos, e não totalmente na tradução literal do árabe, onde os únicos
pronomes usados para interpelar alguém são o «tu», quando se trata de uma
só pessoa, e o «vós», para mais de uma pessoa, excepto na poesia, onde o
«vós» é usado retoricamente para interpelar uma só pessoa, tal como na
poesia portuguesa. Destas normas usadas em árabe, a única que não foi
respeitada foi o «tu» e ao longo da tradução, quando os súbditos se dirigem
aos superiores usa-se o «ele». Assim, por exemplo, usa-se «às suas ordens»
e não «às vossas ordens», mesmo quando se usa «vossa alteza», e salvo
algumas raras excepções o «vós» nunca é usado quando pessoas superiores
na hierarquia são interpeladas. Ao contrário do que por vezes se pensa, o
«vós» não era antigamente usado como a norma oral de interpelação para
pessoas de classes superiores, e vários exemplos de que o «ele» é usado
nesta lógica com bastante recorrência podem ser encontrados, incluindo no
já referido Orto do Esposo ou nos contos populares recolhidos durante o
século XIX. O «vós» é usado ao longo do texto em vez de «vocês», palavra
que tanto no singular como no plural jamais é usada, e na poesia quando em
árabe também se usa. Nalgumas situações, também se usou o «eles» em vez
do «vós». Note-se ainda que os pais tratam os filhos por «tu», mas estes
tratam os pais na terceira pessoa do singular, como era hábito fazer-se. Esta
foi a norma de compromisso encontrada para fazer a ponte entre o
português antigo e o texto árabe datado do século XIV.
Alguns leitores que já tenham lido outros livros com o mesmo título
poderão ficar surpreendidos pelo facto de a palavra «sultão» não ser usada.
De facto, em várias versões, algumas personagens são referidas como o
sultão, como é o caso do rei Xariar, havendo outras traduções que usam
alternadamente rei e sultão. Acontece que a palavra árabe sulṭān tem dois
sentidos: se, por um lado, é, de facto, um título usado, ainda hoje em dia53,
para certos monarcas, ela tem, ainda assim, outro sentido, aliás o sentido
original, que significa «governante» ou «autoridade», nomeadamente
«autoridade real»54. Mas mais importante é o facto de ser atestado por
diversas fontes, tão recentes quanto o século xix, que a palavra sulṭān era
usada como sinónimo de rei, e que, por exemplo, se usava esta palavra,
inclusive em correspondência diplomática, para designar o rei de França.
Assim, o facto de o texto árabe usar para as mesmas personagens tanto a
palavra sulṭān como a palavra mālik (rei) resulta do facto de neste contexto
elas serem basicamente sinónimas, e não um tipo de contradição ou erro de
copista. É certo que numa edição académica esta nuance seria devidamente
assinalada, mas para a compreensão e fruição destas histórias seria
irrelevante e contraproducente assinalar tudo isto em notas de rodapé, e
muito menos usar a palavra sultão, que em português só tem um sentido e
designa um título usado por alguns monarcas. Por outro lado, usar o
literalismo «autoridade real» criaria uma estranheza que não existe no
espírito do texto árabe.
Ao longo do texto existem contradições óbvias, por vezes maiores, por
vezes menores. Destas, não foram reproduzidas as que incidem sobre
nomes (nitidamente trocados) de personagens, como acontece com alguma
frequência no início entre os nomes Xariar e Xazamane, talvez por serem
nomes estrangeiros (persas) e, portanto, exóticos para o copista árabe. Fora
isso, todas as contradições foram mantidas e fizeram-se notas de rodapé só
para aquelas que eram tão excessivas que poderiam criar confusão ao leitor.
Nas raras excepções em que se fez alterações, introduziu-se também uma
nota de rodapé mencionando a tradução literal do texto original. A título de
exemplo destas contradições, quase no final da 32.a Noite, lê-se: «[uma das
três raparigas] foi abrir a porta e voltou instantes depois, e atrás dela
vinham três dervixes vagabundos e zarolhos, que cumprimentaram toda a
gente, fazendo uma vénia e hesitando em avançar. As três raparigas
levantaram-se para os receber55 e lhes darem as boas-vindas […]». Ora se
uma das três raparigas já estaria em pé, visto que não se menciona que ela
se tenha sentado, então só duas delas é que de facto se levantaram. Outro
caso, na 83.a Noite, quando o belo Badreddine é levado pelos ifrites do
Cairo para Damasco depois da noite de núpcias com a bela Sitt-al-Husne e
acorda seminu às portas da cidade, um dos mirones que se concentraram à
volta dele comenta: «Que sortudo aquele que passou a noite com ele!» Ora
o texto original não deixa margem de dúvidas que a frase proferida refere
um acompanhante nocturno do género masculino, e pela construção da frase
também não parece ser erro de copista. No entanto, o lei-tor, por saber que
Badreddine havia dormido com a bela Sitt-al-Husne, tem tendência para ver
uma contradição, que não existe.
Outra das dificuldades recorrentes foi a tradução do nome de pratos
gastronómicos, que ocupam um lugar de destaque ao longo do texto, alguns
que já nem se sabe o que seriam exactamente, e o nome de plantas e flores,
pelo facto de o mesmo nome poder referir plantas diferentes consoante a
época e a região, não sendo sempre fácil nalguns casos ter certezas sobre
qual a planta referida exactamente a. Outra dificuldade, ainda maior, foram
os vocábulos vernaculares. O exemplo mais flagrante é a palavra zumbūr,
de origem persa, com o significado de abelha, usada nalgumas regiões do
mundo árabe, nomeadamente no Magrebe, com o sentido de vespa. No
contexto em que ela aparece, o seu significado é óbvio, trata-se de um nome
vernacular assaz usado no mundo árabe para o órgão sexual feminino
denominado clítoris. A dificuldade da tradução consiste em encontrar um
equivalente vernacular em português. Optou-se por «grelo», mesmo tendo
em conta que sobretudo as gerações mais novas julgam que «grelo» designa
a vulva ou os pêlos púbicos da mulher; na realidade o sentido usado
originalmente na gíria para esta palavra é o clítoris, equivalente ao
«mexilhão» usado nalgumas regiões do Sul de Portugal. Usar a tradução
literal de «abelha» ou «vespa» seria ainda mais incompreensível para o
leitor português, e adicionar ainda mais uma nota de rodapé seria estragar
redondamente a fluidez do texto nessa parte.
Uma das características do texto dos manuscritos da literatura árabe
média são os desvios à norma ortográfica padrão, resultantes não
necessariamente de erros, mas de uma aproximação à fonética do árabe
coloquial. Seria demasiado exaustivo dar exemplos em árabe, mas, grosso
modo, esses desvios podem ser comparados, por exemplo, com situações
como quando em português europeu se escreve «medecina», «Felipe» ou
«ocurrência», que são formas mais próximas à pronúncia ainda que, no
entanto, as grafias consideradas correctas sejam, respectivamente,
«medicina», «Filipe» e «ocorrência». Este género de desvio, infelizmente,
não consta na tradução, pela simples razão de que, por mais que o leitor
estivesse advertido dessas ocorrências, tenderia sempre a considerar que a
sua inclusão seria menos o resultado de uma aproximação à coloquialidade
do texto árabe e sim o resultado de um texto mal traduzido, e sobretudo mal
revisto. Menos importante, mas ainda assim digno de nota, será referir que
nunca seria possível imitar essas ocorrências palavra por palavra, e o
melhor que se poderia ter feito seria ter usado compensações, isto é, usar
«mau português» de forma um pouco aleatória sem necessariamente haver
uma correspondência directa a um erro no árabe. Outro género de «erros»
frequentes nos manuscritos são os plurais. Em árabe há acordos de número
e género que são correctos na língua coloquial, mas não na língua padrão, e
que são frequentes nos textos dos manuscritos. Apesar de, mais uma vez,
não se haver traduzido essa situação linguística para algo que seria
considerado «mau português», tentou-se compensar na tradução usando,
por exemplo, a forma plural «cortesões». Apesar de esta forma ser
perfeitamente correcta em português, a norma culta por vezes tende a
rejeitá-la, talvez por considerar ser uma forma antiga ou mais popular,
preferindo «cortesãos».
Outra das dificuldades foi reproduzir de certo modo a prosa rimada, o
chamado shajʿ em árabe, que caracteriza o texto d’As Mil e Uma Noites, e
que é usual em outros textos árabes. Tentou-se reproduzir essas rimas, mas
nem sempre foi possível, e nalgumas situações esporádicas usaram-se rimas
em pontos do texto que não continham rima no texto original.
Através destes exemplos pretendeu-se, por um lado, dar a conhecer ao
leitor algumas das dificuldades da presente tradução, a difícil tarefa de
manter uma tradução o mais literal possível, sem esconder vários dos
desvios que se julgou conveniente empreender e, por outro lado, alertar para
as contradições que acompanham estes manuscritos, que, sem dúvida,
foram limpas em várias das versões forjadas e impressas, sacrificando a
espontaneidade do texto.

Os poemas

Alguns dos poemas dos manuscritos que serviram de base a esta tradução
são plágios desviantes de autores conhecidos, e outros reportam-se à
tradição oral, que alguns poetas, por sua vez, vieram recuperar para os seus
próprios cancioneiros. Em alguns destes poemas con-segue traçar-se uma
ligação evidente a determinado autor, não sendo sempre fácil saber quem
plagiou quem. Por vezes, são atribuídas falsas autorias, como, por exemplo,
no segundo poema da obra cuja autoria é atribuída, por quem o enuncia, a
um tal Ibn Attammame. Não se conhece um poeta de destaque com este
nome, mas quem tem algum conhecimento da poesia árabe não pode deixar
de pensar se se trata de alguma confusão com o célebre poeta do século ix
Abu Tammame; mas o porquê dessa confusão, propositada ou não, não é
evidente. Há poemas que têm um tom muito popular e/ou básico e outros
que revelam um conhecimento literário extremamente apurado. No entanto,
mesmo nestes casos há fugas às regras de métrica das Belles Lettres e, por
isso, muitos poemas foram sacrificados, por exemplo na edição de Bulaq,
em prol do cânone.
A poesia ocupa um lugar de destaque em toda a literatura árabe, desde os
seus níveis mais orais e espontâneos aos mais sofisticados, cruzando todas
as classes sociais. A poesia árabe depende, em grande parte, da métrica e da
rima, e usa e abusa de jogos de palavras, recorrendo por exemplo a palavras
homónimas, mas com sentidos totalmente diferentes no contexto. Por
exemplo, no terceiro poema da 35.a Noite, o mesmo verbo ishtafá é usado
em dois finais de verso para rimar, mas numa ocorrência significa «curar-
se» e noutra «vingar-se». O peculiar sentido rítmico, as rimas e os jogos de
palavras criam dificuldades incomuns à tradução destes poemas,
nomeadamente quando o objectivo é manter o mais possível o sentido do
original, sem recorrer à chamada «versão» do tradutor. Assim, tentou-se
manter algum esquema de rima, mesmo que muito diferente do original,
mas sem fugir nem recorrer a originalidades desviantes das palavras e do
sentido usado, o que nem sempre foi fácil, nomeadamente perante
metáforas intraduzíveis e insubstituíveis por outras equivalentes, e nalguns
casos foi mesmo necessário «traduzir» a metáfora, um último recurso que
se evitou ao máximo usar.
Há poemas dos quais não foi possível fazer uma tradução literal, não
pelas dificuldades literárias inerentes, mas porque fazem eco de histórias e
outros poemas da tradição árabe que deveriam ser, muito possivelmente,
reconhecidos na sua época, mas que não o são pelo lei-tor contemporâneo.
Um exemplo é o poema que figura na 10.a Noite, cujos últimos dois versos
foram traduzidos da seguinte forma: «Quem ajuda os indignos com a
bondade, / Sofre a tortura das hienas esfomeadas.» Na realidade, estes
últimos dois versos traduzem-se literalmente da seguinte maneira: «Quem
faz uma boa acção com quem não é da sua família / Encontrará o que
encontrou o Protector da Mãe-de-Ámir.» A Mãe-de-Ámir (Umm al-ʿāmir) é
uma alcunha (kunyah) árabe para a hiena. Ora, manter este literalismo com
o risco de o poema se tornar ainda menos compreensível para o leitor não se
justifica, porque na realidade este poema faz uma óbvia referência a uma
lenda árabe chamada «O Protector da Mãe-de-Ámir» (isto é, da hiena) e que
é contada, por exemplo, por Kamāl ad-Damīrī no seu «Grande Livro da
Vida dos Animais» (século XIV) que, por sua vez, afirma que esta era
narrada no livro Shuʿb al-īmān da autoria de Abū Bakr Aḥmad ibn Ḥusayn
al-Bayhaqī. E reza essa lenda como se segue:

Um grupo de gente, em um dia muito quente, havia saído para


caçar e, durante a caçada, deram com uma Mãe-de-Ámir, que é [a
alcunha d]a hiena. Perseguiram-na até que esta se refugiou na tenda
de um beduíno. Em a arrombando, saiu dela o beduíno e perguntou-
lhes: «O que querem?» E eles responderam: «Esta é a nossa presa e
a nossa caça.» E ele disse: «Não é não. E quem tentar apoderar-se
dela, não passará sem que a minha mão a espada erga.» Então eles
recuaram e abalaram. Por sua vez, ele foi tirar leite a uma camela
leiteira, e deu-o à hiena. E deu-lhe também água. E ela ora bebia de
um, ora do outro, até se recompor e descansar. E em estando o
beduíno a dormir, ela saltou-lhe em cima e abriu-lhe a barriga,
bebendo-lhe o sangue e comendo-lhe as tripas. E ao depois abalou.
Então, veio um primo do beduíno e em o encontrando naquele
estado, virou-se para o sítio onde havia estado a hiena, e em não a
vendo, disse: «Ai Deus te valha, ó minha amiga!» e pegou na sua
espada e na sua aljava e foi atrás dela. E não descansou até a ter
encontrado e matado.

E depois de a matar disse um poema de oito versos, cujos dois primeiros


versos são os dois últimos versos do poema que aqui figura. Mais uma vez,
julgou-se que seria excessivo colocar uma nota para cada poema a explicar
estes contextos.

Os nomes próprios e a questão da sua transliteração

Ao longo do texto propriamente disto desta tradução d’As Mil e Uma


Noites não foi utilizado nenhum sistema formal de transliteração dos nomes
próprios de forma sistemática, havendo sido usado um sistema de
aproximação desses nomes à ortografia portuguesa, que, quando possível,
usa também formas já estabelecidas na língua portuguesa. Daí, usar-se, por
exemplo, Xerazade em vez de Shahrazad ou Shahrāzād, Xariar em vez de
Shahriar ou Shāhryār, Badreddine em vez de Badr ad-Dīn (ou al-Dīn), Ajibe
em vez de ʿajīb, entre outros. Nem sempre a forma como se transliterou
estes nomes obedece a uma coerência rigorosa.
No entanto, ao longo deste Preâmbulo e das notas de rodapé foi por
várias vezes necessário usar para algumas palavras e nomes um sistema
formal específico de transliteração. Para esse efeito, escolheu-se o sistema
de romanização para escritas não românicas da ALA-LC (American Library
Association/Library of Congress56), que foi escrupulosamente seguido, mas
com três excepções57. Geralmente foram usados itálicos quando se usa
palavras transliteradas segundo esta norma, aparecendo por vezes entre
parêntesis quando sucedem a uma forma mais corrente da mesma palavra.

A questão dos nomes próprios merece algumas considerações.


Começando pelos nomes geográficos de locais imaginários, quando
possível estes foram traduzidos, como, por exemplo, as Ilhas Negras ou a
Ilha dos Ébanos.
Quando aludem a origens geográficas possivelmente reais, mas muito
obscuras, fez-se notas de rodapé, como acontece com Zumane na História
do rei Yunane de Zumane e do sábio Dubane, mesmo que, na realidade,
como se explica na respectiva nota, a razão da escolha do nome Zumane
pelo narrador possa prender-se sobretudo a questões de eloquência da rima
e do ritmo da prosa árabe.
Um dos passos que mais merece algumas observações encontra-se logo
no início d’As Noites, quando se diz «[…] era uma vez, nas penínsulas da
Índia e da Indochina […]». A expressão do texto é jazāʾir al-Hind wa Ṣīn
aṣ-Ṣīn, que literalmente significa «as ilhas da Índia e da China da China».
Em primeiro lugar, importa referir que em árabe a palavra para ilha
(jazīrah, no singular) também é usada para península58 e, por esta razão, a
presente tradução, e muitas outras59, interpretam estas jazāʾir como sendo
penínsulas e não ilhas. Caso fossem ilhas, tratar-se-ia de um império muito
disperso que talvez englobasse os actuais Sri Lanka, as ilhas de Andamã e
Nicobar, a Indonésia, e talvez as Filipinas, ou mesmo, quem sabe, a Ilha
Formosa. Sendo penínsulas, tratar-se-ia da Índia e do Sudeste Asiático, a
que antigamente se chamava Indochina ou península Indochinesa.
Note-se ainda que a expressão «China da China» tem outra interpretação
possível. Em A Viagem de Ibn Battuta60, o seu autor refere várias vezes uma
cidade chamada «China da China» (Ṣīn aṣ-Ṣīn), que afirma também ser
conhecida em árabe por Ṣīn Kalān, cidade esta que é inequivocamente a
cidade de Guangzhou, antigamente chamada Cantão. Neste caso, este
excerto teria de ser interpretado como sendo «as ilhas da Índia, e [a cidade]
de Cantão». Note-se ainda que no manuscrito C d’As Mil e Uma Noites não
se faz referência nesta parte a designações geográficas, mas quando se
menciona o rei Xariar, diz-se que «a sua cidade era Samarcanda», e quanto
ao rei Xazamane, «a sua cidade era a China (aṣ-Ṣīn)», sendo
provavelmente a intenção do narrador referir Ṣīn aṣ-Ṣīn, ou seja,
Guangzhou61. Com excepção deste manuscrito, que refere duas cidades,
não deixa também de ser curioso, independentemente da forma como se
interpreta a geografia referida, que um dos reis tenha oferecido ao outro, ou
herdado de seu pai, segundo outros manuscritos, a cidade de Samarcanda,
que é bem distante da Índia e muito mais ainda da China, situando-se no
actual Usbequistão.
O rigor geográfico, tal como o rigor cronológico62, não é uma
característica d’As Mil e Uma Noites, e a intenção do narrador é referir que
o rei Xariar era muito poderoso e governava grande porções de território, lá
numas terras para oriente cuja distância em relação ao mundo árabe era
considerável, mas que não eram territórios desconhecidos, pois vários
comerciantes e exploradores árabes viajavam para essas bandas, por terra e
mar, fazendo negócios e proselitismo religioso. Tal como o Orientalismo
que Edward Said analisa como uma consequência cultural do colonialismo
europeu, talvez também na altura o mundo árabe, enquanto centro de uma
civilização com ligações políticas, económicas e religiosas às Índias e ao
Extremo Oriente, também elaborasse uma série de fantasias exóticas sobre
esses povos, baseadas em histórias pouco fidedignas e exageradas que
chegavam pela boca de viajantes ao mundo árabe propriamente dito.

Em relação aos nomes de pessoas, estes podem ser divididos sobretudo


em três categorias conforme a língua de origem: os nomes árabes, os nomes
de origem não-árabe, nomeadamente persas e hebraicos, e os nomes de
origem obscura, geralmente com alguma sonoridade exótica, como o nome
do rei Ephetimarus, referido na 43.a Noite. Relativamente aos nomes
árabes, estes subdividem-se em nomes comuns e em nomes fantásticos (isto
é, aqueles que, sendo nomes árabes, não são geralmente usados por pessoas
na vida real). Os nomes próprios de pessoas em árabe têm quase sempre um
significado vivo na própria língua e pelo simbolismo com que são usados
no texto fez-se notas de rodapé sempre que se considerou necessário
explicar o seu significado, tanto para os nomes comuns como para os
fantásticos.
Relativamente aos nomes árabes de personagens históricas, semi-
históricas e mitológicas, geralmente foram usadas formas portuguesas dos
mesmos. Por exemplo, no que toca a personagens comuns nas religiões de
tradição abraâmica, usou-se Salomão em vez de Suleimane (Sulaymān), e
David em vez de Dauud (Dāwūd ou Dāʾūd). Mas nem sempre se procedeu
deste modo com outros nomes árabes, nomeadamente os de personagens
históricas, com correspondência directa a nomes já estabelecidos em
português; por exemplo, no nome do califa Harune Arraxide (Hārūn ar-
Rashīd), não se usou o correspondente português para Harune, que é
Aarão63, nem se traduziu o seu apelido, que significa «O-bem-guiado».
Relativamente aos nomes de origem persa, não se fez notas de rodapé a
explicar os significados destes. A razão disso é que é pouco provável que a
maioria dos leitores e ouvintes árabes percebesse estes nomes, que teriam
sobretudo um efeito sonoro exótico. É verdade que ao longo do texto se
encontram diversos estrangeirismos de origem persa, mas são
estrangeirismos e não sinais de que o público d’As Mil e Uma Noites seria
necessariamente cultivado na língua persa, pois não existe uma única frase
ao longo do texto que seja uma expressão persa; por sua vez, os persas são
vistos como estrangeiros, sendo evidente que estas histórias se destinavam
ao público árabe. Por outro lado, no manuscrito A os nomes persas dos reis
Xariar e Xazamane aparecem trocados entre si, como se o narrador os
achasse tão exóticos que os confundia, não só entre si, como aparecem
grafados de formas diferentes. Por exemplo, Xazamane (Shāhzamān)
aparece geralmente com uma das seguintes grafias: Shāhranaz, Shahratān
ou Shāhzanān (quando não é confundido com o rei Xariar). Foi por uma
questão não só de tradição, como também de comparação com os vários
manuscritos e com as referências feitas por autores árabes às versões
primitivas d’As Mil e Uma Noites, que se decidiu harmonizar estes nomes
persas para Xariar, Xazamane, Xerazade e Dinarzade.
Considerando a sua possível origem persa, o nome Xerazade significaria
«a emancipada do reino» ou «de estirpe nobre», Dinarzade «de religião
nobre»64, Xariar «o rei da cidade ou do reino» e Xazamane «o rei dos
tempos». Note-se que este último corresponde ao árabe malik az-zamān,
traduzido ao longo do texto como «rei dos tempos», tratando-se de uma
forma usada para interpelar reis pagãos bastante poderosos.
Não deixa de ser curioso também que o escravo negro que era amante da
mulher do rei Xariar se chame Saadeddine Massude (Saʿd-ad-Dīn Masʿūd),
que pode ser traduzido por «Fortuna-da-Religião Afortunado» ou «Sorte-
da-Religião Sortudo». Os nomes dos reis Xariar e Xazamane, que
aparentam ser nomes pagãos, contrastam com o nome do escravo negro,
que é formado por dois nomes, ambos bastante usados por muçulmanos
árabes e não-árabes. Seria este escravo uma representação da introdução do
Islão em terras pagãs e do impacto que isso teve entre as classes
governantes da Pérsia e da Ásia Central, simbolizada pela desestabilização
da vida familiar do monarca pagão? E, assim sendo, a função de Xerazade
teria sido chamar o rei à razão, mostrando-lhe que não havia nada a
censurar às mulheres, mas sim ao facto de ele não se haver convertido? Esta
hermenêutica, uma das várias possíveis65, é insustentável nos manuscritos
tardios e forjados, na generalidade das edições impressas em árabe, assim
como nas traduções que se sustentam nestas e naqueles, pois o escravo
negro passou a chamar-se só Massude («Afortunado»).

Conclusão

As Mil e Uma Noites tornaram-se uma das grandes referências literárias a


nível mundial, e desde a primeira versão em francês, de Antoine Galland,
inúmeras têm sido as suas traduções, pseudotraduções, versões, adaptações
literárias, cinematográficas e dramatúrgicas, edições que se apresentam
como sendo «originais e integrais», tanto em língua árabe como em
traduções, dando ao público a ideia de familiaridade com o seu universo
fantástico.
Quem nunca ouviu falar de Xerazade, de Ali Babá ou de Aladino? Como
se pode ver ao longo deste Preâmbulo, afinal essa familiaridade talvez deva
ser posta em causa, e aquilo que se conhece como sendo As Mil e Uma
Noites é, na realidade, o fruto de fantasias orientalistas, perpetuadas por
êxitos da Walt Disney, e sem qualquer relação com o universo mais
primordial das espantosas e maravilhosas histórias que foram elaboradas no
contexto da literatura oral, há mais de cinco séculos, na Síria e no Egipto66.
Era, pois, tempo de se publicar uma tradução em Portugal que se baseasse
nos manuscritos mais antigos e que trouxesse ao leitor português o livro
menos conhecido que maior influência teve na literatura universal.

Agradecimentos

Os preciosos contributos de várias pessoas para esta tradução não podiam


ficar esquecidos. Estas contribuições vão de pertinentes observações e
sugestões ao texto da tradução — tanto a prosa como a poesia — e ao texto
do Preâmbulo até ao auxílio na interpretação correcta de alguns passos mais
difíceis do texto árabe; da sugestão de bibliografias relacionadas com a obra
traduzida ao apoio e carinho; do empréstimo de livros às sugestões e
conversas paralelas, e muito, muito mais. O meu especial agradecimento
aos meus pais, Arlete e Manuel Silva Pereira; à minha companheira, Diana
Lixandru, cujo apoio e conhecimentos em árabe e português foram tão
preciosos; e, por ordem alfabética, às seguintes pessoas, por cujos
contributos me sinto enormemente grato: Abdeljelil Larbi; Adel Sidarus;
André Dias; Francesco Vacchiano; o editor responsável, Hugo Xavier; João
Pedro George; Jorge Pinheiro; José António Oliveira; o revisor, Marcelino
Amaral; Maria Cardeira da Silva; o editor, Pedro Bernardo; Raquel
Carvalheira; Raquel Reis; Sadiq Habib; e a todas as pessoas que
inadvertidamente ou por vontade própria tenham permanecido anónimas.

Santa Cruz – Lisboa


Julho de 2017 – Fevereiro de 2020

O tradutor

Legendas
« » Diálogos.
“ ” Diálogos dentro de diálogos
‘ ’ Citações e paráfrases do Alcorão.
itálico Provérbios e expressões populares citadas. Mas nas notas de rodapé
e no Preâmbulo usa-se também para as palavras árabes quando
transliteradas segundo a norma ALA-LC. Usa-se ainda para nomes de livros
ao longo do texto.
[ ] Acrescentos ocasionais do tradutor, ou de outros manuscritos, para
preencher lacunas do texto árabe.
Introdução

Em nome de Deus, o Todo Misericordioso, o Mui Misericordioso Em Deus


confio

Louvado seja Deus, o Rei Generoso que criou o mundo e a humanidade


para O servir. Ergueu o céu que se sustenta sem colunas, aplanou as terras,
moldou os cumes das montanhas e das áridas rochas fez brotar água.
Aniquilou as nações de Thamud, de Aad1 e do Faraó2 que se vangloriou dos
cumes das pirâmides que ergueu. Eu O louvo, Deus Todo-Poderoso, por nos
guiar; e dou graças à Sua infinita benevolência.
Quanto ao que se segue, informamos os prezados e mui ilustres leitores
que o objectivo de escrever este prazeroso e saboroso livro é ser útil à
instrução de quem o lê, pois nele se encontram gestas contendo nobres
lições para gente de estatuto distinto e através das quais se aprende a arte de
discursar e o que se sucedeu aos reis desde o início dos tempos. Dei-lhe o
nome O Livro d’As Mil e Uma Noites e quem escuta as suas esplêndidas
gestas aprende a ser perspicaz e a proteger-se de artimanhas, e conhecerá o
desenfado e a alegria em tempos de aflição quando é exposto às mais rudes
cruezas da vida. Que Deus Todo-Poderoso nos guie ao caminho certo.
História do rei Xariar e de Xerazade, filha do
vizir

Conta-se — mas só Deus conhece toda a verdade, pois Ele é invisível e


conhecedor dos relatos que remontam aos mais antigos tempos — que era
uma vez, nas penínsulas da Índia e da Indochina, há muito tempo atrás,
durante a época dos Sassânidas, dois reis que eram irmãos. O mais velho
chamava-se Xariar e o mais novo Xazamane. O mais velho, Xariar, era um
corajoso cavaleiro e um herói guerreiro, com fama de invencível,
incansável e implacável. Reinava até nos mais remotos confins do país.
Todos os seus súbditos, onde quer que se encontrassem, obedeciam-lhe.
Xariar ofereceu ao seu irmão Xazamane as terras de Samarcanda, para que
ele aí vivesse e reinasse, enquanto Xariar vivia e reinava na Índia e na
Indochina. E assim foi durante dez anos.
Um dia, Xariar sentiu saudades do irmão e ordenou ao seu vizir3 — que
tinha duas filhas, Xerazade e Dinarzade — que fosse até ao país do irmão e
o trouxesse. O vizir preparou-se para a viagem e fez-se ao caminho, e após
dias e noites a eito chegou a Samarcanda. Xazamane, logo que soube que o
vizir estava para chegar às terras de Samarcanda, foi ao seu encontro
acompanhado de um séquito de cortesãos. Descavalgou, abraçou-o e
perguntou como estava o seu irmão mais velho, Xariar. O vizir respondeu
que o rei Xariar passava bem e que por ele havia sido enviado para pedir a
Xazamane que o fosse visitar. Xazamane honrou o pedido do irmão e
durante o tempo que precisava para se preparar para a viagem hospedou o
vizir e a sua gente num acampamento nos arrabaldes da cidade.
Providenciou-lhe víveres e provisões, e forragem para os animais. Em sua
homenagem, degolou várias cabeças de gado e ofereceu-lhe tesoiros, bens
valiosos, cavalos e camelos. A sua hospitalidade não teve fim durante os
dez dias em que se preparava para a viagem.
Na véspera da partida, Xazamane escolheu um dos seus camaristas para
governar durante a sua ausência, e montou a sua tenda no acampamento do
vizir para aí pernoitar. Lá pela meia-noite, quis-se despedir da sua mulher e
regressou ao palácio. Mas quando lá chegou, qual não foi o seu espanto ao
encontrá-la a dormir abraçada a um dos moços da cozinha. Quando os viu,
foi como se o mundo se houvesse tornado negro ante os seus olhos. Meneou
a cabeça sem saber o que fazer e disse de si para si: «Vejam-me esta! Nem
sequer ainda abalei, só estava a pernoitar fora da cidade, e é isto que ela me
faz. Que fará então nas minhas costas quanto eu estiver na Índia junto de
meu irmão? Não haja dúvidas, as mulheres não merecem confiança.»
Tomando-se-lhe uma fúria cada vez maior, continuou a dizer de si para si:
«Valha-me Deus, como é possível que isto aconteça a mim, que reino e
governo as terras de Samarcanda? Como pode ela trair-me deste modo?» E
dito isto perdeu as estribeiras, desembainhou a espada e matou os dois, o
cozinheiro e a mulher. Puxou-os pelas pernas e botou-os janela fora, para o
fundo do fosso que rodeava o palácio. Logo de seguida, saiu da cidade até
onde estava acampado o vizir e ordenou que se desse início à viagem
naquela mesma hora. Retumbaram os atabales e todos partiram em viagem,
mas o coração do rei Xazamane, por mor da traição de sua mulher, que o
trocara por um cozinheiro, um simples moço de cozinha, era consumido por
um fogo que se não apagava e uma chama que se não acalmava.
Após dias e noites a eito, por ermos afora e desertos adentro, chegaram
ao país do rei Xariar, que veio prontamente receber os viajantes. Logo que
viu o irmão correu a abraçá-lo, conduziu-o à cidade com as maiores honras
e instalou-o num palácio ao lado do seu. É que o rei Xariar havia construído
num jardim seu dois palácios colossais, muito elegantes e formosos; um era
para os convidados e o outro era a sua residência privada. Hospedou o
irmão no palácio dos convidados, depois dos criados o lavarem, limparem,
escovarem, mobilarem e abrirem as janelas que davam para o jardim.
Xazamane só lá ia à noite para dormir e passava o dia no palácio do irmão,
com quem ia ter logo que acordava. Mas quando se encontrava sozinho,
atormentava-se com o que a mulher lhe fizera, suspirava profundamente e,
abafando o choro, perguntava-se: «Mas como pode uma calamidade destas
e tão grande infortúnio acontecer a alguém da minha condição?» O seu brio
começou a desmoronar-se e a loucura apoderava-se dele, pondo-o a
exclamar vezes sem conta: «Só a mim! A ninguém mais acontece isto!» Ia-
se abaixo com tanto desassossego e comia cada vez menos por mor do
fastio que sentia. O desgosto pintava-o pálido e entorpecia-lhe o ânimo.
Perdeu o interesse por tudo, emagreceu e mudou de cor.
Dia após dia, o rei Xariar via o irmão cada vez mais mirrado, pálido e
desfeito, mas pensando que assim era por mor das saudades da sua terra e
da sua família, disse de si para si: «O meu irmão não está feliz aqui. Vou
preparar-lhe um belo presente e depois mando-o de volta para a sua terra.»
Durante um mês a fio cobriu-o de presentes, um atrás do outro. E um dia
chamou-o e disse-lhe: «Mano, quero que saibas que faço tenção de ir
passear seguindo o passo das gazelas para caçar durante dez dias; depois
voltarei para preparar a tua viagem de regresso; faço questão que venhas
comigo.» Mas Xazamane respondeu: «Mano, ando sem grande vagar para
essas coisas, deixa-me ficar aqui e segue tu no teu passeio com a bênção e a
ajuda de Deus.» Ao ouvir estas palavras, Xariar julgou que o irmão se
sentia triste pelas saudades de sua terra e não quis insistir. Abalou sem ele e
meteu-se a viajar com os seus soldados e outras gentes do seu reino.
Chegados que foram a terras ermas, montaram um cerco que iam
estreitando para caçarem as presas.
Depois de Xariar abalar, Xazamane sentou-se à beira de uma das janelas
que davam para o jardim. Enquanto admirava os pássaros e as árvores,
lembrou-se de sua mulher e do que esta lhe fizera. As mágoas vieram à tona
e pôs-se a suspirar intensamente, atormentado por pensamentos que
alimentavam a fornalha do seu martírio. Com o semblante vago e fixo de
um sonâmbulo, o seu olhar perdia-se entre o céu e o jardim. Às tantas, viu
abrir-se a porta secreta do palácio do irmão e dela saiu a senhora, mulher de
seu irmão, caminhando toda garrida, qual gazela de olhos galantes, fazendo-
se acompanhar por vinte escravas, dez brancas e dez negras. De um sítio
que o não topavam, Xazamane viu-as aproximando-se. Sentaram-se mesmo
por baixo da sua janela, mas não o topavam e pensavam que havia ido com
o irmão à caça. Em seguida despiram todas as roupas e foi aí que Xazamane
se apercebeu que eram afinal dez escravos negros e dez escravas, mas que
se haviam todos disfarçados com roupas de mulher. Depois, os dez escravos
montaram-se nas dez escravas e a senhora gritou: «Ó Massude! Ó
Massude!» Dito isto, saltou um escravo negro de cima de uma árvore para o
chão, arremeteu-se sobre ela, levantou-lhe as pernas, enfiou-se entre as suas
coxas e montou-se nela. E assim foi até ao meio-dia, Massude por cima da
senhora e os escravos por cima das escravas. Quando acabaram, foram-se
todos lavar e os escravos vestiram novamente as roupas de escrava,
confundiram-se uns com os outros e quem os visse julgaria serem vinte
escravas. Massude, esse, saltou muro acima e desapareceu. Por sua vez, as
escravas e a sua senhora caminharam até à porta secreta e depois de todos
terem entrado, trancaram-na e foram às suas vidas. Tudo isto aconteceu e
tudo foi visto pelo rei Xazamane.
Depois de Xazamane ter assistido a estes feitos, reflectiu sobre a grande
calamidade e enorme desgraça que se haviam abatido sobre o irmão, o
grande e glorioso rei, no seu próprio palácio, como dez escravos em traje de
escrava haviam dormido com as suas concubinas e o escravo Massude com
a sua mulher. Mas quanto mais matutava nisto, mais aliviado da sua dor e
desassossego se sentia, dizendo de si para si: «Este é o nosso quinhão, meu
irmão é rei incontestável de toda a terra, porém nada de mais adverso lhe
poderia acontecer no seu próprio reino com a sua mulher e suas concubinas,
nem maior calamidade poderia visitar a sua própria casa. Eu pensava ser o
único a sofrer tamanha desgraça, mas, verdade seja dita, o que me
aconteceu é coisa pouca. Agora percebi que todos nós sofremos e que a
minha desgraça é bem mais ligeira que a de meu irmão.» E desatou a
admirar e a amaldiçoar os infortúnios da vida a que ninguém escapa. E
depois o seu desassossego foi-se e Xazamane não pensou mais na sua
desgraça.
Quando lhe serviram o jantar, comeu à larga, com apetite e alegria,
deliciando-se com a bebida que lhe traziam. Limparam-se-lhe as tormentas
da alma e, enquanto desfrutava da comida e da bebida, encantado da vida e
em grande solaz com a boa andança do mundo, reflectiu para consigo: «Não
há razão para me queixar, afinal não sou o único a quem tamanha desgraça
acontece.» E continuou durante dez dias a comer e a beber, até que seu
irmão regressou da caça e da montaria. Xazamane recebeu-o com alegria e
sorriso na cara, e ajudou-o no que era preciso. Xariar, sentindo imensas
saudades do irmão, disse-lhe: «Meu Deus, nem imaginas quanto senti a tua
falta durante esta viagem, quem me dera que tivesses vindo!» Xazamane
agradeceu ao irmão e sentaram-se os dois, passando juntos toda a tarde na
farra. Quando lhes serviram o jantar, comeram e beberam, e mais uma vez
Xazamane comeu e bebeu cheio de apetite.
O tempo ia passando e Xazamane continuava a comer e a beber; libertou-
se das más recordações e do desassossego, a sua cara ganhou expressão e
recobrou o brio. O sangue circulava-lhe novamente nas veias, trazendo-lhe
de volta o ânimo e fazendo-o mais gordo. Xazamane voltou a ser como era
dantes ou melhor ainda. E Xariar reparou na mudança do irmão, como
estava dantes e como estava agora. Nada lhe disse até que um dia se
encontrou a sós com ele e o confrontou: «Mano, quero que me faças um
favor e correspondas a um desejo meu, quero perguntar-te uma coisa e ouvir
uma resposta sincera.» «E qual é essa coisa, mano?» «Quando aqui
chegaste, em ti só vi uma atitude de desistência perante tudo e, dia após dia,
estavas cada vez mais mirrado, pálido e desfeito. Como assim continuavas,
pensei que sofrias por mor da distância que te separa do teu reino e da tua
família. Por isso, mesmo se te via cada vez mais em baixo, nada te quis
perguntar para não te aborrecer. Depois fui à caça e, ao regressar, eis que te
encontro em excelente estado e com o ânimo de volta. Conta-me, primeiro,
qual a causa de estares tão em baixo aquando a tua chegada e, segundo,
qual a causa que te fez recobrar o ânimo e, por favor, nada me escondas!»
Xazamane primeiro baixou a cabeça, e em seguida disse: «Ó rei, a causa
do restabelecimento do meu ânimo é coisa que não te posso contar. Por
favor, perdoa-me o silêncio.» Xariar, boquiaberto e em pasmo total por tal
resposta, ficou a arder de curiosidade: «Mas por amor de Deus, conta-me
tudo! Ao menos conta-me a causa de estares tão em baixo aquando cá
chegaste.»
E Xazamane contou a Xariar, de fio a pavio, o que lhe havia acontecido
com a sua mulher em vésperas de partir em viagem, e concluiu dizendo: «Ó
rei dos tempos, quando aqui cheguei só conseguia pensar no que me
aconteceu e na desgraça que me foi infligida; quanta dor, desassossego e
más recordações me perseguiram. O que ouviste foi a causa de haver
perdido o ânimo.» Dito isto calou-se, e Xariar abanou a cabeça, pasmado
com a matreirice das mulheres, e disse: «Pelo amor de Deus, mano, fizeste
muito bem em matares a tua mulher e esse homem, fizeste mais do que
justiça. Agora percebo melhor a tua dor e desassossego, e porque estavas
tão em baixo. O que te aconteceu, duvido que aconteça a mais alguém.
Valha-me Deus, se fosse comigo não tinha matado só uma mulher, mas aí
umas cem ou mesmo mil; teria endoidecido por completo, mas Deus seja
louvado, que te trouxe de volta o sossego e te limpou as mágoas. Agora diz-
me, como fizeste para não pensares mais no teu desassossego e recobrares o
ânimo?» Xazamane respondeu: «Por amor de Deus, ó rei, perdoa-me o
silêncio.» Mas Xariar insistiu: «Por favor, conta-me.» E Xazamane
escusou-se dizendo: «Se o fizer, receio que venhas a sofrer uma dor e um
desassossego muito maiores do que aqueles que eu sofri.» Mas Xariar
ateimou: «Como assim? Faço questão de que me contes!»
Xazamane contou-lhe então o que viu da janela e a desgraça que andava
lá pelo palácio, dez escravos em traje de escrava a dormirem com as suas
concubinas e a sua mulher, noite e dia. Contou-lhe tudo de fio a pavio, mas
não há necessidade de repetir aqui os detalhes. E depois concluiu: «Quando
vi quão grande era a tua desgraça, não pensei mais na minha e disse de mim
para mim, “Meu irmão é rei de toda a terra, mas aconteceu-lhe esta
desgraça na sua própria casa.” Então aliviou-se-me a dor, senti-me melhor e
volvi a comer e a beber. É esta pois a causa do meu contentamento e de
haver recobrado o meu ânimo.»
Quando Xariar ouviu tudo isto, tomou-se de uma enorme e violentíssima
fúria que até o seu sangue fervia. «Mano, não acredito em nada do que me
dizes, a não ser que eu mesmo veja com os meus próprios olhos», disse ele,
destilando ainda mais fúria. E Xazamane disse-lhe: «Se não acreditas em
mim e queres por ti mesmo ver a tua desgraça, então combina uma caçada e
eu irei contigo e com o teu exército. Quando estivermos fora da cidade,
esquivamo-nos do arraial e do exército, e tu e eu entraremos secretamente
na cidade, vamos até ao teu palácio, esperamos até de manhãzinha e então
verás com os teus próprios olhos.»
O rei reconheceu que a ideia do irmão era acertada e ordenou ao exército
que se preparasse para partirem em viagem, havendo passado a noite com o
seu irmão. Quando Deus fez amanhecer a manhã, cavalgaram os dois com o
exército para fora da cidade, havendo os criados ido à frente com as tendas
e os pavilhões para assentarem arraiais onde iam pernoitar. Quando se fez
noite, o rei chamou o seu camarista-mor, ordenou-lhe que o substituísse e
que ninguém fosse à cidade durante três dias. Nessa noite, ele e o irmão
entraram na cidade disfarçados, foram para o palácio onde estava
hospedado Xazamane e aí dormiram até de madrugada. Ao acordarem,
sentaram-se a conversar à janela do palácio e a observar o jardim. Quando o
Sol se levantou e raiou a primeira luz, viram a porta secreta abrir-se e de lá
sair, como de costume, a mulher do rei e vinte escravas, que caminharam à
sombra das árvores até se quedarem mesmo por baixo da janela onde eles
estavam escondidos. Despiram as roupas de mulher e eis que afinal entre
elas havia dez que eram escravos, que por sua vez montaram nas escravas e
as fornicaram. Enquanto isso, a senhora gritava: «Ó Massude! Ó Massude!»
E dito isto, salta de cima de uma árvore um escravo negro, que se aproxima
dela e pergunta: «Que queres, ó galdéria? Aqui está o teu Saadeddine
Massude4!» A senhora riu-se, deitou-se de costas e o escravo montou-se
nela, e fez com ela os seus afazeres, tal como os outros. Quando os escravos
terminaram, foram lavar-se e vestiram as roupas com que haviam vindo,
confundindo-se com as escravas, e entraram todos no palácio, fechando a
porta atrás de si. Quanto a Massude, esse, saltou muro arriba, fez-se à
estrada e foi à sua vida.
Depois de Xariar assistir a tudo isto, perdeu as estribeiras e, enquanto
desciam as escadas, vociferava: «Ninguém está a salvo neste mundo, custa
crer que isto aconteça no meu próprio palácio e no meu reino. Malditos
sejam o mundo e a vida! Que enorme desgraça esta!» Dito isto, virou-se
para o irmão e perguntou-lhe: «Queres acompanhar-me no que irei fazer?»
Ele respondeu que sim, e Xariar disse: «Vamos renunciar à nossa realeza e
vaguear mundo fora por amor a Deus Todo-Poderoso, abdicando de
qualquer privilégio real durante o nosso exílio. No entanto, se encontrarmos
alguém cuja desgraça seja maior que a nossa, então regressaremos.» Ao que
Xazamane respondeu: «Não posso estar mais de acordo com a tua
proposta.»
Saíram por uma porta secreta do palácio e foram-se dali para fora por
outro caminho. Andaram até que lhes anoiteceu e dormiram sem nada além
das suas mágoas. Em amanhecendo, continuaram a caminhada até que
chegaram a um prado à beira-mar. Entre árvores e arbustos, sentaram-se a
conversar sobre as suas desgraças. De repente, sentiram um som estrondoso
e um grito estarrecedor vindos do mar. Pareceu-lhes que o céu lhes caía em
cima e tremeram cheios de medo. Em seguida, o mar fendeu-se e dele se
ergueu uma coluna negra, avançando na direcção deles e crescendo em
tamanho até tocar nas nuvens. Tal foi o medo que os dois reis deitaram a
fugir e treparam a uma árvore bem alta, onde se esconderam entre a
ramagem. Daí viram a coluna negra abrir caminho pelo mar até ao prado.
Quando alcançou terra e entrou por ali dentro, viram que era um ifrite5
negro, trazendo à cabeça uma arca de vidro fechado com quatro cadeados
de aço. E, nada mais nada menos, veio sentar-se debaixo da árvore onde
eles se escondiam. Poisou a arca de vidro no chão, pegou em quatro chaves,
abriu os quatro cadeados e sacou lá de dentro uma mulher já feita, uma
moça de corpo formoso, doce sorriso e face tão bela quanto a Lua cheia.
Pondo-a no chão, disse-lhe: «Ó mais virtuosa de todas as damas, raptei-te
na tua noite de núpcias, agora gostaria de dormir um pouco.» Dito isto, o
ifrite deitou a sua cabeça no colo da moça, estendeu as pernas que
chegavam até ao mar e adormeceu profundamente, ressonando
asquerosamente.
Às tantas, a moça ergueu a cabeça e, por mero acaso, o seu olhar cruzou-
se com o do rei Xariar e o rei Xazamane. Quando os viu, levantou a cabeça
do ifrite, poisou-a no chão e foi ao pé de onde se encontravam, acenando-
lhes com a mão como quem quisesse dizer: «Desçam devagarinho até ao pé
de mim.» Quando se aperceberam de que ela os vira, encheram-se de medo
e imploraram em nome d’Aquele que ergueu o céu que ela os poupasse de
descer. Mas ela ateimou: «Desçam até ao pé de mim.» E eles, respondendo
por gestos, disseram: «Por amor de Deus, deixe-nos em paz, que este que
está aqui a dormir é um perigo para toda a humanidade.» Ao que ela
respondeu: «Vá, desçam, se não vierem para o pé de mim, vou acordar o
ifrite e ele mata-vos.» Como ateimava e gesticulava cada vez mais, não
tiveram outro remédio senão descer devagarinho até ela. Quando se
aproximaram, a moça deitou-se de costas, ergueu as pernas, e disse:
«Copulem comigo e saciem o meu desejo; senão acordo o ifrite e ele mata-
vos.» Eles sussurraram: «Por amor de Deus, não nos faça isto, neste
momento estamos varados de medo e pasmados de temor por mor do ifrite;
poupe-nos disso, minha senhora.» Mas a moça respondeu: «Tem de ser», e
ameaçou-os: «Por Deus que ergueu o céu, se o não fizerem vou acordar o
ifrite meu marido e peço-lhe para vos matar e vos afundar no mar.» Após
tanta ameaça, nada mais puderam fazer senão copular com ela, primeiro o
mais velho e ao depois foi o mais novo.
Quando acabaram e dela se retiraram, a moça disse-lhes: «Dêem-me os
vossos anéis.» Sacou um saco dentre as suas roupas, abriu-o, e depois de
uma sacudidela, botou para fora noventa e oito anéis de todas as cores e
feitios, e perguntou-lhes: «Sabem o que é?» Respondendo eles que não, ela
explicou: «Os donos destes anéis, todos eles, copularam comigo, e todos
com quem eu copulei, um anel lhes retirei. Também os senhores copularam
comigo e agora é a vez de cada um de vós me dar um anel, para eu os juntar
à minha colecção e completar a conta de cem anéis, de cem homens que me
conheceram mesmo nas barbas deste imundo monstro cornudo; deste ifrite
que me fez habitar este bravo mar de furiosas ondas, raptou-me e guardou-
me nesta arca, que tranca a quatro chaves para eu não deixar de ser virtuosa
e casta. Mas esqueceu-se não só que nada escapa ao destino, mas também
que nada detém uma mulher quando ela quer alguma coisa.» Quando isto
ouviram, Xariar e Xazamane não contiveram o seu enorme espanto e
agitados de emoção exclamaram: «Ó Deus! Ó Deus! Não há força nem
poder senão em Deus Altíssimo e Grandioso, ‘Em verdade, a astúcia das
mulheres é grandiosa!’6.» Depois, após cada um lhe entregar um anel seu, a
moça ensacou os dois anéis junto dos outros e foi sentar-se junto do ifrite,
pegando-lhe na cabeça e deitando-a no seu colo, como se nada tivesse
sucedido. E gritou-lhes: «Vá, vão embora à vossa vida, senão acordo-o.»
Puseram-se a caminho dali para fora e durante a jornada, virando-se o rei
Xariar para o irmão, lhe disse assim: «Valha-nos Deus, que desgraça bem
maior que a nossa. Vê tu bem como este génio raptou uma donzela durante
a sua noite de núpcias, guardou-a numa arca de vidro trancado a quatro
chaves e a levou consigo para o fundo dos mares, convencido que assim a
protegia dos veredictos do destino. Mas não foi isso que a impediu de
dormir com noventa e oito homens mais nós os dois, fazendo agora a conta
certa de cem. Quero-te mostrar o que penso fazer, mas por agora
regressemos ao nosso reino e às nossas cidades e nunca mais tornemos a
casar com uma única mulher.»
Assim fizeram, percorreram o caminho de volta durante toda a noite até
que chegaram, já na madrugada do terceiro dia, ao arraial onde estavam os
seus soldados. Sentaram-se cada um no seu trono, e todos os camaristas,
delegados, emires e vizires compareceram ante o rei Xariar, que lhes
ofereceu trajes de honra e os regalou com presentes. E nesse mesmo dia
voltaram à cidade, e quando Xariar chegou ao seu palácio, chamou o grão-
vizir, pai de Dinarzade e Xerazade, e disse-lhe: «Estás a ver aquela minha
mulher? Leva-a e mata-a.» O próprio Xariar foi buscá-la, amarrou-a e deu-a
ao vizir, que a levou e a matou. Feito isto, Xariar tomou a sua espada,
desembainhou-a e, percorrendo todos os cantos do palácio de espada em
punho, matou todas as suas escravas e substituiu-as por novas. Depois
exclamou: «Não existe uma única mulher casta à face da Terra.» E
prometeu a si mesmo que nunca mais tornaria a casar, a não ser por uma só
noite e que na manhã seguinte mataria aquela com quem se havia casado no
dia anterior para não voltar a ser vítima da esperteza e da malvadeza das
mulheres. Depois disto, preparou a viagem do irmão de volta à sua terra, e
cobriu-o de presentes, tesoiros, bens valiosos e muito mais. Xazamane
despediu-se do irmão e foi-se para o seu país.
Xariar sentou-se no seu trono e ordenou ao seu vizir, pai das duas moças
já referidas, que o fizesse casar com uma filha de emires. Então o vizir deu-
lhe em casamento uma filha de emires, e Xariar consumou o casamento,
fazendo o que queria com ela até mais não querer. Logo que amanheceu,
ordenou ao vizir que a matasse. Depois casou-se com outra rapariga, filha
de um oficial militar. À noite copulou com ela e logo que amanheceu,
ordenou ao vizir que a matasse. Como este não lhe podia desobedecer, não
teve outro remédio senão matá-la. Na terceira noite, casou-se com outra que
era filha de um dos mercadores da cidade. Dormiu com ela até de manhã e
depois ordenou ao vizir que a matasse, e ele a matou.
E daí adiante, o rei Xariar tomava em cada noite uma rapariga diferente,
escolhida entre filhas de mercadores e do povo. Passava a noite com elas e
de manhã matava-as, ao ponto de nenhuma sobrar e, em todos os sítios,
todos se desfaziam em pranto, as mães, os pais e as mulheres choravam e
lamuriavam-se. Nas suas preces, já só suplicavam que a praga levasse
aquele rei. Queixavam-se ao Criador dos céus e pediam-Lhe que ouvisse as
suas preces e respondesse aos seus apelos.
O vizir que matava as raparigas tinha duas filhas, a mais velha chamava-
se Xerazade e a mais nova Dinarzade. A mais velha havia estudado livros
de literatura, filosofia e medicina, sabia poemas de cor, conhecia os relatos
históricos, havia aprendido as máximas de gente célebre e o que haviam
dito os sábios e os reis. Porque estudou e aprendeu, era uma sabedora muito
sabida, inteligente e erudita.
Um dia, Xerazade disse ao pai: «Pai, quero pedir-lhe algo.» O pai
perguntou: «O quê?» Xerazade respondeu: «Quero que me case com o rei
Xariar, talvez eu consiga libertar o povo, caso contrário findarei e morrerei
como todas as outras.» Quando isto ouviu, o vizir tomou-se de fúrias e
disse: «Só podes estar louca, mas será que não sabes que o rei Xariar jurou
a si mesmo que não dorme com nenhuma rapariga senão durante uma só
noite e logo que vem a manhã a mata? E agora a ele te queres oferecer, para
ele dormir contigo uma só noite, chamar-me de manhãzinha para te matar e
eu te matar porque lhe não posso desobedecer!» Ao que ela respondeu:
«Mas pai, rogo-lhe que me ofereça a ele em casamento e se ele me matar,
que assim seja.» O pai perguntou: «Mas o que é que te deu para quereres
pôr a tua vida em perigo desta maneira?» Xerazade teimou: «Pai, rogo-lhe
que me ofereça a ele em casamento. Assim disse e assim é a minha
vontade.» O vizir tomou-se de fúrias e disse: «Ó minha rica filhinha, Se à
altura das circunstâncias não te sabes comportar, em maus lençóis vais
ficar, e A quem age sem tino, não lhe sorri o destino, e lá diz outro
conhecido ditado: Eu estaria bem assente na vida, não fosse a minha
curiosidade indevida. O que eu tenho medo é que te aconteça o que
aconteceu ao burro, ao boi e ao camponês.» Xerazade perguntou: «E que
aconteceu ao burro, ao boi e ao camponês?» Ele disse:

História do burro e do boi

Havia um próspero e rico mercador que vivia no campo. Era dono de


muitas terras cultivadas e tinha ao seu serviço muitos homens. Possuía uma
grande fortuna, gado e camelos, e tinha uma mulher e muitos filhos, uns
ainda miúdos, outros já graúdos. Este mercador tinha o dom de perceber a
língua dos animais, mas se traduzisse para alguém o que ouvia, num pronto
morreria. Por isso, apesar de compreender as línguas dos animais de todas
as espécies e feitios, nada revelava a ninguém com medo de morrer. Na sua
casa havia um boi e um burro que estavam amarrados a uma manjedoira
perto um do outro. Um dia, o mercador sentou-se junto de sua mulher,
enquanto as crianças brincavam à sua frente. Olhando para o boi e para o
burro, ouviu o boi dizer ao burro: «Ó meu perspicaz amigo, que faças bom
proveito do conforto e do serviço que te prestam, pois tens quem trabalhe
para ti, lavam e limpam-te o chão, dão-te cevada peneirada para comeres e
água fresca e límpida para beberes. Quanto a mim, levam-me a meio da
noite e aparelham-me ao pescoço o que eles chamam jugo e arado. Trabalho
sem parar arando os campos sob a chibatada que escalavra os meus flancos,
esfola-me o pescoço e põem-me todo de rastos com tanta pancada aviada
pelo camponês. Trazem-me de volta na noite seguinte e de comida só me
cabe fava com lama, feno e palha. Quanto à dormida, é em cima de caca e
mija. Já tu, gozas de um chão limpo, bem lavadinho, e duma manjedoira
asseada e cheia de feno. Passas bem em grandes confortos e lá de quando
em quando carregas umas coisas, mas na viagem de regresso o nosso dono
vem a pé e tu nada carregas. Como vês, tu estás sempre todo relaxado e eu
cheio de canseiras, pois enquanto tu dormes eu velo.» Quando acabou de
falar, o burro virou-se para o boi e disse: «Ó ingénuo, não se enganou quem
te chamou boi, pois não sabes o que é esperteza nem vileza nem torpeza.
As tuas boas intenções e os teus esforços e zelos para nada servem, senão
para te matares a ti mesmo para o bem de outros. Nunca ouviste o rifão:
Quem não tem sorte, apressa a morte? Levam-te para arar os campos ainda
de madrugada e sujeitas-te a penosas torturas. Da próxima vez, quando
voltares desse suplício e o camponês te amarrar à manjedoira, desatas aos
coices com as tuas patas e às cabeçadas com os teus cornos. Não pares de
assim fazer até te botarem as favas, mas não as comas, nem sequer lhes
toques, dás só uma cheiradela e, logo de seguida, estatelas-te no chão. Se
assim fizeres, vais ver que será muito melhor para ti e terás mais sossego e
menos canseiras.»
O boi ouvindo isto e achando que o burro lhe falava direito, disse-lhe:
«Tens razão, ó meu perspicaz amigo, já chega de aturar o pior. Agradeço-te
do fundo do coração os teus preciosos conselhos. Que Deus te
recompense.» Tudo isto aconteceu, minha filha, sem eles saberem que o
mercador tudo compreendia daquela conversação.
Ao outro dia, o camponês foi buscar o boi a casa do mercador, aparelhou-
lhe o arado e levou-o para a lavoira, mas o boi trabalhar, está quieto, ó mau!
O camponês bem o açoitava, mas o boi, todo mandrião, pensando nos
conselhos do burro, fazia-se cair ao chão, e por mais chibatada que o
camponês lhe aviasse, o boi estatelava-se de novo no chão e não havia
maneira de o pôr a trabalhar. Foi assim até cair a noite, quando o camponês
o levou de volta e o amarrou à manjedoira. O boi não deu luta nem fez
barulho, mas afastou-se da manjedoira. O camponês pasmou ao ver tal coisa
e botou-lhe favas e forragem. O boi cheirou mas não lhe tocou, afastando-se
e passando toda a noite meio a dormir meio a resmungar. Na manhã
seguinte, o camponês encontrou a manjedoira cheia de favas e forragem, tal
e qual a havia deixado, e quando olhou para o boi, ele estava a dormir de
pernas para o ar, com a barriga inchada e a respirar ofegantemente. Teve
pena dele e disse para si mesmo: «Meu Deus, estava mesmo sem forças e
incapaz de trabalhar.» Indo ter com o mercador, disse-lhe: «Patrão, o boi
não tocou na comida durante toda a noite.» O mercador, que sabia da manha
do boi, respondeu: «Vai buscar o matreiro do burro, aparelha-lhe o arado,
puxa bem por ele e fá-lo trabalhar tanto quanto o boi.»
O camponês foi buscar o burro, aparelhou-lhe o arado e levou-o para os
campos, açoitando-o a torto e a direito para que trabalhasse tanto quanto o
boi. Tanta chibatada levou que os seus flancos ficaram lacerados e o
pescoço esfolado, e à noite, quando o camponês o trouxe de volta para casa,
o burro estava tão esbofado que mal se conseguia arrastar e as suas orelhas
estavam caídas. Quanto ao boi, esse passou o dia todo a descansar regalado
da vida, tendo comido toda a sua comida e bebido toda a sua água. Durante
esse dia, louvava o conselho que o burro lhe havia dado e dizia de contente,
enquanto ruminava: «Que Deus abençoe o burro!» Quando à noite o burro
regressou, o boi levantou-se e disse-lhe: «Boas noites, ó meu perspicaz
amigo! Que belo conselho me deste, graças a ti passei o dia em grande
conforto. Que Deus te recompense pelo bem que me fizeste.» O burro
estava tão rabiado que nem lhe respondeu, dizendo de si para si: «Isto só
aconteceu em virtude da minha falta de tino. Eu estaria bem assente na
vida, não fosse a minha curiosidade indevida, e se eu não arranjar uma
artimanha qualquer para o boi voltar a ser como era dantes, isto ainda vai
acabar muito mal para o meu lado.» Depois voltou à sua manjedoira e
deitou-se, enquanto o boi ruminava e pedia a bênção de Deus para o burro.
«E tu, minha filha, também tu queres morrer em virtude da tua falta de
tino. O melhor é ficares caladinha e sossegadinha, e assentares vida no
conforto do teu lar em vez de provocares a tua aniquilação. Acredita em
mim, que eu preocupo-me contigo.» Ela respondeu: «Pai, eu tenho de me
casar com o rei e o pai tem de me oferecer a ele.» «Não faças isso», disse o
pai, mas ela ateimou: «Tenho de o fazer.» E o pai disse: «Se não ficares
caladinha e sossegadinha, vou-te fazer o mesmo que o mercador fez à sua
mulher.» Ao que ela perguntou: «E que fez o mercador à sua mulher?» Ele
disse:

História do mercador e de sua mulher

Depois do que aconteceu ao burro e ao boi, o mercador e a sua mulher


foram até ao estábulo numa noite aluada, e ele ouviu o burro falar ao boi na
língua deles: «Ó boi, que vais fazer amanhã de manhãzinha, quando o
camponês te trouxer a forragem?» O boi disse: «Então que havia de fazer
senão seguir o teu precioso conselho? Se me trouxer a forragem, faço-me de
doente, estatelando-me no chão e inchando a barriga.» O burro abanou a
cabeça e disse: «Não faças isso! Sabes o que ouvi o nosso dono dizer ao
camponês?» O boi perguntou: «O quê?» «Ele disse que se o boi não comer
e não conseguir manter-se em pé, então não há outro remédio que não seja
levá-lo ao açougueiro para o abater, distribuindo em seguida as peças de
carne pela caridade e fazendo uma toalha de mesa com a sua pele. Estou
mesmo muito preocupado contigo, pois só quero o teu bem. Por isso,
quando te trouxerem a forragem, come-a e levanta-te, senão serás abatido e
esfolado.» Ao ouvir isto, o boi berrou e largou um peido, e o mercador
desatou às gargalhadas ao ouvir tamanha artimanha. Então a mulher
perguntou: «Porque te ris tanto? Estás a fazer pouco de mim, não é?» Ele
disse: «Não, não estou.» Ela disse: «Então conta-me porque te ris tanto!»
Ele disse: «De modo algum, não o posso dizer, tenho medo de revelar as
conversas secretas que os animais têm na sua língua.» Ela perguntou: «E o
que te impede de o fazer?» «Se o fizer, morro», disse ele. Mas vai a mulher
e disse: «Que mentira tão disparatada, é só uma desculpa tua! Por Deus
Senhor do céu, juro que te deixo e nunca mais assentarei vida contigo se me
não contares porque te rias. Tens de me dizer tudo!» E foi-se para casa em
grande choradeira e não parou de chorar até à manhã seguinte, quando o
mercador lhe disse: «Que maldição! Porque raios choras tu? Pede perdão a
Deus, pára de me fazer essa pergunta e deixa-me em paz!» Mas ela
ateimou: «Não paro, tens de me contar.» Ele, já cansado de tanta teimosia,
perguntou: «Tem mesmo de ser? Até mesmo se eu morrer por te contar a
conversa que ouvi entre o burro e o boi?» Ela respondeu: «Sim, eu quero
saber porque te rias, mesmo que tenhas de morrer.» Perante tal resposta, ele
disse: «Então chama a tua família.» E ela chamou as duas filhas, os pais
dela e outros parentes, e vieram ainda alguns vizinhos.
Quando o mercador disse que estava prestes a morrer, toda a gente
presente, os graúdos e os miúdos, os filhos, os camponeses e os serventes,
todos desataram a chorar em luto. Depois, chamou testemunhas para
escrever o seu testamento, deixando à sua mulher o que lhe era de direito
segundo o contrato de casamento e as leis, dividindo os bens entre os filhos,
e alforriando as suas escravas. Despediu-se de sua família, e toda a gente
chorou ainda mais, até mesmo as testemunhas. Os pais da mulher
aproximaram-se dela e lhe disseram: «Desiste disto, pois o teu marido, se
não tivesse a certeza de que morreria ao revelar o que tem de ser mantido
em segredo, não se teria dado a estes trabalhos.» Mas ela disse: «De modo
algum desisto.» E todos choraram e prepararam-se para o funeral.
Pois bem, minha querida filha Xerazade, eles tinham em casa cinquenta
galinhas e um galo. O mercador, que estava muito triste por se separar do
mundo, dos seus filhos e da sua família, sentou-se a pensar e a preparar-se
para revelar o que não podia ser revelado, quando ouviu um cão que havia
lá em casa conversando na sua língua com o galo, que batendo as asas havia
saltado para cima de uma galinha, desfrutando dela, havendo de seguida
saltado para cima doutra galinha. O mercador compreendeu o que dizia o
cão na sua língua ao galo: «Ó galo, mas que falta de vergonha tão grande,
fazer tais coisas num dia como o de hoje.» O galo perguntou-lhe: «Mas que
tem o dia de hoje de diferente?» O cão respondeu: «Mas então não sabes
que hoje é dia de luto pela alma do nosso dono porque a sua mulher o quer
obrigar a revelar o que ele não pode revelar e quando o fizer morrerá num
pronto? É isto o que se passa, ele vai em breve explicar-lhe o que ouviu da
língua dos animais. Por isso estamos todos tristes por ele, enquanto tu andas
para aí a saltar de galinha em galinha, sem vergonha nenhuma na cara!» O
mercador ouviu a resposta do galo: «Estás mas é doido da cabeça! O nosso
dono pretende ter juízo mas é um tolo! Então ele tem uma só e única
mulher, e não tem tino quando trata com ela?» O cão perguntou: «E que
podia ele fazer?» O galo respondeu: «Se eu fosse a ele, pegava num bordão
de carvalho, trancava-me com ela num quarto e aviava-lhe tanta bordoada
até lhe partir as mãos e os pés, e só parava quando ela gritasse: “Já não
quero que contes ou expliques nada”, e com tanta bordoada jamais ela
durante toda a vida o voltaria a contrariar em coisíssima alguma. E se ele
assim fizesse, podia ficar descansado em vez de morrer, e findava todo este
luto, mas ele, o nosso dono, não tem tino para lidar com esta situação.»
Pois bem, minha querida filha Xerazade, quando o mercador ouviu esta
conversação, foi de imediato buscar um bordão de carvalho, trancou-se com
ela num quarto e deu-lhe muita bordoada nas costelas e nos ombros, até que
ela já só suplicava: «Por amor de Deus, pára, já não quero saber porque te
rias. Por favor, larga-me, não quero jamais perguntar-te sobre coisa
alguma.» E foi assim até ele se cansar de lhe enxertar pancada a torto e a
direito, e ela saiu daquele quarto clamando clemência, e toda gente se
contentou e se alegrou com tal desfecho. Cessou o luto e o mercador
aprendeu a ter tino.
«E tu, minha filha, és outra que continuas a teimar nas tuas ideias, até eu
te fazer o mesmo que o mercador fez à sua mulher.» E Xerazade disse:
«Esse tipo de histórias não me demove da minha determinação. E se eu
quisesse podia contar-lhe muitas outras histórias do género, mas o que
agora lhe digo é que se me não entregar ao rei Xariar, eu mesma irei ter com
ele nas suas costas e lhe direi que o pai se recusou a oferecer-me e por isso
traiu a confiança que ele depositou em si.» Então o vizir disse: «Já vi que
tem mesmo de ser como tu queres.» E ela respondeu: «Sem dúvida.»
Rendido à teimosia da filha, lá foi o vizir ter com o rei Xariar e, beijando
o chão perante o monarca, contou-lhe o que se havia passado, e que lhe ia
oferecer a filha nessa mesmíssima noite. O rei espantou-se e disse: «Ó vizir,
como podes tu conceder-me a tua filha, sabendo que eu, por Deus que
ergueu o céu, ao amanhecer te ordenarei que lhe tires a vida, e se o não
fizeres eu mesmo te farei morrer?» Ele respondeu: «Real senhor, eu mesmo
expliquei tudo isso à minha filha, mas ela recusou-se a dar-me ouvidos e
ateimou em passar esta noite com vossa alteza.» O rei, regozijando-se ao
ouvir tal coisa, disse-lhe: «Vai ter com ela, apronta-a e trá-la até mim
quando anoitecer.» O vizir foi ter com a filha, e em lhe relatando o que
havia dito o rei, disse-lhe: «Que Deus me não separe de ti.» Xerazade não
coube em si de contente e depois de se aprontar a si e à sua bagagem, foi ter
com a irmã mais nova, Dinarzade, e disse-lhe: «Mana, escuta-me com
muita atenção. Quando eu estiver com o rei, irei pedir que te chamem.
Quando vieres e vires que o rei já terminou os seus afazeres comigo, irás
dizer o seguinte, “Ó mana, se não estiveres a dormir, conta-me um conto.”
E em seguida eu conto-te uma história que o rei também escutará. Só por
este modo é que irei conseguir salvar-me a mim mesma e libertar o povo, e
fazer com que o rei abandone este comportamento.» A irmã assentiu.
Ao cair da noite, o vizir pegou na filha e entregou-a ao grandioso rei
Xariar, que a levou consigo para a cama. Mas enquanto a namoriscava,
Xerazade começou a chorar. «Porque choras?», perguntou-lhe o rei. Ela
respondeu: «Tenho uma irmã e gostava muito de me despedir dela antes que
se faça manhã.» O rei mandou que a chamassem e ela veio, e dormiu
debaixo da cama. Lá por essa meia-noite, Dinarzade acordou e esperou que
o rei acabasse de se saciar com a irmã. Estando os três acordados,
Dinarzade aclarou a voz e disse: «Ó mana, se não estiveres a dormir, conta-
me um dos teus belos contos para entretermos a noite, pois eu não sei o que
te vai acontecer amanhã, e talvez seja esta a última noite em que posso
ouvir a tua voz.» Xerazade respondeu: «Se vossa alteza me der permissão.»
O rei consentiu e Xerazade, muito contente, disse: «Ouve-me:»
1.a NOITE

História do mercador e do génio

Conta-se, ó bem-aventurado e sábio rei, que havia um mercador, muito


próspero e dono de uma imensa fortuna. Tinha muitos escravos e criados ao
seu serviço, e muitas mulheres e filhos, e havia estabelecido negócios em
todos os países. Um dia, tendo resolvido visitar um desses países, muniu-se
de um alforge com pão, tâmaras e outras provisões, montou no seu cavalo e
fez-se ao caminho. Passaram-se dias e noites, até que ele chegou são e salvo
ao seu destino, tal como Deus havia escrito.
Quando terminou os seus afazeres por aquelas bandas, ó bem-aventurado
rei, pôs-se a caminho para regressar à sua terra para junto dos seus. Os três
primeiros dias de jornada passaram-se normalmente, mas ao quarto dia o
calor era tanto que o chão parecia pegar fogo. Deu-lhe então na vista um
jardim, aonde entrou para se abrigar à sombra. Lá encontrou uma nogueira,
ao lado da qual havia uma fonte com água a correr, e depois de ter amarrado
o cavalo, sentou-se debaixo daquela árvore, e sacou do alforge um naco de
pão e algumas tâmaras. Enquanto comia, atirava os caroços, ora para a
direita ora para a esquerda. Com a barriga mais satisfeita, fez as suas
abluções e orações.
Ainda mal havia terminado, eis que apareceu um génio ancião, tão
gigante que a sua cabeça tocava nas nuvens. O génio aproximou-se do
mercador de espada em riste e, berrando, disse: «Levanta-te para que eu
com esta espada te mate tal como tu mataste o meu filho.» Quando viu e
ouviu o génio, tomou-o um enorme pavor e maior terror e, a tremer,
perguntou: «Meu bom senhor, que mal fiz eu para merecer a morte?»
«Mato-te porque tu mataste o meu filho.» «Mas quem é que matou o seu
filho?» «Foste tu quem matou o meu filho», aperfiou o génio. E o mercador
replicou: «Mas por amor de Deus, não fui eu quem matou o seu filho!
Quando e como poderia tê-lo feito?» Ao que o génio respondeu: «Então não
foste tu que aqui te sentaste, tiraste da sacola umas tâmaras e, enquanto as
comias, atiravas os caroços, ora para a direita ora para a esquerda?»
Respondendo o mercador que sim, o génio disse: «Pois então foste bem tu
quem o matou, porque quando atiravas os caroços, ora para a direita ora
para a esquerda, aconteceu o meu filho estar a passar e um caroço acertou-
lhe em cheio, sofrendo morte imediata. É por isso que te devo matar.»
«Ah, meu senhor!», disse o mercador, «por amor de Deus, peço-lhe que
me não mate.» Mas o génio respondeu: «Tal como tu o mataste, assim me é
preciso fazer, então não sabes que é sangue por sangue?» O mercador
rogou: «Não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e Grandioso. A
Deus pertencemos e a Deus regressaremos. Escute-me, ó génio, se eu o
matei, fi-lo sem querer. Por favor, perdoe-me.» Mas o génio respondeu:
«Sem sombra de dúvida terei de te matar tal como tu mataste o meu filho.»
Palavras não eram ditas, e pegava nele e atirava-o ao chão, brandindo a sua
espada para dar cabo dele. E nisto vai o mercador e desfaz-se em choros,
lamentando perder a sua família, mulher e filhos. Mas mesmo assim, o
génio tornou a brandir a espada para o atacar, só que o mercador chorou
tanto que até as suas roupas se ensoparam de lágrimas, e disse: «Não há
força nem poder senão em Deus Altíssimo e Grandioso», e em seguida
declamou uma poesia:

A vida são dois dias, um tranquilo e outro inquietante,


Um límpido como a felicidade e outro turvo de mágoas.
Perguntemos a quem nos afronta com desgraças tão árduas:
«O destino todos oprime, excepto quem é importante?»

A tempestade tanto assola,


Mas só as árvores mais altas imola.
Na Terra há tanta verdura quanto secura,
Mas só quem produz frutos sente a tortura.
E no céu há estrelas incontáveis,
Mas só o Sol e a Lua são eclipsáveis.

Enquanto durava, a tua vida parecia bela e clara,


E não receaste o que o destino te reservara.
Mas agora as tuas noites calmas ruíram,
E da límpida noite turvas mágoas surgiram.

Quando o mercador terminou e a sua choradeira acalmou, o génio disse:


«Agora tenho de te matar, tal como tu mataste o meu filho, e assim farei
mesmo que sangue chores.» «Tem mesmo de ser?», tentou o mercador mais
uma vez. Mas o génio respondeu que sim, e tornou a brandir a espada para
o atacar.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se, deixando o rei Xariar


a arder de curiosidade para ouvir o resto da história. «Que história tão boa e
tão espantosa», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que te contarei na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver. O que se segue é ainda melhor e mais espantoso.» Então o rei disse
de si para si: «Meu Deus, poupar-lhe-ei a vida até amanhã para ouvir o resto
da história.» Quando o Sol se ergueu e o dia raiou, o rei levantou-se e saiu
para reinar e exercer o seu cargo, e o vizir, pai de Xerazade, ficou espantado
e radiante de alegria. Quando se fez noite, o rei, depois de haver passado
todo o dia a tratar dos assuntos do reino, foi para os seus aposentos,
levando Xerazade consigo para a cama. Às tantas, Dinarzade disse à sua
irmã Xerazade: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por favor conta-me um
dos teus belos contos para entretermos a noite.» E o rei disse: «Que seja o
desfecho da história do génio e do mercador, mal posso esperar por ouvir o
resto.» E Xerazade respondeu: «Com o maior prazer, ó bem-aventurado
rei.»
2.a NOITE

Xerazade disse:

Conta-se, ó bem-aventurado e sábio rei, que quando o génio ergueu a


espada, o mercador tornou a perguntar: «Ó gigante, tem mesmo de me
matar?» «Assim me é preciso.» «Peço-lhe uma só coisa, que demore o seu
rigor de modo a eu me despedir da minha família, dos meus filhos e da
minha mulher; e a repartir a minha herança e escolher tutores para os meus
filhos. Quando terminar, voltarei aqui para lhe oferecer a minha vida.» Mas
o génio malvado disse: «Não me parece, porque se te conceder esse tempo e
te deixar ir, vais fazer o que te apetecer e aqui não voltarás.» «Juro que
cumprirei a minha promessa; Deus, Senhor do céu e da terra, é minha
testemunha.» Então o génio perguntou: «Quanto tempo precisas?» «Peço-
lhe um ano, para estar tempo suficiente com os meus filhos, despedir-me da
minha mulher, e desfazer-me dos compromissos assumidos; voltarei daqui a
um ano exacto a este mesmo sítio», respondeu o mercador. «E juras por
Deus que se eu te deixar ir, voltarás daqui a um ano exacto?» «Juro por
Deus.» E depois que jurou, o génio libertou-o. O mercador montou o seu
cavalo e retomou o caminho, mas em grande tristeza.
Viajou até chegar à sua terra e entrou em casa para se reunir com os
filhos e a mulher. Mas quando os viu, botou a chorar baba e ranho, tamanha
era a sua tristeza e aflição. Tal comportamento não lhes agradou, e a sua
mulher disse: «Ó homem, que se passa contigo para chorares dessa
maneira? Parece que estás de luto neste dia em que celebramos com tanta
alegria o teu regresso.» «E como não havia de estar de luto, quando me não
sobra senão um ano de vida?» E contou-lhes o que havia acontecido entre si
e o génio, e que tinha jurado voltar dali a um ano exacto para oferecer a sua
vida.
Quando ouviram a sua história, começaram todos a chorar. A mulher tão
desconsolada ficou que esbofeteava a sua própria cara e arrancava o cabelo;
as filhas berravam a chorar, enquanto os filhos mais pequenos gemiam na
sua caramunha. Coisa mais desoladora que esta não podia haver, com as
crianças à roda do pai, todos lavados em lágrimas, despedindo-se uns dos
outros.
Ao outro dia, o mercador escreveu o seu testamento para repartir a
herança, desfez-se dos compromissos que tinha, ofereceu presentes, fez
doações, deu esmolas, e pagou a declamadores para lhe recitarem o Alcorão
em casa. Chamou testemunhas, e perante elas alforriou as escravas e os
escravos, partilhou os bens entre os seus filhos mais velhos, escolheu
tutores para gerirem os bens herdados pelos mais novos, e deu à mulher o
que lhe era de direito, segundo o contrato de casamento e as leis.
O tempo passou, e volvido quase um ano, chegou o dia de partir. Fez as
suas abluções e orações, pegou na sua mortalha, e foi despedir-se da sua
família. Os filhos abraçaram-no, enquanto as raparigas choravam e a
mulher guinchava em choros. Todo este choro lhe apoquentou o coração e
as lágrimas vieram-lhe aos olhos, e abraçando e beijando os filhos, disse-
lhes: «Queridos filhos, é esta a vontade decretada por Deus; nós não fomos
criados senão para morrer.» E dito isto despediu-se uma última vez, montou
o seu cavalo e fez-se ao caminho.
Depois de dias e noites a eito, chegou ao tal jardim, exactamente um ano
depois. Sentou-se no local onde havia comido as tâmaras, e de coração
devastado chorava, esperando pelo génio. Enquanto ali estava assentado,
apareceu um ancião que trazia uma gazela presa por uma trela.
Cumprimentaram-se um ao outro, e o ancião disse: «Irmão, o que te detém
aqui neste local assombrado por monstros e diabos, e que não traz bem
algum a quem o visite?» O mercador contou tudo o que se havia passado
entre si e o génio. O ancião, espantado com a lealdade do mercador, disse:
«Meu Deus, que magnífica promessa fizeste. Vou sentar-me à tua banda, e
daqui não arredo pé até ver o que se vai passar entre ti e o génio.» Sentou-se
à sua banda, a conversar com o mercador, e enquanto isso…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. Ao raiar das luzes da


manhã, a sua irmã Dinarzade disse: «Que história tão estranha e tão
espantosa.» E Xerazade respondeu: «O que contarei, a ti e ao nosso rei, na
próxima noite, será ainda mais estranho e espantoso.»
3.a NOITE

Na noite seguinte, quando Xerazade foi para a cama com o rei Xariar,
Dinarzade disse à sua irmã: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por favor
conta-nos um dos teus belos contos para entretermos a noite.» E o rei disse:
«Que seja o desfecho da história do génio e do mercador.» E Xerazade
respondeu: «Assim seja:»

Ouvi dizer, ó bem-aventurado rei, que enquanto o mercador e o ancião


conversavam, apareceu um segundo ancião acompanhado de dois galgos
persas de cor negra. Avançou até junto deles e, depois de se
cumprimentarem uns aos outros, perguntou-lhes o que faziam naquele sítio.
O dono da gazela relatou-lhe o que se havia passado entre o mercador e o
génio, e que o mercador havia prometido ao génio voltar ao fim de um ano
exacto para lhe entregar a vida, e que aquele era o dia acordado com o
génio, e rematou dizendo: «Quanto a mim, quando ouvi esta aventura, jurei
não arredar pé daqui até ver o que se vai passar entre ele e o génio.»
Quando o dono dos galgos ouviu isto, pasmou e também ele jurou que
não arredava pé dali, e que lhes faria companhia para ver o que se iria
passar entre o mercador e o génio. Em seguida, inquiriu o mercador, e este
tornou a contar o que se havia passado entre si e o génio. Enquanto davam à
língua, apareceu um [terceiro] ancião e depois de se cumprimentarem uns
aos outros, disse: «Porque vos vejo aos dois aqui sentados com este
mercador de ar tão triste, abatido e desgraçado?» Então contaram-lhe a
aventura do mercador, e disseram que estavam ali sentados à espera do que
se ia passar entre ele e o génio. Ao ouvir esta história, sentou-se com eles e
disse: «Meus Deus, tal como vós, eu também não arredo pé daqui até ver o
que se vai passar entre este homem e o génio.» Puseram-se à conversa uns
com os outros, e passado pouco tempo viram uma nuvem de poeira erguer-
se do chão. Quando o ar aclarou, descortinaram o génio avançando para
eles, de espada de aço em punho, sem cumprimentar ninguém. Puxou pelo
mercador com a mão esquerda, e acercando-o de si, disse: «Prepara-te para
morrer.» O mercador e os três anciões desataram a chorar e a gritar
desesperadamente.

Mas a madrugada rompeu e Xerazade, sentindo a manhã chegar, parou de


falar e calou-se. «Que história tão boa, ó mana», disse a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite; será ainda melhor, mais
espantoso, prazeroso e saboroso, e mais interessante e tocante, se o rei me
poupar e não me matar.» O rei Xariar ficou a arder de curiosidade para
ouvir o resto da história e disse de si para si: «Meu Deus, não a matarei até
ouvir o resto da história e saber o que aconteceu ao mercador com o génio.
E amanhã de manhã mato-a, tal como fiz com todas as outras.» E depois
saiu para governar e exercer o seu cargo, e quando encontrou o pai de
Xerazade tratou-o muito amavelmente, e este ficou espantado com tal coisa.
Quando se fez noite, Xariar foi para os seus aposentos, levando Xerazade
consigo para a cama. Às tantas, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó
mana, se não estiveres a dormir, conta-nos um dos teus belos contos para
entretermos a noite.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»
4.a NOITE

Conta-se, ó bem-aventurado rei, que quando o génio se preparava para


matar o mercador, o primeiro ancião, dono da gazela, aproximou-se do
génio e, beijando-lhe as mãos e os pés, disse: «Ó ifrite e rei dos reis dos
génios, se eu contar o que me aconteceu a mim e a esta gazela, e vires o
quão estranho e espantoso foi, mais ainda do que te aconteceu com este
mercador, concedes-me o perdão de um terço do seu crime e culpa?»
«Concedo», respondeu o génio. E o ancião disse:

História do primeiro ancião

Ó génio, fica sabendo que esta gazela é minha prima direita, carne da
minha carne, sangue do meu sangue. Casei-me com ela era eu ainda muito
jovem e ela uma miúda de doze anitos apenas, que só se tornou mulher
algum tempo depois do casamento. Vivemos juntos durante trinta anos, mas
nunca fui abençoado com filhos dela, pois do seu ventre não saiu menino
algum nem menina. Apesar disso, durante esses trinta anos, nunca deixei de
a tratar bem, com respeito, carinho e generosidade. Mas a dada altura tomei
uma concubina, e fui abençoado com um filho dela, um menino tão lindo
quanto a face da Lua. E por causa da minha concubina e do nosso filho, a
minha mulher foi tomada por ciúmes.
Um dia, quando o meu filho já tinha dez anos, tive de partir em viagem.
Encarreguei a minha mulher, que está aqui à minha banda e é minha prima
direita, de velar pelo bem e pela segurança da minha escrava e do meu
filho, e parti em viagem durante um ano. Mas a minha mulher, e prima
direita, aproveitou a minha ausência para aprender artes mágicas e de
adivinhação. Lançou um bruxedo ao meu filho e ele em bezerro se
transformou. Chamou o meu pastor e deu-lhe o meu filho, dizendo: «Ajunta
este aqui à manada.» O pastor guardou-o e cuidou dele, pelo menos durante
algum tempo. Quanto à mãe do meu filho, teve também o mesmo destino,
pois ela fê-la ser uma vaca e também ao pastor a entregou.
Quando voltei de viagem, depois destes acontecimentos, perguntei-lhe
pela minha segunda mulher e pelo meu filho, e ela disse: «A tua mulher
morreu, e o teu filho faz para aí dois meses que fugiu, sem eu nunca mais
saber dele nova má nem boa.» Quando ouvi isto, o meu coração ficou
desfeito por mor do meu filho e triste pela minha segunda mulher; e fiquei
de luto durante um ano.
Quando chegou a época da Grande Festa7, chamei o pastor e disse-lhe
para me trazer uma vaca gorda para ser sacrificada, e ele trouxe uma que
era em realidade a minha segunda mulher que estava encantada. Quando a
amarrei e a segurei para lhe cortar a garganta, começou a chorar e a berrar
em tal guisa que até parecia dizer: «Meu filho, meu filho», enquanto lhe
escorriam rios de lágrimas pela cara abaixo. Espantei-me com tal coisa, tive
pena do bicho e não o consegui degolar. Então disse ao pastor que me
trouxesse outra vaca, mas a minha prima começou a gritar dizendo: «Vá,
degola esta mesmo, porque o teu pastor não tem melhor nem mais
borrachuda. Vamos deliciar-nos com a sua carne durante esta festa.»
Aproximei-me outra vez dela para a degolar, mas eis que ela de novo
começa a berrar em tal guisa, que até parecia dizer: «Meu filho, meu filho.»
Afastei-me e disse ao pastor: «Degola-a tu em meu lugar.» O pastor assim
fez, mas quando a esfolou não encontrou carne nem gordura, só pele e
ossos. Arrependi-me de a degolar e disse ao pastor: «Fica com ela toda para
ti ou dá-a em esmola a quem tu quiseres; e procura-me um bezerro.» O
pastor levou-a e abalou, e não faço ideia do que lhe fez.
Em seguida, trouxe o meu filho, fruto do meu sangue, em forma de um
anafado bezerro. Mal o meu filho me viu, desembaraçou-se da arreata e
desatou a correr na minha direcção, lançando-se aos meus pés e roçando a
sua cara nas minhas pernas. Espantado com tal coisa, senti pena e
compaixão; e porque a empatia que liga os parentes de sangue é de tal
modo divina, o meu estômago até deu voltas quando lhe vi as lágrimas a
escorrerem pela cara abaixo, enquanto esgravatava no chão com as mãos.
Como o não queria degolar, disse ao pastor: «Leva este bezerro de volta e sê
bondoso com ele, porque lhe poupei a vida. Traz-me outro que não este.»
Mas a minha prima, esta gazela que está aqui, desatou aos gritos: «É este o
bezerro que vamos degolar e nenhum outro.» Fiquei irritado e disse: «Eu
determinei poupar a vida a este bezerro e não quero saber da tua opinião
para nada.» Mas ela pressionou-me e aperfiou: «É este o bezerro que vamos
degolar.» Então amarrei-o e peguei na faca…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou a sua voz ao romper da


madrugada, deixando o rei Xariar a arder de curiosidade para ouvir o resto
da história. «Ó mana, que história tão boa», disse a sua irmã Dinarzade. E
Xerazade respondeu: «O que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
será ainda melhor, mais espantoso e mais estranho, se o rei me poupar e
deixar viver e não me matar.»
5.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Mana, se não


estiveres a dormir, por favor conta-nos um dos teus belos contos para
entretermos a noite.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, meu caro rei, que o ancião que se fazia acompanhar pela
gazela disse ao génio e à gente ali presente:

Peguei na faca e enquanto me preparava para degolar o meu filho, este


berrava e chorava, roçando-se nas minhas pernas e gesticulando a sua
língua como se me estivesse a fazer sinais. Comecei a suspeitar deste
comportamento que me falou direito ao coração e me encheu de ternura.
Determinei libertá-lo, e disse à minha mulher: «Cuida bem dele porque
determinei poupá-lo.» E para agradar à minha mulher, esta gazela, degolei
outro bezerro, e prometi-lhe que degolaríamos o outro na próxima ocasião.
Ao outro dia, logo que Deus fez amanhecer a manhã, veio o pastor ter
comigo às escondidas da minha mulher, e exclamou: «Alvíssaras!
Alvíssaras, ó patrão!» «Ora pois, conta-mas lá!» E ele disse-me: «Patrão,
tenho uma filha que é entendida em artes mágicas e em adivinhação,
sabendo fazer encantos e conjuros. Ontem fui para casa acompanhado pelo
bezerro que o patrão poupou, e que eu havia levado para juntar ao resto da
manada, e a minha filha ao vê-lo desatou a rir-se e depois a chorar. Ao
perguntar-lhe porque se ria e porque chorava, ela disse: “Rio-me porque
este bezerro é o filho daquele que é nosso patrão e dono do gado, e foi
encantado pela sua madrasta. E choro porque o seu pai degolou a mãe do
seu filho.” Mal pude esperar para que luzisse a aurora para lhe trazer estas
novas sobre o seu filho.»
Ó génio, quando ouvi isto, dei um grito e desmaiei. Mas quando acordei,
fui logo de seguida com o pastor até sua casa, e mal vi o meu filho atirei-me
a ele, beijando-o e chorando. E ele rodou a sua cabeça para mim, com as
lágrimas a escorrerem-lhe pela cara e mostrando-me a sua língua como se
me tivesse a dizer: «Olha no que me tornei!» Em seguida, virei-me para a
filha do pastor e perguntei-lhe: «Podes desencantá-lo? Se o fizeres, dou-te
todo o meu gado e todas as minhas posses.» Ela sorriu e disse: «Meu bom
senhor, não tenho anseio algum pelas suas posses nem fortuna ou gado.
Desencantá-lo-ei, mas com duas condições: em primeiro lugar, que me
deixe casar com ele; e em segundo, que me deixe encantar quem o
encantou, para que todos fiquem a salvo da sua malvadeza.» «Combinado»,
disse-lhe eu: «e além disso, tu e o meu filho recebereis as minhas posses. Já
no que toca à minha prima, que fez isto ao meu filho e me obrigou a degolar
a sua mãe e minha mulher, tens direito a levar-lhe a vida.» Mas ela disse:
«Isso não quero; à sua prima far-lhe-ei antes provar o sofrimento que os
outros sofreram.» Em seguida, a filha do pastor encheu uma taça com água
e conjurou um encanto, e disse para o meu filho: «Ó bezerro, se foste criado
pelo Soberano Absoluto e Omnipotente, não mudes de forma, mas se à
traição te encantaram, ordeno que saias dessa forma e tornes à tua forma
humana, com a permissão de Deus, o Criador da Terra.» Em seguida,
borrifou-o com água, e ele sacudiu-se tornando-se humano como era antes,
após ter sido bezerro.
Mal se deu isto, corri na direcção do meu filho, mas desmaiei em cima
dele. Quando voltei a mim, ele contou-me o que a minha prima, esta gazela,
havia feito a si e a sua mãe. E eu lhe disse: «Filho, Deus enviou-nos alguém
que lhe fará pagar pelo que ela nos fez sofrer.» Ao depois, ó génio, casei-o
com a filha do pastor. Esta, por sua vez, encantou a minha prima numa
gazela, e ao fazê-lo disse-me: «Dei-lhe uma forma bonita, porque ela nos
fará companhia todos os dias, e é melhor esta forma bonita para não termos
maus augúrios quando a virmos.» E assim foi, ela quedou-se connosco dia
após noite, durante meses e anos a fio. Um dia, a filha do pastor morreu, e o
meu filho foi para a terra deste homem corajoso, e com quem aconteceu
contigo o que aconteceu. Para tornar a encontrá-lo, fiz-me ao caminho na
companhia desta gazela, que é a minha prima. E foi assim que vim aqui
parar, e esta é a minha história. Não é ela das mais estranhas e espantosas?

O génio, concordando, disse: «Concedo-te o perdão de um terço do


castigo deste mercador.»
Então, ó rei Xariar, o segundo ancião, que se fazia acompanhar pelos dois
galgos negros, aproximou-se do génio, e disse: «Se eu também contar o que
aconteceu a mim e a estes galgos, e vires que a minha história é ainda mais
estranha e espantosa do que esta que ouvimos, concedes-me o perdão de um
terço do castigo deste mercador?» «Concedo», respondeu o génio. Então o
ancião afinou a voz e disse…

Mas a madrugada rompeu e Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-


se. «Ah, que história tão espantosa», disse a sua irmã. E Xerazade
respondeu: «Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei,
na próxima noite, se o rei me poupar e eu viver.» O rei Xariar disse de si
para si: «Meu Deus, poupar-lhe-ei a vida para ouvir a história do homem
com os dois galgos negros. Mas depois disso mato-a de uma vez por todas,
se Deus quiser.»
6.a NOITE

Na noite seguinte, quando Xerazade foi para a cama com o rei Xariar,
Dinarzade disse à sua irmã: «Ó mana, se não estiveres a dormir, contas-nos
como acaba a história que começaste ontem?» E Xerazade respondeu:
«Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó bem-aventurado rei, que o segundo ancião, que se fazia


acompanhar pelos dois galgos, disse ao génio:

História do segundo ancião

Ó génio, quanto à minha história, eis o que tenho para contar. Estes dois
galgos são os meus irmãos. Quando o meu pai morreu, deixou aos seus três
únicos filhos três mil dinares8, com os quais cada um de nós abriu uma loja
e se tornou comerciante. Pouco tempo depois, o meu irmão mais velho, que
é um destes galgos, vendeu todos os artigos da sua loja por mil dinares,
preparou-se para viajar, comprando diversas mercadorias para fazer
negócios, e partiu. Um ano passou, e certo dia estava eu na minha loja,
quando apareceu um pedinte. Querendo que ele se fosse embora, disse-lhe:
«Que Deus te ajude.» Mas este, a chorar, perguntou-me: «Já me não
reconheces?» Olhei melhor para ele e vi que, em verdade, era o meu irmão.
Corri logo a abraçá-lo, trouxe-o para dentro da loja, e perguntei-lhe como
tinha passado. «Nem perguntes, O dinheiro encolheu e a penúria cresceu.»
Então, levei-o aos banhos, dei-lhe uma roupa minha para ele se vestir, e
trouxe-o para minha casa. Em seguida, examinei os meus cadernos de
contas e descobri que havia lucrado mil dinares, perfazendo todo o meu
dinheiro dois mil dinares. Peguei neste dinheiro todo e dividi-o em partes
iguais entre mim e o meu irmão, e disse-lhe: «Faz de conta que nunca
abalaste.» Ele ficou muito contente e, com a sua parte, abriu uma loja.
Passados alguns dias, o meu outro irmão, que é este outro galgo, vendeu
tudo o que tinha, e juntou todo o dinheiro que ganhara para partir em
viagem. Tentámos convencê-lo a não partir, mas ele não nos atendeu. Em
vez disso, comprou imensas mercadorias para fazer negócios e abalou com
um grupo de viajantes. Passou-se um ano inteirinho até que ele voltou
exactamente na mesma condição que o nosso irmão mais velho. «Não te
tinha prevenido que terias feito melhor em ficar?», disse-lhe eu. E ele
respondeu-me a chorar: «Ó mano, foi o destino. E agora aqui estou eu, nu
da cintura para cima, sem um tusto e sem ter onde cair morto.» Então, ó
génio, levei-o aos banhos, dei-lhe uma roupa minha novinha em folha para
que ele se vestisse, e trouxe-o até à minha loja, onde comemos qualquer
coisa. Durante a refeição, disse-lhe: «Está na altura de fazer as contas
anuais da minha loja e do meu património; irei subtrair o capital para
calcular os lucros obtidos, e sejam estes quais forem, irei reparti-los entre
nós os dois.» Quando examinei os meus cadernos de contas, descobri que
havia lucrado dois mil dinares; fiquei radiante de alegria, dei graças a Deus
Todo-Poderoso, e reparti esse dinheiro com o meu irmão, que recebeu mil
dinares. Com esse dinheiro, abriu uma loja, e nós os três ficámos juntos uns
dos outros.
Mas ao cabo de pouco tempo, os meus irmãos tentaram convencer-me a
partir com eles numa viagem de negócios, e não aceitando eu a ideia, disse-
lhes: «O que é que ganhastes nas vossas viagens para eu ir convosco?» E
eles não afincaram, e continuámos o nosso trabalho de comerciante nas
nossas lojas. A cada ano que passava, eles voltavam à carga e traziam à
baila o mesmo assunto, e eu todas as vezes ficava de pé atrás. Mas ao cabo
de seis anos, acabei por consentir na ideia deles, e disse-lhes: «Aqui estou
eu, pronto para viajar convosco. Agora dizei-me lá quanto dinheiro
tendes?» E fiquei a saber que tinham esbanjado todo o dinheiro na boa vida,
mas apesar disso nada lhes disse nem os censurei. Em vez disso, juntei tudo
o que tinha na loja, e depois de tudo vender e de fazer contas, tinha seis mil
dinares, o que me deixou radiante de alegria. Dividi então esta soma em
duas metades, e disse aos meus irmãos: «Aqui estão três mil dinares, que
são para nós os três, todos juntos, viajarmos e fazermos negócios. Quanto
aos outros três mil, vamos a enterrá-los debaixo de terra. Assim, se as
coisas derem para o torto como já vos aconteceu, quando regressarmos
teremos três mil dinares à nossa disposição para abrirmos lojas e
restabelecermos o nosso comércio.» «Excelente ideia», responderam eles.
Assim foi, ó génio, reparti o meu dinheiro, distribuindo mil dinares a cada
um dos meus irmãos e a mim mesmo, e os restantes três mil enterrei-os.
Depois de encerrar a minha loja, abastecemo-nos de mercadorias para fazer
negócio, e alugámos uma embarcação de longo curso. Depois de termos
carregado as nossas mercadorias e as provisões necessárias para a viagem,
fomos por esses mares fora, navegando noite e dia durante um mês…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade respondeu: «O que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, será ainda melhor, mais
surpreendente e espantoso, se Deus quiser que eu viva.»
7.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, por favor conta-me um dos teus belos contos.» E o rei
disse: «Que seja o desfecho da história do génio e do mercador.» E
Xerazade respondeu: «Com o maior prazer:»

Ouvi dizer, ó bem-aventurado rei, que o segundo ancião disse ao génio:

Durante um mês, eu e os meus irmãos, estes galgos que aqui estão,


cruzámos o mar salgado, até chegarmos a uma cidade, onde
desembarcámos e vendemos as nossas mercadorias, e com essa venda
ganhámos dez dinares por cada dinar. Comprámos outras mercadorias e,
aquando nos preparávamos para zarpar, encontrei à beira-mar uma moça
vestida de farrapinhos, que me beijou a mão e disse: «Senhor, seja bondoso
e faça-me um favor, e fique sabendo que o quero recompensar por isso.» E
eu lhe respondi: «Aceito fazer-lhe um favor, mas não quero saber de
recompensa alguma.» Então ela disse-me: «Senhor, case comigo e dê-me
que vestir, eu ofereço-me inteiramente para me levar consigo nessa
navegação até ao seu país enquanto sua mulher. Não se deixe iludir pela
minha aparência e pobreza; se Deus quiser, recompensá-lo-ei pela sua
bondade e por este favor.» Estas palavras tocaram-me o coração, e fizeram-
me sentir que era esta a vontade de Deus Todo-Poderoso, e por isso disse-
lhe que sim, que aceitava. Ofereci-lhe um vestido caro, e depois do contrato
de casamento ser celebrado, levei-a comigo para a embarcação, preparei-lhe
o leito, e consumei o casamento.
Durante a viagem, à medida que os dias e as noites iam passando, cada
vez mais o meu coração a amava, e cada vez mais tempo passava com ela,
descuidando os meus irmãos. Por isso, os meus irmãos, estes galgos que
aqui estão, tomaram-se de ciúmes por mim e de inveja pela minha riqueza e
prosperidade. A cobiça falou-lhes bem alto, e os seus olhos já só almejavam
todas as nossas posses, até que, tentados pelo Diabo, apalavraram-se para
me matar. E uma noite, atenderam que eu e a minha mulher
adormecêssemos, pegaram em nós, e atiraram-nos ao mar.
Ao cairmos no mar, acordámos, e a minha mulher tornou-se uma ifrita-
génio, e pegando em mim levou-me pelos ares fora até uma ilha. Em
amanhecendo a manhã, ela disse-me: «Ó homem, recompensei-te salvando-
te de morreres afogado. Quero que saibas que eu sou uma ifrita-génio crente
em Deus, e quando te vi à beira-mar, o meu coração enamorou-se de ti.
Então apareci-te com a roupa com que me viste, e ao mostrar-te o meu
amor, tu aceitaste-me. Agora chegou o tempo de matar os teus irmãos.»
Espantei-me com o que ela me contou, e agradeci-lhe o que havia feito, mas
disse-lhe: «Aniquilar os meus irmãos não é a minha vontade, porque eu não
sou como eles.» E contei-lhe, de ponta a ponta, tudo o que se havia passado
entre mim e eles. Mas depois de me ter ouvido, deu-lhe tal raiva contra os
meus irmãos, que disse: «Agora mesmo voarei até eles, afundar-lhes-ei o
barco e porei termo às suas vidas.» Mas eu retruquei logo: «Por amor de
Deus, não o faças, porque é bem certo o rifão: Sê bondoso para quem te é
maldoso, e apesar de tudo, afinal de contas eles são os meus únicos
irmãos!» Isto tocou-a e acalmou a sua fúria.
Em seguida, ela pegou em mim e correu pelos ares fora tão alto que
ninguém nos via, e deitou-me na açoteia de minha casa. Levantei-me, desci
para abrir as portas de casa, e desenterrei o dinheiro escondido, o tal que
tinha soterrado. Depois saí para cumprimentar as gentes do mercado e abrir
a minha loja. Quando voltei a casa para jantar, encontrei estes dois galgos
amarrados dentro de casa. Quando me viram, vieram logo ter comigo, a
chorar e esfregando-se em mim. Mal tive tempo para ficar espantando com
tal coisa, quando a minha mulher apareceu, e me disse: «Estes são os teus
irmãos.» «Quem lhes fez isto?», perguntei-lhe eu. E ela respondeu: «Enviei-
os à minha irmã e foi ela quem lhes fez isto, e não há maneira de os
desencantar, a não ser daqui a dez anos.» Dito isto, explicou-me onde
poderia encontrá-la e foi-se embora. Passaram-se dez anos, e aqui estou eu
com os meus dois irmãos para ir ter com ela e lhe pedir que os desencante.
No meu caminho, encontrei este homem corajoso acompanhado deste
ancião que trazia uma gazela. Quando o inquiri, contou-me o que se havia
passado entre ele e tu, e então, ó génio, resolvi não arredar pé enquanto não
soubesse o que iria acontecer aquando o vosso reencontro. E esta é a minha
história, não é ela das mais espantosas?

O génio, concordando, disse: «Meu Deus, é bem estranha e espantosa, e


em virtude disso concedo-te o perdão de um terço do crime deste
mercador.»
Então o terceiro ancião disse: «Ó génio, não te esqueças que também eu
estou aqui. Se eu te contar uma história ainda mais estranha e espantosa do
que estas duas que ouvimos, concedes-me o perdão de um terço do crime
deste mercador?» «Concedo», respondeu o génio. Então o ancião disse:
«Ouve-me, ó génio…»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão


espantosa», disse a sua irmã. E Xerazade respondeu: «E o que falta contar é
ainda mais espantoso.» Ao ouvir isto, o rei Xariar disse de si para si: «Meu
Deus, não a matarei até ouvir o que aconteceu ao ancião e ao génio. E
depois mato-a, tal como fiz com todas as outras.»
8.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, por favor conta-nos um dos teus belos contos, para
entretermos a noite.» E Xerazade respondeu: «Com o maior prazer:»

Conta-se, ó bem-aventurado rei, que o terceiro ancião contou uma


história ainda mais estranha e espantosa do que as outras duas9. O génio
maravilhou-se imenso, e, comovido de emoção, disse: «Concedo-te o
perdão de um terço do crime do mercador.» Em seguida, libertou o
mercador, entregando-o aos anciões, e partiu dali para fora. O mercador
dirigiu-se aos três anciões para lhes agradecer, e estes congratularam-no por
estar são e salvo. Depois despediram-se dele, e cada um retomou o seu
caminho. O mercador regressou à sua terra para junto da sua família, e
reuniu-se com a sua mulher e filhos, com quem viveu até a morte o haver
visitado.
Mas o que acabei de contar não é tão espantoso nem tão estranho quanto
a história do pescador. «Por favor, mana, qual é a história do pescador?»
perguntou Dinarzade. E Xerazade disse:

História do pescador e do ifrite


Ouvi dizer que havia um pobre pescador muito velho que tinha uma
mulher e três filhas, sem ter que lhes dar a comer. Era seu vezo lançar a
rede quatro vezes ao dia. Um dia, antes da oração da madrugada e ainda
com a claridade da Lua, saiu com a sua rede, atravessando os arrabaldes da
cidade, e foi até à beira-mar. Poisou o cesto, arregaçou as mangas e a
camisa, entrou mar adentro até ficar com água pela cintura, e lançou a rede.
Esperou que ela se fincasse, e depois de juntar as suas calas, começou a alá-
la pouco a pouco, sentindo que cada vez estava mais pesada, até que por
mais força que fizesse não a conseguia alar mais. Então recuou até terra
firme, espetou uma estaca no chão, e amarrou a ponta das calas da rede à
estaca. Depois tirou as suas roupas, mergulhou na água até à rede, e pôs-se
a sacudi-la em grande luta no fundo do mar, até conseguir trazê-la por terra.
Radiante de alegria, tornou a vestir-se, e foi ver o que havia pescado, mas
qual não foi a sua enorme surpresa ao encontrar um burro morto, que ainda
por cima rompera a rede. Com isto ficou muito triste, e disse: «Não há força
nem poder senão em Deus Altíssimo e Grandioso. Que pescaria tão
inesperada!» E pôs-se a declamar:

Ó bravo desbravador da noite escura em anseios,


Não te esforces, porque o trabalho não traz sustento.
Olha o pescador labutando cheio de movimento,
Coberto pela noite dos astros eternamente ordeiros!

A rede moendo as mãos, mas sempre atento,


Com o mar pela cintura e as ondas batendo,
Atendendo que a noite lhe traga uma alegria,
Quando finalmente um peixe cair na armadilha!

Mas a alegria vende-a a quem bem dormiu


À noite, protegido do vento e do frio.
Louvado seja o Senhor que dá e priva:
Um pesca e outro o peixe petisca.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa», disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Se o rei me
poupar e eu viver, vão ver que o final desta história é ainda mais estranho e
espantoso.»
9.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos o final da história do pescador.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó bem-aventurado rei, que o pescador, quando terminou a sua


poesia, sacou o burro fora da rede, e sentou-se no chão a remendá-la.
Quando acabou de remendar a rede, espremeu-a e estendeu-a a secar.
Depois, entrou mar adentro, invocando Deus Todo-Poderoso, e lançou a
rede. Esperou que ela se fincasse e começou a alá-la pouco a pouco; mas
movê-la era impossível, estava ainda mais pesada do que da primeira vez. O
pescador, ao pensar que deveria ser por causa do peixe, não coube em si de
contente; tirou logo as roupas e mergulhou na água para libertar a rede; e
para o conseguir foi uma grande luta no fundo do mar que se prolongou até
a conseguir trazer para terra; mas na rede não havia senão uma enorme
vasilha cheia de areia e lama. Perante tal coisa, pôs-se a chorar muito triste,
e disse: «Que dia tão inesperado! Não há força nem poder senão em Deus
Altíssimo e Grandioso. A Deus pertencemos e a Deus regressaremos.» E
em seguida pôs-se a declamar uma poesia:

Ó fornalhas das tormentas, parem!


Pelo menos, abrandem!
Saí em busca de sustento,
Mas onde está não entendo.
E nem a sorte nem o ofício
Trouxeram algum benefício.
Quantos ignaros sobem até às plêiades,
Mas só o sábio sofre adversidades.

Em seguida, o pescador livrou-se da vasilha, lavou a rede, espremeu-a e


estendeu-a a secar. E volveu ao mar, implorando perdão a Deus Todo-
Poderoso, e lançou a rede pela terceira vez. Esperou que ela se fincasse, e
puxou-a até terra, mas desta vez a rede só lhe trouxe cacos de vasos,
calhaus, garrafas, ossos e demais porcarias. O pescador pôs-se a chorar por
mor da grande injustiça que lhe era infligida, porque nada de bom lhe vinha
à rede; e pôs-se a declamar uma poesia:

Faças o que fizeres, sustento não encontras,


Nem pelos estudos ou belas linhas que escrevas.
Da sorte ou do ganha-pão, chegam-te migalhas;
Há terras férteis e outras desertas.

Pelo destino quem tem valor é humilhado,


Mas o patife que nada merece é elogiado.
Ó Morte! visita-me, pois por isto a vida morreu:
O pato no alto céu e o falcão no chão se colheu.

Não é surpresa alguma que o bom seja pobre,


E que o ignóbil com autoridade tudo manobre.
Tudo nos é privado para nos relembrar
Que para comer, por restos temos de penar.

Uns cansam-se sem se deterem,


Outros tudo têm sem se mexerem.

Já a aurora luzia e as luzes da manhã aclaravam o dia, quando o pescador


ergueu as mãos ao céu, e disse: «Ó Senhor, bem sabes que eu lanço a rede
só quatro vezes; já a lancei três vezes, e agora só me sobra uma última
tentativa. Imploro-Te, Senhor, que ponhas o mar favorável, tal como o
fizeste a Moisés.» Depois de remendar a rede, tornou a lançá-la ao mar, e
esperou que ela fincasse. Sentindo que ela estava pesada, começou a alá-la,
mas movê-la era impossível; então tentou abaná-la, e viu que a rede se
havia emaranhado no fundo do mar. «Não há força nem poder senão em
Deus Altíssimo e Grandioso», disse o pescador; e em seguida tirou as
roupas e mergulhou até à rede, lutando no fundo do mar para a libertar.
Quando finalmente conseguiu trazê-la para terra, sentiu que havia nela um
objecto muito pesado, e depois de muita trabalheira, lá conseguiu abrir a
rede, e encontrou uma jarra de bronze larga e de pescoço delgado, selada
por uma tampa de chumbo onde estava gravada a marca de um sinete.
O pescador alegrou-se com o achado, e disse: «Posso vender isto aos
mercadores de bronze, deve valer pelo menos uns bons dois irdabbes10 de
farinha.»
Em seguida, tentou movê-la, mas ela de tão pesada e cheia que estava
não saía do lugar. Pôs-se então a mirar a tampa de chumbo, e disse de si
para si: «Vou abrir a jarra, deitar por terra o que está lá dentro, e depois a
levarei aos mercadores de bronze, fazendo-a rolar pelo chão.» Sacou então
de uma faca que tinha presa à cintura, e pôs-se a raspar a tampa de chumbo,
e depois de muita trabalheira, lá conseguiu enfim arrancá-la. Segurou nela
com a boca, e deitou a jarra no chão, pondo-se a sacudi-la de modo a
entornar o seu conteúdo. Mas para enormíssimo espanto do pescador, de lá
nada saiu.
Até que ao cabo de pouco tempo, um espesso fumo começou a sair da
jarra, e subia cada vez mais alto, espalhando-se pela face da Terra e
crescendo até cobrir o mar, tocar nas nuvens e tapar a luz do dia. Pouco
depois, quando já nada mais saía da jarra, o fumo ajuntou-se todo,
estremeceu, e eis que de repente se formou um ifrite tão grande, que com os
pés no chão alcançava as nuvens com a cabeça, que era sórdida como
latrinas, e tinha dentes grandes como pedregulhos e caninos em forma de
espigão, uma boca que parecia uma caverna sem fim, prolongando-se pela
avenida da sua garganta; as suas narinas lembravam trompetes, as orelhas
tinham a forma de escudos, e os olhos pareciam duas lâmpadas muito
brilhantes. Mas chega de palavras para falar deste monstro peganhento,
basta lembrar que o pescador, quando o viu, tremeu da cabeça aos pés, ficou
de queixo caído e a saliva foi-se-lhe da boca.
«Ó Salomão, ó profeta de Deus, perdoa-me», disse o ifrite. E continuou a
falar: «Por favor, perdoa-me, não mais contrariarei as tuas ordens, nem mais
fincarei pé contra a tua vontade.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão


espantosa, ó mana, e tão estranha», disse a sua irmã. E Xerazade respondeu:
«O que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, será ainda mais
estranho e espantoso, se eu ainda for viva.»
10.a NOITE

Na noite seguinte, quando Xerazade foi para a cama com o rei Xariar,
Dinarzade disse à sua irmã: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por favor
conta-nos como acaba a história do pescador.» E Xerazade respondeu:
«Com todo o prazer:»

Ouvi dizer que o pescador, depois do ifrite haver dito tais coisas, falou-
lhe assim: «Ó gigante, que estás para aí a dizer? Salomão, profeta de Deus,
já morreu faz mais de mil e oitocentos anos, e nós agora estamos no fim dos
tempos. Mas afinal por que razão estavas fechado nesta jarra? Qual é a tua
história?» O ifrite, depois de ouvir as palavras do pescador, exclamou:
«Alvíssaras!» E o pescador assertou: «Ai tão bom, que dia tão feliz!» Mas
vai o ifrite e disse: «Alvíssaras! Anuncio que muito em breve irei matar-te!»
Ao que o pescador disse: «Vergonha não te falta por tais alvíssaras! E
porque hás-de tu matar-me, a mim que te libertei e te salvei dos fundos do
mar? A mim que te trouxe de volta ao mundo?» Então o ifrite retraiu-se e
disse: «Sendo assim, pede um desejo.» O pescador alegrou-se, e perguntou:
«E que tipo de desejo poderei pedir?» E o ifrite respondeu: «Podes pedir de
que modo preferes morrer e que tipo de morte queres que eu te dê.» «Mas
que mal fiz eu?», perguntou o pescador: «Como podes dar-me tal
recompensa, a mim que te libertei?» O ifrite respondeu: «Pescador, ouve a
minha história.» «Sê breve», disse o pescador: «porque não estou para
muito mais.»
O ifrite falou assim: «Fica sabendo que eu sou um dos génios renegados
e rebeldes, e que juntamente com o gigante Sakhr11, desobedeci a Salomão,
profeta de Deus e filho de David. Por causa disso, Salomão enviou Ássife,
filho de Barkhia, para me capturar à força e humilhar a minha enorme
grandeza, levando-me preso até diante dele. Quando o profeta Salomão me
viu, e depois de se acostumar ao meu aspecto, convidou-me a que lhe
prestasse obediência. Mas eu recusei, e por isso ele prendeu-me nesta jarra
de bronze, que fechou com chumbo e selou com o Grandiosíssimo Nome de
Deus. Depois ordenou aos génios que pegassem em mim e me largassem no
meio do mar.
»Aquando os primeiros duzentos anos, disse de mim para mim: “Quem
me libertar durante estes duzentos anos, fá-lo-ei imensamente rico, a ele e à
sua descendência.” Mas passaram-se duzentos anos e ninguém me libertou.
E começaram outros duzentos anos, e eu disse de mim para mim: “Quem
me libertar durante estes duzentos anos, dar-lhe-ei todos os tesoiros do
mundo.” Mas passaram-se quatrocentos anos e ninguém me libertou.
Durante os cem anos seguintes, disse de mim para mim: “Quem me libertar
durante estes cem anos, fá-lo-ei rei, serei seu servo, e todos os dias lhe
satisfarei três desejos.” Mas passaram-se cem anos, mais todos estes anos, e
ninguém me libertou. Então rugi, mugi e bufei de raiva, e disse de mim para
mim: “De agora em diante, quem me libertar lhe darei a pior das mortes, ou
o deixarei escolher de que modo prefere morrer.” E pouco tempo passou até
que hoje tu me libertaste. Agora escolhe como preferes morrer.»
Depois de ouvir os factos narrados pelo ifrite, o pescador disse: «A Deus
pertencemos e a Deus regressaremos. Eu fiz o que estava certo ao libertar-te
depois de todos estes anos, mas pior infortúnio não podia receber. Perdoa-
me e Deus te perdoará, aniquila-me e Deus te aniquilará.» Mas o ifrite
respondeu: «Não tens escapatória. Agora diz-me, de que modo preferes
morrer?» O pescador conheceu que a sua morta era certa, e disse: «Ó meus
ricos filhinhos, saudade maior do que esta não há.» Aproximou-se do ifrite,
e suplicou: «Por favor, lembra-te que fui eu que desta jarra te libertei e
salvei, e salva-me.» Mas o ifrite contestou: «E por que outra razão havia eu
de te matar, senão para te compensar por me teres libertado e salvo?» Ao
que o pescador disse: «Tratei-te com bondade e recompensas-me com
fealdade. Não mentiu quem como provérbio disse estes versos:

«Da boa acção que fizemos recebemos fealdade,


Assim é a paga de gentes desavergonhadas.
Quem ajuda os indignos com a bondade,
Sofre a tortura das hienas esfomeadas.»

O ifrite disse: «Não estiques mais a corda, já te disse que terás de


morrer.» Ora, o pescador pôs-se a pensar com os seus botões: «Ele é um
génio, mas eu sou um ser humano. Deus, em preferindo os humanos, nos
outorgou a razão. Ele tenta manipular-me com as suas diabolices, mas a
minha razão não se vergará.» Em seguida, perguntou ao ifrite: «Tenho
mesmo de morrer, não é?» O ifrite respondeu que sim. Então o pescador
assertou com o ifrite: «Pela virtude do Grandiosíssimo Nome que estava
gravado no selo de Salomão, filho de David, aceitas responder de modo
sincero a uma pergunta?» E o ifrite respondeu: «Faz a tua pergunta, mas sê
breve.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão espantosa, ó mana», disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade
respondeu: «Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei,
na próxima noite; será ainda mais espantoso, se o rei me poupar e eu viver.»
11.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos o final da história do pescador.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei, que o pescador disse: «Pela virtude do Grandiosíssimo


Nome, é mesmo verdade que estavas dentro desta jarra?» O ifrite
respondeu: «Sim, pela virtude do Grandiosíssimo Nome, juro que estava
aprisionado dentro desta jarra.» Então o pescador disse-lhe: «Mentes,
porque nem as tuas mãos nem os teus pés cabem lá dentro, quanto mais tu
todo inteiro!» O ifrite contestou: «Garanto-te que estava lá dentro, não me
digas que não acreditas em mim?» O pescador respondeu: «De modo
algum.» Então o ifrite estremeceu e de repente tornou-se em fumo,
elevando-se pelos ares e espalhando-se pelo mar e por terra, até se ajuntar e,
pouco a pouco, entrar todo dentro da jarra.
Mal o fumo entrou todo dentro da jarra, o ifrite gritou: «Ó pescador, aqui
estou eu dentro da jarra; agora já acreditas em mim?» Mas o pescador,
muito prontamente, fechou logo a jarra com a tampa de chumbo selada, e
bradou: «Ó ifrite, agora escolhe tu como preferes morrer! Na realidade, eu
vou é lançar-te ao mar, e neste mesmo local vou construir uma casa, e
qualquer pescador que aqui venha pescar, eu o impedirei de o fazer, porque
o acautelarei avisando que neste sítio mora um ifrite, e quem der de caras
com ele morrerá às suas mãos depois de ser obrigado a escolher de que
modo prefere morrer.»
Quando o ifrite ouviu isto, sentiu-se encurralado, e quis sair da jarra para
fora, mas não conseguiu, pois o selo gravado de Salomão filho de David
impedia-o. Tendo percebido que o pescador o havia logrado, o ifrite disse:
«Não faças isso, ó pescador, eu estava só a brincar contigo.» O pescador
disse-lhe: «Mentes, és o mais imundo e desprezível de todos os ifrites.» E
em seguida o pescador começou a rolar a jarra em direcção ao mar,
enquanto o ifrite bradava: «Pára! Pára!» e o pescador por sua vez dizia: «Ai
parar é que não paro.» Então o ifrite, com uma voz mansinha e submissa,
perguntou: «Que tencionas fazer, ó pescador?» «Vou lançar-te ao mar»,
respondeu o pescador: «da primeira vez permaneceste oitocentos anos12;
desta vez farei com que permaneças até ao dia do Juízo Final. Não te disse
eu: “Poupa-me e Deus te poupará, mata-me e Deus te matará?” Mas tu
recusaste poupar-me e preferiste trair-me, pois agora sou eu quem te trai.»
«Se abrires a jarra», disse o ifrite, «recompensar-te-ei e te farei rico.»
Mas o pescador retorquiu: «És um grandessíssimo mentiroso. Tratas-me da
mesma maneira que o rei Yunane tratou o sábio Dubane.» O ifrite perguntou
o que se havia passado entre o rei Yunane e o sábio Dubane, e o pescador
disse: «Ouve-me, ó ifrite:»

História do rei Yunane de Zumane e do sábio Dubane

Havia um rei chamado Yunane, que governava uma cidade persa na


província de Zumane13. Esse rei estava coberto de lepra, e não havia
médico ou sábio que o curasse. Por mais remédio ou fomentação que
tomasse, nada melhorava a sua saúde. Foi então que apareceu um sábio,
chamado Dubane, que havia estudado muitos livros, em muitas línguas,
grego, persa, turco, árabe, latim, siríaco e hebraico; e havia aprendido as
ciências contidas naqueles livros e os seus fundamentos, sabendo aplicar os
seus benefícios. Conhecia todas as plantas, tanto as benéficas como as
venenosas; era versado em filosofia e dominava todas as ciências.
Poucos dias depois de haver chegado à cidade do rei Yunane, o sábio
Dubane ouviu falar da lepra de que o rei padecia, e que nenhum médico ou
sábio havia conseguido curar. Naquela noite, o sábio foi dormir. E quando
Deus fez amanhecer a manhã e o Sol se levantou para iluminar a Terra, o
sábio Dubane foi visitar o rei Yunane.Trajando as suas roupas mais
sumptuosas, apresentou-se ao rei e disse-lhe: «Real senhor, ouvi falar sobre
o que aflige o seu corpo, e que muito médicos trataram vossa alteza, mas
em vão. Ora, eu posso curar vossa alteza sem lhe dar remédio algum a
beber e sem aplicar fomentações.» Quando o rei ouviu isto, disse: «Se
fizeres o que dizes, far-te-ei imensamente rico, a ti e à tua descendência.
Conceder-te-ei inúmeras regalias e tratar-te-ei como amigo e companheiro.»
O rei foi muito gentil com o sábio, ofereceu-lhe trajes de honra, e
perguntou-lhe: «Consegues mesmo curar-me desta lepra sem me dares
beberagens e sem fazeres uso de fomentações?» O sábio respondeu: «Sim,
através de um método externo.» O rei ficou espantado, e sentiu uma grande
consideração e um enorme respeito pelo sábio, e disse: «Ó sábio, faz então
o que disseste.» «Às suas ordens alteza», disse o sábio: «Amanhã de manhã
tudo estará pronto, se Deus quiser.»
O sábio Dubane alugou então uma casa na cidade, onde destilou e extraiu
drogas e remédios. Depois, com grande arte e mestria, fabricou um taco de
pólo, perfurou-o por dentro, desde o malho até à pega, e encheu aquele veio
com fomentações e drogas que ele conhecia. Além deste taco de pólo de
construção exímia, fabricou ainda uma bola, com a mesma arte e mestria.
Depois de haver feito os retoques finais para aperfeiçoar aqueles utensílios,
foi no dia seguinte encontrar-se com o rei Yunane e beijou o chão diante
dele…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão


bela», disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Ainda não
ouviste nada; o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite será ainda
mais espantoso e maravilhoso, se o rei me poupar e eu viver.»
12.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, por favor conta-nos o final da história do ifrite e do
pescador.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei, que o pescador contou ao ifrite:

O rei Yunane recebeu o sábio Dubane, que lhe disse para cavalgar até ao
campo de jogos, onde iria jogar pólo. O rei assim fez, acompanhado por
camaristas, emires, vizires, dignitários do reino, notáveis, e por todos os
cortesãos. Depois de se ter instalado, o sábio Dubane aproximou-se do rei
Yunane, e ao passar-lhe o taco, disse-lhe: «Ó bem-aventurado rei, tome este
taco, segure na sua pega e aperte-o muito bem com a sua mão; vá a galopar
e bata com ele na bola; continue até suar, fazendo com que o suor da sua
mão seja transmitido à pega, o que por sua vez fará com que o remédio seja
libertado para a sua mão, fluindo pelo braço até se espalhar pelo corpo
inteiro. Quando isto acontecer, regresse ao palácio, tome um banho, durma
de seguida, e ficará curado, sem mais nem menos.»
O rei Yunane, depois do sábio Dubane lhe ter passado o taco, montou o
seu cavalo, e pôs-se a galopar atrás da bola para bater nela com o taco, e
cada vez que o fazia os seus criados tornavam a lançá-la na sua direcção.
Jogou com tanto afinco que ficou com o corpo todo suado, e as suas mãos
embeberam o remédio que a pega do taco libertava, e que se propagou por
todo o seu corpo. O sábio Dubane, percebendo que o rei Yunane já tinha
transpirado o suficiente, disse-lhe para voltar para o palácio, e que tomasse
um banho antes de mais nada. O rei assim fez, e depois de um bom e belo
banho, vestiu as suas roupas, saiu dos banhos e volveu ao palácio.
O sábio Dubane, por sua vez, foi para casa dormir. Logo que acordou no
dia seguinte bem cedinho, dirigiu-se de imediato ao palácio, e pediu
autorização para visitar o rei. Quando lha concederam, ele entrou, beijou o
chão diante do rei, e, dirigindo-lhe a palavra, disse estes versos:

Se a Virtude tivesse um padroeiro,


quem seria senão vós, o maior justiceiro?
Pois a vossa face é plena de luz radiante
e apaga as mágoas da treva agonizante,
E nela o brilho do vosso sorriso persiste,
enquanto o mundo se penumbra em eclipse.
A vossa virtude abençoou-nos com a bondade,
tal a chuva que aos campos traz a felicidade.
E não vos haveis poupado em serdes generoso
Até a Virtude vos eleger o tesoiro mais valioso.

Quando o sábio Dubane terminou a sua poesia, o rei alçou-se para o


abraçar, e sentou-o a seu lado, conversando com ele de modo sorridente e
com boa disposição; e para o homenagear, regalou-o com presentes, satisfez
os seus desejos, e ofereceu-lhe trajes de honra. É que nesse dia, o rei ao
acordar de manhã olhou para o seu corpo e não encontrou traço algum da
sua lepra, e o seu corpo estava tão límpido como a prata pura. O rei não
coube em si de contente, transbordou de alegria e encheu-se de boa
disposição. Em seguida, dirigiu-se ao salão de audiências e sentou-se no seu
trono, rodeado pelos mamelucos14 e pelos camaristas, que assistiam em pé,
prestes para receberem ordens, e pelos vizires e notáveis do reino, que
assistiam sentados. E como já dissemos, o sábio Dubane apareceu, e o rei
Yunane alçou-se, foi ter com ele, abraçou-o, e em seguida sentou-o ao seu
lado, convivendo com ele, e partilhando a sua comida e bebida.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história
tão bela», disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade respondeu: «E o resto é
ainda melhor, mais maravilhoso e espantoso; se o rei me poupar e eu viver,
na próxima noite, o que contarei, a ti e ao nosso rei, será ainda muito
melhor.»
13.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos um dos teus belos contos, para entretermos a
noite.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó bem-aventurado rei e senhor louvável pela graça de Deus,


que o rei Yunane tratou o sábio Dubane com muito apreço e afecto, satisfez-
lhe os desejos e ofereceu-lhe trajes de honra. E à noite o rei Yunane
ofereceu ao sábio Dubane mil dinares, antes de ele vol-tar para sua casa. O
rei, que estava maravilhado com a arte e mestria do sábio, disse de si para
si: «Este homem tratou-me por meio de um método externo, sem me dar
beberagem alguma a beber e sem aplicar fomentações. A sua enorme
sabedoria merece sem dúvida ser recompensada e honrada. A partir de
agora, irei tratá-lo como um valido e será o meu amigo favorito.» De facto,
o rei andava muito contente por se ter curado e porque o seu corpo irradiava
saúde e vigor.
Quando amanheceu e o Sol se levantou para iluminar a Terra, o rei
sentou-se no seu trono. Os chefes dos criados, prestes para receber ordens,
assistiam em pé, e os emires, vizires e altos dignitários do reino sentavam-
se à sua direita e à sua esquerda. Então o rei chamou o sábio à sua presença,
e quando este apareceu e beijou o chão diante dele, o rei levantou-se para o
cumprimentar, sentou-o ao seu lado e partilhou com ele a sua comida.
Tratou-o com muito apreço, afecto e carinho, e ofereceu-lhe trajes de honra
e diversos presentes. E durante todo o dia o rei conferenciou com o sábio, e
quando chegou a noite, ordenou que lhe dessem mil dinares. Depois o sábio
foi para sua casa, e passou a noite com a sua mulher, contente da vida e
agradecido a Deus, o Justo Juiz.
Quando se fez manhã, o rei entrou no salão de audiências, onde já se
encontravam os emires e os vizires para o assistir. Ora, havia um vizir que
era calamitosamente avarento, invejoso e cheio de más intenções, e quando
viu que o sábio havia caído nas boas graças do rei, e viu todo aquele
dinheiro e vestes de honra que o rei lhe oferecia, sentiu inveja e teve medo
que o rei o quisesse afastar, e o substituísse pelo sábio. Então resolveu fazê-
lo perder o valor aos olhos do rei, pois lá diz o ditado: Da inveja ninguém
está livre.
O vizir invejoso apresentou-se ao rei, beijou o chão diante dele, e disse:
«Ó rei virtuoso e senhor glorioso, nunca me teria tornado no que sou hoje
sem a sua bondade e bênção. Se lhe ocultasse um precioso conselho, não
seria senão um bastardo. Se o grandioso rei e generoso senhor o ordenar,
revelar-lhe-ei esse conselho.»
O rei ficou incomodado com aquelas palavras, e disse: «Maldito sejas!
Qual é esse conselho?» E o vizir respondeu: «Real senhor, A quem age sem
tino, não lhe sorri o destino; e eu penso que vossa alteza cometeu um erro
ao agraciar o seu inimigo, que veio com tenção de destruir o seu reinado e
usurpar a sua riqueza, abusando da sua graça. Vossa alteza agraciou-o e
tratou-o com todo o apreço e carinho, e isso desperta em mim os piores
receios.»
O rei perguntou-lhe: «De quem falas? A quem te referes e apontas o
dedo?» O vizir respondeu: «Se vossa alteza está a dormir, acorde, pois eu
aponto o dedo ao sábio Dubane, que veio das terras de Bizâncio.» E o rei
retorquiu: «Maldito sejas! É lá ele meu inimigo! Não há ninguém que me
seja mais leal e por quem eu tenha maior estima. O sábio Dubane é a
melhor pessoa do mundo, foi ele quem tratou da minha doença, bastando eu
apertar um objecto com a minha mão. Deste simples modo curou-me,
quando mais nenhum outro sábio ou médico fora capaz de fazê-lo. Nos
tempos que correm, não há mais ninguém como ele, nem no Ocidente nem
no Oriente, nem em terras distantes ou cercantes; e tu atreves-te a falar
assim sobre ele? De hoje em diante, dar-lhe-ei todos os meses mil dinares,
além do seu salário e pensões em víveres. Pois, mesmo se eu dividisse a
minha riqueza e o meu reino com ele, ainda assim seria menos do que ele
merece. E eu acho que é a inveja que sentes por ele que fala pela tua boca,
tal como na história contada pelo vizir do rei Sindbad quando este quis
matar o seu próprio filho.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade respondeu: «E ficarão
ainda mais espantados e maravilhados com o que vos contarei na próxima
noite.»
14.a NOITE

Na noite seguinte, quando Xariar foi deitar-se, levando Xerazade consigo


para o quarto, a sua irmã Dinarzade disse: «Ó mana, se não estiveres a
dormir, por favor conta-nos um dos teus belos contos, para entretermos a
noite.» E Xerazade respondeu: «Assim seja:»

Ouvi dizer, ó bem-aventurado rei, que o vizir do rei Yunane perguntou:


«Perdoe, ó rei dos tempos, mas o que disse o vizir do rei Sindbad quando
este quis matar o seu próprio filho?» O rei Yunane respondeu ao vizir:
«Quando o rei Sindbad, assovelado por um homem invejoso, quis matar o
seu próprio filho, o seu vizir disse-lhe:»

História do marido e do papagaio

Não faça algo de que venha a arrepender-se, tal como ouvi dizer que
aconteceu a um homem que era muito invejoso, e que tinha uma mulher
dotada de irradiante beleza e perfeita lindeza. Essa mulher não permitia que
o marido fosse viajar para longe dela, mas um dia ele teve imperiosamente
de empreender uma viagem. Então foi até ao mercado dos pássaros,
comprou um papagaio e trouxe-o para casa, para o servir como espião e lhe
relatar o que acontecia em casa durante a sua ausência. O papagaio era
muito inteligente e esperto, e um observador atento.
O marido partiu em viagem, e depois de haver despachado os seus
afazeres, regressou. Foi logo buscar o papagaio para o inquirir sobre os
feitos da mulher durante a sua ausência. O papagaio informou-o, dia por
dia, do que havia feito a mulher com o amigo dela. Quando ouviu o relato
do papagaio, ficou furibundo, foi ter com a mulher e moeu-a com pancada.
A mulher suspeitou que uma das suas criadas tivesse contado ao marido o
que se passara entre si e o seu amigo durante a ausência do marido, e
interrogou-as uma a uma, mas todas as criadas juraram que haviam ouvido
o papagaio contar tudo ao marido.
Depois de a mulher ter descoberto que havia sido o papagaio quem havia
contado tudo ao marido, ordenou a uma das criadas que fosse buscar a mó e
se pusesse a moer debaixo da gaiola, e mandou outra criada borrifar água
por cima da gaiola, enquanto uma outra criada se punha à roda de uma
banda para a outra com um espelho de aço durante toda a noite.
O marido não dormiu em casa naquela noite e só regressou ao fazer-se
manhã, tendo ido logo buscar o papagaio para lhe perguntar o sucedido
durante a sua ausência naquela noite, e o papagaio respondeu-lhe: «Meu
bom senhor, as minhas sinceras desculpas, mas ontem não consegui ouvir
nem ver nada, por mor da escuridão cerrada, da chuva, da trovoada e dos
relâmpagos, que se abateram durante a noite toda até de manhã.» Como era
o mês de Julho em pleno Verão, ele disse ao papagaio: «Maldito sejas! Esta
não é a época das chuvas!» E o papagaio replicou: «Sim, meu Deus, mas o
que disse foi o que eu vi.» Ora, o marido, convencido de que o papagaio
havia mentido sobre a sua mulher e lançado sobre ela falsas suspeitas,
tomou-se de fúrias, abriu a gaiola, agarrou no papagaio, atirou-o ao chão
com tanta força que ele morreu.
Tempo depois, o marido ficou a saber pelos vizinhos que era verdade o
que o papagaio havia dito sobre a mulher, e arrependeu-se de o haver
matado, por causa de uma artimanha montada pela mulher.

«E eu, ó vizir, receio que o mesmo me possa acontecer.»


Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão bela
e tão espantosa», disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite;
se eu viver e o rei o permitir, o que vos contarei será ainda mais espantoso.»
E o rei disse de si para si: «Valha-me Deus, esta história é mesmo
espantosa.»
15.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, por favor conta-nos um dos teus belos contos que tanto
entretêm, e que libertam qualquer pessoa das suas aflições e limpam a
tristeza dos corações.» Xerazade respondeu: «Com todo o prazer.» Por sua
vez, o rei Xariar pediu: «Que seja o resto da história do rei Yunane, do vizir,
do sábio Dubane, da jarra, do ifrite e do pescador.» E Xerazade respondeu:
«Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei Yunane disse ao vizir


invejoso: «Depois de haver matado o papagaio, o dono de casa ficou a saber
pelos vizinhos que afinal era verdade o que o papagaio havia dito, e
arrependeu-se de o haver matado. E tu, ó vizir, arrebentado de inveja por
este sábio homem, queres que o mande matar, para depois me arrepender,
tal como aconteceu ao dono do papagaio, depois de o haver matado.»
Quando o vizir ouviu o que disse o rei Yunane, replicou: «Ó rei poderoso,
que mal me fez este sábio? Nenhum. E em nada me prejudicou. Se eu lhe
revelo estas coisas, é porque zelo e me inquieto por vossa alteza. E se o que
digo é falso, então peço-lhe que me faça perecer, tal como pereceu certo
vizir que trapaceou o filho de um rei.» O rei Yunane perguntou então ao seu
vizir: «E como aconteceu isso?» O vizir respondeu:
História do filho do rei e da ghula

Conta-se, ó rei bem-aventurado, que havia um rei que tinha um filho que
era grande amigo da caça e da montaria. O rei havia ordenado a um vizir
que acompanhasse o príncipe onde quer que ele fosse. Um dia o príncipe
saiu, e indo os dois juntos pela campina, e tendo o príncipe avistado um
animal selvagem, vai o vizir e disse-lhe: «Lá vai um! Segue-o e apanha-o!»
O príncipe desatou a galopar no seu encalço, até que lhe perdeu o rasto, e
quando deu por si estava perdido no meio da campina sem saber para onde
ir nem que caminho seguir.
Deu-lhe então à vista uma moça, que estava a chorar à beira do caminho,
e perguntou-lhe: «De onde és?» Ela disse: «Sou filha de um rei da Índia, e
enquanto cavalgava pela campina apoderou-se de mim o sono, e sem dar
por ela caí do cavalo abaixo, e agora estou perdida, sozinha e desorientada.»
Quando o jovem príncipe ouviu isto, sentiu pena dela, e a fez montar na
garupa do seu cavalo, atrás de si. Continuou a cavalgar, e passando por
umas ruínas, vai a moça e disse-lhe: «Ó meu senhor, preciso de fazer uma
necessidade aqui mesmo.» O príncipe pô-la no chão, e ela entrou naquelas
ruínas. Ele seguiu-a, sem saber a verdade sobre ela, e quando se aproximou
viu que ela era uma ghula15, e ouviu-a dizer aos seus filhos: «Trouxe-vos
um belo e rechonchudo rapazinho.» E os filhos disseram: «Venha lá ele,
mamã, para nos alambazarmos com as suas tripas.»
Quando o jovem príncipe ouviu isto, foi tal o susto que tremeu da
cabeças aos pés, e, com medo pela sua própria vida, alvorou. A ghula veio
atrás dele, e perguntou-lhe: «Estás com medo de quê?» Ele explicou-lhe em
que situação se encontrava e o que lhe havia acontecido, e rematou dizendo:
«Foi-me feita uma grande injustiça.» E a ghula lhe respondeu: «Se te foi
feita uma grande injustiça, pede a Deus
Todo-Poderoso que te auxilie, e Ele te protegerá do mal.» Então o jovem
príncipe ergueu as mãos ao céu…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão espantosa», disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite;
será ainda mais espantoso e mais estranho.»
16.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse: «Ó mana, se não estiveres a dormir,


por favor conta-nos um dos teus belos contos, para entretermos a noite.» E
Xerazade respondeu: «Com certeza:»

Ouvi dizer, ó rei, que o vizir disse ao rei Yunane:

Tendo o filho do rei dito à ghula: «Foi-me feita uma grande injustiça», a
ghula respondeu-lhe: «Se te foi feita uma grande injustiça, pede a Deus que
te auxilie, e Ele te protegerá do mal.» Então, o jovem príncipe ergueu as
mãos ao céu, e disse: «Senhor, ajuda-me a triunfar sobre o inimigo, ‘Porque
Tu tens poder sobre todas as coisas’16.» Ao ouvir esta prece a ghula sumiu-
se, e o jovem príncipe regressou são e salvo para junto de seu pai, a quem
contou o que o vizir lhe havia feito, dizendo-lhe «avança!» para que o
jovem príncipe se enfiasse direitinho na armadilha da ghula. Então o rei
chamou o vizir e fez com que o matassem.

«E também vossa alteza», disse o vizir do rei Yunane, «ao confiar neste
sábio, estreitando laços de amizade com ele e lhe oferecendo regalias, está a
contribuir para a sua própria desgraça e destruição. Tenho informações
credíveis de que ele é um espião vindo do estrangeiro com o intuito de
assassinar vossa alteza. Não viu que ele o curou sem tocar no corpo de
vossa alteza, bastando apertar algo com a sua mão?»
O rei Yunane, já furioso, respondeu: «Acredito, ó vizir, é bem possível
que seja como dizes, que ele tenha vindo para me destruir, porque se ele me
curou bastando eu apertar um objecto com a minha mão, então também me
poderá matar dando-me algo para cheirar.» E em seguida perguntou ao
vizir: «Ó vizir conselheiro, que deverei fazer?» E o vizir respondeu: «Real
senhor, mande agora mesmo alguém que o traga à presença de vossa alteza,
e quando ele vier, degole-o, assim poderá cumprir o desejo e a vontade de
vossa alteza.»
O rei disse: «Eis um bom e sábio conselho.» E em seguida, convocou à
sua presença o sábio Dubane, que apareceu num pronto, visivelmente
contente por todas as riquezas, regalias e trajes de honra que o rei lhe havia
ofertado. Entrou na corte, e dirigindo a palavra ao rei, disse estes versos:

Se alguém julgar que diante de vós sou mal-agradecido,


A quem se destinaria a prosa e poesia que tenho tecido?
Tantas regalias vossas recebi, sem nada haver pedido,
E sem demoras ou desculpas, fui sempre enriquecido.
Que poderia eu mais fazer senão vosso nome louvar,
E em público e privado vossa realeza trovar?
Por tantas prendas um profundo agradecimento quero cantar,
Porque me aliviam a vida, mesmo se o seu peso as costas faz arcar.

O rei perguntou: «Ó sábio, sabes porque te convoquei?» Quando o sábio


disse que não, o rei disse-lhe: «Convoquei-te para te aniquilar e suprimir o
teu sopro de vida.» Dubane, surpreendido, perguntou: «Meu senhor, que
razão pode vossa alteza ter para me mandar matar? Que mal fiz eu?» O rei
respondeu-lhe: «Foi-me dito que tu és um espião, e que não vieste à minha
corte senão para atentar contra a minha vida; mas antes que me tires a vida,
hoje mesmo te farei morrer, pois Mais vale te ter como almoço, do que ser o
teu jantar.» Depois chamou o carrasco, e disse-lhe: «Corta o pescoço a este
sábio e livra-nos do mal que ele nos pode trazer. Já!»
Depois de ouvir a sua sentença, o sábio compreendeu que alguém cheio
de inveja por mor da proximidade que ele gozava com o rei lhe havia
armado uma cilada, mentindo ao rei para que este o quisesse matar e se
livrar dele. O sábio percebeu que o rei era falto de sabedoria, juízo e tino, e
apesar de já ser tarde demais, arrependeu-se do que havia feito, dizendo de
si para si: «Não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e Grandioso.
Fiz uma boa acção mas sou recompensado de maneira tão feia.»
Ora, apesar do rei já ter ordenado ao carrasco para degolar o sábio, vai
ele e põe-se a suplicar: «Poupe-me e Deus poupá-lo-á, mate-me e Deus
matá-lo-á.» E repetiu esta frase, ó ifrite, tal como eu a repeti ante ti, mas tu
recusaste poupar-me. E também o rei recusou poupar o sábio e lhe
respondeu: «Terás de morrer, ó sábio, porque se me curaste com a simples
pega de um taco, então podes matar-me com qualquer outra coisa.» O sábio
retorquiu: «Com que então é assim, com tanta fealdade, que vossa alteza
recompensa a bondade!» E o rei disse: «Não te alongues, tenho de te matar
hoje mesmo e sem mais delongas.» Então, quando o sábio Dubane
compreendeu que a sua morte era certa, banhou-se em lágrimas, cheio de
tristeza e de arrependimento por haver feito o bem a quem não era da sua
terra; e lamentando-se por lançar sementes num deserto de sal, declamou:

Maimuna era falta da pinha,


Mas de pai sábio provinha.
Pretendia que todo o saber dominava,
Mas até em terra seca escorregava.

O carrasco acercou-se do sábio, vendou-lhe os olhos, atou-lhe as mãos e


desembainhou a espada, enquanto o sábio chorava, se lamentava e
suplicava: «Poupe-me e Deus poupá-lo-á, mate-me e Deus matá-lo-á.»
Então, choramingando, declamou:

Dedica-te ao mal e à traição, e terás sucesso.


Dedica-te ao bom conselho, e habitarás a tormenta.
Se eu viver, o bem não torno a fazer. Se morrer opresso,
Maldito seja o conselheiro que depois de mim se aguenta.

E o sábio rematou dizendo: «É esta a recompensa de vossa alteza? Faz-


me lembrar a recompensa que o crocodilo recebeu.» Ao que o rei
perguntou: «E qual é a história do crocodilo?» E o sábio respondeu: «Na
situação em que me encontro, não me sinto capaz de contar essa história.
Por amor de Deus, poupe-me e Deus Todo-Poderoso poupá-lo-á, mate-me e
Deus matá-lo-á.» E dito isto, o sábio desatou a chorar desalmadamente.
Então, alguns cortesões aproximaram-se do rei e disseram: «Real senhor,
conceda-nos o perdão deste homem, que na nossa opinião nada fez para
merecer isto.» Mas o rei respondeu-lhes: «Vós não sabeis a razão pela qual
o quero morto. Eu vo-la digo: se eu lhe poupar a vida, serei certamente
aniquilado. Se alguém conseguiu curar-me do que eu sofria quando nem os
sábios gregos o conseguiram fazer, e sem tocar no meu corpo fazendo-me
simplesmente agarrar a pega de um taco, então como poderei eu evitar que
ele me mate fazendo-me tocar noutro objecto? Para me proteger dele não
tenho outra escolha senão matá-lo.» E o sábio tornou a suplicar: «Por amor
de Deus, ó real senhor, poupe-me e Deus poupá-lo-á, mate-me e Deus matá-
lo-á.» Mas o rei aperfiou: «Tenho de te matar.»
Ó ifrite, quando já não restavam dúvidas ao sábio Dubane de que a sua
morte era certa, ele disse: «Peço a vossa alteza que atrase a minha execução
para eu poder ir a casa, deixar recomendações relativas ao meu funeral,
pagar as minhas dívidas, distribuir esmolas, e doar os meus livros médicos e
científicos a alguém que os mereça. Possuo, por sinal, O Livro do Segredo
das Essências, e quero oferecê-lo a vossa alteza para que faça parte da sua
biblioteca.» «E qual é o segredo desse livro?», perguntou o rei. Ao que o
sábio respondeu: «É um livro que contem inúmeras coisas, mas o segredo
mais importante é que em vossa alteza me degolando, se abrir o livro no
sexto fólio e ler três linhas da página da esquerda, e falar comigo, a minha
cabeça irá falar e responder ao que vossa alteza perguntar.»
O rei ficou muito espantado e disse: «Se eu te cortar a cabeça e abrir o
livro do modo que disseste, e ler três linhas, em falando com a tua cabeça,
ela falará comigo? É a coisa mais espantosa de que já tive conhecimento!»
Então o rei diferiu a execução para o dia seguinte e deu licença ao sábio
para ir a sua casa sob escolta e tratar dos seus assuntos. Ao outro dia,
reuniram-se na corte os emires, os vizires, os camaristas, os dignitários do
reino, os oficiais da guarda, assim como os criados do rei, gentes do palácio
e outras gentes do reino. Quando apareceu o sábio Dubane, trazia consigo
um livro de aspecto muito antigo e um frasco de kohl17 contendo um pó, e
antes de se sentar pediu que lhe trouxessem uma bandeja, onde espalhou
uma camada daquele pó. Depois disse ao rei: «Tome este livro, mas não o
abra antes de eu ser decapitado. Quando me cortar a cabeça, ponha-a nesta
bandeja e ordene que seja bem pressionada contra este pó, de modo a
estancar o sangue. Em seguida, abra o livro e quando vossa alteza interrogar
a minha cabeça, ela responderá.» E mais uma vez, o sábio suplicou: «Não
há força nem poder senão em Deus Altíssimo e Grandioso. Por amor de
Deus, ó rei, poupe-me e Deus poupá-lo-á, mate-me e Deus matá-lo-á.» Mas
o rei respondeu: «Tenho de te matar; sobretudo agora que quero ver a tua
cabeça decapitada a conversar comigo.»
O rei pegou no livro e em seguida ordenou que decapitassem o sábio. O
carrasco desembainhou a espada e decapitou-o com um golpe tão hábil que
a cabeça tombou mesmo no meio da bandeja, e depois de pressionada
contra a camada de pó, o sangue estancou. Então o sábio abriu os olhos e
falou ao rei: «Abra o livro.»
O rei abriu-o, mas as folhas estavam pegadas umas às outras e, por isso,
pôs o seu dedo na boca para molhá-lo com cuspo, e abriu a primeira página.
Porque o estado do livro não lhe permitia folhear senão a muito custo,
continuou a proceder daquele modo até chegar ao sétimo fólio. Mas quando
olhou para ele, não viu coisa alguma escrita. E disse ao sábio: «Não vejo
coisa alguma aqui escrita.» Ao que o sábio retorquiu: «Continue a folhear.»
Assim fez o rei, mas nada encontrou, e enquanto assim procedia, a droga
espalhou-se pelo seu corpo, pois o livro estava envenenado, e o rei começou
a cambalear, contorcendo-se e retorcendo-se.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão espantosa,» disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade
respondeu: «Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei,
na próxima noite, se o rei me poupar e eu ainda for viva.»
17.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, por favor conta-nos um dos teus belos contos, para
entretermos a noite.» E o rei disse: «Que seja o desfecho da história do
sábio, do rei, do pescador e do ifrite.» E Xerazade respondeu: «Com certeza
e com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei, que o sábio Dubane, quando viu o rei Yunane a
cambalear, contorcendo-se e retorcendo-se, por mor da droga que se
espalhara pelo seu corpo, pôs-se a declamar:

Tanto tempo persistiram em nos governar,


Mas tão rápido o seu poder se desvaneceu.
Porque não foram justos, o destino respondeu
Com infortúnios e martírios para os desgovernar.
E de manhã escarnecemos dos antigos amos:
«Olho por olho, o destino não censuramos!»

Mal a cabeça do sábio terminou estas palavras, logo o rei caiu morto
redondamente, e no mesmo momento também a cabeça morreu. Fica
sabendo, ó ifrite…
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história
tão boa,» disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
viver.»
18.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, por favor conta-nos um dos teus belos contos, para
entretermos a noite.» E o rei disse: «Que seja o desfecho da história do ifrite
e do pescador.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei, que o pescador disse ao ifrite: «Se o rei tivesse poupado
o sábio, Deus tê-lo-ia poupado e o rei teria vivido, mas porque o rei se
recusou a poupar o sábio, Deus Todo-Poderoso matou-o. E tu, ó ifrite, se me
tivesses poupado, eu também te teria poupado, mas tu recusaste poupar-me.
Por isso, far-te-ei provar o sabor da morte, aprisionando-te nesta jarra e
lançando-te ao fundo do mar.
O ifrite pôs-se a gritar, dizendo: «Não, ó pescador, não o faças! Poupa-
me, liberta-me e perdoa-me pelo que eu fiz e por te haver ofendido. Se agi
mal, poderás tu agir bem, pois lá diz o ditado: Sê bondoso para quem te é
maldoso. Não faças como Imama fez a Ática.» O pescador perguntou: «E o
que fez Imama a Ática?» E o ifrite respondeu: «Dentro de uma prisão tão
estreita é-me difícil contar-te uma história, mas poderei fazê-lo depois de
me libertares.»
«Irei lançar-te ao mar», disse o pescador: «e de modo algum te irei tirar
daí e libertar. Tanto supliquei e implorei ante ti, mas tu recusaste poupar-me
a vida, a mim que mal nenhum te fiz nem coisa outra que mereça punição, a
mim que te libertei do cativeiro. Quando fizeste comigo o que fizeste, vi
logo que eras um ser impuro e vil de nascença, que com a fealdade
recompensa a bondade. Quando te lançar ao mar, construirei uma cabana
neste lugar, onde irei habitar para garantir que nunca mais voltes. E se
alguém der contigo, ó mais mortífero dos ifrites! contar-lhe-ei o que se me
passou contigo, e o acautelarei para que te devolva ao mar, para que aí te
quedes até ao fim dos tempos e sejas aniquilado.» O ifrite aperfiou:
«Liberta-me desta vez e eu prometo que nunca mais tornarei a fazer-te mal
ou a atormentar-te, mas ser-te-ei benéfico e far-te-ei rico.» Então o pescador
fez o ifrite prometer e jurar solenemente que se o libertasse, ele não lhe
faria mal, mas pelo contrário, o trataria bem e com bondade.
Depois do ifrite haver prestado juramento pelo Grandiosíssimo Nome e
assegurado a sua boa vontade, o pescador abriu a jarra. O fumo elevou-se
nos ares até já não sair mais, e depois ajuntou-se todo até se tornar num
ifrite de carne e osso. Logo que isso aconteceu, o ifrite deu um chuto na
jarra, que voou até aterrar em pleno mar. O pescador, ao ver isto,
convencido de que os seus dias haviam chegado ao fim, mijou-se nas calças
e disse: «Isto não é um bom sinal.» Mas apesar de recear pela sua vida,
encheu-se de coragem e disse: «Ó ifrite, prometeste e juraste, agora não me
atraiçoes e cumpre o que disseste, senão Deus Todo-Poderoso punirá a tua
traição. Torno a dizer-te, ó ifrite, o que Dubane disse ao rei Yunane,
“Poupa-me e Deus te poupará, mata-me e Deus te matará.”» O ifrite deu
uma gargalhada ao ouvir isto, e o pescador aperfiou: «Poupa-me, ó ifrite.»
Ao que o ifrite disse: «Pescador, segue-me.» O pescador seguiu-o, sem
grandes esperanças de que se iria salvar, até chegarem a uma montanha fora
da cidade. Subiram a montanha e desceram pela encosta oposta, alcançando
um vasto escampado onde no meio havia uma lagoa rodeada por quatro
montes.
O ifrite parou defronte da lagoa e disse ao pescador para lançar a sua
rede. O pescador, ao observar a lagoa, ficou espantadíssimo ao notar que
havia peixes de quatro cores diferentes, brancos, vermelhos, azuis e
amarelos. Em seguida lançou a rede, e quando a alou, vieram à rede quatro
peixes, um vermelho, um branco, um azul, e um amarelo. Quando os viu,
ficou maravilhado e cheio de alegria. Por sua vez, o ifrite disse-lhe: «Leva-
os ao rei da tua cidade; quando lhos ofereceres, ele te fará rico. E peço que
aceites as minhas desculpas por não conhecer outro modo para te
enriquecer. Mas não pesques nesta lagoa mais do que uma vez por dia. E
lembra-te de mim e do que te disse.» E dito isto, bateu com o pé no chão,
que se fendeu, engolindo o ifrite.
Ó rei, o pescador foi para cidade, maravilhado com os peixes coloridos e
com tudo o que se lhe havia passado com o ifrite. Quando chegou ao
palácio do rei, ofereceu-lhe os peixes, e o rei olhou para eles…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão espantosa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
19.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, por favor conta-nos como acaba a tua história e conta-
nos o que aconteceu ao pescador.» E Xerazade respondeu: «Com todo o
prazer:»

Ouvi dizer, ó rei, que quando o pescador ofereceu os peixes ao rei, e este
olhou para eles e viu que eram coloridos, ficou extremamente admirado e
maravilhado, e até pegou num deles com a mão para o observar melhor.
Depois disse ao seu vizir: «Entrega-os à cozinheira recém-chegada que o
imperador de Bizâncio nos ofereceu.» O vizir pegou nos peixes e em os
dando à moça, disse-lhe: «Moça, lá diz o rifão: Não verto nenhuma lágrima
senão estiver feito numa lástima. Ofereceram ao nosso rei estes quatro
peixes, e ele ordenou que faças uma bela fritada.»
Quando o vizir informou o rei que tinha cumprido as suas ordens, o rei
disse ao vizir: «Dá quatrocentos dirames18 ao pescador.» Assim fez o vizir,
e o pescador valeu-se das fraldas das suas roupas para levar o dinheiro, e
disparou a correr aos trambolhões, tropeçando nas suas vestes, pensando
que estava a viver um sonho. Depois, o pescador usou esse dinheiro para
comprar para a sua família diversas coisas de que eram faltos.
E isto, ó rei, foi o que aconteceu ao pescador. Já no que toca à moça
cozinheira do rei, esta pegou nos peixes, escamou-os, amanhou-os e cortou-
os em postas. Depois pôs a frigideira ao lume, regou-a com sirage, e
esperou que começasse a ferver, antes de botar os peixes na frigideira.
Quando já estavam bons de um dos lados, virou-os; mas eis que, mal o fez,
a parede da cozinha rasgou-se ao meio, e de lá de dentro saiu uma moça, de
belo corpo, bochechas macias, feições perfeitas e olhos negros. Vestia um
vestido de cetim sem mangas e apetrechada de um cinto egípcio com
lantejoulas. Usava uns pingentes nas orelhas e umas braceletes nos pulsos,
enquanto numa das mãos segurava uma varinha de bambu. Então espetou a
varinha na frigideira, e disse de guisa eloquente: «Ó peixe, ó peixe, tereis
vós sido fiéis à promessa?»
A cozinheira, quando viu isto, perdeu os sentidos. Então a moça tornou a
repetir o que havia dito, os peixes ergueram a cabeça para fora da frigideira,
e disseram de guisa eloquente: «Sim, sim, se vós regressardes, nós
regressaremos. Se vós fordes fiéis, nós também o sere-mos. Se desistirdes,
ficaremos quites.» Nesse momento, a moça virou a frigideira ao contrário e
saiu pelo mesmo lugar por onde havia entrado, e a parede da cozinha
fechou-se.
Entretanto a cozinheira acordou e viu que os quatro peixes estavam
queimados e pretos que nem carvão. Ficou muito apoquentada com aquilo
tudo e com medo do rei, e lembrou-se-lhe o rifão que diz: Partiu a lança
logo na primeira lançada. Enquanto se censurava a si mesma, apareceu-lhe
o vizir, que disse: «Traz lá os peixes, já prepararam a mesa para o rei, e ele
está à espera.» A moça pôs-se a chorar, e informou o vizir sobre o que lhe
havia sucedido com os peixes e sobre o que havia visto com os seus
próprios olhos, o que surpreendeu o vizir que disse: «Que coisa mais
espantosa!» Em seguida, enviou atrás do pescador um oficial, que regressou
ao cabo de pouco tempo com o pescador. O vizir gritou-lhe na cara,
dizendo: «Pescador, traz-nos de imediato quatro peixes como aqueles outros
que nos trouxeste, porque tivemos um incidente com eles.» E como o vizir
o ameaçou, o pescador não teve outro remédio. Foi a casa buscar os
apetrechos de pesca, saiu da cidade, subiu e desceu a montanha, e
atravessando o escampado alcançou a lagoa. Então lançou a sua rede e,
depois de a alar, encontrou nela quatro peixes como os primeiros. Levou-os
ao vizir, que por sua vez os entregou à moça, dizendo-lhe: «Frita-os à minha
frente, para eu ver o que se passa.»
A moça de imediato amanhou os peixes, pôs a frigideira ao lume, e
depois botou-os na frigideira. Quando já estavam bons, a parede da cozinha
rasgou-se e apareceu uma moça com o seu elegante vestido, usando
adornos, colares e outras jóias, e segurando na mão uma varinha de bambu.
Então, espetou a varinha na frigideira, e disse de guisa eloquente: «Ó peixe,
ó peixe, tereis vós sido fiéis à promessa?» Os peixes ergueram a cabeça, e
disseram: «Sim, sim, se vós regressardes, nós regressaremos. Se vós fordes
fiéis, nós também o seremos. Se desistirdes, ficaremos quites.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Esta história é


mesmo boa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se
Deus quiser que eu viva.»
20.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos um dos teus belos contos, para entretermos a
noite.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó bem-aventurado rei, que depois dos peixes falarem, a moça
virou a frigideira ao contrário com a sua varinha, e saiu pelo mesmo lugar
por onde havia entrado, e a parede da cozinha fechou-se como se nada se
tivesse passado. Então o vizir disse: «Não posso esconder mais este assunto
ao nosso rei.» Dito isto, foi ter com o rei, e contou-lhe o que se havia
sucedido com os peixes, mesmo à sua frente.
O rei ficou muito espantado e disse: «Quero ver isso com os meus
próprios olhos.» E ordenando que fossem buscar o pescador, que apareceu
ao cabo de pouco tempo, o rei disse-lhe: «Quero que me tragas o mais
rápido possível quatro peixes como aqueles que trouxeste.» E o rei destacou
três oficiais para o escoltarem. O pescador lá foi sob escolta, e passado
pouco tempo voltou com quatro peixes, um vermelho, um branco, um azul e
outro amarelo. O rei ordenou que dessem quatrocentos dirames ao pescador,
que se valeu das fraldas das suas roupas para levar o dinheiro e se foi
embora.
Então o rei disse ao vizir: «Quero que frites os peixes aqui mesmo na
minha presença.» Ao que o vizir respondeu: «Às suas ordens alteza», e
trouxe um fogão e uma frigideira, e sentou-se a amanhar o peixe. Depois
regou a frigideira com óleo de sésamo, acendeu o fogo, e botou os peixes na
frigideira. E quando os peixes estavam quase prontos, eis que a parede do
palácio se rasgou ao meio. O rei e o vizir tremeram, e quando olharam
viram um escravo negro, imponente como uma alta montanha ou um
sobrevivente do povo de Aad19, alto como uma cana e largo como um
banco de pedra, segurando na mão um talo de ramo verde de palmeira. E
disse, de guisa eloquente, mas com uma voz impertinente: «Ó peixe, ó
peixe, tereis vós sido fiéis à promessa?» Os peixes ergueram a cabeça para
fora da frigideira, e disseram: «Sim, sim, se vós regressardes, nós
regressaremos. Se vós fordes fiéis, nós também o seremos. Se desistirdes,
ficaremos quites.» E nesse momento o escravo virou a frigideira ao
contrário, ali mesmo em pleno palácio, e os peixes estavam pretos que nem
carvão. Depois o escravo saiu pelo mesmo lugar por onde havia entrado, e a
parede da cozinha fechou-se como se nada se tivesse passado.
Depois do escravo haver desaparecido, o rei disse: «Não posso fechar os
olhos a este assunto. Sem dúvida alguma que existe uma história por detrás
destes peixes.» E dito isto, ordenou que trouxessem o pescador, e de
imediato o trouxeram. O rei disse ao pescador: «Maldito sejas se me não
disseres onde pescaste estes peixes.» «Real senhor», respondeu o pescador,
«pesquei-os numa lagoa que fica entre quatro montes, por detrás daquela
montanha.» O rei virou-se para o vizir e perguntou-lhe: «Conheces essa
lagoa?» E o vizir respondeu: «Valha-me Deus, alteza, de modo algum!
Tenho sessenta anos a viajar, a passear e a caçar, para perto e para longe, e
já percorri distâncias de um ou dois dias só, e outras de um ou dois meses; e
nunca vi lagoa alguma por detrás daquela montanha, nem nunca tive
conhecimento da sua existência.»
O rei virou-se para o pescador e perguntou-lhe: «A quantas jornadas fica
essa lagoa?» O pescador respondeu: «Ó rei dos tempos, fica aí a uma hora
de distância.» O rei ficou espantado, deu logo ordens aos soldados para
montarem a cavalo. E muito prontamente o rei e o exército saíram do
palácio, e à sua frente seguia o pescador, que de si para si não parava de
amaldiçoar o ifrite.
Seguiram para fora da cidade, até chegarem à montanha. Quando
desceram pela encosta oposta, deu-lhes na vista um vasto escampado que
jamais haviam visto em todas as suas vidas. Chegaram à lagoa, que se
encontrava de facto rodeada de quatro montes, e puderam ver perfeitamente
bem, porque a sua água era muito clara, que havia peixes de quatro cores
diferentes, vermelhos, brancos, azuis e amarelos. O rei, espantado com tal
coisa, virou-se para o vizir, os emires, os camaristas e os delegados, e
perguntou: «De entre vós há alguém que já tenha visto esta lagoa durante a
sua vida?» E todos responderam que não. E o rei perguntou: «Ninguém
entre vós aqui sabia chegar?» Beijaram todos o chão diante do rei e
disseram: «Vossa alteza, juramos por Deus que jamais durante as nossas
vidas vimos esta lagoa, senão agora mesmo. E nunca sequer ouvimos falar
dela, apesar de se encontrar em pleno território nosso.» Então o rei disse:
«Tem de haver alguma coisa por detrás disto. Juro que não regressarei à
cidade enquanto não descobrir qual é a história por detrás desta lagoa e dos
seus peixes de quatro cores diferentes.» E em seguida deu ordens para ali
permanecerem e para assentarem arraiais.
Quando já se tinha abatido a noite, o rei chamou o vizir, que era um
homem com muita experiência e muito sabido das andanças do mundo. O
vizir compareceu ante o rei, sem ser visto pelos soldados, e o rei disse-lhe:
«Quero revelar-te o que irei fazer. Cheguei à conclusão de que tenho de
partir sozinho e imediatamente, porque essa é a única maneira de averiguar
qual a história por detrás desta lagoa e dos seus peixes. Amanhã de manhã,
ir-te-ás sentar à porta da minha tenda, e dirás aos emires que o rei se não
sente bem, e que te deu ordens expressas para que não autorizes ninguém a
comparecer perante ele. Não poderás dizer palavra que seja a ninguém
sobre a minha viagem ou ausência. E terás de esperar por mim durante três
dias.» O vizir, como não podia desobedecer ao rei, acatou as ordens
dizendo: «Às suas ordens, alteza.»
De seguida, o rei reuniu as coisas de que precisava e muniu-se da sua
espada real. Subiu até ao topo de um dos montes que cercavam a lagoa, e
marchou a noite toda até ser de manhã. Quando o dia clareou e espalhou a
sua luz sobre o topo da montanha, o rei avistou lá ao longe uma mancha
escura. Marchou na sua direcção, contente com o que havia visto, dizendo
de si para si: «Talvez haja ali alguém que me possa dar informações.»
Seguiu naquela direcção e quando lá chegou encontrou um palácio,
construído com pedras negras e todo chapeado de ferro, que se erguia sob
os auspícios de uma estrela da sorte. Tinha duas portas, uma aberta e outra
fechada. O rei ficou radiante e bateu à porta de modo suave. Ficou uns
momentos em silêncio à espera de resposta, mas nada ouviu. Bateu uma
segunda vez, de modo mais forte, ficou uns momentos em silêncio à espera
de resposta, mas nada ouviu nem pessoa viu. Bateu uma terceira vez
insistentemente, ficou uns momentos em silêncio à espera de resposta, mas
nada ouviu nem vivalma viu. Então disse de si para si: «De certeza que não
há ninguém neste palácio ou que está abandonado.» E enchendo-se de
coragem, entrou e gritou no corredor: «Ó da casa! Está aqui um forasteiro
de passagem e está com fome. Têm algo para comer? Deus vos
recompensará e será misericordioso convosco.» E tornou a repetir o que
havia dito uma segunda e uma terceira vez, mas resposta alguma ouviu.
Encheu-se de mais coragem e determinação, avançou do corredor até meio
do palácio, olhou para uma banda e para outra, mas pessoa alguma
encontrou.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão espantosa», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se Deus quiser que eu viva.»
21.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, por favor conta-nos um dos teus belos contos, para
entretermos a noite.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, real senhor, que o rei quando deu por si dentro do palácio
olhou à sua roda mas não viu ninguém. Isto apesar do palácio estar
decorado com cortinados, tapetes de seda, toalhas de mesa em coiro e cones
de palha para proteger a comida20, e de não faltarem sofás e almofadas. No
meio do palácio, havia um amplo pátio, ladeado de quatro salas anichadas e
abobadadas, dispostas cada uma em face da outra, com bancos e armários, e
um repuxo em cujo topo havia quatro leões feitos de oiro vermelho, e a
água que saía das suas bocas relembrava pérolas e pedras preciosas.
Ouviam-se pássaros a voar de um lado para o outro, e em cima do palácio
havia uma rede que os impedia de fugir.
Ora, o rei ficou perplexo e com pena ao ver tudo isto sem encontrar
ninguém que o pudesse esclarecer. Então, sentou-se à beira de uma das
salas anichadas e abobadadas a pensar naquilo tudo, quando ouviu o
gemido de uma alma triste, que chorava e se lamuriava dizendo uma poesia:

Ó fado, a minha vida não a poupes nem o teu furor,


Que na minha alma já só há apuros e tormentas.
Ó amante implacável que à lei do amor acorrentas
Vítimas ricas e pobres; ambas sofrem igual terror.

Por ti cheguei a ter ciúmes da própria brisa,


Mas as sentenças do destino cegam a vista.

Se a corda do arqueiro ao atacar se rompe,


Que fará ele quando o inimigo irrompe?
E quando as tropas o cercarem para o atacar,
Poderá ele às sentenças do destino escapar?

Quando o rei ouviu esta lamuriosa poesia, levantou-se e foi atrás daquela
voz, até encontrar um reposteiro que cobria uma porta que dava para um
grande salão. Quando abriu o reposteiro, encontrou na outra banda do salão
um rapaz sentado numa poltrona elevada a cerca de um côvado. Era um
jovem formoso, bem constituído, de voz eloquente, com uma testa radiante,
uma cara brilhante como a Lua, barba juvenil e bochechas rosadas, onde
havia um sinal que parecia um disco de âmbar-gris, tal como disse o poeta:

Eis um esbelto jovem de cabelo cuja beleza


Todos os mortais cativa, na luz e na treva.
E não censures o sinal na sua bochecha,
Também a anémona21 tem negra mancha.

O rei, contente por encontrar alguém, cumprimentou o rapaz, que vestia


uma capa com mangas compridas feita em seda egípcia e bordada a oiro ao
estilo egípcio, e usava na cabeça um chapéu egípcio de forma cónica, mas a
sua cara transparecia tristeza e mágoa. Depois do rei o haver
cumprimentado, o rapaz correspondeu-lhe de modo muito reverente, e
disse: «Perdoe-me, meu senhor, por me não levantar, com certeza mereceria
melhor recepção.» Ao que o rei respondeu: «Estás perdoado, afinal sou só
um convidado que veio até aqui para conversar, e que gostaria de ser
informado sobre o porquê desta lagoa, destes peixes de quatro cores
diferentes, deste castelo onde vives sozinho sem companhia alguma, e, por
fim, qual a razão por que choras tanto.» Quando o jovem ouviu isto, as
lágrimas vieram-lhe aos olhos, escorregaram pelas bochechas e desaguaram
no seu peito; e declamou uma maualia22:
Dizei a quem a vida com flechas atacou:
«Com quantos avessos o destino te fadou!»
Mesmo que durmas, Deus é eterno vigilante.
Haverá quem goze de um mundo incessante,
E para quem o tempo haja sido tolerante?

Depois desatou a chorar convulsivamente. O rei, espantado com a reação


dele, perguntou-lhe: «Porque choras?» E ele respondeu: «Como posso eu,
meu senhor, não chorar no estado em que me encontro?» Mal acabou de
falar, estendeu a mão até à bainha das suas roupas e puxou-a, mostrando ao
rei que do umbigo aos pés o seu corpo era feito de pedra negra, e só a outra
metade, do umbigo à cabeça, era humana.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. Então o rei Xariar


disse de si para si: «Que história tão espantosa. Adiarei a sua execução nem
que seja durante um mês, mas depois disso matá-la-ei.» Enquanto o rei
reflectia, Dinarzade disse à irmã: «Que história tão boa, ó mana.» E
Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao
nosso rei, na próxima noite, se Deus quiser que eu viva.»
22.a NOITE

E na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei, que o rei quando viu o jovem naquele estado suspirou
muitíssimo entristecido e com pena dele, e disse «Não há força nem poder
senão em Deus Altíssimo e Grandioso. E eis que agora tenho mais outra
coisa com a qual me afligir. Pois vim à procura da história por detrás dos
peixes para os salvar, mas agora procuro não só uma resposta sobre os
peixes, mas também uma sobre ti. Vamos ao que interessa sem mais
delongas e conta-me a história!» O rapaz disse: «Se os seus ouvidos, olhos
e espírito estiverem atentos...» E o rei respondeu: «Os meus ouvidos, olhos
e espírito estão prestes.» Então o jovem disse:

História do rei encantado

A minha história e a destes peixes é bem estranha e espantosa, e seria um


feito tão grandioso escrevê-la no canto do olho com uma agulha quanto a
lição que dela se pode tirar. Meu senhor, fique sabendo que o meu pai era o
rei desta cidade, e o seu nome era Rei Mahmud23 das
Ilhas Negras. Pois aqueles montes eram ilhas. Reinou sessenta anos e
quando morreu eu sucedi-lhe no trono e casei-me com a minha prima. Ela
sentia um grande amor por mim, ao ponto de quando eu me ausentava
durante um dia inteiro, ela não conseguia comer nem beber até tornar a ver-
me. Fez-me companhia durante cinco anos, até ao dia em que foi aos
banhos e eu mandei o cozinheiro fazer para ela um grelhado e que lhe
preparasse um sumptuoso jantar.
Em seguida, entrei dentro do palácio, e deitei-me nesse mesmo sítio onde
o senhor se sentou; chamei duas moças para agitarem os abanadores, uma
para a banda da minha cabeça e outra para os pés. Porém, eu estava com a
cabeça demasiado agitada para conseguir dormir, e enquanto estava só de
olhos fechados e com a respiração pesada, ouvi a que estava à minha cabeça
dizer à dos meus pés: «Ó Massuda24, coitado do nosso patrão assim tão
jovem com uma patroa tão maldita; que desperdício!» Vai a outra e diz:
«Cala-te! Que Deus amaldiçoe as traidoras adúlteras! Não é justo ver o
nosso patrão assim tão jovem com uma puta destas que passa as noites
todas fora.» E a mesma diz ainda mais: «Será que é estúpido? Então quando
ele acorda a meio da noite, não percebe que ela não está à sua banda?» Ao
que a primeira diz: «Ai, que coisa, só espero que Deus pregue uma rasteira
à puta da nossa patroa. Ele nem tem azo para se perceber de coisa alguma,
pois ela põe-lhe um xarope de fazer dormir na sua última bebida antes dele
ir para a cama, e esse xarope põe-no a dormir que nem um morto. Depois
ela sai, e quando volta, já de madrugada, acende um incenso e dá-lho a
cheirar; e ele cheira-o e acorda. Que desperdício!»
Meu senhor, depois de ouvir as duas moças, tomou-se-me uma fúria cuja
violência não podia ser maior, e mal pude esperar que fosse noite. Quando a
minha prima regressou dos banhos, serviram-nos o repasto, e depois de
comermos qualquer coisa, fomos para a minha cama. Fingi que tomara a
minha última bebida, que em verdade havia vertido fora, e fui para a cama.
Logo que me pus bem pregado contra a cama, vai ela e diz: «Dorme, e
espero que jamais te levantes. Valha-me Deus, que nojo tenho de te ver e
como é aborrecida a tua companhia.» Depois levantou-se, vestiu-se,
perfumou-se com incenso, muniu-se da minha espada, abriu a porta e foi-se.
Então, meu senhor, levantei-me…
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó senhora irmã
minha, que história tão boa e tão espantosa», disse Dinarzade à irmã. E
Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao
nosso rei, na próxima noite.»
23.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, por favor conta-nos um dos teus belos contos, para
entretermos a noite.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Conta-se, ó rei, que o rei encantado disse ao rei:

Ao depois segui-a, havendo ela saído do palácio e atravessado a minha


cidade até chegar à porta da cidade, e em pronunciando palavras que eu não
compreendia, os cadeados da porta tombaram e a porta se abriu sozinha. Ela
saiu e eu continuei a segui-la, e vi-a chegar a uma lixeira, onde entrou numa
choça com uma cúpula feita em adobe. Trepei para cima da cúpula, e
quando olhei para dentro, vi a minha prima em frente de um negro de ar
adoentado, sentada em cima de umas canas partidas e vestida com uns
farrapos. O escravo levantou a cabeça e disse: «Só agora é que chegas! Mas
o que é que te deteve? Os meus primos negros estiveram a jogar com
raquetas25 e a beber cerveja de sorgo, na rambóia; todos se alegraram e cada
um estava com uma miúda. Só eu nada bebi porque sentia a tua falta.» E a
minha prima ripostou: «Ó meu senhor e amado do meu coração, não sabes
que sou casada com o meu primo, que detesta a minha companhia e por
mim nutre a maior antipatia? Se não fosse para te proteger, antes mesmo do
nascer do Sol, eu reduziria a sua cidade a destroços, para glória do grito do
mocho e do corvo, tornando-a um refúgio para o uivo dos lobos e o regougo
das raposas. Se quisesse até poderia enviar toda a cidade, pedra sobre pedra,
para mais longe que o monte Qaf.26»
«Maldita sejas», disse ele, «estás a mentir-me. Juro pelo código de honra
dos negros que a partir de hoje, se os meus primos me visitarem e tu não
estiveres connosco, não voltarei mais a ser teu amigo, nem a deitar-me
contigo, e o meu corpo não mais se colará ao teu. Maldita sejas, tratas-me
como se eu fosse um joguete nas tuas mãos, à mercê dos teus apetites. És
mesmo maldita e sórdida.»
Meu senhor, quando ouvi o que diziam, foi como se o mundo fugisse dos
meus pés, se houvesse tornado negro ante os meus olhos, e eu não mais
soubesse onde me encontrava. Entretanto, a minha prima desatou a chorar, e
disse: «Ó amado do meu coração, ó tâmara da minha devoção, se te
zangares comigo, quem me fará companhia? Se me abandonares, quem me
dará abrigo, ó meu querido senhor? És a luz dos meus olhos e o meu amor.»
E continuou a chorar e a implorar até ele se sossegar. Então, ela ficou mais
contente, despiu algumas das suas roupas, e perguntou: «Ó bem-amado
senhor, não tens nada para a tua pequenota comer?» «Procura na bacia»,
respondeu o escravo. Ela abriu a bacia, encontrou uns restos de ossinhos de
rato frito, e comeu-os. «Se quiseres», disse-lhe ele, «tens um resto de
cerveja de sorgo naquele cântaro.» Ela pegou no cântaro e bebeu. Depois
lavou as mãos e deitou-se com o escravo, em cima daquelas canas partidas,
despiu-se e aconchegou-se dentro daqueles farrapos.
Quanto a mim, desci do cimo daquela cúpula, entrei porta adentro e
peguei na espada que a minha prima havia trazido. Desembainhei-a para os
matar aos dois, havendo atingido primeiro o escravo no pescoço, e por isso
convenci-me de que havia dado cabo dele.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não falou mais. «Ó
mana, que história tão boa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «O
que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, será ainda melhor, se eu
viver.»
24.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, por favor conta-nos um dos teus belos contos, para
entretermos a noite.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei, que o jovem encantado disse ao rei:

Meu senhor, depois de ter atingido o escravo fiquei convencido que o


havia matado, mas na realidade o meu golpe não lhe atingira as veias,
apesar de lhe ter acertado na traqueia, e haver cortado pele e carne do
pescoço. Ouvi-o a roncar alto e bom som, e a minha prima havia
desaparecido de ao pé dele. Recuei, voltei a pôr a espada no sítio onde
estava, e regressei à cidade. Entrei no palácio e voltei para a minha cama,
onde dormi até ser manhã. Quando a minha prima chegou, vi que ela tinha
rapado o cabelo e se vestia de luto. E disse-me: «Primo, peço-lhe que não
censure as minhas acções, mas foi-me comunicado que a minha mãe
morreu, que o meu pai sucumbiu na guerra contra os infiéis, e que dois
irmãos meus também morreram, um deles picado por um escorpião e o
outro caiu em combate. Por isso, tenho boas razões para chorar e estar de
luto.» Depois de a ouvir, nada lhe respondi, e a única coisa que disse foi:
«Faça o que achar apropriado. Eu não me oporei.»
Ficou de luto durante um ano inteiro, dando largas à sua tristeza em
grande pranto e amargo choro. Ao fim desse tempo, veio dizer-me: «Quero
que me deixe construir no seu palácio um túmulo em forma de casa para
onde eu possa isolar-me e sofrer a minha mágoa, e ao qual chamarei Casa
das Mágoas.» Respondi-lhe: «Faça o que achar apropriado.» Então ela deu
ordens para que construíssem uma casa para a sua mágoa, que tinha ao
centro uma cúpula e um túmulo, tal como um mausoléu.
Depois, meu senhor, ela levou lá para dentro o escravo ferido e pô-lo no
túmulo. Desde o dia em que eu o atacara que ele havia perdido toda a
capacidade de lhe fazer coisas boas; nem falar podia e só conseguia beber
líquidos; mas a sua hora ainda não havia chegado. Ela passou a visitá-lo no
mausoléu todos os dias, de manhã e à tarde, preparando-lhe beberagens e
caldos, lamuriando-se por mor de uma dor que a não largava. Assim
continuou afincadamente, enquanto eu engolia em seco, nunca lhe tendo
virado as costas. Passou-se um ano, e um dia eu entrei no mausoléu sem ela
se aperceber, e vi-a a chorar e a lamuriar-se, dizendo:

Tanto sofrimento por ver o vosso martírio,


E vós bem sabeis o que eu sinto.
Mas deixar de vos ver seria pior suplício,
E vós bem sabeis o que eu sinto.
Ó alma gémea, deixai-me ouvir a vossa voz.
Ó meu amado senhor, não me deixeis a sós.

E em seguida declamou:

O dia em que estais ao meu lado, eu desejo.


O dia em que me abandonardes, eu pereço.
Tivesse a minha vida em perigo rigoroso,
Morrer por vos amar seria mais saboroso.

E disse ainda outra poesia:

Bem me podiam oferecer o reino dos persas,


O mundo, todas as suas graças e mais alguma,
Mas se meus olhos não te pudessem dar caça,
Tudo valeria tanto quanto uma asa de traça.
Quando acabou com a sua choradeira, disse-lhe: «Prima, já chega de
tanta tristeza e choradeira. É inútil assim continuar.» Ao que ela me
respondeu: «Primo, peço-lhe que não censure as minhas acções, se o fizer
matar-me-ei a mim mesma.» Nada lhe respondi e deixei-a sozinha. E
continuou a chorar e triste com uma dor que a não largava durante outro
ano. Ao todo já haviam passado três anos quando um dia determinei lá
voltar, bastante furioso por algo que me havia acontecido naquele dia e
também porque aquilo tudo me provocava um esgotamento feroz. Então
encontrei-a dentro do mausoléu, junto ao túmulo, enquanto dizia: «Ó bem-
amado senhor, faz agora três anos e ainda não ouvi nenhuma palavra tua,
por mais que fale contigo.» E pôs-se a declamar, dizendo:

Ó túmulo, ó túmulo, terá ele as suas belezas perdido?


Ou terás sido tu a perder os teus olhares radiantes?
Ó túmulo, se tu não és um astro nem um jardim,
Como poderão o Sol e a Lua ser os teus ocupantes?

Quando ouvi a sua poesia, cresceu a minha fúria ainda mais e disse:
«Arre! Quanto mais tenho de aguentar?» E pus-me a declamar, dizendo:

Ó túmulo, ó túmulo, terá ele a sua negritude perdido?


Ou terás sido tu a perder os teus olhares conspurcantes?
Ó túmulo, se tu não és uma latrina nem um cisqueiro,
Como poderão a caca e o carvão ser os teus ocupantes?

Quando ela me ouviu, levantou-se num salto e disse: «Ah, seu cão! Tu é
que me fizeste isto, feriste o amado do meu coração e feriste-me a mim ao
atacar a sua juventude, e agora vai para três anos que ele nem está vivo nem
morto.» Repliquei: «Ó sua grandessíssima e porquíssima puta, sua corrupta
e fodilhona nojenta amante de escravos negros, sim fui eu que fiz isto!»
Então desembainhei e ergui a espada para a matar, mas quando ela me
ouviu e percebeu que eu estava com reais ganas de a matar, deu uma
gargalhada e disse: «És tão medricas quanto um cão! Arre! É lá possível
voltar atrás ou fazer os mortos voltarem a viver! Mas felizmente Deus
entregou-me quem me fez esta desgraça por mor da qual o meu coração se
consome por um fogo que se não apaga e uma chama que se não acalma.»
Dito isto, levantou-se, pronunciou palavras que eu não compreendia, e
arrematou dizendo: «Pela via dos meus encantamentos e pela minha
matreirice, ordeno que te tornes meio pedra e meio homem.» E de imediato,
meu senhor, tornei-me na figura que tem perante si, triste e abatido, sem
poder dormir, levantar-me ou sentar-me vivo, sem estar vivo entre os vivos
nem morto entre os mortos.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não falou mais. «Ó


mana, que história tão boa e tão espantosa», disse Dinarzade. E Xerazade
respondeu: «O que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, será ainda
melhor, se o rei me poupar e eu viver.»
25.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos um dos teus belos contos, para entretermos a
noite.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Conta-se, ó rei, que o jovem encantado disse ao rei:

Depois de me haver tornado no que me tornei, ela encantou a cidade e os


seus jardins, campos e mercados, e fê-la ser o local onde o vosso exército
assentou arraiais. O povo da minha cidade era composto por quatro seitas,
muçulmanos, magos, nazarenos27 e judeus. E ela os encantou em peixes: os
brancos são os muçulmanos, os vermelhos os magos, os azuis os nazarenos
e os amarelos os judeus. E encantou as quatro ilhas em quatro montes à roda
da lagoa. Mas como isso não lhe bastasse, para piorar ainda mais a minha
desgraça todos os dias ela despe as minhas roupas e avia-me cem açoites de
azorrague até o sangue começar a escorrer e as minhas costas ficarem
laceradas. Depois veste-me da cintura para cima com um tecido de
serapilheira grossa e grosseira, que cobre por cima com roupas sumptuosas.
Então o jovem pôs-se a chorar e declamou uma poesia:

Pacientemente suporto o teu julgamento.


Ó Deus, para te agradar, eu tudo aguento.
Eles pisam-nos com tão opressiva tirania,
Mas é a recompensa do Paraíso que nos guia.
Senhor, que jamais o tirano escapar deixas,
A Ti recorro para me afastares das labaredas.

O rei disse ao jovem: «Livraste-me de uma aflição, mas eis que agora
tenho mais outra coisa com a qual me afligir. Onde está a tua prima, e onde
está o escravo ferido?» Ao que o jovem respondeu: «Real senhor, o escravo
está deitado no túmulo do mausoléu, que fica no salão ao lado deste.
Quanto a ela, vem todos os dias visitá-lo aquando do nascer do Sol. E nunca
perde a oportunidade para me despir as roupas e me aviar cem açoites,
enquanto eu choro e grito, sem me poder levantar e sem me poder defender,
porque sou metade pedra, metade carne e sangue. Depois de me punir, visita
o escravo e dá-lhe beberagens e caldos a beber. Amanhã de manhã aqui
estará ela.» Então o rei exclamou: «Valha-me Deus!» e acrescentou: «Ó
moço, irei fazer algo por ti pelo qual serei famoso e que os historiadores
irão registar para a posterioridade.» Depois o rei sentou-se a conversar com
o jovem até se fazer noite e adormecerem.
O rei levantou-se antes do nascer do Sol, tirou as suas roupas,
desembainhou a espada, e dirigiu-se ao salão onde estava o mausoléu.
Quando entrou, observou as velas, os candeeiros, os incensos, os perfumes,
as flores de açafrão, e as fomentações que lá se encontravam. Aproximou-se
do escravo e matou-o. Depois pegou nele, levou-o dali para fora e deitou-o
por um poço abaixo que havia lá no palácio. Quando voltou, vestiu as
roupas do escravo, cobriu a cara, e deitou-se bem encostado ao fundo do
túmulo, com a espada completamente desembainhada e escondida entre as
suas roupas.
Tempo depois, apareceu a maldita feiticeira, e a primeira coisa que ela
fez foi despir o seu primo e aviar-lhe um valente açoitamento, enquanto ele
gritava: «Ai! Ó prima, tem misericórdia de mim! Ajuda-me! Já chega de
tanto castigo e agonia. Tem piedade de mim.»
Ao que ela ripostou: «Pois então tivesses tu tido misericórdia e poupado
o meu amado.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão espantosa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite;
se eu viver.» Então o rei Xariar, cujo coração se compadeceu com o jovem
encantado, cuja história o havia maravilhado e entristecido ao mesmo
tempo, disse de si para si: «Meu Deus, adiarei a sua execução por esta noite
e por quantas noites for necessário, nem que seja durante dois meses, até
ouvir o resto desta história e o que aconteceu ao jovem encantado. E depois
disso, matá-la-ei como tenho feito com todas as outras.» Assim disse ele.
26.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse a Xerazade: «Ó mana, se não estiveres


a dormir, conta-nos um dos teus belos contos, para entretermos a noite.» E
Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei, que depois da feiticeira ter satisfeito a sua sede de
vingança, punindo o seu primo com um valente açoitamento até o sangue
começar a escorrer-lhe pelas costas e pelos flancos, vestiu-o com a tal
serapilheira, que cobriu por cima com outras roupas. Em seguida foi visitar
o escravo, trazendo-lhe, como era seu vezo, uma taça com água e um caldo.
Entrou no salão, dirigiu-se ao mausoléu, e pôs-se a chorar por mor da dor
que a não largava, enquanto berrava: «Amor, não é habitual renegares o
nosso elo. Não sejas mesquinho, pois os inimigos cumprem a sua vingança
através da nossa separação. Visita-me, pois a minha vida depende da tua
visita. Fortalece o nosso elo, pois o abandono não é teu costume. Ó senhor
meu, fala e conversa comigo.» Em seguida declamou este poema segunda
as regras da métrica denominada mufrad:

Até quando este repúdio e aversão tão fria?


Não bastou tanta lágrima por mim vertida?
Fala ó amado!
Conversa ó amado!
Responde-me ó amado!

O rei, com a voz baixinha, balbuciando e falando de modo parecido com


o dos negros, disse: «Ah, ah, ah! Não há força nem poder senão em Deus
Altíssimo e Grandioso.» Quando ela ouviu aquelas palavras gritou de
tamanha alegria que até caiu para a banda. Mal se levantou, disse: «Ó
senhor meu, é mesmo verdade que falaste? É mesmo verdade que
conversaste comigo?» Vai o rei e disse: «Maldita sejas! Não mereces que te
falem nem que te respondam.» «Porquê?», perguntou ela. E o rei
respondeu: «Durante todo o dia castigas o teu marido enquanto ele grita que
lhe acudam, impedindo-me de dormir. Desde o pôr do Sol até ao seu nascer
que ele chora, implora e roga maldições contra mim e contra ti, deixando-
me inquieto e com pesadelos. Se não fosse isso, já há muito que me haveria
curado. É por isso que me recusei a falar contigo e a te responder.» E ela
disse: «Ó bem-amado senhor, se tiver a tua permissão, desencantá-lo-ei.» E
o rei respondeu: «Desencanta-o e deixa-o ir embora para que os seus gritos
não incomodem mais.»
Ela saiu do mausoléu, pegou numa taça cheia de água, pronunciou umas
palavras por cima, e a água começou a fervilhar e a borbulhar, tal como um
caldeirão ao fogo. Depois borrifou o jovem encantado com a água e disse:
«Pelo poder dos meus conjuros, se foste criado com esta forma pelo
Criador, ou se Ele te tornou assim para te castigar, então não mudes de
forma. Mas se assim ficaste pela via dos meus encantamentos e da minha
matreirice, ordeno que saias dessa forma e que tornes à tua forma humana,
com a permissão de Deus, o Criador da Terra.» E dito isto, o rapaz sacudiu-
se e pôs-se andar de corpo bem erguido; e todo contente deu graças a Deus
por haver sido libertado do seu encantamento. Depois disso, ela disse,
gritando-lhe na cara: «Desaparece da minha vista e jamais voltes. Se aqui
voltares, matar-te-ei mal te veja.» E ele foi-se embora.
Quanto à rapariga, volveu ao mausoléu, e disse: «Ó bem-amado senhor,
sai daí para eu ver como és tão bonito.» E o rei, com uma voz fingida,
respondeu: «Livraste-me do braço mas não do corpo.» E ela perguntou: «Ó
bem-amado senhor, qual corpo?» E o rei respondeu: «Maldita sejas ó
mulher desgraçada, o corpo são as gentes desta cidade e das suas quatro
ilhas. Todas as noites, à meia-noite, os peixes deitam a cabeça fora de água
e põem-se a gritar que lhes acudam e rogam maldições contra mim. É por
isso que ainda estou doente. Vai desencantá-los o mais rápido que puderes,
e volta aqui depois para me segurares a mão e ajudares-me a levantar, que
eu começo a sentir-me melhor.» Quando ela ouviu isto, ficou toda contente,
gritando: «Alvíssaras, Alvíssaras!», e depois disse: «Com certeza! E que
Deus ajude, ó amor do meu coração!» E em seguida levantou-se, foi até à
lagoa e recolheu um pouco da sua água…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão espantosa,» disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
27.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Se não


estiveres a dormir, conta-nos um dos teus belos contos, para entretermos a
noite.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Conta-se, ó rei, que mal a rapariga havia pronunciado umas palavras


sobre a lagoa, os peixes começaram a dançar e se lhes quebrou o
encantamento, e as gentes da cidade reataram os seus afazeres de comprar e
vender, dar e receber. Depois ela volveu ao palácio e ao mausoléu, e disse:
«Ó bem-amado senhor, dá-me a tua mão generosa e levanta-te.» E o rei
disse em voz fingida: «Aproxima-te.» Ela abeirou-se dele, e ele disse:
«Aproxima-te mais.» Então ela aproximou-se até lhe ficar coladinha, e vai o
rei espeta-lhe uma faca no peito, desferindo-lhe em seguida um golpe com a
sua espada de tal ordem que a dividiu ao meio e fê-la cair ao chão em duas
partes separadas.
O rei saiu do palácio, e ao encontrar-se com o jovem encantado que tinha
ficado à sua espera, felicitou-o por estar são e salvo. O jovem beijou então a
mão ao rei, agradecendo-lhe e pedindo a Deus que o abençoasse. E o rei
perguntou-lhe: «Vais ficar na tua cidade ou vens comigo para a minha?» «Ó
rei dos tempos e senhor do mundo», disse o jovem, «sabe qual a distância
que separa as nossas cidades?» O rei respondeu: «Meio dia.» «Vossa alteza
está a sonhar. Entre as nossas cidades existe um ano inteiro de viagem;
quando aqui chegou em só meio dia, a cidade estava encantada.» E o rei
perguntou: «Mas vais ficar na tua cidade ou vens comigo?» O jovem
respondeu: «Jamais me separarei um único momento de vossa alteza.» O rei
alegrou-se e disse: «Louvado seja Deus que te trouxe até mim. Serás como
um filho para mim, porque jamais fui abençoado com um.» Depois
abraçaram-se com muita força e alegria.
Em seguida caminharam os dois até ao palácio, e o rei encantado
anunciou aos dignitários do reino e aos cortesões que ia viajar e ordenou
que lhe aprontassem os bens necessários para a viagem. Os emires e os
mercadores da cidade ofereceram-lhe o que ele precisava, e durante dez
dias decorreram os preparativos para a viagem. Depois foi ter com o rei
para partirem, com o seu coração em fogo por se ir embora da sua cidade
durante um ano. E quando partiu, fez-se acompanhar de cinquenta
mamelucos e muitos guias e servos, e levou consigo cem fardos de
presentes, bens preciosos e raros, tesoiros e dinheiro. Viajaram noites e dias
a fio, tardes e manhãs a eito, durante um ano inteiro, e Deus quis que
chegassem bem à cidade. Então o rei enviou alguém para dar parte ao vizir
de que havia regressado são e salvo. E o vizir veio ao seu encontro, com o
exército todo e a maioria da gente da cidade. E como já haviam perdido
todas as esperanças de que o rei ainda estivesse vivo, não couberam em si
de contentes, e a cidade foi decorada e alcatifada com tapetes de seda.
Quando chegaram à cidade, o vizir e todo o exército descavalgaram e
beijaram o chão diante do rei, e o felicitaram por haver regressado são e
salvo, e pediram a Deus que o abençoasse. O rei então sentou-se no seu
trono e reuniu-se com o vizir, a quem relatou tudo o que se havia passado
com o jovem e com a prima dele, e que graças a tudo o que aconteceu foi
possível desencantar a cidade e o jovem, e foi por mor daquilo tudo que ele
se ausentara durante um ano. Então o vizir voltou-se para o jovem e
felicitou-o por estar são e salvo. Depois cada um dos emires, vizires,
camaristas e delegados sentou-se no seu respectivo lugar, e o rei ofereceu-
lhes trajes de honra, e regalou-os com presentes e benesses. Em seguida, o
rei mandou chamar o pescador, que havia sido a causa do desencantamento
do jovem e das gentes da sua cidade. Ele compareceu ante o rei, que lhe
ofereceu um traje de honra e lhe perguntou: «Tens filhos?» O pescador
informou o rei de que tinha um filho e duas filhas, e o rei mandou que os
trouxessem à sua presença, e casou-se com uma das filhas, e casou a outra
filha do pescador com o jovem encantado. Quanto ao filho do pescador,
nomeou-o guarda do vestiário real. Depois, o rei ajuramentou o seu vizir
para governar a cidade das Ilhas Negras, havendo-lhe dado provisões para a
viagem, assim como ordenou que partissem com ele os cinquenta
mamelucos e um grande rancho de gente. E o rei também deu ao vizir para
levar na viagem muitos trajes de honra e presentes requintados para todos
os emires e dignitários do Estado. O vizir despediu-se do rei, beijou-lhe a
mão e fez-se ao caminho. E o rei, o jovem encantado e o pescador viveram
em paz e prosperidade, e o pescador, cujas filhas se casaram com reis,
tornou-se uma das pessoas mais ricas do seu tempo.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão espantosa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
28.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos um dos teus belos contos, para entretermos a
noite.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

História do carregador e das três moças de Bagdade

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que era uma vez na cidade de Bagdade
um homem solteiro que exercia o mister de carregador. Certo dia, lá estava
ele encostado à sua cesta à espera de fregueses, quando apareceu uma
mulher enrolada num manto de musselina, encimado por um véu de seda
seguro por uma bandana bordada a oiro, calçando uns botins de coiro
avermelhado atados com laços esvoaçantes e umas polainas com franjas.
Ao destapar a cara, revelaram-se uns lindos olhos negros acompanhados por
longas pestanas, de suaves e ternurentos contornos que rivalizavam com a
perfeição, e que só os poetas sabem descrever.
Ora, vai a dama e diz, com uma voz meiguinha e doce: «Ó carregador,
traz a tua cesta e segue-me!» O carregador, sem querer acreditar no que
ouvia, pegou na cesta e apressou-se atrás dela, dizendo: «Ó que dia tão feliz
e com tanto sucesso!» E lá foi atrás dela, até que ela parou ante uma porta,
bateu, e um velho nazareno apareceu; em lhe dando um dinar, recebeu em
troca uma bilha cor de azeitona com vinho; pô-lo na cesta e disse: «Ó
carregador, traz a tua cesta e segue-me!» E o carregador levantou a cesta e
foi atrás dela, dizendo: «Ó que maravilha, que dia tão feliz, cheio de boa
vida e alegria.» Em seguida, foram ao fruteiro, e ela comprou maçãs verdes
e maçãs moscatel, marmelos turcos, damascos, laranjas reais, limões-do-
mar, e pepinos pequeninos. E comprou ainda murta, alfavaca, alfena,
jasmins alepinos, nenúfares damascenos, crisântemos, goivos, açucenas,
lírios, narcisos, anémonas, violetas, malmequeres e flores de romãzeira. Pôs
tudo na cesta e lá foi o carregador atrás dela.
Em seguida, parou no açougueiro e disse: «Corte-me aí uns dez arráteis
de carne de carneiro boa e fresquinha!» Pagou ao açougueiro, que por sua
vez cortou as peças que ela havia pedido, as embrulhou, e lhas deu. Ela pô-
las na cesta, juntamente com um pouco de carvão, e disse: «Ó carregador,
traz a tua cesta e segue-me!» O carregador, surpreso com tudo aquilo, pôs a
cesta à cabeça, e seguiu-a até ao merceeiro, a quem ela comprou todo o
género e feitio de aperitivos e condimentos de que fosse falta, tais como
vários géneros de azeitonas, umas em salmoura, outras sem caroço e outras
curtidas à guisa síria, estragão, queijo-creme, queijo sírio, e picles doces e
amargos. Pôs as compras na cesta, e disse: «Ó carregador, traz a tua cesta e
segue-me!» O carregador levantou a cesta e lá foi atrás dela, até ela se deter
num vendedor de frutos secos, a quem comprou todo género de que fosse
falta, tais como passas alepinas, figos prensados de Baalbek, canas de
açúcar iraquianas, grão-de-bico assado, e vários frutos secos já descascados
tais como pistácios, amêndoas e avelãs. Meteu tudo na cesta do carregador
e, voltando-se para ele, disse: «Ó carregador, traz a tua cesta e segue-me!»
O carregador levantou a cesta e seguiu-a até ao pasteleiro, onde ela
comprou um tabuleiro repleto de todos as sortes de doces e mais alguns, tais
como rolinhos cairotas, churros arménios, pastéis almiscarados recheados,
mimos-da-mãe-de-Salih, rolitos turcos, macrudes, geleia de amêndoas e
mel, pão doce redondo, pudim de sêmola, pentes-de-âmbar-gris, dedos-de-
alfenim, pão-de-viúva, bassandudes, filhós-do-juiz, comes-e-agradeces,
cones-dos-elegantes e pastelinhos-do-amor. Ajeitou tudo em cima do
tabuleiro, e ao colocá-lo na cesta, o carregador refilou: «Ó minha senhora,
se me tivesse avisado eu teria trazido uma mula ou um camelo para levar
todas estas compras!» Mas ela simplesmente sorriu.
Em seguida foi ao perfumeiro, onde comprou dez frascos de essência de
salgueiro egípcio, outros tantos de essência de nenúfar, dois pacotes de
açúcar, água de rosas almiscarada, almíscar, alecrim, âmbar-gris, pau
d’áquila, velas e archotes, e depois de enfiar tudo na cesta, voltou-se para o
carregador e disse: «Ó carregador, traz a tua cesta e segue-me!» e o
carregador assim fez e lá foi atrás dela, até chegarem ante uma casa
elegante, defronte da qual havia um amplo pátio, e que era bastante alta,
sustentada por imponentes colunas, e com uma porta dupla feita de marfim
cravejado de oiro cintilante. A moça parou diante da porta e bateu
delicadamente.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e bela», disse a sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver. Que Deus lhe dê longa vida.»
29.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos um dos teus contos, para entretermos a noite.»
E Xerazade respondeu: «Às tuas ordens:»

Ouvi dizer, ó bem-aventurado e sábio rei, que enquanto o carregador


estava com a sua cesta atrás da moça, pensando na sua formosura,
elegância, eloquência e munificência, as bandas ambas da porta abriram-se.
O carregador olhou para quem as tinha aberto, e topou uma moça com uns
cinco pés de alto, de seios bem firmes, irradiante beleza e perfeita lindeza,
corpo gracioso e harmonioso. A sua fronte lembrava o brilho do crescente,
os seus olhos pareciam os do órix ou da gazela, as sobrancelhas invocavam
o crescente no mês de Xabane, as bochechas eram como anémonas
vermelhas, a boca como o selo de Salomão, os lábios vermelhos como a
cornalina, os dentes como pérolas cujo brilho se apurou num coral, o
pescoço como uma doce e requintada iguaria que se oferece a um rei, o seu
peito como um chafariz, os seios como duas grandes romãs, lembrando um
coelho a arrebitar as orelhas, e o umbigo era um receptáculo capaz de
conter meia onça28 de óleo de acácia-branca. Ela era como disse um poeta
bem-falante:

Ela lembra-me a alfazema dos castelos,


Suas formas mudando dia e noite, e cheiros.
E nunca vi contraste que tanto encanto revele
Quanto o seu cabelo e olhos negros na alba pele.
A tanta gente chega o nome desta formosa alteza,
Pois as suas rosadas faces anunciam a sua beleza.
Encanta-me o gingar das suas ancas magnânimas
E a sua delgada cintura faz-me verter lágrimas.

Ao ver aquela moça o carregador perdeu o juízo e o bom senso, e quase


deixou cair a cesta da sua cabeça: «Nunca houve um dia tão abençoado
quanto hoje!», disse ele. A moça que tinha aberto a porta disse à moça que
tinha ido às compras: «Ó mana, de que estás à espera? Entra, não vês que
este pobre coitado vem tão carregado que já não pode mais?» Entraram e a
moça da porta tornou a fechá-la, e os três foram ter a um salão espaçoso,
elegante e bem composto com tectos em madeira esculpida e com arcadas,
desdobrando-se o salão em vários nichos cujas paredes eram decoradas com
tapeçarias, havendo ainda uma varanda fechada por gelosias de madeira,
assim como despensas e armários resguardados por cortinas penduradas. No
meio, havia uma piscina cheia de água com um repuxo ao centro. Na outra
banda do salão, havia um sofá de âmbar-gris com os quatro pés feitos de
madeira de zimbro, decorado com pérolas e pedras preciosas, e rodeado por
um tule de mosquiteiro feito de seda vermelha e apetrechado com um fecho
com botões que eram pérolas do tamanho de avelãs ou maiores ainda.
Abriu-se o tule e de lá dentro saiu uma moça elegante e deslumbrante, tão
radiante quanto a Lua, com o encanto de uma filósofa de olhos babilónicos,
de pose erecta, e sobrancelhas com a forma do arco antes de ser disparado,
espalhando a fragrância do âmbar-gris, e com lábios tão doces quanto o
açúcar, e uma testa irradiante que envergonhava o Sol fulgurante, como se
ela mesma fosse uma estrela do firmamento, ou uma cúpula dourada, ou
uma noiva
à onça. Mais uma vez, não é fácil fazer equivalências exactas entre as
unidades de medida correntes que aparecem n’As Mil e Uma Noites e as do
Sistema Internacional de Unidades, mas sabe-se que a onça árabe tem
variado ao longo dos tempos e lugares entre as cerca de 34 g e as 320 g.
quando levanta o véu, ou um peixe de cores magníficas, ou um naco de
carne suculenta de ovelha de cauda gorda cozinhada numa sopa de leite
cremosa, tal como disse o poeta:
Quando sorria, revelavam-se pérolas,
Grãos de granizo, ou crisântemos.
A sua franja, tal como a noite, pela face tombava;
E ante o seu fulgor até o Sol se envergonhava.

Ora, a terceira moça levantou-se e caminhou vagarosamente até se


aproximar das irmãs, e disse: «Porque estão paradas sem nada fazer? Não
vêem que este pobre coitado vem tão carregado que já não pode mais?» A
moça da porta pôs-se à frente do carregador, e a moça das compras atrás, e
com a ajuda da terceira moça poisaram a cesta no chão e esvaziaram-na.
Duma banda, colocaram as frutas e os picles, e da outra as flores e ervas
aromáticas. Depois de arrumarem tudo, deram ao carregador um dinar e
disseram…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão espantosa», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Se
amanhã eu ainda for viva, o que contarei, a ti e ao nosso rei, será ainda mais
maravilhoso e surpreendente.»
30.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, conta-


nos como acaba a história das três raparigas.» E Xerazade respondeu: «Com
todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei, que o carregador, ao ver quão belas e encantadoras


eram as três raparigas, e quanto haviam adquirido de vinho, carne e carvão,
frutos frescos e secos, doces, flores e ervas aromáticas, velas e restantes
aparatos para a farra, sem que homem algum houvesse por perto, ficou
muito espantado, e hesitou em ir-se embora. Então uma das moças
perguntou-lhe: «Porque estás aí especado e não te vais embora? Não te
chega o que te pagámos?» E virando-se para a sua irmã disse: «Dá-lhe mais
um dinar.» Mas o carregador retorquiu: «Por amor de Deus, ó minha
senhora, recebi mais do que me cabe; eu nem sequer mereço dois dirames.
Somente fiquei a arder de curiosidade pelo que presencio: como é possível
que viveis sozinhas sem um homem que vos alegre a vida? Vós bem sabeis,
a mesa não se assenta no chão se não tiver quatro pés, mas onde está o
vosso quarto pé? O homem não se sente feliz sem se ajuntar a uma mulher,
e uma mulher não se sente feliz sem se ajuntar a um homem; e lá diz o
poeta:

Para nos deleitarmos, quatro basta:


— O alaúde, a cítara, a flauta e a harpa.
E quatro aromas são uma mistura amorosa:
— A anémona, o goivo, a murta e a rosa.
E só quatro combinam entre si o bastante:
— O vinho, a saúde, o dinheiro e um amante.

E vós sois três e precisais de um homem para serdes quatro.» Ao ouvirem


estas palavras, elas riram-se, surpreendidas, e disseram: «E quem nos
calharia na rifa, a nós que somos raparigas e que a ninguém revelamos os
segredos do nosso sucesso, porque receamos que a pessoa em quem os
depositarmos os não saiba preservar? Lemos num livro de crónicas um
poema de Ibn at-Tammame29, que dizia:

Cuida do teu segredo e não o manifestes.


Quem um segredo confia, já o perdeu.
Até para ti é difícil que o não reveles,
Quanto mais para quem o recebeu!»

Quando o carregador ouviu estas palavras, disse: «Oiçam-me, eu sou


uma pessoa de bem e de bom senso, sensata e instruída; estudei ciências e
adquiri conceitos; li, aprendi e escrevi citando fontes autorizadas; por ser
ajuizado, fiz boas acções e fugi das más; e faço minhas as palavras do poeta
quando disse:

Só em quem confiamos se deposita um segredo,


Pois o segredo só os melhores o sabem guardar.
E eu, os segredos, guardo num palácio bem zelado,
Cuja chave se perdeu depois da porta se cerrar.»

Logo que as raparigas ouviram aquelas palavras, retrucaram: «Sabes, nós


pagámos bem caro por todas estas iguarias que comprámos, e gastámos
uma pipa de massa, e tu por acaso tens algum na algibeira para retribuir?
Não te convidámos para embelezares a tua miséria e te tornares um amigo
dos copos que bebe à nossa custa sem pagar um chavo. Como dizem as
gentes honradas: O amor sem um tostão não vale um grão.» E a moça da
porta acrescentou: «Ó amor, tens algum ou não? Se não tens cheta, põe-te
na alheta.» Mas vai a moça das compras e disse: «Por amor de Deus! Parem
de o massacrar! Ele prestou-me uma enorme ajuda hoje; ninguém mais teria
sido tão paciente comigo como ele foi. Eu assumo as suas despesas, sejam
elas quais forem.» O carregador, não cabendo em si de contente, beijou o
chão diante dela, agradeceu-lhe, e disse: «Meu Deus, foi graças a si que fiz
o meu primeiro negócio do dia. Tenho o dinar que me deram, tomem, aqui
está ele, e tomem-me a mim também, não como amigo dos copos mas como
vosso criado.» Ao que elas responderam: «Que sejas muito bem-vindo.»
A moça das compras botou mãos à obra e começou a aprontar a mesa e a
reunir todos as loiças necessárias. Lavou os canjirões, escoou o vinho, e
preparou os copos, as taças, as canecas, os decantadores, e o serviço de
talheres em oiro e prata. Montou a mesa à beira da piscina, com todo o
género e feitio de comes e bebes. Depois apresentou o vinho que iam a
beber e sentaram-se todos à mesa, as irmãs e o carregador, estando este
último convencido que tudo aquilo só podia ser um sonho. Ela serviu o
primeiro vaso de vinho e bebeu-o; serviu o segundo e estendeu-o a uma das
irmãs, que o bebeu; e um terceiro para a outra irmã. Em último, serviu o
carregador, que pegou no copo com a sua mão, fez uma vénia, agradeceu e
declamou uma poesia:

Partilha o vinho só com quem sentes confidência,


Com os que são nobres e de pura descendência.
O vinho, tal como o vento, se o derramas em perfume
Saboroso fica, mas sobre um cadáver é puro azedume.

Bebeu o vinho, e a moça da porta retribuiu-lhe a vénia e disse uma


poesia:

Bebe! Alegra-te! E goza bem a boa saúde,


Porque o vinho só faz bem à tua saúde!

O carregador agradeceu-lhe, beijando-lhe a mão. Ao depois as moças


continuaram a beber e o carregador também. A dada altura, o carregador
virou-se para a sua protectora, a moça das compras, e chamando-a, disse-
lhe: «Minha senhora, aqui está o seu escravo», e declamou:

Um dos teus escravos espera à entrada,


Para retribuir a graça que foi acordada.

Ao que ela respondeu: «Tão lindo! Deixa-me beijar-te! E que bebas


alegremente gozando a boa saúde que o vinho traz, porque o vinho afasta a
doença e é um remédio que restabelece o vigor.» O carregador esvaziou o
seu copo, beijou-lhe a mão, encheu outro copo de vinho, estendeu-lho, e
pôs-se a declamar uma poesia:

Servi-lhe vinho tão tinto quanto as suas bochechas,


Puro e maduro como o brilho da luz das brasas.
Beijei-a, e ela perguntou-me entre garridas risadas,
«Ousas comparar este vinho às minhas bochechas?»

«Este vinho são lágrimas que o meu sangue avermelhou,


Bebe-o! A fragrância que exala do copo é a minha alma.»
E ela anuiu: «Se por mim foi que sangue choraste,
Dá-me mais a beber que eu beberei com todo o prazer.»

Ela pegou no copo, bebeu e depois sentou-se junto a sua irmã. E todos
continuaram a beber, copo atrás de copo. Entretanto, o carregador já estava
bastante arrebatado e toldado, e pôs-se a dançar e a cantarolar algumas
baladas amorosas e outras cantigas mais marotas e atrevidas30. E as
raparigas divertiam-se com ele, partilhando beijos, carícias, malícias,
mordidelas, esfregadelas, toques e massagens que levavam qualquer um ao
rubro. E enquanto uma das moças botava um naco de comida na boca dele,
outra tagarelava com ele, e outra lhe dava a cheirar flores perfumantes ou
um doce para comer, e o carregador se sentia como se a vida não pudesse
ser mais bela. Quando já estavam todos bem enfrascados e o vinho lhes
percorria as veias e se tinha apoderado do espírito deles, a moça da porta
despiu-se, e ficando completamente despida, coberta apenas pelo seu longo
cabelo solto, acercou-se da piscina, gritou «olaré!» e mergulhou.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão espantosa,» disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite.»
31.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse: «Ó mana, se não estiveres a dormir,


conta-nos um dos teus belos contos, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer que a moça da porta mergulhou na piscina, pondo-se a nadar,


a mergulhar e a brincar; pôs água na boca e esguichou-a sobre os outros; ao
depois começou a lavar-se debaixo dos seios, entre as pernas e o umbigo.
De repente, saiu da água e mui prontamente se sentou no colo do
carregador, apontou para a sua fenda, e perguntou-lhe: «Meu senhor, meu
amado, o que é isto?» O carregador respondeu: «O teu ventre.» «Ai, ai, que
não tens vergonha nenhuma!» e deu-lhe um calduço. «A tua racha», disse
ele, e uma das irmãs beliscou-o e gritou-lhe na cara: «Ai que palavra tão
feia.» «A tua cona», tentou ele. E outra das irmãs lhe espetou um murro que
lhe deu a volta ao estômago e disse: «Haja vergonha!» «É o teu grelo!»,
ripostou ele, mas a que estava nua bateu-lhe e disse: «Não!» «A tua coisa?
A tua passarinha? O teu pito?» «Não, não é!», respondia-lhe ela a cada
tentativa. E a cada nome que ele lançava, uma das raparigas o esmurrava e
persistia, perguntando: «Qual o nome disto?» E se uma o esmurrava, outra
lhe batia e a outra o beliscava, cada uma à vez. Às tantas, o carregador
perguntou: «Mas afinal qual é o seu nome?» E a rapariga que estava nua
respondeu: «Alfavaca das pontes!» «Ah, ah, alfavaca das pontes! Porque
não disseste logo desde o início!», ripostou o carregador.
E continuaram a beber, até que a moça das compras se levantou e se
despiu completamente, como havia feito a sua irmã, a moça da porta, e
gritando «olaré!» mergulhou na piscina. Depois de alguns mergulhos,
começou a lavar-se debaixo do ventre, à roda dos seios, e entre as coxas.
Num pronto saiu da água e foi-se sentar no colo do carregador, e perguntou-
lhe: «Senhorzito do meu coração, o que é isto?» «É a tua racha.» «Haja
vergonha!» e pregou-lhe uma valente chapada que ressoou pelo salão todo.
Ele continuou: «É o teu ventre», e uma das irmãs bateu-lhe e disse: «Ai que
palavra tão feia.» «É o teu grelo», e a outra irmã deu-lhe um murro e disse:
«Ai! Ai! Não tens vergonha nenhuma na cara!» Assim continuaram, e se
uma o esmurrava, outra lhe dava bofetadas na cara, ou lhe batia ou o
beliscava, cada uma à vez.
O carregador bem tentava: «O teu ventre? A tua cona? A tua
passarinha?» E elas respondiam sempre: «Não!» E tentou: «Alfavaca das
pontes?» Elas desataram-se a rir e de tanto rir até caíram para trás. Mas
tornaram a responder que «não era» e deram-lhe todas um calduço, e
volveram a perguntar: «Qual é o seu nome?» E às tantas o carregador lá
perguntou: «Mas afinal qual é o seu nome?» E uma das moças disse: «E que
tal sésamo descascado?» E o carregador disse: «Graças a Deus, finalmente
são e salvo! Quem se lembraria de sésamo descascado!»
Depois da moça vestir as suas roupas, sentaram-se à parla e na rambóia,
enquanto o carregador gemia de dores na nuca e nos ombros. Foram
bebendo mais, e o copo rodava de mão em mão. Tendo a mais velha e mais
bela de todas se levantado e se despido completamente, o carregador,
fazendo-lhe festinhas na nuca, disse-lhe: «Por amor de Deus, poupa a minha
nuca e as minhas costas.» Ora, depois de tirar as suas roupas, ela lançou-se
à piscina e pôs-se aos mergulhos.
Então o carregador pôs-se a olhar para a moça toda nua, que era tão
bonita quanto a Lua cheia e o nascer do Sol, admirando o seu corpo, os seus
seios e as suas nádegas pesadas que gingavam enquanto estava toda nua tal
como o Senhor a trouxera ao mundo. Perante tal cenário, o carregador
soltou um «ena» e falou-lhe em verso:

Se te comparasse a tão verdejante ramaria,


O peso da mentira o meu âmago esmagaria.
Pois a ramaria só é bonita quando está coberta,
Mas tu és mais bonita quando estás descoberta.

Quando a moça ouviu aqueles versos, saiu da água prontamente, sentou-


se ao colo do carregador, apontou para a sua fenda, e perguntou-lhe: «Ó
amado meu, ó luz dos meus olhos, como se chama isto?» «Alfavaca das
pontes!» «Irra!» disse ela. «Sésamo descascado?» tentou ele. «Puxa!» «É o
teu ventre», arriscou ele; mas ela respondeu, dando-lhe um calduço: «Haja
vergonha!»
Enfim, ó rei, para encurtar a história basta dizer que a cada tentativa do
carregador, ela lhe respondia sempre: «Não!» E depois do carregador comer
tanta pancada, beliscadela e mordidela, que a sua nuca já não mais podia de
tanta inchadela, e o pobre coitado até se engasgava e soluçava, lá
perguntou: «Mas afinal qual é o seu nome?» E ela respondeu: «E que tal
pousada do senhor Alegria?» «Ah! Ah! Pousada do senhor Alegria!31»
Em seguida, ela levantou-se, vestiu-se e volveram todos ao que estavam a
fazer, rodando o copo de mão em mão, e assim o foram fazendo durante
algum tempo. Mais tarde, o carregador levantou-se e despiu todas as suas
roupas, ficando só com uma coisa pendurada entre as suas pernas, e deu um
salto directo para a piscina.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão bela», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.» E o rei disse de si para si: «Meu Deus, não a
matarei até ouvir o fim da história. E depois disso, farei como tenho feito
com todas as outras.»
32.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos um dos teus belos contos, para entretermos a
noite.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei, que o carregador, depois de se lançar à piscina, tomou


banho e lavou-se por debaixo da barba e dos sovacos, e depois saiu
repentinamente da água e instalou-se no colo da moça mais bela, pondo os
braços à roda da moça da porta e as pernas estendidas no colo da moça das
compras, e disse: «Ó minhas ricas senhoras, o que é isto?» apontando para a
sua verga. As raparigas ficaram encantadas com a atitude do carregador e
riram-se muito com a partida dele e com o facto dele partilhar o mesmo
sentido de humor. E a mais bela respondeu: «É o teu caralho!» «Não têm
vergonha nenhuma! Que palavra tão feia!», disse o carregador. E outra
disse: «É a tua verga» «Haja vergonha! Que Deus vos desgrace», disse-lhes
ele. E outra tentou: «O teu pau?» «Não!» «A tua pila?» «Não!» E foram
tentando: «O teu ferrão? Os teus tomates? A tua coisa?» Mas o carregador
respondia sempre que «Não!» e para seu grande e belo prazer ia beijando
aquela, e puxava o nariz da outra, e beliscava aqueloutra, e ora mordia uma,
ora mordiscava outra; e as raparigas desatavam-se a rir e de tanto rir até
caíam para trás. Até que lhe perguntaram: «Ó irmão nosso, mas afinal qual
é nome disso?» E o carregador respondeu: «Com que então não sabem o
seu nome? Pois bem, chama-se mula infatigável!» «Mula infatigável? Mas
porquê?» perguntaram elas. E ele respondeu: «Porque pasta na alfavaca das
pontes, manja sésamo descascado e não se cansa de galopar na pousada do
senhor Alegria!» E desataram a rir-se e de tanto rir até caíram para trás e
perderam os sentidos. E continuaram na rambóia, à conversa e a beber.
Mas ao cair da noite, elas disseram ao carregador: «Meu senhor, seja
decente, calce as suas sandálias e por amor de Deus vire-nos as costas agora
mesmo.» E o carregador ripostou: «Mas para onde irei eu? Por amor de
Deus, é mais fácil a minha alma deixar o meu corpo do que eu a vossa
companhia. Porque não passamos a noite como se fosse dia, e amanhã bem
cedinho cada qual vai à sua vida?» A moça das compras disse: «Valha-nos
Deus, ele tem razão, ó manas. Por amor de Deus e por amor à vossa irmã,
deixai-o passar a noite para nos rirmos dele e nos divertirmos às suas
expensas. Quem sabe se em vida tornaremos a encontrar alguém assim?
Tão simpático, tão espertalhão e tão safadito?» Então, disseram ao
carregador: «Só podes passar a noite connosco se cumprires à risca uma
condição que te impomos: seja o que for que façamos ou que nos aconteça,
não irás pedir nenhum esclarecimento, e Não falarás sobre o que te não diz
respeito e assim não ouvirás o que te ferirá o peito. É esta pois a nossa
condição, que a tua curiosidade não se desperte com qualquer feito nosso.»
E ele consentiu: «Mil vezes sim! Serei cego e mudo.» «Então vai até ao
corredor de entrada de casa e lê o que está escrito em cima da porta»,
disseram-lhe elas. E ele assim fez, foi até lá aonde lhe disseram e leu o que
estava escrito em letras gravadas a oiro: Quem fala sobre o que lhe não diz
respeito, ouve o que lhe fere o peito. O carregador disse: «Juro-vos que não
falarei sobre o que me não diz respeito.» E foi essa a condição que elas o
obrigaram a acatar.
A moça das compras preparou a ceia, e depois de terem comido qualquer
coisa, acenderam os candelabros, colocando nas velas o âmbar-gris e o pau
d’áquila para incensar a casa com uma boa fragrância. Depois refizeram a
mesa com fruta e vinho, e serviram também frutos secos, e sentaram-se a
comer, a beber e a confraternizar em grande farra e interessantíssimas
conversas, rindo-se e divertindo-se uns com os outros, até que ouviram
alguém a bater à porta. Acalmaram-se os ânimos e uma delas foi até à porta,
e quando voltou, disse: «Manas, escutai e ides passar uma noite inolvidável
nas vossas vidas.» «Graças a quem?», perguntaram elas. E a irmã
respondeu: «À porta agora mesmo estão três dervixes mendicantes32, e os
três são zarolhos do olho direito e têm a cabeça, a barba e as pestanas
rapadas, o que é uma incrível coincidência. Acabaram de chegar de viagem
e têm ar de quem visivelmente chegou de uma longa caminhada, e é a
primeira vez que estão em Bagdade. Dizem que são forasteiros e que não
conhecem ninguém a quem possam recorrer. E como chegaram já de noite,
não encontraram sítio algum onde pernoitar, e bateram à nossa porta
pensando que lhes daríamos a chave do estábulo ou de um armazém onde se
pudessem recolher do ar da noite. Manas, cada um deles tem cá um ar que
até um enlutado se riria se os visse. Será que estais de acordo em deixá-los
entrar e connosco confraternizarem durante esta noite que estava destinada
a acontecer, e amanhã cedo cada um seguirá o seu caminho?» Ela continuou
a ateimar com as irmãs, até que elas disseram: «Deixa-os o entrar, mas na
condição de que Não falem sobre o que não lhes diz respeito e assim não
ouvirão o que lhes ferirá o peito.»
Contente com o sim das irmãs, foi abrir a porta e voltou instantes depois,
e atrás dela vinham três dervixes vagabundos e zarolhos, que
cumprimentaram toda a gente, fazendo uma vénia e hesitando em avançar.
As três raparigas levantaram-se para os receber e lhes dar as boas-vindas e
os felicitar por terem chegado sãos e salvos depois da viagem que haviam
feito, ao que eles agradeceram fazendo uma vénia. Quando os dervixes
viram a elegância do sítio onde se encontravam, o belo festim que os
atendia e uma lauta mesa, com velas acesas, e o cheiro a incenso, os frutos
secos, o vinho, e o à-vontade das três raparigas, exclamaram: «Meu Deus!
Não podíamos estar em melhor sítio!» Ora, o carregador estava cansado e
estafado de tanta estalada e pancada, e zonzo pela bebida, como se já
estivesse noutro mundo, e quando os dervixes olharam para ele, disseram
entre si: «Será este um irmão nosso tão dervixe quanto nós ou será um mero
beduíno de San Darnadan?» O carregador levantou-se, fixou os olhos neles,
e disse: «Assentai arraiais mas não sejais curiosos; será que não haveis lido
o que está escrito por cima da porta: Quem fala sobre o que não lhe diz
respeito, ouve o que lhe fere o peito? E quem sois vós para decidir quão
faquir33 eu sou ou deixo de ser? Ainda mal haveis chegado e já haveis
desatado a dar à língua sobre nós!» Ao que eles responderam: «Ó faquir,
que Deus nos perdoe! As nossas cabeças estão nas tuas mãos.» As raparigas
riram-se e trataram de apaziguar a quezília entre os dervixes e o carregador,
e depois sentaram-se a beber e deram aos dervixes algo a comer. Em
seguida, a moça da porta serviu-lhes bebida, e puseram-se à conversa e na
farra, com o copo rodando de mão em mão. Às tantas, o carregador
perguntou: «E vós, irmãos, não haveis nenhuma habilidade para nos
mostrardes?»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou a sua voz. «Que história
tão boa, ó mana, e tão bela», disse a sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu viver.»
33.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos um dos teus belos contos, para entretermos a
noite.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei, que os dervixes, quando já estavam bem regados pela
bebida, pediram instrumentos de música. A moça da porta trouxe-lhes um
pandeiro, uma flauta e uma harpa persa, e cada um dos dervixes pegou num
dos instrumentos, e depois de os afinarem começaram a tocar e a cantar. E
enquanto as raparigas cantavam alto e bom som, fazendo grande algazarra,
ouviram alguém bater à porta, e a moça da porta foi cuidar do que se
tratava.
Ó rei, disse Xerazade, a causa de terem batido à porta era que naquela
noite o califa Harune Arraxide e o vizir Jáfar estavam a visitar a cidade,
como soíam fazer de tempos a tempos. E enquanto percorriam as ruas da
cidade naquela noite, deram por si a passar em frente daquela porta, e
quando ouviram o som da música, as raparigas a cantar alto e bom som, as
gentes a rirem e a rambóia que por lá ia, o califa disse ao vizir: «Jáfar, quero
entrar nesta casa e visitar aqueles que aqui vivem.» E Jáfar disse ao califa:
«Ó miralmuminim, essas gentes já estão bem enfrascadas e não sabem
quem nós somos. Receio que nos enfadem e nos ponham as mãos em
cima.» «Chega desses argumentos! Quero entrar e tu vais arranjar uma
desculpa para eles me deixarem entrar.» E Jáfar respondeu: «Às suas
ordens.»
Depois de baterem à porta, apareceu-lhes a moça que soía abri-la. Jáfar
avançou, beijou o chão diante dela, e disse: «Minha senhora, nós somos
mercadores da cidade de Mossul e faz agora dez dias que estamos
hospedados em Bagdade numa pousada onde também depositámos as
nossas mercadorias. Hoje mesmo fomos convidados por um mercador da
vossa cidade para ir a sua casa, e depois de comermos serviu-nos vinho, que
bebemos todos contentes da vida. Ao depois mandámos alguém a ir buscar
um grupo de músicos e cantoras, assim como aos restantes dos nossos
amigos, que vieram todos, e muito nos divertimos ouvindo as moças a
cantar e a tocar os pandeiros e as flautas. Enquanto gozávamos tão bela
vida, apareceu o intendente da polícia, fazendo uma rusga para nos apanhar
a todos. Tivemos de dar a debandada saltando janela fora, e como ficava
demasiado alta, alguns partiram a perna, mas outros conseguiram fugir sãos
e salvos. Quanto a nós, desembocámos na vossa casa, e como somos
forasteiros, receamos que ao andar pelas ruas da vossa cidade o intendente
da polícia nos possa prender por estarmos visivelmente bem bebidos. A
nossa pousada está fechada e ninguém nos abrirá a porta antes do nascer do
Sol, e como é assim que regem a pousada não poderemos a ela voltar. Ao
passarmos diante da vossa casa, ouvimos os instrumentos de música que
acompanham as melhores farras, e se tiverem a gentileza de nos deixar
entrar recompensar-vos-emos por todos os nossos gastos. Se não vos apraz
este negócio, deixem-nos ao menos dormir no corredor de vossa casa até
que seja manhã e também vos pagaremos. E a vós e à vossa nobreza de
coração caberá a final resolução, mas nós não arredaremos pé do vosso
portão.»
Depois de haver ouvido isto e em vendo como trajavam de forma
decente, foi ter com as irmãs, e em lhes contando o que Jáfar lhe havia dito,
elas tiveram pena deles e disseram: «Deixa-os entrar.» E assim fez ela, e
entrou o califa acompanhado de Jáfar e de Macerur34, o carrasco, e quando
entraram, todos os outros, as raparigas, os dervixes e o carregador, se
levantaram para os cumprimentarem, e depois todos se sentaram.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão bela», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
34.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos o final da história das três raparigas.» E
Xerazade respondeu: «Assim farei:»

Conta-se, ó rei, que quando o califa Harune Arraxide, o vizir Jáfar e


carrasco Macerur entraram e se sentaram, as raparigas disseram-lhes: «Sede
bem vindos, temos muito gosto em vos receber, mas com um condição.» E
eles perguntaram: «Qual é ela?» Ao que elas responderam: «Que sejais
olhos sem língua, e que não peçais nenhum esclarecimento sobre o quer que
seja que aqui vejais, e que Não faleis sobre o que não vos diz respeito e
assim não ouvireis o que vos ferirá o peito.» Eles consentiram: «Estamos de
acordo, não temos qualquer vontade de nos intrometermos.» As raparigas
ficaram satisfeitas com a resposta, e depois sentaram-se todos, conversando
e bebendo.
O califa estava muito espantado por ver três dervixes vagabundos e
zarolhos do olho direito, assim como por ver três raparigas tão formosas e
generosas, e sabidas na arte de bem falar, num sítio tão elegante e tão bem
decorado35, na companhia musical daquele rancho composto por três
dervixes zarolhos. Mas apesar do seu enorme espanto, não estava em
circunstâncias de poder fazer perguntas, pelo menos por enquanto.
Continuaram à conversa e na boa-vai-ela, até que os dervixes se levantaram,
fizeram uma vénia, e tocaram outra canção que levou todos ao rubro. A
seguir sentaram-se, com o copo passando de mão em mão36.
Quando a bebida tomou conta de todos, a dona da casa levantou-se, fez
uma vénia e, pegando na mão da moça das compras, disse: «Mana, está na
hora de cumprirmos o nosso dever.» E as irmãs ambas responderam: «Com
certeza.» Então a moça da porta sacou a mesa dali para fora, limpou as
migalhas e as cascas, renovou o incenso, esvaziou o centro do salão, sentou
os dervixes num sofá a uma banda, e na banda oposta, em outro sofá, sentou
o califa, Jáfar e Macerur. Depois chamou o carregador e disse-lhe: «És
muito preguiçoso! Levanta-te e ajuda-nos, que também fazes parte da gente
desta casa.» O carregador levantou-se, e com algum descaramento,
perguntou: «O que se passa?» Ela respondeu: «Fica aí onde estás.» A moça
das compras pôs uma cadeira no meio do salão, abriu a porta dum armário,
e disse ao carregador: «Vem aqui ajudar-me!» E o carregador quando se
acercou viu duas galgas persas negras com correntes à roda do pescoço;
pegou nelas e levou-as até ao meio do salão. A moça dona da casa disse:
«É hora de cumprirmos o nosso dever», e arregaçou as mangas, pegou num
chicote trançado, e disse ao carregador: «Traz-me umas das cadelas.» Ele
pegou numa delas pela corrente e ao arrastá-la a cadela chorava e agitava a
cabeça na direcção da moça. O carregador segurou nela firmemente e a
moça começou a dar uns valentes açoites nos costados da cadela, que
berrava e chorava. Continuou a açoitá-la até que o braço se cansou e atirou
o açoite para o chão. E em agarrando a cadela pela corrente, a tirou das
mãos do carregador, e a abraçou, pondo-se a chorar, e ficaram as duas assim
a chorar um tempo. Em seguida, a moça limpou as lágrimas à cadela com
um lenço, beijou-a na cabeça, e disse ao carregador: «Leva-a e põe-na onde
estava, e traz-me a outra.» Então o carregador pô-la no armário e trouxe a
outra cadela até junto da moça, que lhe fez o mesmo que havia feito à
primeira, açoitando-a até perder os sentidos. Depois pegou nela, choraram
as duas e beijou-a na cabeça. E ordenou ao carregador que levasse a cadela
à sua irmã, e assim fez ele.
Quando a gente ali presente viu o que a moça havia feito, e como açoitara
a cadela até perder os sentidos, e depois se pôs a chorar juntamente com a
cadela e depois lhe beijava a cabeça, ficaram espantados até mais não com
tudo aquilo e começaram a cochichar entre si. Quanto ao califa, não só
ficou perturbado como estava prestes a perder a paciência, pois atiçara-se-
lhe a curiosidade para saber qual a história daquelas duas cadelas. Deitou
uma olhadela a Jáfar, mas este fez-lhe um sinal querendo dizer: «Não é
altura para sermos curiosos.»
Ó rei bem-aventurado, disse Xerazade, quando a moça acabou de castigar
as duas cadelas, a moça da porta disse-lhe: «Minha senhora, sente-se no seu
sofá para eu proceder à minha obrigação.» E ela respondeu: «Assim farei.»
Foi para o fundo do salão e sentou-se no seu sofá, com o califa, Jáfar, e
Macerur sentados e alinhados à sua mão direita, e os dervixes e o
carregador sentados e alinhados à mão esquerda. Os candeeiros brilhavam e
o cheiro do incenso espalhava-se, mas para eles, que agora se sentiam
enfadados, a festa estava estragada.
A moça da porta sentou-se na cadeira.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão espantosa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu viver.»
35.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos um dos teus belos contos, para entretermos a
noite.» E Xerazade respondeu: «Assim farei:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a moça da porta sentou-se na


cadeira e disse à sua irmã que tinha ido às compras: «Dá-me a minha paga.»
Então, a que tinha ido às compras entrou numa despensa e voltou momentos
depois trazendo uma bolsa de cetim amarelo, com duas borlas de seda verde
decoradas com dois discos de oiro vermelho e duas bolas de âmbar-gris
puro. Sentou-se em frente da moça da porta, sacou da bolsa um alaúde, pô-
lo ao colo em posição para ser tocado, e tocou algumas notas para afinar as
cordas. Depois de bem afinar o alaúde, começou a tocar e a cantar um
poema do género Era uma vez37:

Sois a finalidade do meu desejo,


Ó amado, a vossa companhia
É uma permanente alegria,
E a vossa ausência um martírio.

Sois a loucura da minha vida,


Uma eterna paixão ardente.
E tanta vergonha sentiria
Se vos não adorasse loucamente.

As roupas da amargura vesti,


E todos souberam da minha paixão,
E por este amor tão puro
Perdeu-se o meu coração.

As lágrimas escorrendo pela cara


A todos revelaram o sigilo do meu credo.
Pois as minhas pérfidas lágrimas
Denunciaram o meu segredo.

Curai-me desta crónica mazela;


Vós sois a cura e o padecimento.
Mas quem prova o vosso remédio
Queda-se em eterno adoecimento.

Pelo brilho dos vossos olhos sou consumida.


Pelo rosa das vossas bochechas sou vencida.
O breu do vosso cabelo é a noite que me torna cativa,
E a minha secreta paixão por todos se torna conhecida.

Este sofrimento é um martírio,


E sou vencida pela espada dos amores ardentes.
E por esta impiedosa espada,
Ai, quantos já pereceram entre os mais valentes?

A minha paixão não tem fim,


E jamais me renderei ao solaz.
O amor é a minha lei e medicina,
Seja em segredo ou conhecido assaz.

Ó olhos afortunados por vos verem,


Não há visão que seja mais abençoada.
E eu por vós sinto um amor tão grande,
Que por senti-lo fico toda atordoada.

Quando a moça acabou o poema, a sua irmã soltou um grito alto e


estridente: «Aaaaahhhh!» Depois agarrou no seu vestido pelo colarinho e
rasgou-o completamente de uma ponta à outra, deixando o corpo todo à
mostra, e desmaiou. Quando o califa olhou para ela, viu que o seu corpo, da
cabeça aos pés, estava repleto de cicatrizes de chicotadas, que lhe haviam
deixado o corpo negro e azul. Todos os convidados ficaram abalados ao ver
tal coisa, desconhecendo qual a história e os feitos por detrás daquilo, e o
califa disse a Jáfar: «Valha-me Deus! Não consigo conter mais a minha
paciência! Tenho de tirar esta história a pratos limpos e averiguar qual a
causa desta moça haver sido tão chicoteada, assim como a causa da pancada
aviada às cadelas negras, de juntas haverem chorado e depois as terem
beijado.» Jáfar ripostou: «Real senhor, agora não é o momento de inquirir,
ainda para mais impuseram-nos como condição que não falássemos sobre o
que não nos diz respeito, porque Quem fala sobre o que não lhe diz
respeito, ouve o que lhe fere o peito.» E enquanto falavam, a moça das
compras levantou-se e foi buscar um rico vestido para substituir o outro que
se tinha rasgado. Vestiu a irmã com o vestido, e quando se sentou, a irmã
disse: «Por favor, dá-me mais bebida.» Pegou num copo, encheu-o e deu-
lho. E tornou a pôr o alaúde ao colo, improvisando vários ritmos e
melodias, e pôs-se a declamar:

O que direis se me queixo da vossa ausência?


E se a saudade me definhar, aonde me levará?
Eu enviaria um mensageiro para o que sinto traduzir,
Mas ninguém a dor de quem ama consegue transmitir.

Mesmo que permaneça paciente,


Não há perseverança que à vossa perda resista;
Só a mágoa persiste, tal saudade lealista,
E as lágrimas escorrendo amplamente.

Vós da minha vista podeis estar ausente,


Mas não cessareis de habitar o meu coração.
Não me ensinastes vós o que é a paixão
E a me manter fiel ao amor para sempre?

Quando a moça acabou as suas poesias e cantares, a irmã gritou:


«Aaaaahhhh!» E foi tal a sua paixão, que agarrou no seu vestido pelo
colarinho, rasgou-o completamente de uma ponta à outra, e voltou a gritar, e
depois desmaiou. A moça das compras levantou-se, foi buscar um vestido
ainda mais lindo que o outro, borrifou a cara da irmã com água de rosas até
ela acordar, vestir o vestido, e dizer: «Por favor, mana, dá-me a minha paga
e acaba já com isto, que só falta uma canção.» «Com todo o prazer»,
respondeu a moça das compras; e agarrando no alaúde, tocou as primeiras
notas, e pôs-se a declamar:

Até quando este repúdio e aversão tão fria?


Não bastou tanta lágrima por mim vertida?
Porque prolongas tanto a tua voluntária ausência?
Se por vingança foi a tua aversão, conseguiste-a.

Sê gentil, que eu já sofri demasiada repugnância;


Ó dono de mim, é hora de mostrares compaixão.
Ó cavalheiros, vingai esta escrava da paixão
Que por tanta insónia já perdeu a constância.

Permitirá a lei do amor que eu fique sozinha


Enquanto outro à custa do amor se cura?
Deixai o meu senhor oprimir com fartura;
Quantas provações aguentará a vida minha?

Acabou de declamar e…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão espantosa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite;
será ainda melhor, mais espantoso e maravilhoso, se o rei me poupar e eu
viver.»
36.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, conta-


nos como acaba a história das raparigas.» E Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que a moça, depois de haver ouvido a terceira canção,


gritou: «Ai meu Deus! Tão bom!». E agarrou nas suas roupas e as rasgou,
perdendo os sentidos e deixando à mostra no peito marcas da tortura do
azorrague. Os dervixes murmuraram: «Quem nos dera que nesta casa não
tivéssemos entrado, e antes numa lixeira houvéssemos dormido, porque a
nossa poisada aqui foi arruinada ao vermos tanta coisa que nos fere o
coração.» O califa, aproximando-se deles, perguntou-lhes: «E porquê?»
Eles responderam: «Nobre senhor, nós estamos bastante abalados com isto
tudo.» O califa perguntou: «Mas vós, vós não sois gente desta casa? Gente
que me possa informar sobre a história destas duas cadelas negras e desta
moça?» E eles responderam: «Por amor de Deus, não sabemos nada e nunca
viemos a este sítio senão esta mesmíssima noite.» Surpreendido com a
resposta, disse: «Talvez o homem ao vosso lado nos saiba esclarecer.»
Deitaram uma olhadela ao carregador e inquiriram-no sobre as
circunstâncias, mas ele respondeu: «Por Deus, O Grandioso, No amor
somos todos iguais, e apesar de haver crescido em Bagdade, nunca na
minha vida tinha entrado nesta casa a não ser hoje mesmo. E dês que aqui
cheguei, espantosos momentos tenho passado, mas não deixo de pensar
como é possível serem todas mulheres sem homem.» «Meu Deus, julgámos
que eras da casa, mas afinal estás como nós», disseram os dervixes.
O califa, Jáfar e Macerur, falaram entre si: «Nós somos sete homens e
elas são três raparigas sem um único homem; exijamos-lhes satisfações, e
se não responderem a bem, responderão a mal.» Puseram-se todos de
acordo, menos Jáfar que disse: «Não sou da mesma opinião, deixemo-las
em paz porque nós somos convidados em sua casa e como bem sabem
impuseram-nos uma condição em troca da sua hospitalidade. Será melhor
que nos calemos sobre este assunto, até porque falta pouco para a noite
findar, e em breve cada qual poderá seguir o seu caminho e ir à sua vida.»
Depois deitou uma olhadela ao califa, e disse-lhe: «Ó miralmuminim, é só
preciso um pouco mais de paciência que a noite findará em uma hora, e de
manhã bem cedo voltarei aqui e levá-las-ei à vossa presença para nos
contarem a sua história.» Mas o califa berrou-lhe na cara: «Maldito sejas! Já
perdi a paciência de esperar até ouvir uma explicação. Deixa os dervixes
inquirirem.» Jáfar ripostou: «Não me parece uma boa ideia.» Depois de
debaterem entre si e se consultarem sobre quem seria o primeiro a inquiri-
las, apalavraram-se todos que seria o carregador.
Uma das moças perguntou-lhes: «Ó gentes, que se passa?» O carregador
avançou e disse: «Ó dona, estas gentes protestaram a sua vontade de querer
ouvir-te sobre as duas cadelas negras, porque as castigas e depois choras
com elas, e como foi que a tua irmã ficou toda chicoteada como se faz aos
homens. E é isto o que querem saber, nada mais nada menos.» A moça
virou-se para eles e perguntou: «É verdade o que ele afirma em vosso
nome?» E todos responderam: «Sim!» excepto Jáfar, que nada disse. Depois
de ouvir aquela resposta, ela disse: «Caros convidados, vós enganastes-nos.
Não vos informámos nós da nossa condição, de que Quem fala sobre o que
não lhe diz respeito, ouve o que lhe fere o peito? A nossa casa e a nossa
comida vos oferecemos, mas ainda assim vós armais um escabeche contra
nós para nos prejudicardes. Mas a culpa não é vossa, mas sim de quem vos
aqui trouxe e vos deixou entrar em nossa casa.»
Então a moça arregaçou as mangas e bateu três vezes no chão, dizendo:
«Rápido!» E mal o disse, eis que se abriu a porta de um armário e de lá
saíram sete escravos negros de espada em riste. E cada um deles arriou uma
pranchada com a sua espada a cada um dos convidados, deitando-os de cara
no chão. E num ápice os sete escravos ataram as mãos dos sete convidados,
e amarram-nos uns aos outros, formando uma única fileira, e pondo-os no
meio do salão, cada escravo colocou-se atrás de um convidado, com a
espada em riste, e disseram: «Ó mais honorável e intocável dama, dê-nos
permissão para lhes cortarmos as cabeças.» Ao que ela respondeu: «Esperai
um pouco para os inquirir antes de lhes cortarem as cabeças.» O carregador
suplicou: «Que Deus vele por mim, ó dona, não me mate pelo pecado dos
outros; todos os outros pecaram e fizeram o mal, menos eu! Por amor de
Deus, juntos passámos um belo dia, não fossem estes dervixes zarolhos, que
quando entram numa cidade espalham o caos e a discórdia, reduzindo-a a
escombros.» Depois chorou e declamou:

Quão justo é o perdão do poderoso


Quando ele o pobre sabe remir.
Pelo nosso sagrado elo amoroso,
Um pelo pecado de outro evitai punir.

A moça, apesar da sua cólera, riu-se. Acercou-se do grupo dos


convidados e disse: «Respondei-me quem sois vós, porque não vos resta
senão uma hora de vida. Se não vos achásseis importantes ou não fosseis
pessoas distintas do vosso povo ou poderosos governantes, não vos teríeis
atrevido a humilhar-nos.» O califa disse a Jáfar: «Maldição! Diz-lhes quem
somos ou morreremos por engano!» Mas Jáfar respondeu: «Bem o
merecemos!» E o califa berrou-lhe na cara: «Não é altura para os teus
joguinhos!»
Mas entretanto a moça, acercando-se dos dervixes, perguntou-lhes: «Vós
sóis irmãos?» «Não! Valha-me Deus, minha senhora, nem sequer somos
faquires.» E perguntou a um deles: «Nasceste zarolho?» «Não! Valha-me
Deus, minha senhora, em verdade aconteceu-me uma estranha e espantosa
história, que fez com que eu perdesse um olho, rapasse a barba e me
tornasse dervixe. Seria um feito tão grandioso escrever a minha história no
canto do olho com uma agulha quanto a lição que dela se pode tirar.» Em
seguida, perguntou ao segundo dervixe o mesmo e a mesma resposta ouviu.
E também assim foi com o terceiro. E remataram dizendo: «Pelo amor de
Deus, minha senhora, cada um de nós veio de uma cidade diferente, e cada
um de nós é filho de reis soberanos sobre terras e pessoas.» A moça virou-
se para os escravos e disse: «Quem contar a história do que lhe aconteceu e
qual a causa pela qual veio parar a nossa casa, deixai-o dar graças por ainda
ter a sua cabeça, seguir o seu caminho e ir-se à sua vida. Mas quem se
recusar a fazê-lo, cortai-lhe a cabeça.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão espantosa», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
37.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos um dos teus belos contos, para entretermos a
noite.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei, que depois da moça haver dito aquilo aos convidados, o
primeiro a avançar foi o carregador, que disse: «Minha senhora, a causa
pela qual aqui vim é porque sou um homem que exerce o mister de
carregador e tendo por esta moça sido encarregado de carregar as suas
compras, ela levou-me da casa do vinhateiro ao açougueiro, e do
açougueiro ao merceeiro, e do merceeiro ao fruteiro, e do fruteiro ao
vendedor de frutos secos, e levou-me ainda ao pasteleiro e ao perfumista,
até que vim até esta casa, e esta é a minha história.»
A moça disse: «Dá graças por ainda teres a tua cabeça e pira-te.» Mas o
carregador disse: «Por amor de Deus, não arredo pé daqui sem ouvir as
histórias dos outros.» Em seguida, o primeiro dervixe avançou e disse:

História do primeiro dervixe

Minha senhora, irei contar a causa de haver perdido um olho e de ter a


barba rapada. O meu pai era um rei que tinha um irmão, também ele rei,
que foi abençoado com um filho e uma filha. À medida que o tempo foi
passando e nós fomos crescendo, eu costumava visitar o meu tio, irmão do
meu pai, de tempos a tempos e quedar-me em sua casa um mês ou dois, e
depois volvia para a do meu pai. Entre mim e o meu primo havia uma
amizade muito estreita e uma afeição muito forte. Certo dia fui visitá-lo e o
meu primo recebeu-me com muita pompa e circunstância, havendo
degolado cordeiros e servido um vinho requintadíssimo, que bebemos
juntos. Quando a bebida tomou conta de nós, ele disse-me: «Primo, desde
há um ano para cá que tenho vindo a aprontar uma coisa e gostaria de ta
mostrar e que não te opusesses ao que eu fizer.» Respondi: «Com todo o
prazer.» Fez-me jurar solenemente, e logo de seguida levantou-se e saiu,
voltando um pouco mais tarde na companhia de uma mulher que vestia um
manto, usava uma bandana e um capucho, e o seu perfume era tão bem
cheiroso que até ficámos mais tocados do que já estávamos. «Primo, leva
esta dama e vai à minha frente a tal jazigo no cemitério tal», disse-me ele,
descrevendo-me quais as características desse jazigo para que eu o pudesse
reconhecer. E acrescentou: «Entra no jazigo e espera aí por mim.»
Por causa do juramento que eu havia prestado, não me podia opor-lhe
nem questioná-lo. Saí com a tal dama e caminhámos juntos até chegarmos
ao cemitério e ao jazigo, onde nos sentámos até que ele chegou, trazendo
uma taça de água, um saco com gesso e um enxó de ferro. Depois
aproximou-se duma campa e desmanchou-a com o enxó, colocando a
pedraria de lado. Pôs-se a remover a terra da campa com o enxó até
encontrar um tampo de ferro do tamanho de uma pequena porta e que media
em longura e em largo o mesmo que a campa. Levantou-o e por baixo havia
uma escada em caracol. Virou-se para a dama, e através de um sinal, disse-
lhe: «A escolha é tua.» Ela desceu e desapareceu da nossa vista. Depois
virou-se para mim e disse: «Primo, tenho um último favor a te pedir.»
«Diz.» «Depois de eu descer, volta a fechar tudo como estava.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa», disse a sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite.»
38.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, por favor conta-nos um dos teus belos contos, para
entretermos a noite.» «Assim farei», disse ela. O rei Xariar disse: «Conta-
nos como acaba a história do filho do rei.» E Xerazade respondeu: «Com
todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o primeiro dervixe disse à moça:

Minha senhora, depois de haver ajudado o meu primo, estando indisposto


devido à bebida, regressei e dormi numa casa do meu tio, que ele me havia
cedido antes de partir para a caça e a montaria. Quando acordei de manhã,
pus-me a pensar no que se havia passado naquela noite, julgando que havia
sido um sonho. Sem grandes certezas, resolvi indagar sobre o meu primo,
mas ninguém me soube dizer coisa alguma sobre ele. Então, fui até ao
cemitério e procurei pelo jazigo, mas não o consegui encontrar nem me
recordar onde ficava. Continuei às voltas, jazigo atrás de jazigo e campa
atrás de campa, sem comer nem beber até ao cair da noite. Estava inquieto
quanto ao paradeiro do meu primo e curioso sobre onde iria desembocar
aquela escada em caracol, e não parando de pensar no que me havia
acontecido, pouco a pouco tudo aquilo me parecia que só podia ter sido um
sonho. Volvi para casa, comi qualquer coisa, e dormi em grande
desassossego até ser manhã. Regressei ao cemitério e, relembrando tudo o
que ele e eu havíamos feito naquela noite, continuei às voltas à procura até
ao cair da noite, sem todavia encontrar o jazigo ou caminho que até lá
chegasse. E voltei lá no terceiro e no quarto dia, procurando desde manhã
cedo até à noite, mas sem encontrar o caminho que levasse até ao jazigo, e
tal era a minha inquietação e frustração que quase enlouqueci. Vi então que
não tinha outro remédio que não fosse regressar à cidade do meu pai.
Quando lá cheguei, mal passei a porta da cidade, espancaram-me e
amarraram-me. E perguntando eu: «Qual o motivo?», me disseram: «O vizir
conspirou contra o teu pai e traiu-o, recebendo o apoio de todo o exército.
Matou o teu pai e sentou-se no seu lugar, ten-do-nos ordenado que
ficássemos à tua espera.» Depois levaram-me esvaecido até à sua presença.
Ó mui honorável senhora, entre mim e o vizir reinava uma amarga
animosidade, visto que por minha causa ele havia ficado sem um olho. Eu
era aficcionado pelo tiro com besta de bodoque, e certo dia estava eu na
açoteia do meu palácio, quando poisou um pássaro no palácio do vizir.
Disparei-lhe um bodoque, mas falhei o alvo, e como o vizir por
coincidência se encontrava na açoteia, levou ele com o tiro, que lhe acertou
no olho e lhe vazou a vista, passando dês daí a odiar-me. Então, quando fui
levado à sua presença, vai ele e espetou o seu dedo no meu olho, que
escorregou pela cara abaixo, e eu fiquei zarolho. Em seguida, amarrou-me,
pôs-me dentro duma arca, e entregou-me ao carrasco do meu pai, a quem
disse: «Monta o teu cavalo, desembainha a tua espada, e leva este aqui até
pleno escampado. Mata-o e deixa as feras e as aves comer-lhe a carne.»
O carrasco cumpriu as ordens do vizir e seguiu comigo até pleno
escampado. Apeou-se, tirou-me da arca e olhou para mim, prestes a
executar-me, quando eu desatei a chorar baba e ranho por mor do que me
havia acontecido, e tal foi o meu choro que também ele chorou. Então olhei
para ele e pus-me a declamar:

Num castelo impenetrável te protegi do inimigo,


Mas afinal eras tu as suas próprias flechas.
Eu que em todas as desgraças contei contigo,
Tal como a mão esquerda ajuda a direita.
Ergue-te como o perdoado, mas fica longe de mim,
E contra mim deixa os inimigos dispararem.
Se as rédeas da nossa amizade não seguraste,
Então que assim fique e nada mais entre nós reste.

Quando o carrasco ouviu os versos da minha poesia, teve pena de mim,


perdoou-me e libertou-me, e disse: «Salva a tua vida, e jamais voltes a esta
terra, senão eles te matarão juntamente comigo. E lá diz o poeta:

«Se uma injustiça sofreste, a tua vida salvarás,


Abandona a casa que só a lamentará seu pedreiro.
Se te encontras nesta terra ou acolá, tanto te faz,
Mas outra alma para substituir a tua não terás.
Se for importante, não envies o teu mensageiro,
Ninguém é mais leal contigo senão tu mesmo.
E tal o leão quando espeta as suas garras,
Ninguém luta pela tua vida senão tu mesmo.»

Beijei-lhe a mão e nem queria acreditar do que me havia livrado, porque


ficar sem um olho era bem melhor do que ficar sem a vida. Ao depois fiz-
me ao caminho, e pouco a pouco lá cheguei à cidade do meu tio. Fui ter
com ele e inteirei-o da morte do meu pai e de como fiquei sem um olho. Ele
disse-me: «E eu também tenho quanto baste de aflições, o meu filho sumiu-
se e dele não sei nova má nem boa.» E tanto chorou e de tal modo, que
reavivou a minha antiga dor e me fez ter pena dele, e como não pude mais
conter o meu silêncio, fi-lo saber o que havia sucedido ao seu filho, e ele
não coube em si de contente e disse: «Anda! Mostra-me o jazigo!» «Valha-
me Deus, ó tio, perdi o caminho para lá chegar e já não me lembro qual é»,
respondi eu. E ele disse: «Siga, vamos até lá.» E lá fomos os dois, a furto
para ninguém saber, até ao cemitério.
Quando já estava em pleno cemitério, dei por mim a encontrar e a
reconhecer o jazigo, e não coube em mim de contente por finalmente poder
vir a ter novas dele e ficar a saber aonde iriam dar aquelas escadas. Entrei
com o meu tio no jazigo, desmanchámos a campa, removemos a terra e
encontrámos o tampo. O meu tio foi à frente e descemos aí uns cinquenta
degraus até chegarmos ao fim das escadas, onde topámos com uma
fumarada tão espessa que mal conseguíamos ver, ao que o meu tio
exclamou: «Não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e
Grandioso.» Ao chegarmos ao último degrau, encontrámos um corredor, e
caminhámos um pouco até darmos com uma sala com colunas e luzes que
vinham de tão alto quanto uma montanha.
Caminhámos pela sala, que tinha no meio uma cisterna, e encontrámos
bilhas, sacos com farinha e grãos, e outros afins, e na banda oposta à que
entrámos havia uma cama com mosquiteiro. O meu tio aproximou-se, e
quando levantou o tule do mosquiteiro, encontrou o seu filho abraçado à
dama que havia descido com ele, convertidos em carvão negro, como se
lhes tivessem pegado fogo e alimentado as chamas com muito combustível
até ficarem totalmente reduzidos a carvão. Quando o meu tio viu aquilo
encheu-se de alegria, cuspiu na cara do filho, e disse: «Eis o castigo deste
mundo, falta ainda o castigo do Outro Mundo.» Depois sacou das suas
sandálias e com elas deu uma valente tareia na cara do filho.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
39.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos um dos teus belos contos, para entretermos a
noite.» O rei disse: «Que seja o desfecho da história do primeiro dervixe.»
E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o primeiro dervixe disse à moça:

Minha senhora, depois do meu tio haver dado uma tareia com as suas
sandálias na cara do filho, que estava todo chamuscado, assim como a tal
dama, eu disse: «Por amor de Deus, ó tio, não me atormente mais, que já
estou bem inquieto e dorido com o que aconteceu ao seu filho; e como se
não bastasse o que ele já sofreu, o tio ainda lhe bate na cara com as
sandálias.» Ele ripostou: «Ó sobrinho, quero que saibas que o meu filho
desde tenra idade se perdeu de amores pela própria irmã, e que eu
costumava proibir esses amores, mas dizia sempre para comigo: “Ainda são
pequenos.” Mas quando cresceram, voltaram a cometer a mesma feia feita,
e quando tal me chegou aos ouvidos eu nem quis acreditar. Agarrei nele,
preguei-lhe uma boa sovadela e um valente raspanete, e avisei-o: “Tem
cuidado, cuidado! Se fazes destas cairás em desgraça e desonra entre os reis
até ao fim dos tempos, e relatos sobre o que nos sucedeu espalhar-se-ão até
às mais remotas províncias e cidades. Ai de ti! Ai de ti se não cuidas que
esta é a tua irmã e que Deus ta proibiu.” E não hesitei, ó sobrinho, em
escondê-la da vista dele, mas a maldita também estava de amores por ele,
possuída por Satã, o qual havia embelezado aqueles feitos. Quando eles
viram que eu tinha escondido um da vista do outro, então ele fez este sítio
bem fundo debaixo da terra, como podes ver, e trouxe para aqui todo o
género de provisões e afins que fosse preciso, e cavou este poço. Depois,
aproveitando-se de eu haver ido para a caça, pegou na irmã e fez o que o
viste fazer, convencido que se deleitaria com ela durante longo tempo e que
Deus Todo-Poderoso não daria atenção aos feitos deles os dois.»
Dito isto, chorou, e eu chorei com ele. Então olhou para mim e disse:
«Serás meu filho em vez dele», e pondo-se a pensar no que havia
acontecido aos dois filhos, na morte do irmão e no vazamento do meu olho,
tornou a chorar e eu chorei com ele durante algum tempo, lamentando as
desventuras deste mundo, as atribulações da vida e as desditas do destino.
Depois subimos para fora da campa, tornámos a pôr o tampo sobre o meu
primo e a sua irmã, e volvemos a nossa casa sem que ninguém desse por
nós.
Ainda mal nos havíamos sentado, quando ouvimos o rebombar de
bombos, o retumbar de atabales e o ressoar de trompetes, acompanhados
pelo rugir de homens, o relinchar de cavalos, as pancadas e chocalhos de
rédeas, e ordens de formação para combate, e vimos o mundo a encobrir-se
com uma nuvem de pó erguida pelos cascos dos cavalos e pela correria dos
homens. Ficámos perplexos e estupefactos, e indagando sobre o que se
passava, nos disseram que o vizir que conquistou o trono do meu pai reuniu
os exércitos e aprontou os soldados, não hesitando em recorrer aos
beduínos, e nos atacava com exércitos mais numerosos que os grãos de
areia, e era tanta gente que era impossível contar quantos eram nem havia
rival capaz de lhes fazer frente. E atacando a cidade assim de surpresa, as
suas gentes não tiveram pujança para a defenderem, e renderam-se ao vizir.
Mataram o meu tio, e quanto a mim fugi para os arrabaldes da cidade, e
disse cá para mim: «Quando ele me encontrar, matar-me-á com as suas
próprias mãos, juntamente com Sâir, o carrasco do meu pai.» As minhas
mágoas redobraram-se e a minha angústia aumentou, e enquanto me
relembrava do que havia acontecido ao meu tio, ao meu pai e aos meus
primos, pus-me a chorar baba e ranho. Depois pensei: «Que hei-de fazer?
Se eu aparecer por aí, as gentes da cidade e o exército do meu pai
reconhecer-me-ão, porque todos eles me conhecem tão bem quanto o Sol, e
matar-me-ão só para ficarem bem vistos aos olhos do vizir.» Com isto, não
encontrei nenhum jeito de escapar são e salvo senão rapar a barba e as
sobrancelhas, mudar de roupas e vestir-me como os faquires, fazendo-me
passar por dervixe.
Saí da cidade sem ninguém me reconhecer, em direcção a estas terras, e
marchei caminho fora com o intuito de alcançar Bagdade, pensado que
talvez aí o meu destino se recompusesse, e encontrasse quem me
conduzisse à presença do miralmuminim, representante do Senhor do
universo, a quem eu poderia expor a minha história e as desgraças por que
passei. Cheguei esta noite à porta desta cidade e estando um tanto
atrapalhado sem saber aonde ir, encontrei este dervixe que está à minha
banda, que se acercou de mim, com ares de quem tinha vindo de viagem, e
depois de me cumprimentar perguntei-lhe: «És forasteiro?» «Sim»,
respondeu ele. E eu disse-lhe: «Eu também.» Então encetámos conversação,
e aqueloutro que está ao nosso lado, o outro dervixe, reparou em nós, veio
cumprimentar-nos e disse: «Sou forasteiro», e nós dissemos: «Nós
também.» Então prosseguimos juntos, mas a noite abateu-se sobre nós os
três, e como éramos forasteiros não sabíamos aonde nos dirigirmos.
Felizmente a Providência conduziu-nos até vossa casa e vós haveis sido
caridosas e generosas em nos receber, e até me haveis feito esquecer o
vazamento do meu olho e a rapadura da minha barba.

Então a moça disse: «Dá graças por ainda teres a tua cabeça e pira-te.»
Mas ele retorquiu: «Por amor de Deus, não arredo pé daqui sem ouvir as
histórias dos outros.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.» Então o rei Xariar disse de si para si: «Meu Deus,
adiarei a sua execução até ouvir a história das raparigas e dos dervixes. E
depois disso, matá-la-ei como tenho feito com todas as outras.»
40.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos um dos teus belos contos, para entretermos a
noite.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Conta-se, ó rei bem-aventurado, que o primeiro dervixe deixou os


convidados pasmados com a sua história, e o califa disse a Jáfar: «Em toda
a minha vida nunca tinha ouvido nada tão espantoso.» Em seguida, o
segundo dervixe avançou e disse:

História do segundo dervixe

Minha senhora, juro-vos por Deus que não nasci zarolho. O meu pai era
um rei, e ensinou-me através do Alcorão a ler e a escrever, até eu aprender a
recitar o Grandioso Alcorão nas suas sete diferentes leituras, a recitar a
Xâtibiya38, e a comentar um livro de jurisprudência ante os mestres depois
de o estudar. Em seguida enveredei pelo estudo da língua árabe e da sua
gramática, assim como me aperfeiçoei na arte da caligrafia até a minha
excelência suplantar a de todos os escribas da minha era e a de todas as
gentes do meu tempo. Aprofundei os meus conhecimentos de eloquência e
retórica a tal ponto que a minha fama se espalhou até às mais remotas
províncias e cidades, e todos os reis dos tempos conheciam os meus talentos
e a minha caligrafia.
Certo dia, o rei da Índia enviou ao meu pai presentes e raridades dignas
de rei e de subido preço, e pediu-lhe que eu lhe fosse enviado. O meu pai
aprontou-me com seis cavalos da posta. Despedi-me dele e fiz-me ao
caminho. Ao cabo de um mês de jornada, avistámos uma enorme nuvem de
pó, e mais tarde, quando o vento do chão a despregou e no ar a levantou, eis
que por debaixo do pó apareceram cinquenta cavaleiros em armaduras de
ferro, tais leões de olhar furioso.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão espantosa», disse a sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
41.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse: «Ó mana, se não estiveres a dormir,


conta-nos um dos teus belos contos, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Assim farei:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o segundo dervixe, o jovem filho


do rei, disse à moça:

Havendo nós olhado com mais atenção, vimos que eram salteadores, e
quando nos avistaram, sendo nós um pequeno grupo transportando dez
fardos que continham presentes, cuidaram que estes continham dinheiro, e
saíram a nós desembainhando as suas espadas e apontando-nos as suas
lanças. Com gestos e palavras, lhes dissemos: «Somos enviados do
grandíssimo rei da Índia, nada nos podeis fazer.» Mas eles responderam-
nos: «Não estamos na sua terra nem sob a sua autoridade.» E dizendo isto,
mataram quem estava comigo, e quanto a mim, apesar de ferido, consegui
fugir enquanto eles esbulhavam os presentes que levávamos. Fiz-me ao
caminho sem saber aonde me dirigir nem para onde me nortear. Eu era
poderoso e tornei-me impotente; era rico e tornei-me pobre.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse a sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se ele
me poupar e eu viver.»
42.a NOITE

E na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o segundo jovem dervixe disse à


moça:

Depois de me terem salteado, dirigi-me aonde quer que a sorte me


levasse, e em se fazendo noite, subi a uma montanha e abriguei-me numa
gruta até raiar o dia. Caminhei até de noite, comendo as plantas da terra e os
frutos das árvores, e dormi até raiar o dia. E assim continuei fazendo, por
espaço de um mês, até terminar a caminhada numa cidade afável, próspera
e segura, cheia de vida e apinhada de gente. Era uma cidade que se despedia
do frio do Inverno e recebia as flores da Primavera que começavam a
florescer, enquanto os rios caudalosos transbordavam e os pássaros
chilreavam, tal como disse um dos poetas que a descreveu:

Nesta cidade não se sente pavor


Porque se vive seguro e em paz.
Tal paraíso adornado em esplendor
É maravilha que a todos satisfaz.

Senti-me contente e triste, contente por alcançar a cidade e triste por


chegar num estado tão desgraçado, estafado de tanta caminhada, com a
minha cara, as mãos e os pés sujos e gretados, assaltado pelo desassossego e
pela aflição, e completamente empalidecido. Chegante lá, sem saber aonde
me encaminhar, aconteceu que eu passasse à banda da oficina de um
alfaiate. Cumprimentei-o e ele me deu as boas-vindas, e vendo em mim os
vestígios de dias mais prósperos, convidou-me a sentar com ele, e mui
simpaticamente pôs-se à conversa comigo. Indagou sobre mim, e em lhe
relatando o que se me havia sucedido e o quinhão que me havia calhado,
sentiu-se triste por mim e disse: «Ó moço, não reveles a ninguém a tua
história, porque o rei desta cidade é um dos maiores inimigos do teu pai e
tem-lhe um ódio sanguinário; por isso cala bem a tua boca.» Depois
ofereceu-me comida, e comemos juntos. À noite, cedeu-me um cubículo ao
lado do seu, e proveu-me com um cobertor e outras coisas de que eu era
falto.
Ao cabo de três dias de me dar guarida perguntou-me: «Sabes mister
algum que te possa trazer sustento?» Respondi-lhe: «Eu sou um homem
versado em jurisprudência, sábio e cultivado, poeta, gramático e calígrafo.»
Mas ele disse-me: «No nosso país, o teu saber não tem procura.» E eu disse:
«Por amor de Deus! Mas nada mais sei senão o que já mencionei.» Ele
disse-me: «Aguenta-te! Pega num machado e numa corda, vai para o campo
e colhe quanta lenha puderes. E não te dês a conhecer a ninguém, senão
serás aniquilado. Esconde quem tu és até que Deus te traga alívio.» Em
seguida comprou-me um machado e uma corda, e deixou-me com alguns
lenhadores. O dia todo, andei com eles à lenha, e regressei carregando um
fardo de lenha em cima da minha cabeça, que vendi por meio dinar, que
entreguei ao alfaiate.
Vivi deste jeito durante um ano inteiro, ao cabo do qual, um certo dia,
indo pelo campo bem adentro, encontrei uma brenha densa irrigada por
várias correntes de água. Lá no meio da brenha onde me havia embrenhado,
achei o toco de uma árvore, e em cavando à volta com o meu machado para
remover a terra, encontrei uma argola presa a um tampo de madeira. Ao
abri-lo deparei-me com uma escada, que desci até ao último degrau, e dei
por mim num palácio debaixo da terra, de esplêndida construção e
imponentes colunas, nunca havendo eu visto palácio mais belo do que
aquele. Ao caminhar pelo palácio, encontrei uma formosa moça tão
deslumbrante como uma pérola cintilante ou o Sol fulgurante, e com uma
voz que curava qualquer inquietamento e cativava qualquer um por mais
sensato ou razoável que fosse. Media uns cinco pés de alto, tinha seios bem
firmes e tenras bochechas. De cor radiante e compleição formosa, na noite
das suas tranças irradiava a sua cara, e por cima do suave declive do peito
brilhava a sua boca, tal como disse o poeta:

Quatro que nunca se cruzam, aqui se reúnem


Contra o meu coração, para sangue espargir:
Uma testa radiante, tranças que seduzem,
Bochechas rosadas e um brilhante sorrir.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
43.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos um dos teus belos contos, para entretermos a
noite.» E Xerazade respondeu: «Assim farei:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o segundo jovem dervixe disse à


moça:

Quando a moça me viu, perguntou: «És o quê, humano ou génio?» «Sou


bem humano», respondi eu. E ela inquiriu: «Qual a causa da tua vinda aqui?
Faz vinte e cinco anos que aqui vivo sem jamais haver visto um humano.»
Havendo eu achado aquelas palavras doces e tocantes, e ela cativado o meu
coração, disse: «Minha senhora, vim para bem da minha fortuna e para me
livrar das minhas aflições, ou então para bem da tua fortuna e para te livrar
do teu desassossego.» Em seguida, contei-lhe o que me havia sucedido, e
em se compadecendo de mim, disse: «Também eu te contarei a minha
história: Eu sou filha de um rei chamado Ephetimarus39, monarca da Ilha
dos Ébanos. O meu pai casou-me com um dos meus primos, mas na noite
da boda e da festa de núpcias fui raptada por um ifrite40, que me levou pelos
ares fora e instantes depois foi deitar-me neste lugar, provendo-me com
tudo de que eu fosse falta, desde comida, bebida, doces e por aí fora. Em
cada dez dias, ele visita-me e dorme comigo uma noite, pois antes de mim
já tinha família. Se precisar dele para o quer que seja, quer de dia quer de
noite, basta-me tocar nas duas linhas de texto gravadas neste degrau, que
mesmo antes de retirar a minha mão o vejo à minha frente. Queres viver
comigo durante cinco dias, e no dia anterior a ele vir, partes?» Respondi-
lhe: «Sim, quero, Que maravilha se só os sonhos fossem verdade!»
Contente com a minha resposta, levantou-se e em me agarrando pela mão
levou-me por uma porta arqueada até aos banhos. Tirou as minhas roupas e
as suas. Entrámos nos banhos, e ela banhou-me e lavou-me. Ao sair, vestiu-
me com uma muda de roupa nova, sentou-me num sofá, serviu-me uma
bebida num grande vaso de vidro, e pôs-se na conversa comigo durante
algum tempo, tendo-me depois dado algo a comer, e eu comi quanto me
bastasse. Em seguida ofereceu-me uma almofada e disse: «Dorme e
descansa, que estás cansado.» E em dormindo esqueci qualquer aflição
deste mundo e restabeleci o meu ânimo. E tempo depois ao acordar, vendo
que ela me massajava, levantei-me e agradeci-lhe, pedindo a Deus que a
abençoasse, pois tinha ficado pleno de pujança. Quando ela perguntou: «Ó
moço, queres beber?», eu respondi: «Sim, venha daí essa bebida.» Ela foi
até ao armário, retirou um vinho envelhecido que estava selado, preparou
uma mesa digna de um pomposo festim, e pondo-se a declamar, disse:

Se da vossa vinda tivéssemos previamente sabido,


O palpitante coração ou os negros olhos teríamos estendido,
As nossas bochechas sobre a terra distendido,
E as nossas pálpebras teríeis percorrido.

Dei-lhe graças pela poesia, e já o meu amor por ela se havia apoderado
de todo o meu corpo e a minha mágoa se havia desvanecido. Sentámo-nos a
beber vinho até à noite, e com ela passei tão deliciosa noite como jamais
havia passado em toda a minha vida, e em acordando continuámos deleite
atrás de deleite, até ser meio-dia. E estava tão bem avinhado, quase
desmaiado, que cambaleava para a direita e para a esquerda. Disse: «Ó bela,
sobe comigo para cima da terra e levar-te-ei embora desta prisão.» Ao que
ela se riu e disse: «Ó senhor meu amado, senta-te sem falares disparates,
podes dar-te por satisfeito, porque em cada dez dias, nove são para ti e um
só para o ifrite.» Então eu disse-lhe, já bem tocado pela bebida: «Agora
mesmo quebro o degrau onde está gravada a inscrição, e que venha o ifrite
que eu o matarei, que eu cá é aos dez de uma só vez.» Em ouvindo as
minhas palavras, ficou pálida e disse: «Não, por favor não o faças.» E
declamou:

Ó tu que a separação procuras, calma!


Que os cavalos que a trazem são velozes.
Calma, que a vida é composta de traição,
E o fim da amizade traz a separação.

Então, já bem tocado pela bebida, preguei um pontapé no degrau.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
44.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse: «Ó mana, se não estiveres a dormir,


conta-nos um dos teus belos contos, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Assim farei:»

Conta-se, ó rei bem-aventurado, que o segundo dervixe disse à moça:

Mal preguei o pontapé no degrau, a terra escureceu e estremeceu com o


ribombar de trovões e relâmpagos, e o mundo mergulhou nas trevas. A
minha bebedeira esvoaçou de imediato, e perguntei: «O que é isto?» Ao que
ela respondeu: «É o ifrite a chegar, salva a tua vida e sobe à superfície.»
Assim fiz eu, mas tal foi o medo que me esqueci do meu calçado e do
machado de ferro. E em subindo pelas escadas, vi o chão do palácio rachar-
se e apareceu o ifrite, dizendo: «O que se passa para eu ser incomodado
deste modo? Aconteceu-te alguma catástrofe?» Ela respondeu: «Senhor
meu, hoje senti-me um tanto abatida, então quis beber para alegrar o meu
âmago. Depois de beber um pouco, levantei-me para fazer uma
necessidade, e sentindo-me um tanto zonza, caí em cima do degrau.» O
ifrite disse: «Mentes, ó puta!» Então, dando-lhe na vista o calçado e o
machado, disse: «Isto é o quê?» Ela respondeu: «Nunca vi tais coisas senão
agora mesmo, devem ter vindo coladas às tuas roupas.» O ifrite disse: «A
mim não me enganas, ó sua desavergonhada!» E em pegando nela, despiu-
lhe as roupas, esticou-a com os pés e mãos atados a quatro estacas, e pôs-se
a torturá-la para que confessasse.
Nobre senhora, não fiquei indiferente ao ouvir os seus gritos de choro,
mas tremendo de medo, pouco a pouco lá fui subindo as escadas até chegar
cá fora, voltando a pôr o tampo como estava e a cobri-lo de terra. Ao pensar
na moça, na sua beleza e gentileza, nos seus modos prestáveis para comigo,
em como haviam passado vinte e cinco anos sem nada lhe acontecer, e
numa só noite que passei com ela lhe sucedeu o que sucedeu, fiquei ainda
mais triste e desassossegado. E pus-me a pensar no meu pai e no meu reino,
em como a vida me tinha traído e me tornei lenhador, e quando me sorriu
finalmente, volveu a enfurecer-se comigo novamente, e em pensando em
tudo isto, chorei baba e ranho, censurando-me a mim mesmo, e declamei:

O destino luta contra mim qual adversário,


E sem parar persegue-me com ódio arbitrário.
E se uma vez me sorriu todo amigo,
Noutra se volveu a enfurecer comigo.

Em seguida, caminhei até chegar à casa do meu amigo alfaiate, e


encontrei-o à minha espera e em grande ânsia. Ficando radiante de me ver,
disse: «Irmão, onde passaste a noite? Fiquei muito preocupado contigo, mas
graças a Deus estás são e salvo.» Agradeci-lhe o cuidado com a minha
pessoa, e entrei no meu cubículo, e sentei-me a pensar no que se havia
sucedido, censurando-me a mim mesmo pela minha curiosidade demasiada
e imprudente, pois se me tivesse contido de bater no degrau, nada disto
havia acontecido. Enquanto fazia contas à vida, o meu amigo alfaiate entrou
e disse: «Ó moço, lá fora está um ancião persa, com o teu machado de ferro
e o teu calçado. Ele foi ter com os lenhadores, dizendo-lhes: “Tropecei
neste machado e calçado ao sair para orar depois do almuadem ter chamado
para a oração da alvorada. Olhai bem para eles e indicai-me onde posso
encontrar o dono destes pertences.” Os lenhadores reconheceram o
machado e indicaram-lhe onde te encontrar, dizendo-lhe: “Este é o machado
do moço forasteiro hospedado no alfaiate.” E ele agora está sentado na
oficina; levanta-te e vai buscar o teu machado.» Ao ouvir isto, quedei-me
pálido e desfeito. E enquanto estava na conversa com o alfaiate, eis que o
chão do meu cubículo se rachou e de lá saiu o ancião persa, que não era
senão o ifrite, que havia torturado a moça quase até à morte sem que ela
nada houvesse confessado. E pegou no machado e no calçado, e disse:
«Não seja eu realmente o ifrite filho da filha do Diabo, se não encontrar o
dono deste machado.» E dito isto, veio disfarçado de persa, e sucedeu o que
sucedeu. E quando o chão se rachou e ele apareceu…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
45.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Se não


estiveres a dormir, conta-nos um dos teus belos contos.» E Xerazade
respondeu: «Assim farei:»

Conta-se, ó rei, que o segundo dervixe disse à moça:

Mal o ifrite apareceu, raptou-me e levou-me do meu cubículo voando


bem alto pelo céu fora. Um pouco mais tarde, desceu comigo até à terra,
bateu com o pé no chão, que se rasgou ao meio, e mergulhou comigo já
meio desmaiado chão adentro. Ao depois trouxe-me até ao mesmíssimo
palácio onde havia passado a noite, e quando vi a moça esticada, com
sangue escorrendo-lhe pelas costelas, os meus olhos inundaram-se de
lágrimas. O ifrite soltou-a, dando-lhe algo a vestir, e disse: «Ó sua
desavergonhada, é este o teu amante, não é verdade?» Ela olhou para mim e
disse: «Não o conheço de modo algum e jamais o vi senão agora mesmo.»
Ele disse: «Maldita sejas! Com tantas torturas e não confessas!» Ela disse:
«Este não o conheço, e não posso dizer mentiras sobre ele, para tu o
matares.» E vai ele e disse: «Então se o não conheces, pega nesta espada e
traça-lhe o pescoço!» A moça pegou na espada, acercou-se bem perto de
mim e eu fiz-lhe um sinal com as sobrancelhas, e havendo ela percebido o
meu sinal, também ela me fez um sinal piscando os olhos, como quem diz:
«Não foste tu a causa de tudo isto?» Respondi-lhe com um sinal de olhos
querendo dizer: «Este é o tempo do perdão», e ela respondeu com palavras
escritas com lágrimas nas páginas das suas bochechas:

O meu olhar fala pela minha língua para que ela saiba,
E assim se revela o amor que eu tentava calar.
No nosso encontro as lágrimas verteram os sentimentos,
Pois a minha língua ficou muda e foram os meus olhos a falar.
Ela faz sinais com os olhos e eu percebo o que diz;
E quando pisco os meus, ela sabe o que digo.
As nossas sobrancelhas tudo dizem entre nós,
Em silêncio nos quedamos e o amor fala por nós.

Então a moça lançou a espada por terra, recuou, e disse: «Como poderei
eu matar quem não conheço e sujar as minhas mãos com o seu sangue?» O
ifrite disse: «A sua morte não te é indiferente porque dormiste com ele.
Apesar das torturas que te foram infligidas, nada confessaste. O que é isso
senão compaixão sentida no próprio corpo?» Em seguida virou-se para mim
e disse: «Ó humano, e tu também não sabes quem é esta?» Respondi: «E
como havia de saber quem é, se jamais a vi senão agora mesmo?» E o ifrite
disse: «Então pega nesta espada e traça-lhe o pescoço, e eu acreditarei que a
não conheces e te libertarei.» Respondi: «Assim farei», e peguei na espada,
e num zás acerquei-me dela.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu ainda for
viva.»
46.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Termina a tua


história.» E Xerazade respondeu: «Assim farei:»

Ouvi dizer, ó rei, que o segundo dervixe disse à moça:

Quando peguei na espada e me acerquei dela, fez-me um sinal com as


pestanas, querendo dizer: «Que simpatia de pessoa tu és! É assim que me
recompensas!» E fez-me outro sinal com as sobrancelhas, e havendo eu
percebido o que queria dizer, pisquei-lhe os olhos: «Darei a minha vida por
ti.» E ficámos alguns momentos falando um com o outro através de sinais
da vista, e com estes sinais foi escrito um poema:

Quantos amantes às suas amadas


Dizem com os olhos os segredos do coração.
Basta uma mirada com os olhos lançar
E fico logo inteirada do que está ele a pensar.
E quão elegante a sua cara a olhar,
E tão belos olhos quando se exprime.
Um com as pestanas é escritor,
E outro com os olhos é leitor.
Então lancei a espada por terra, recuei, e disse: «Ó ifrite poderoso, se
uma mulher, que fala tortuosamente, não pensa e é gaga de língua, não quis
cortar o pescoço a quem não conhece, como poderei eu, que sou um
homem, cortar o pescoço a quem não conheço? Nunca tal coisa farei,
mesmo se tiver de beber do copo da morte.» Ao que o ifrite replicou: «Vós
estais é feitos um com o outro contra mim, já vos mostro a consequência
dos vossos actos!» E vai o ifrite pegou na espada e desferiu tal golpe na
moça que uma das mãos lhe voou; e desferiu-lhe outro golpe e a outra mão
também lhe voou. Ela, às portas da morte, com os seus olhos, despediu-se
de mim. Ó minha senhora, nesse momento desejei morrer ali mesmo e
desmaiei.
Ao depois, o ifrite disse: «Eis a recompensa de quem trai.» E virando-se
para mim, acrescentou: «Ó humano, segundo o nosso direito, quando uma
mulher é infiel, ela deixa de nos ser legalmente permitida, e por isso nós a
matamos e não lhe poupamos a vida. Esta moça, raptei-a na sua noite de
boda, era ela uma miúda de doze anos que nunca havia conhecido homem
antes de mim. A cada dez noites, eu vinha ter com ela em semelhança de
um homem persa, para passarmos a noite juntos. Quando determinei que ela
me tinha traído, matei-a, porque legalmente deixou de ser minha mulher.
Quanto a ti, não consegui determinar se és o culpado, mas não te deixarei ir
de boa saúde. Diz-me em que forma queres que eu te encante, um cão, um
burro, um leão, uma fera ou um pássaro?» Respondi-lhe, na esperança de
ser perdoado: «Ó ifrite, será mais apropriado se me perdoares, tal como o
invejado perdoou ao invejoso.» O ifrite perguntou: «E como foi isso?» e eu
disse:

História do invejoso e do invejado

Conta-se, ó ifrite, que havia dois homens numa cidade, que moravam
paredes meias. E um deles invejava o outro, lançava-lhe mau olhado e se
não poupava em lhe fazer torpezas. Estava sempre com inveja do vizinho, e
a sua inveja não parava de crescer, a tal ponto que já nem dormia bem nem
se alimentava como deve ser. Quanto ao invejado, por mais malvadezas que
o invejoso lhe fizesse, a sua riqueza não parava de crescer nem ele de
prosperar. Até que a inveja e as malvadezas do vizinho acabaram por afectar
o invejado, que então abalou dali para fora e largou a sua terra, dizendo de
si para si: «Valha-me Deus, por causa dele até este mundo abandonaria.»
Foi viver para outra cidade, comprou uma terra onde havia um antigo poço
de irrigação, e construiu uma azóia41, para a qual comprou esteiras de palha
e tudo o que fosse preciso, tornando-se um fiel devoto e um leal servidor de
Deus Todo-Poderoso. Os faquires começaram a afluir vindos de toda a
banda, e assim se espalhou naquela cidade a sua fama.
Não demorou muito até chegarem aos ouvidos do vizinho invejoso
notícias sobre a sua prosperidade e sobre como era frequentado pelos
notáveis da cidade. Então viajou até àquela cidade, e em entrando naquela
azóia, o vizinho invejado foi a recebê-lo, dando-lhe as boas-vindas,
alegrando-se com a sua vinda, e fazendo-lhe as honras da casa. Então o
invejoso disse: «A causa da minha visita é que lhe quero dar parte de algo.
Peço que se levante e caminhemos pela azóia enquanto conversamos.» O
invejado levantou-se e o invejoso pegou nele pela mão enquanto
caminhavam até aos confins da azóia. O invejoso disse: «Olhe, meu irmão,
diga aos seus faquires que entrem nos seus cubículos, pois quero dizer-lhe
uma coisa muito em particular, que ninguém nos oiça.» Então o invejado
disse aos faquires: «Entrem nos vossos cubículos», e assim fizeram eles. O
invejoso disse: «Agora, como estava dizendo, eis o que quero contar», e
caminhou com ele, até que pouco a pouco chegaram ao antigo poço. E vai o
invejoso empurra o invejado para dentro do poço, sem ninguém ver. Depois
saiu da azóia e foi à sua vida, convencido de que o havia matado.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
47.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos o que sucedeu ao invejoso depois de haver
botado o invejado para dentro do poço.» E Xerazade respondeu: «Assim
farei:»

Conta-se, ó rei, que o segundo dervixe disse à moça: «Então eu disse ao


ifrite:»

Ó ifrite, ouvi dizer que o invejoso atirou o invejado para dentro de um


poço mais antigo que a noite dos tempos, e era este poço habitado por
génios que, vendo o invejado caindo, lhe ampararam a queda, e o foram
sentar numa rocha, e se perguntaram uns aos outros: «Sabem quem é este?»,
e responderam: «Não.» Mas um deles disse: «Este é o homem invejado que
fugiu a sete pés de outro que lhe tinha inveja, e veio habitar na nossa
cidade, construindo esta azóia, donde provêm as invocações a Deus e as
leituras do Alcorão que nos fazem companhia. Havendo o invejoso viajado
para se encontrar com o invejado, armou-lhe uma cilada para o botar no
poço onde nós estamos. A fama deste homem chegou esta mesmíssima
noite aos ouvidos do rei desta cidade, que determinou visitá-lo amanhã de
manhã por causa da sua filha.» Então um outro deles perguntou: «E o que
se passa com a filha do rei?» Ele respondeu: «Está possuída pelo génio
Maimune, filho de Dâmedâme, que se enamorou loucamente por ela, e se
este homem conhecesse o remédio, poderia curá-la.» «E qual é esse
remédio?», perguntaram. E ele respondeu: «Nada há que seja mais fácil. O
gato preto que existe na azóia tem na cauda uma mancha branca do
tamanho de uma moeda de um dirame. Basta arrancar-lhe sete pêlos
brancos dessa mancha, incensá-los no turíbulo perfumando a filha do rei
com o fumo, que num pronto o monstro se sumirá da cabeça dela e jamais
volverá, ficando assim completamente curada.»
Ó ifrite, tudo isto se passou com o invejado ouvindo. E quando se tornou
manhã e luziu a aurora, os faquires vieram ter com o xeque42, e em o
havendo encontrado a sair do poço, a admiração que nutriam por ele
aumentou ainda mais. O invejado não tinha outro bichano que não aquele
gato preto, e arrancou-lhe sete pêlos da mancha branca da sua cauda, que
guardou consigo. E mal se levantou o Sol, apareceu o rei acompanhado do
seu exército, e apeou-se juntamente com os notáveis do reino, havendo
ordenado ao resto do exército que aguardasse lá fora. O rei entrou na casa
do invejado, que lhe deu as boas-vindas, o tratou com muito apreço, e lhe
perguntou: «Posso adivinhar a causa da visita de vossa alteza?» «Sim»,
respondeu o rei. E o invejado disse: «A causa da visita de vossa alteza é o
querer inquirir-me sobre a sua filha.» E o rei respondeu: «É verdade, ó
virtuoso xeque.» E o invejado disse: «Envie quem a traga, e se Deus quiser
ficará prontamente curada.» O rei ficou radiante, enviou alguém a buscá-la,
e trouxeram-na atada e acorrentada. Então o invejado sentou-a por detrás
duma cortina, sacou dos pêlos, incensou-os no turíbulo e perfumou-a com o
fumo, e num pronto aquele ifrite que possuía a sua cabeça gritou, indo-se
dela embora, e havendo a rapariga recuperado a razão, cobriu a cara e
perguntou: «O que se passa? Quem me trouxe a este lugar?»
O rei não podia transbordar maior alegria do que aquela, beijou-a nos
olhos e beijou a mão do xeque. Depois virou-se para os nobres e perguntou:
«O que me tendes a dizer? E o que merece quem curou a minha filha?»
«Que ele case com ela!», responderam eles. E o rei consentiu: «Sem
dúvida!» Então o rei casou-o com a sua filha, tendo-se o invejado tornado
genro do rei. E ao cabo de pouco tempo, o vizir morreu, e o rei perguntou:
«Quem faremos vizir?» «O genro de vossa alteza», responderam. Então o
invejado foi feito vizir do rei. E ao cabo de pouco tempo, o rei morreu, e
perguntaram: «Quem faremos rei?» E responderam: «O vizir.» Então o
invejado foi feito rei e tornou-se soberano.
Um dia, montava ele a cavalo com o seu séquito, quando…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
48.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos o que sucedeu ao invejoso e ao invejado.» E
Xerazade respondeu: «Assim farei:»

Ouvi dizer, ó rei, que o segundo dervixe disse à moça que havia dito ao
ifrite:

Um dia, o invejado montava a cavalo na companhia da corte, da mulher,


dos vizires e dos dignitários do reino, quando lhe deu na vista o invejoso
caminhando por aí adiante. Virou-se para um dos vizires e disse-lhe: «Traz-
me aquele homem, mas não lhe faças medo nem o assustes.» O vizir foi-se
e voltou com o vizinho invejoso. Então o rei disse: «Dêem-lhe mil pesos43
do meu tesoiro, forneçam-lhe vinte fardos de mercadoria para negociar, e
enviem-no com um séquito de guardas para a sua cidade.» Depois o
invejado despediu-se dele e foi-se, sem o recriminar pelo que lhe havia
feito.
Como podes ver, ó ifrite, o invejado perdoou ao invejoso, apesar de ele o
ter invejado desde o início, das torpezas que lhe fez, e de ter viajado para o
encontrar e o botar no poço para o matar. Ainda assim não lhe retribuiu com
a mesma paga, mas pelo contrário, pôs-se bem com ele e o perdoou.
Depois, ó minha senhora, chorei diante do ifrite até mais não poder, e
depois declamei:
Perdoa o meu crime. Os que na justiça são versados
A alguns criminosos oferecem clemência.
Perante ti assumo todos os meus pecados,
E espero receber os belos modos da indulgência.
Pois quem procura o perdão dos superiores,
Tem de saber perdoar o crime dos inferiores.

O ifrite disse: «Matar-te nem pensar, mas de modo algum te perdoarei e


te deixarei ir embora são e salvo. Em vez de te matar, irei encantar-te.»
Depois arrancou-me do chão e levou-me a voar tão alto que via a terra
como uma nuvem branca, até me poisar em cima duma montanha. Pegou
num pouco de terra, murmurou um encantamento, e borrifou-me com a
terra, dizendo: «Perde esta forma e toma a de macaco.» E num zás tornei-
me um macaco, e o ifrite prontamente me largou e se foi dali.
Quando me tornei no que me tornei, chorei pelo sucedido e culpei a vida
por não trazer nada de bom para ninguém. Depois desci a montanha e
encontrei-me num vastíssimo deserto, do qual não achei o fim senão ao
cabo de um mês de caminhada, quando avistei mar. E em estando na praia,
reparei numa embarcação em pleno mar que sulcava as ondas ao sabor de
ventos favoráveis. Pendurei-me num ramo de árvore para o partir, e com
esse ramo pus-me a fazer sinais em direcção à embarcação, correndo de
uma banda para a outra e acenando com o ramo de todas as formas e feitios,
mas não tendo língua para falar, quedei-me com o espírito abatido.
Inesperadamente, eis que a embarcação muda de rumo em direcção a terra,
e quando se aproximou pude ver que era uma embarcação de grande porte,
trazendo mercadores do fim da monção e carregada de mercadorias e
especiarias. Quando os mercadores me viram, disseram ao arrais: «O senhor
arrais pôs as nossas vidas e as nossas mercadorias em perigo por causa de
um macaco, que ainda por cima é um animal que onde quer que se encontre
dá cabo da sorte a qualquer um.» E vai um deles disse logo: «Vou matar o
macaco!». E outro disse: «Vou trespassá-lo com uma flecha!» E outro ainda
disse: «Vamos antes afogá-lo no mar.» Quando ouvi o que disseram, dei um
salto tal que me agarrei à lapela da roupa do arrais como se pedisse
protecção, chorando e vertendo lágrimas cara abaixo. O arrais e todos os
demais quedaram-se pasmados com a minha reacção, tendo-se
compadecido alguns deles. Então o arrais disse: «Caros mercadores, este
macaco pediu-me protecção e agora está sob a minha custódia. Que nenhum
de vós lhe ouse fazer qualquer mal, porque terá de se haver comigo!»
Depois o arrais passou a tratar-me com estima, e tudo o que ele me dizia eu
compreendia e fazia, mas a minha língua não lhe conseguia responder.
Depois de cinquenta dias a viajar pelo mar com bons ventos e bons ares,
chegámos a uma enorme e vasta cidade, onde havia tantas gentes que seria
impossível contá-los a todos. E mal a nossa embarcação abicou no porto e
ferrou âncora, apareceram mensageiros do rei que subiram a bordo e
disseram: «Eminentíssimos mercadores, o nosso rei felicita-vos por
chegarem sãos e salvos, e envia-vos este rolo de papel, pedindo que cada
um de vós escreva uma só linha nele. Pois o vizir, que era um homem
sabido nos assuntos de Estado e um calígrafo exímio, morreu, e o rei jurou
solenemente que não faria vizir senão aquele que souber escrever tão bem
quanto ele escrevia.» Em seguida, estendeu aos comerciantes um rolo de
papel que media dez côvados em longura e um côvado de largo, e todos
aqueles que sabiam escrever escreveram, e quando já não faltava ninguém,
saquei-lhes o rolo das mãos, e eles desataram a gritar e a ralhar comigo,
cuidando que eu o botaria no mar ou o rasgaria, mas em lhes assinalando
que eu queria escrever, ficaram espantadíssimos até mais não e disseram:
«Nunca vimos um macaco a escrever!» Ao que o arrais lhes disse:
«Deixem-no escrever o que ele quiser, e se garatujar eu mesmo lhe darei
umas valentes cacetadas e o mandarei borda fora, e se souber escrever bem,
eu o reconhecerei como sendo meu filho, já que nunca vi ninguém mais
inteligente e de tão bons modos, e quem me dera que filho meu tivesse esta
inteligência e estes bons modos.» Peguei num cálamo, mergulhei-o no
tinteiro, e escrevi estes versos, usando a caligrafia de estilo Rucaa, e que
passo a citar:

Se o tempo registasse as virtudes dos benevolentes


A tua virtude tudo o que já se escreveu apagaria.
Deus não orfanará os teus descendentes,
Porque da virtude és tu o pai e a mãe, todavia.

Depois, por baixo destes versos, e usando a caligrafia de estilo


Muhaqqaq, escrevi estes que passo a citar:

As virtudes do seu cálamo a todo o lado chegaram,


E à sua fama ninguém fica indiferente.
Até o Nilo, cujas cheias a terra destrói,
Aos escritos do seu punho é deferente.

Depois, por baixo deste versos, e usando a caligrafia de estilo Rihani,


escrevi estes que passo a citar:

Pelo Deus Único, Irrivalizável e Sempiterno,


Juro que quem como escriba me eleja,
Jamais irá negar o ganha-pão,
A quem quer que seja.

Depois, usando a caligrafia de estilo Nácekh, escrevi estes versos que


passo a citar:

Não há calígrafo que à morte resista,


Mas o tempo guardará o que escreveu sua mão doutrinal.
Que com a tua letra nada escrevas,
Senão o que te alegrará ver no Dia do Juízo Final.

Depois, usando a caligrafia de estilo Thuluth, escrevi estes versos que


passo a citar:

Se os acasos da vida a separação nos ditarem,


E os nossos belos dias condenados forem,
À boca dos tinteiros regressaremos,
E, na língua dos calámos,
Da dor da separação nos queixaremos!

Depois, usando a caligrafia de estilo Tumar, escrevi estes versos que


passo a citar:

Se abrires o tinteiro dos benefícios e da reputação,


Sê generoso e magnânimo com a tinta que usas,
Escrevendo feitos bondosos enquanto és capaz,
E o cálamo e a espada o teu dom testemunharão.

Depois devolvi-lhes o rolo e eles, pasmados do meu feito, levaram-no.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão espantosa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
49.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse: «Termina a tua história.» E Xerazade


respondeu: «Assim farei:»

Conta-se, ó rei bem-aventurado, que o segundo dervixe disse à moça:

Os oficiais do rei pegaram no rolo e foram ter com o rei, que, pasmado ao
ver aquela caligrafia, lhes disse: «Levem esta mula e este traje ao dono
destas sete caligrafias.» Então riram-se, mas quando viram que o rei se
tinha enfurecido, disseram: «Ó rei dos tempos e senhor do mundo, foi um
macaco quem escreveu estas linhas.» O rei ficou pasmadíssimo e disse:
«Quero ver esse macaco.» E depois enviou os seus mensageiros com a mula
e o traje, dizendo: «Tragam-me o macaco, depois de lhe vestirem o traje e o
montarem na mula, e tragam-me também o seu dono.»
Estávamos nós no barco, quando de repente se acercaram os mensageiros
do rei. Levaram o arrais, e quanto a mim vestiram-me o traje e montaram-
me na mula, levando-me pelas ruas fora com grande pompa e circunstância,
o que gerou um enorme rebuliço na cidade, tendo as suas gentes saído à rua
para me contemplarem, e mui grande foi a azáfama porque ninguém na
cidade, fosse miúdo ou graúdo, deixou de sair para ver aquele espectáculo.
E quando chegámos ao rei, o rebuliço havia crescido ainda mais, e as gentes
diziam entre si: «O rei escolheu um macaco para vizir.»
Quando fui levado à presença do rei, prosternei-me por terra e fiz três
vénias, e depois beijei o chão ante os dignitários do Estado e os camaristas,
e ajoelhei-me. Os presentes pasmaram-se com os meus bons modos, sendo
o rei quem mais pasmado ficou, exclamando: «Que coisa mais espantosa.»
Depois deu licença aos emires para se retirarem, e todos se retiraram,
ficando só o rei, o criado, um catraio mameluco44 e eu, tendo em seguida
dado ordens para que lhe fosse posta a mesa, e depois fez-me sinal para eu
comer com ele. Levantei-me, beijei o chão e lavei as mãos sete vezes, e
voltei a ajoelhar-me, e comi só um pouco, como mandam os bons modos.
Depois peguei no tinteiro e no cálamo, e escrevi numa bandeja de madeira o
que passo a citar:

Chora pelos grous servidos com molho suculento,


Pranteia quem morreu para os fritos e os guisados.
Lamenta as filhas das cortiçolas, as polhas, e os frangos fritos,
Tal como eu que não deixo de lamentá-los.
Oh! Tanta pena sinto destes dois diferentes peixes,
Cada um no seu naco de pão levam-me ao sétimo céu!
Na frigideira sobre a persistente brasa,
Os ovos parecem olhos a fritar as suas mágoas.
Não há melhor do que este divinal grelhado,
Num prato com verduras em vinagre banhadas.
E o meu apetite não vacila enquanto me não saciar
Com papas de carne na companhia de luzidias braceletes.
Ó alma, sê paciente com a inconstância da vida,
Pois se um dia estás num beco sem saída,
Outro virá em que exultarás de alegria.

O rei leu o que eu havia escrito e pôs-se a matutar no assunto. Depois,


levantaram a mesa e o escanção serviu-nos um vinho de primeira qualidade
num decantador de vidro. O rei bebeu e em seguida ofereceu-mo a beber, e
eu beijei o chão antes de beber, e depois escrevi o que passo a citar:

Para que confessasse, com fogo me queimaram,


E com tal tribulação viram como me perseverei.
Por isso em ombros me levantaram,
E lábios de formosas moças beijei.

O rei leu a poesia, e ficando muito surpreendido disse: «Se houvesse um


homem assim tão cultivado, suplantaria em excelência todos os homens do
seu tempo.» Em seguida, o rei mostrou um tabuleiro de xadrez e por meio
de sinais perguntou-me: «Jogas?» Beijei o chão e meneei a cabeça para
dizer que sim. Montámos as peças, eu e ele, e jogámos. Na primeira partida
ficámos empatados, mas à segunda partida ganhei-lhe. E tornei a jogar com
ele uma terceira vez, e ganhei-lhe. O rei ficou surpreendido comigo, então
peguei no tinteiro e no cálamo, e escrevi sobre o tabuleiro o que passo a
citar:

Dois exércitos todo o dia se açoitam,


Numa guerra cada vez mais acirrada.
Mas em se fazendo noite fechada,
Os dois numa só cama pernoitam.

Quando o rei leu isto, ficou maravilhado e completamente atónito, e disse


ao criado, que era eunuco: «Muqbil, vai ter com a tua senhora, a senhora
Sitt-al-Husne45, e diz-lhe que o seu pai, o rei, lhe disse para vir até aqui
admirar algo bem estranho e maravilhoso.» O eunuco desapareceu por
instantes para regressar com a filha do rei. Havendo ela entrado e me visto,
cobriu logo a cara e disse: «Ó pai, perdeu o sentido de honra ao ponto de me
expor ante os homens?» Surpreendido com o dizer da filha, o rei disse: «Ó
filha, mas connosco não está senão este mameluco pequeno de idade e este
teu tutor que te criou e é o teu pai; de quem cobres a cara?» «Deste jovem,
que é filho de rei e foi encantado pelo ifrite filho da filha do Diabo, que o
encantou em macaco depois de haver morto a sua própria mulher, que era
filha do rei Ephetimarus, monarca da Ilha dos Ébanos46. Este que aqui vê
como sendo um macaco é na realidade um homem sábio, cultivado,
inteligente e requintado.» O rei espantou-se com tal coisa, olhou para mim e
perguntou: «É verdade o que disse a minha filha?» E meneei a cabeça para
responder que sim. Então virou-se para a sua filha e disse: «Por amor de
Deus, ó filha, mas como soubeste que ele estava encantado?» «Ó pai,
quando era pequena, na minha companhia havia uma velha astuta e matreira
que era feiticeira; ela ensinou-me as artes mágicas e transmitiu-me o saber
do seu mister, tendo eu copiado e memorizado setenta passos de artes
mágicas, sendo que o mais pequeno deles me permitiria por si só e em
menos de uma hora enviar toda a cidade, pedra sobre pedra, para lá do
monte Qaf e do oceano que rodeia o mundo.» O rei espantou-se com o que
tinha ouvido, e disse: «Que o nome de Deus seja contigo minha filha. Tens
um dom tão poderoso e eu de nada sabia. Por amor à minha vida, peço-te
que o desencantes para que eu o faça vizir e o case contigo.» E ela
respondeu: «Com todo o prazer.» E em seguida pegou numa faca…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
50.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos um dos teus belos contos.» E Xerazade
respondeu: «Assim farei:»

Ouvi dizer, ó rei, que o segundo dervixe disse à moça:

A filha do rei pegou numa faca com nomes gravados em hebraico e com
ela desenhou um círculo no chão do átrio central do palácio, onde escreveu
nomes em caligrafia cúfica e outras palavras talismânicas. Depois conjurou
um encanto, e instantes depois vimos o mundo escurecer até os nossos
olhos nada conseguirem ver, e cuidámos que o céu nos caía em cima. E
num pronto apareceu o ifrite, descendo sobre onde estávamos, com a forma
de um leão e a força de um toiro, e ficámos assustados e trespassados de
medo. Vai a rapariga e disse: «Desanda daqui, cão!» Ao que o ifrite
replicou: «Traidora! Enganaste-me e traíste o nosso pacto. Não tínhamos
nós feito um juramento solene de que um não prejudicaria o outro?» «E
como poderia eu manter um pacto com alguém como tu?» «Então toma o
que mereces!», disse-lhe o ifrite, abrindo as mandíbulas e se lançando sobre
a moça, que num ápice arrancou um cabelo seu da cabeça, e em o agitando
murmurou umas palavras e o cabelo se transformou numa espada afiada, e
vai ela corta o leão em duas partes, que voaram menos a cabeça, que se
tornou em lacrau. A moça, por sua vez, mudou logo de forma tornando-se
uma enorme serpente, e os dois travaram uma luta aguerrida entre si. Nisto
vai o lacrau e torna-se um abutre, pondo-se a voar dali para fora, mas a
cobra logo tomou a forma de uma águia e pôs-se a voar perseguindo o
abutre, e durante algum tempo desapareceram da nossa vista, até que o chão
se rachou e de lá saiu um gato malhado que rosnou, rugiu e grunhiu, e em
seguida veio um lobo negro, e os dois carregaram um sobre o outro. E
quando o gato começou a perder para o lobo, rugiu e logo se tornou em
bicha, e rastejou até entrar numa romã que estava à banda da fonte. A romã
por sua vez começou a inchar, e a inchar, até ficar do tamanho de uma
enorme melancia; e vai o lobo tornou-se logo num galo branco. Mas a romã
começou a subir nos ares, acabando por cair no chão de mármore,
despedaçando-se, e em se espalhando as sementes o galo pôs-se a apanhá-
las, até nenhuma sobrar senão uma que ficou escondida à banda da fonte.
Então o galo fez um grande alarido, batendo as suas asas e gesticulando
para nós com o seu bico, como se quisesse perguntar: «Sobrou alguma
semente?» Mas nós não percebemos o que ele queria dizer, e ele soltou um
guincho a tão alta voz que julgámos que o palácio nos ia cair em cima.
Depois, o galo, ao virar o pescoço, enxergou a semente à banda da fonte, e
investiu logo para a apanhar…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
51.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, por favor conta-nos o resto da história.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei, que o segundo dervixe disse à moça:

Minha senhora, o galo, radiante de ver a semente da romã, investiu logo


para a apanhar, mas a semente caiu na fonte, tornou-se um peixe e
mergulhou na água. E num pronto o galo se tornou num peixe maior que o
outro, e mergulhou atrás dele, e os dois atravessaram o chão da fonte e
desapareceram durante um par de horas. Depois ouvimos gritos, gemidos e
guinchos, que nos causaram frémitos, e algum tempo depois surgiu o ifrite
em semelhança de labareda, soprando fogo e faúlhas pela boca, olhos,
narinas, e por todos os orifícios da pele; e em seguida surgiu a moça,
também ela em labareda de fogo. E os dois travaram uma longa e aguerrida
batalha entre si, até que ficaram ambos embrulhados nas suas próprias
chamas, e em ficando o fumo encurralado no palácio, nos rendemos ao
facto de que iríamos sufocar, certos de um grande desastre, e com medo
pelas nossas próprias vidas, cuidámos que estávamos perdidos, e como o
fogo ia ficando cada vez mais avassalador e poderoso, gritámos: «Não há
força nem poder senão em Deus Altíssimo e Grandioso.»
Sem darmos por ela, o ifrite desembaraçou-se da sua adversária, e com a
sua forma de labareda acercou-se de nós qual aguilhão de fogo,
encurralando-nos numa das paredes anichadas e abobadadas do átrio, e em
seguida soprou fogo nas nossas caras, e a moça veio logo a gritar contra ele.
E quando o ifrite soprou fogo nas nossas caras, também lhe saíram faúlhas
com o sopro, e uma delas acertou-me no olho direito, que ficou cego,
enquanto eu ainda tinha a forma de macaco; e outra faúlha acertou no rei,
que ficou com metade da cara queimada, juntamente com a barba e o
queixo, e caiu-lhe ainda uma fiada de dentes; e houve ainda outra faúlha
que foi cair em cima do criado, que ficou em chamas e morreu ali mesmo.
E quando já estávamos bem certos da nossa perdição e já tínhamos
perdido todas as esperanças de ficarmos vivos, eis que ouvimos alguém a
gritar vitória: «Deus é grande, Deus é grande! Deus conquistou e triunfou,
Deus derrotou o infiel.» E era a filha do rei que tinha acabado de vencer o
ifrite. E quando olhámos, vimos um monte de cinzas. A moça veio ter
connosco, pediu que lhe dessem uma taça de água, e disse: «Pela virtude do
nome de Deus Todo-Poderoso e da Sua Aliança, eu te desencanto», e isto
dito borrifou-me com água, e eu me sacudi erguendo-me ‘na forma de um
homem em todos os aspectos’ 47.
Logo a seguir, a moça gritou: «Fogo! Estou a arder!» e depois disse: «Ó
pai, terei saudades suas; o ifrite atingiu-me com uma flecha certeira, e não
viverei muito mais. Apesar de não estar habituada a combater os génios,
nada de maior me empeceu de o fazer, mas quando a romã se desfez e eu
tomei a forma de galo, me pondo a apanhar as suas sementes, não vi a
semente que continha o âmago do ifrite. E se a tivesse apanhado, tê-la-ia
morto nesse mesmo instante, mas como não a vi, desencadeou-se entre nós
uma guerra acirrada debaixo do chão e outra nas alturas dos céus. Sempre
que ele iniciava um truque de artes mágicas, eu neutralizava-o com outro
ainda mais poderoso, até que determinei usar o poder do fogo, e poucos são
aqueles que o fazem conseguindo sobreviver. Mas sendo eu mais
habilidosa, e graças ao auxílio de Deus, consegui matá-lo. Que Deus vos
proteja na minha ausência.» E depois tornou a gritar: «Fogo! Estou a
arder!»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história
tão boa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu ainda for
viva.»
52.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos um dos teus contos.» E Xerazade respondeu:
«Assim farei:»

Ouvi dizer, ó rei, que o segundo dervixe disse à moça:

Depois de a moça filha do rei gritar: «Fogo! Estou a arder!», o seu pai
disse: «Ó filha, bem me admiro de não morrer outrossim! Pois o teu criado
morreu num pronto e este jovem rapaz perdeu a vista dum olho.» Depois
chorou, o que me fez chorar também. E pouco tempo passou até a moça
tornar a gritar: «Fogo! Estou a arder!» e uma faúlha se apoderou das suas
pernas, que começaram a arder, e foi-lhe trepando pelas coxas, e ela gritava.
«Fogo! Estou a arder!» E depois apoderou-se do seu peito, e ela gritava:
«Fogo! Estou a arder!» E depois queimou-a por inteiro e restou só um
monte de cinza.
Deus me valha, minha senhora, fiquei tão triste e transtornado pela moça
que até desejei ser um cão ou um macaco, ou mesmo morrer para não ver a
moça naquela situação, a sofrer desgraçadamente de tal guisa, tornando-se
um monte de cinza. Quando o pai a viu morta, desatou a esbofetear a
própria cara, e eu segui-lhe o exemplo fazendo o mesmo. Então vieram os
criados e os dignitários de Estado, e fica- ram pasmados ao verem o rei num
estado tão pesaroso à banda de dois montes de cinza. Abeiraram-se do rei
até ele volver a si e lhes explicar o que havia sucedido à filha, havendo
todos eles se quedado mui pesarosos, e decretaram luto durante sete dias.
Depois o rei construiu um mausoléu sobre o monte de cinzas da filha, mas a
cinza do ifrite espalhou-a ele ao sabor do vento.
O rei adoeceu, mas ao cabo de um mês, havendo Deus escrito que ele se
salvava, recuperou a saúde e cresceu-lhe a barba. Então chamou-me à sua
presença e disse-me: «Ó rapaz, ouve o que tenho para te dizer e em nada te
oponhas.» Respondi-lhe: «Real senhor, em nada me oporei.» E ele disse:
«Temos vivido da melhor maneira durante todo o tempo, a salvo dos
infortúnios do mundo, até teres vindo com o teu mau fado e nos trazeres a
desgraça, perecendo a minha filha para que tu pudesses viver, e morrendo
um criado meu, havendo eu por pouco escapado à minha aniquilação. Tu és
a causa disto tudo e dês que te pusemos os olhos em cima nada de bom nos
chega. Quem me dera que nunca te tivéssemos encontrado, porque a tua
salvação foi a nossa destruição. Quero que abandones a nossa cidade e te
vás embora em paz, mas se te voltar a encontrar matar-te-ei.» Depois
desatou aos berros comigo, e eu retirei-me da sua presença, desiludido com
a vida e sentindo-me cego e surdo perante tudo.
Fugi daquela cidade a chorar em grande desconcerto, sem saber para
onde ir, a pensar em tudo o que me havia acontecido dês que entrei naquela
cidade até me ir embora naquele estado deplorável e cada vez mais
desassossegado. Mas antes de me partir dali, fui aos banhos da cidade, rapei
a barba e as sobrancelhas, de lá saindo trajado com uma vestidura de
serapilheira, e alvorei.
Minha senhora, todos os dias penso nos meus infortúnios, na morte das
raparigas e em ter ficado zarolho, e choro desalmadamente enquanto repito
os versos que passo a citar:

Bem sabe o Todo-Misericordioso do meu desconcerto,


E donde me chegam tantos males eu não sei.
Perseverarei até a minha paciência se impacientar,
Perseverarei até Deus o meu quinhão decretar.
Perseverarei até Deus saber que eu sofri
Amargura mais amarga que o azebre.
Não haveria provado tão amargo sabor
Não houvesse a minha paciência sido traída pela tortura.
E não me haveria amargurado tão amargo quinhão
Não houvesse o meu quinhão sido traído pela amargura.
Aqueles que dizem que na vida existe doçura,
Dia mais amargo que o azebre conhecerão.

Então viajei por vários países e visitei muitas cidades, com o intuito de
alcançar Bagdade, cuidando que talvez aí encontrasse quem me levasse à
presença do miralmuminim, a quem eu contaria a minha história e as
desgraças por que passei. Cheguei esta noite mesmo e encontrei este irmão
especado no meio da rua. Cumprimentei-o e perguntei: «És forasteiro?»
«Sim, sou forasteiro», respondeu ele. E quase de seguida veio estoutro, que
nos cumprimentou e disse: «Sou um forasteiro», e nós lhe respondemos:
«Outrossim somos nós forasteiros tal como tu.» Então prosseguimos juntos,
mas a noite abateu-se sobre nós os três. Felizmente a Providência conduziu-
nos até vós. E esta é causa de ter ficado sem um olho e de ter rapado a
minha barba.

Então a moça disse: «Dá graças por ainda teres a tua cabeça e pira-te.»
Mas ele retorquiu: «Por amor de Deus, não arredo pé daqui sem ouvir as
histórias dos outros.» Então desamarraram-no e ele se pôs à banda do
primeiro dervixe.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Esta história é tão


boa e tão estranha», disse a sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
53.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse: «Ó mana, se não estiveres a dormir,


por favor conta-nos algo para entretermos a noite.» O rei disse: «Que seja o
desfecho da história dos dervixes.» E Xerazade respondeu: «Assim farei:»

Conta-se, ó rei, que o terceiro dervixe disse:

História do terceiro dervixe

Ó mui honorável senhora, irei contar qual a causa que me fez ficar sem
um olho e rapar a barba, mas a minha história é diferente das outras que
ouvimos, não só porque é mais estranha e espantosa, mas também porque
os infortúnios do destino visitaram os meus companheiros de surpresa,
enquanto no meu caso fui eu quem os trouxe para a minha vida, sendo o
único culpado do desassossego da minha alma.
O meu pai era um rei grande e poderoso, e quando morreu tomei eu as
rédeas do reino. Chamou-me Ajibe48 filho de Khacib, e a minha cidade
ficava à beira-mar, abrindo-se por um vastíssimo mar onde não faltavam
ilhas. À minha disposição tinha cinquenta embarcações mercantes, outras
cinquenta de recreio, e outras cento e cinquenta equipadas para a guerra e
para o combate contra os infiéis.
Querendo ir passear pelas ilhas, reuni provisões para um mês, parti em
viagem de recreio, e depois regressei à minha terra. Tomado por um desejo
de conhecer o mar, fiz uma segunda viagem, tendo para isso reunido
provisões para dois meses e aprontado dez embarcações. Viajámos quarenta
dias, e ao quadragésimo primeiro dia abateu-se sobre nós uma furiosa
tempestade, com ventos que sopravam de vários quadrantes e ondas tão
violentas e revoltas que perdemos todas as esperanças de permanecermos
vivos, e tendo ficado escuro como breu, disse de mim para mim: «O
imprudente não merece louvores mesmo quando se salva.» Invocámos Deus
Todo-Poderoso, implorando e suplicando, mas os ventos continuaram a
soprar de vários quadrantes e o mar tormentoso, até ao raiar da aurora,
quando se amainaram os ventos e as ondas, e o mar se acalmou e o tempo
clareou.
Em breve o Sol se ergueu, tendo-se o mar tornado raso como uma folha,
e nós abicámos numa ilha, onde cozinhámos e comemos qualquer coisa,
tendo descansado durante dois dias. Depois viajámos pelo espaço de dez
dias, e em ficando o mar cada vez mais largo e nós cada vez mais distantes
de terra, o arrais estranhou e disse ao gajeiro: «Sobe ao cesto da gávea e
diz-me o que vês.» O gajeiro subiu, demorando-se uns momentos, e depois
de descer disse: «Arrais, olhei para a direita e só vi o céu apoiado em cima
do mar, olhei para esquerda e vi um vulto negro avultando-se. Foi tudo o
que vi.» Ao ouvir aquilo, o arrais botou o turbante ao chão, arrancou a
barba, esbofeteou a própria cara, e disse: «Real senhor, anuncio a nossa
total aniquilação; não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e
Grandioso.» E desatou a chorar, o que nos fez chorar também. Em seguida
dissemos-lhe: «Ó arrais, explique lá bem essa história.» «Meu senhor,
perdemos o rumo desde o dia em que sobre nós se abateu aquela
tempestade, e agora não poderemos volver. Amanhã ao meio-dia,
alcançaremos uma montanha negra feita de um minério chamado pedra-
íman. Como as correntes nos empurrarão para junto do sopé dessa
montanha, e porque Deus Todo-Poderoso atribuiu à pedra-íman a
propriedade misteriosa de ser amante do ferro, as embarcações ao se
aproximarem despedaçar-se-ão e todos os seus pregos esvoaçarão para se
colarem à montanha, onde o que não falta é ferro a cobri-la quase toda, e
que se foi acumulando desde tempos remotos, por mor da muita soma de
embarcações que por lá passaram. No topo da montanha, na face virada
para o mar, há uma cúpula de bronze andalusino, sustentada por dez colunas
também de bronze. Em cima da cúpula, há um cavaleiro de bronze e um
cavalo de bronze, e o cavaleiro tem uma placa de chumbo ao peito onde
estão gravados conjuros mágicos. Real senhor, não é senão este cavaleiro
quem aniquila as pessoas, e se ele fosse derrubado do seu cavalo seria um
grande alívio para a humanidade.» Depois, minha senhora, o arrais desatou
a chorar como um desalmado, e estando nós certos da nossa aniquilação,
chorámos pelas nossas vidas, e todos se despediram uns dos outros, e deram
o seu testamento ao seu amigo mais próximo, na esperança de que aquele se
salvasse.
Nessa noite ninguém conseguiu dormir, e no dia seguinte pela manhã
aproximámo-nos do Monte Íman, e lá para o meio-dia fomos levados pelas
correntes para junto do seu sopé. Foi então que as nossas embarcações se
desintegraram e tudo o que era ferro e parafuso se soltou, atraído em
direcção à montanha, onde se foi emaranhar. Houve quem se afogasse e
quem se salvasse, mas estes últimos não sabiam uns dos outros. Minha
senhora, Deus salvou-me da desgraça e sofrimento que Ele havia escolhido
para mim, e ao me agarrar a uma das tábuas da embarcação, o vento soprou,
levando-me num pronto até terra firme, onde encontrei um caminho que
permitia subir a montanha até ao seu topo, com escadas esculpidas na
rocha.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
54.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, por


favor conta-nos como acaba a história do terceiro dervixe.» E Xerazade
disse: «Assim farei:»

Real senhor, ouvi dizer que o terceiro dervixe disse à moça:

Quando vi o caminho na montanha, invoquei o nome de Deus Todo-


Poderoso, agarrei-me às escadas e as fui escalando pouco a pouco, tendo
Deus Todo-Poderoso permitido que os ventos amainassem e me ajudassem
na subida, e foi só assim que consegui chegar sem percalço de maior ao
topo e à cúpula. Radiante por haver lá chegado são e salvo, e depois de
entrar na cúpula, fiz as minhas abluções e orei, prosternando-me várias
vezes para dar graças a Deus Todo-Poderoso o estar são e salvo. Depois
adormeci debaixo da cúpula que dava para o mar, e durante um sonho ouvi
uma voz dizer-me: «Ajibe, quando acordares escava por baixo dos teus pés,
e aí encontrarás um arco de bronze e três flechas de chumbo com talismãs
gravados. Pega no arco e nas flechas, e dispara contra o cavaleiro,
derrubando-o do cavalo para livrares a humanidade desta grande
calamidade. Quando disparares contra o cavaleiro, ele tombará no mar e o
cavalo cairá aos teus pés, e tu enterrarás o cavalo no sítio onde estava o
arco, e em o fazendo, o mar se aproximará e subirá até ao nível da cúpula.
Quando as águas atingirem o mesmo nível do topo da montanha e da
cúpula, uma chalupa virá ter contigo com um homem feito de bronze, mas
que não é aquele contra quem disparaste, e nas suas mãos trará dois remos.
Embarca com ele sem invocares o nome de Deus, e ele remará por ti
durante dez dias até chegares ao Mar da Salvação. Quando aí chegares,
encontrarás quem te leve de volta à tua terra, mas tal só acontecerá se nunca
invocares o nome de Deus.»
Ao acordar, pus mãos à obra e fiz o que a voz me havia dito, ataquei o
cavaleiro, que tombou do cavalo, indo em seguida cair no mar, enquanto o
cavalo caiu ali mesmo aos meus pés, e quando o enterrei no sítio onde
estava o arco, o mar começou a aproximar-se e a subir até ao nível onde eu
estava. Pouco tardou até ver a chalupa em pleno mar vindo na minha
direcção, e então agradeci e louvei a Deus Todo-Poderoso. Quando chegou
perto de mim, vi um homem de bronze com uma placa de chumbo ao peito
onde estavam gravados nomes e talismãs. Subi a bordo, ficando em
silêncio, e ele remou por mim durante o primeiro dia e o segundo, até ao
nono dia, quando dei vivas ao avistar montanhas, ilhas e sinais da minha
salvação iminente, e por causa da minha grande alegria dei graças a Deus
Todo-Poderoso e gritei: «Deus é grande» e: «Não há nenhuma divindade a
não ser Deus.» E mal disse estas palavras, o barco virou-se ao contrário
botando-me borda afora e se afundando.
Ao cair no mar, nadei todo aquele dia até ser noite, até os meus braços
ficarem exaustos e deixarem de responder, e em se fazendo noite já não
fazia ideia alguma de onde estava, rendendo-me ao facto de que me iria
afogar. Mas eis que se abateram fortes ventos, agitando o mar, e fui
apanhado por uma onda tão gigante quanto uma montanha, que num ápice
me transportou até terra firme, onde Deus quis que eu chegasse são e salvo.
Afastei-me do mar, espremi a minha roupa e estendia-a a secar sobre o
chão, e em seguida dormi uma longa noite.
Quando amanheci, levantei-me para ver em que sítio da terra estava eu, e
ao topar uma brenha, dirigi-me para ela e caminhei largamente à sua roda, e
ao conhecer que estava numa pequena ilha no meio do mar, exclamei: «Não
há força nem poder senão em Deus Altíssimo e Grandioso.» Mas eis que
enquanto pensava na condição em que me encontrava, desejando morrer ali
mesmo, avistei ao longe uma embarcação com gente humana a bordo,
navegando em direcção à ilha onde me encontrava. Num ápice, trepei logo
a uma árvore e escondi-me entre a ramagem.
Quando a embarcação abicou em terra firme, saíram de lá dez escravos,
com pás e cestos, e caminhando até ao meio da ilha, puseram-se a cavar no
chão, e removeram a terra até desencobrirem um tampo. Depois, voltaram à
embarcação, donde trouxeram cestas de pão, sacos de farinha, garrafas com
manteiga clarificada49 e mel, carne seca de cabra e carneiro às fatias, loiças
e talheres, tapetes, esteiras de palha, colchões, e todo o género de coisas que
fossem precisas em uma casa. O escravos subiam a bordo e tornavam a
descer carregando estas coisas, e depois desciam com elas pela cova abaixo,
até que tudo haviam descarregado do que havia na embarcação. Depois os
escravos acompanharam um velho muito velho, a quem o passar do tempo
já tanto havia polido que agora nada lhe restava, qual naco de carne enfiado
num farrapo azul ondulando ao sabor dos ventos de Ocidente e Oriente, tal
como disse o poeta:

O tempo estremece-nos com tanto tremor,


E ninguém escapa ao seu tirânico vigor.
Ai! Tanto caminhava
E tão pouco me cansava.
Mas agora tanto me canso
E tão pouco ando.

De mão dada com o velho ia um jovem tão formoso como se tivesse sido
moldado no molde da beleza, da perfeição e do esplendor. Era tão belo
quanto o galho verde ou a gazela de tenra idade, com a sua beleza capaz de
encantar qualquer coração e de cativar o âmago de qualquer um com a sua
perfeição. A sua compleição era tão perfeita que superava toda a gente,
tanto no que tocava ao aspecto exterior como à nobreza de carácter, tal
como disse o poeta:

Para o compararem, levaram-no à Beleza,


E ela, em o vendo, de vergonha, baixou a cabeça.
Perguntaram: «Já viste alguém como ele, ó Beleza?»
«Não, nunca vi ninguém que com ele se pareça.»

Minha senhora, o grupo continuou a caminhar até que desceu pela cova
abaixo, onde se quedou um bom par de horas ou mais. Depois o velho e os
escravos subiram, mas não o jovem, e tornaram a pôr a terra como estava
antes, sobre o tampo. Subiram a bordo da embarcação e zarparam,
desaparecendo da minha vista. Desci da árvore e fui até à cova, escavei na
terra com grande afinco e quando a removi toda deparei-me com uma pedra
de mó. Levantei-a e fiquei espantado ao se me deparar uma escada de pedra
em caracol. Desci-a até ao último degrau, e dei por mim numa casa limpa e
branquíssima, mobilada com diversos géneros de tapeçarias, cobertas e
sedas. Avistei o moço sentado num sofá alto e encostado a uma almofada
redonda, com um leque na mão, e à sua frente um banquete com fruta, ervas
aromáticas e flores perfumantes, estando ele sozinho naquela casa. Ao ver-
me, ficou pálido e transtornado, mas cumprimentei-o, e disse: «Calma, meu
senhor! Não tem nada a recear, eu sou um ser humano à sua semelhança, e
sou filho de um rei, tal como o meu querido amigo. Foi o destino que nos
uniu para eu fazer companhia à sua solidão. Poderá o senhor contar-me a
sua história e como veio a viver debaixo do chão?»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão bela e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
55.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, por favor conta-nos como acaba a história do filho do rei
e do moço que vivia debaixo do chão.» E Xerazade disse: «Com todo o
prazer:»

Ouvi dizer, ó rei, que o terceiro dervixe disse à moça:

Minha senhora, quando indaguei o moço sobre a sua história, e ele se


assegurou que eu era da mesma espécie que ele, alegrou-se e recuperou o
ânimo. Fez com que eu me aproximasse e disse:

Irmão, a minha história é bem estranha, quanto espantosa é a minha


narrativa. O meu pai é um ourives com muitas posses e dinheiro, tendo
escravos negros e brancos, havendo mercadores que fazem via-gens pelo
mar para negociarem para ele, e tem negócios com reis, mas nunca foi
abençoado com um filho. Até que uma noite sonhou que seria abençoado
com um filho que teria vida curta, e com isso amanheceu triste. Mas
naquela noite mesmo a minha mãe ficou prenhe de mim, e o meu pai soube-
o porque se passaram os devidos meses desde essa data que ele havia
anotado; e quando a minha mãe me pariu, o meu pai ficou radiante de
alegria.
Os astrólogos e os sábios traçaram o meu horóscopo e anunciaram-no ao
meu pai: «O filho de vossa alteza viverá quinze anos e depois disso haverá
uma conjunção desfavorável dos astros, e só viverá se dela conseguir
salvar-se. Isto porque no mar salgado existe uma montanha conhecida por
Monte Íman, e no seu topo há um cavaleiro de bronze montado num cavalo
de bronze com uma placa de chumbo ao pescoço. Quando o cavaleiro cair
do seu cavalo, o filho de vossa alteza morrerá passados cinquenta dias, e o
seu assassino será aquele que derrubou o cavaleiro do cavalo, e o seu nome
é Ajibe filho de Khacibe.» Ao ouvir tal coisa, o meu pai ficou numa enorme
aflição.
Os anos foram passando, e o meu pai criou-me e teve o melhor cuidado
possível com a minha instrução, até eu perfazer quinze anos, quando há dez
dias atrás, lhe chegaram novas de que o cavaleiro de bronze havia caído ao
mar e que quem o havia derrubado era um homem chamado rei Ajibe filho
de Khacibe. O meu pai, em lhe chegando esta nova, chorou até mais não
poder, de tal guisa que até parecia ter enlouquecido, por mor de se vir a
separar de mim. Então veio numa embarcação e construiu para mim esta
casa debaixo do chão, trazendo tudo do que eu fosse falto durante os meus
dias aqui, com medo que esse tal Ajibe filho de Khacibe me matasse. Já
tendo passado dez dias, esta conjunção desfavorável dos astros durará ainda
mais quarenta dias até se sumir, e então o meu pai aqui voltará para me
levar. É esta a minha história e o porquê da minha solidão e isolamento.

Minha senhora, quando ouvi a sua história e espantosa narração, disse de


mim para mim: «Fui eu quem derrubei o cavaleiro de bronze, e eu sou
Ajibe filho de Khacibe, mas valha-me Deus, jamais serei eu quem o
matará.» Então disse àquele rapaz: «Meu senhor, que a destruição se afaste
de si e que esteja a salvo de todos os males. Se Deus quiser, não tem de se
preocupar com nada, nem recear coisa alguma. Assentar-me-ei aqui
consigo, servi-lo-ei e far-lhe-ei companhia durante estes quarenta dias.
Estarei ao seu serviço e irei consigo para a sua terra, e assim ajudar-me-á a
volver ao meu país, e por isso será recompensado.» Ele ficou radiante com
as minhas palavras, e sentei-me à sua banda a conversar fazendo-lhe
companhia.
À noite, levantei-me e acendi uma vela, que usei para alumiar três
lanternas, depois de as encher de óleo. Em seguida, abri para ele uma caixa
de doces com a qual nos alambazámos, e sentámo-nos à conversa até quase
a noite se ir embora. Quando ele adormeceu, cobri-o com uma manta, e
também eu me fui deitar e adormeci.
Ao amanhecer, levantei-me para lhe aquecer um pouco de água.
Despertei-o com um gesto delicado, e tendo ele acordado, trouxe-lhe a água
quente para ele lavar a cara. Agradeceu o meu gesto e disse: «Que sejas
recompensado com o bem, rapaz. Juro que quando me salvar deste homem
chamado Ajibe filho de Khacibe, e Deus me livrar dele, farei com que o
meu pai se não poupe a oferecer-te favores e recompensas.» Respondi-lhe:
«Que não haja dia algum que o mal o aflija, e que Deus me leve a mim
antes de si.» Em seguida trouxe algo para ele comer, e depois de comermos
esculpi um tabuleiro para jogarmos mancala, pus as peças nos lugares, e
jogámos os dois, e durante um valente bocado divertimo-nos à grande,
nunca parando de comer e de beber até se fazer noite, até quando acendi as
luzes, e o servi com alguns doces com os quais nos alambazámos, e nos
quedámos sentados à conversa noite dentro até que adormecemos.
Minha senhora, assim continuámos fazendo dias e noites a fio, tornei-me
unha com carne com ele, e desvaneceram-se as minhas aflições e tudo o que
se me havia sucedido.. O meu coração nutria um enorme carinho por ele, e
disse de mim para mim: «Os astrólogos só podem ter mentido quando
disseram ao seu pai que o filho seria morto por alguém chamado Ajibe filho
de Khacibe. Valha-me Deus, esse sou eu mesmo e de modo algum o
matarei», e durante trinta e nove dias continuei a servi-lo, fazendo-lhe boa
companhia no regalório de longos serões.
Ao passarem quarenta dias, o moço ficou radiante por estar são e salvo, e
disse: «Irmão, já se me acabaram os quarenta dias. Louvado seja Deus que
me salvou da morte, e abençoado seja o teres vindo fazer-me companhia.
Juro que o meu pai te recompensará e te fará chegar ao teu país. Mas antes
disso, irmão, gostaria que me fizesses o favor de me aqueceres água para
tomar banho, e que laves o meu corpo e me mudes as roupas.» Respondi-
lhe: «Com todo o prazer.» Fui aquecer a água, e levei-o para um pequeno
quarto onde lhe dei um revigorante banho e o vesti com novas roupas.
Preparei-lhe uma cama num sítio alto onde estendi uma esteira de coiro, e
veio o moço e deitou-se na cama, para descansar depois da trabalheira do
banho. «Irmão», disse ele, «corta-me uma melancia e põe-lhe no sumo
muito açúcar-cande.» Fui buscar uma tenra melancia, e em a pondo numa
bandeja, perguntei: «O senhor tem ideia onde pára a faca?» Ao que ele
respondeu: «Está ali, nesta alta prateleira por cima da minha cabeça.» De
modo ágil e apressado, levantei-me para tirar a faca do seu sítio, peguei
nela, mas quando dei um passo para trás, o meu pé escorregou na esteira de
coiro, e caí tal como Deus havia decretado, estatelando-me em cima do
moço, e a faca que estava na minha mão cravou-se-lhe direitinha no
coração, e logo mesmo o moço morreu.
Quando se cumpriu a sina da sua morte e eu me apercebi que havia sido
eu quem o havia matado, dei um grito enorme, esbofeteei a minha cara,
rasguei as minhas roupas, e berrei: «Ó gente, ó criaturas de Deus, dos
quarenta dias restava-lhe um só, e teve de ser logo às minhas mãos que
encontrou a morte. Ó Deus, perdoa-me, antes tivesse morrido eu! O que são
estas desgraças senão aflições para eu saborear uma a seguir à outra, ‘para
que Deus cumpra o que já decretou?’50»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
56.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos como acaba a história do terceiro dervixe.» E
Xerazade disse: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei, que o terceiro dervixe disse:

Minha senhora, quando não me restaram dúvidas de que eu o havia


matado, tal como decretado pelo Céu, levantei-me, subi as escadas, voltei a
pôr o tampo no seu sítio e cobri-o com terra. Em olhando para a banda do
mar, vi a embarcação que o vinha buscar, a sulcar as ondas avançando para
a ilha. Então disse de mim para mim: «No momento em que se depararem
com o miúdo assassinado e em encontrando o seu assassino, que sou eu
mesmo, muito certamente me irão matar.» Então fui-me abrigar numa
árvore ali perto, trepei-a e escondi-me entre a ramagem.
Mal me havia sentado na árvore, a embarcação encostou-se a terra firme,
e desembarcaram os escravos e o tal velho muito velho, pai do moço que eu
havia matado. Vieram até àquele sítio, pondo-se a cavar no chão, e
estranharam que a terra estivesse tão mole. E mal desceram, encontraram o
moço adormecido com uma cara luzidia de quem havia tomado um banho,
com as roupas imaculadamente limpas, e uma faca cravada no coração. Ao
conhecerem que estava morto, gritaram de dor e amargura, esbofetearam-se
a si mesmos, choraram e rogaram pragas a torto e a direito. O velho
desvaneceu-se um longo bocado, ao ponto dos escravos chegarem a pensar
que ele havia morrido. Quando veio a si, ele e os escravos saíram de lá de
dentro com o moço, depois de o terem envolto nas suas roupas. Em seguida,
voltaram à cova e levaram para a embarcação tudo o que havia na casa.
Veio o velho e pôs-se a olhar para o seu filho e a botar-lhe terra na cabeça, e
havendo um dos escravos trazido um banco forrado com seda, estenderam-
no nesse banco, junto da cabeça do seu filho, onde permaneceu desvanecido
até perto do pôr-do-sol. [Depois zarparam e perdi-os de vista]51. E tudo isto
aconteceu com eles debaixo da árvore onde eu estava, havendo eu visto o
que faziam e ouvido tudo o que diziam. E por mor das mais duras aflições,
mágoas, desgraças e calamidades, o meu coração tornou-se grisalho antes
do meu cabelo.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse a sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
57.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos como acaba a história do dervixe.» E
Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei, que o terceiro dervixe disse à moça:

Minha senhora, durante um mês eu passava os dias na ilha e as noites no


salão subterrâneo, tendo observado que na banda ocidental da ilha, à
medida que os dias iam passando, as águas iam recuando e as marés se
enfraquecendo. Ao cabo desse mês, na orla oriental, a água tinha vazado ao
ponto de começar a surgir terra seca, o que me deixou muito contente por
ser seguro atravessá-la. Avancei através do pouco de água que ainda
restava, conseguindo alcançar terra firme e continental, mas a única coisa
que os meus olhos descortinavam era areia. Apesar disso, não perdi o ânimo
e avancei pela areia adentro, até me dar na vista lá muito ao longe um lume
de grande tamanho e muito vivo. Encaminhei-me na sua direcção, dizendo
para mim: «Este lume só pode ter sido posto por alguém. Talvez ao lá
chegar a minha desventura tenha um final feliz», e pus-me a declamar uma
poesia:

Talvez o destino as suas rédeas puxe para outro lado,


E o bem traga, já que o destino é feito de reviravoltas,
E me dê alegres esperanças, provendo do que sou falto
E trocando as velhas desgraças por boas novas.

Tinha-me eu encaminhado para aquele lume, mas ao me acercar dele vi


que afinal era um palácio chapeado de cobre, e que o Sol em o iluminando
causava tal fulgor que ao longe se parecia com um lume. Fiquei radiante de
ver o palácio e sentei-me à sua beira, mas mal o fiz, eis que passam por
mim dez mancebos trajando roupas imaculadamente limpas na companhia
de um ancião, só que todos eles eram zarolhos do olho direito, e tal
coincidência provocou em mim grande espanto. Ao me verem,
cumprimentaram-me e folgaram muito com a minha vinda, e indagaram
quem era eu. Contei-lhes a minha história cheia de infortúnios, e eles
ficaram pasmados com o meu relato, levando-me consigo para dentro do
palácio, onde pude ver que havia dez camilhas dispostas em roda, e em
todas elas havia lençóis e cobertas azuis, e ao meio daquela roda de
camilhas havia outra mais pequena, e tal como as outras tudo o que a cobria
era azul. A seguir a havermos entrado, todos os rapazes foram para a sua
camilha, e o ancião para a sua, que ficava no meio das outras e era mais
pequena, e disseram-me: «Senta-te no chão, mas não faças perguntas sobre
nós nem sobre o sermos zarolhos.»
Mais tarde, o ancião levantou-se e deu a cada um a sua comida, e
também a mim, e comemos. Depois serviu vinho, a eles e a mim, e cada um
bebeu do seu próprio copo. E durante este convívio e regabofe fizeram
perguntas sobre mim e sobre as coisas estranhas e espantosas que me
haviam acontecido, e fui-lhes dando conta do que me pediam, até quase a
noite se ir embora, quando os mancebos disseram ao ancião: «Já é hora de
dormir, poderá o nosso honorável ancião trazer-nos a paga?» O ancião
levantou-se, foi a uma despensa, e voltou com dez pratos, cada um com
uma cobertura azul, e deu um prato a cada um dos rapazes. Depois acendeu
dez velas, e espetou uma em cada prato, e ao destapar cada prato revelou-se
que cada um continha cinzas, pó de carvão e fuligem de chaleira. Então
arregaçaram as mangas, e besuntaram na cara a cinza e a fuligem, batendo
no peito e esbofeteando-se na cara, ao mesmo tempo que sacudiam
violentamente as suas roupas e choravam em grande pranto; e depois de
terem enfarruscado as suas caras, desataram a clamar sem parar: «Eu
estaria bem assente na vida, não fosse a minha curiosidade indevida.» E
assim continuaram até ser quase de manhã, quando o ancião lhes aqueceu
água e eles se levantaram para se lavarem e trocarem de roupa.
Minha senhora, quando vi o que haviam feito os mancebos e como
haviam enfarruscado as suas caras, fiquei atrapalhado da cabeça e a minha
curiosidade foi atiçada, esquecendo-me das minhas próprias desgraças. Não
conseguindo conter mais o meu silêncio, perguntei-lhes: «O que vos leva a
tal coisa, depois de nos havermos divertido e foliado tanto? Vós, e graças a
Deus, sois sãos de espírito, mas as vossas acções só os loucos as fazem. Por
isso vos peço, por aquilo que vos é mais querido, que me contem qual a
vossa história e qual a causa que vos leva a besuntar a cara com cinza e
fuligem.» Virando-se para mim, responderam: «Ó moço, não te enganes
com a nossa juventude e as nossas acções. Para o teu próprio bem, não
faças mais perguntas.»
Depois levantaram-se e serviram qualquer coisa para nós comer-mos,
mas porque as suas acções me haviam atiçado a curiosidade, no meu
coração havia um fogo que se não apagava e uma chama que se não
acalmava. Sentámo-nos à conversa até à hora de jantar, quando o ancião nos
serviu bebida. Veio a noite e quando ia a meio, os mancebos disseram:
«Honorável ancião, já chegou a nossa hora de dormir, poderá trazer-nos a
paga?» O ancião desapareceu por uns momentos para trazer em seguida os
pratos habituais, e eles tornaram a fazer a mesmíssima coisa que haviam
feito na noite anterior.
Minha senhora, para encurtar a história, pousei com eles durante um mês,
e a cada noite faziam a mesmíssima coisa, e de manhãzinha bem cedo
lavavam-se, enquanto eu, a cada noite que passava, pasmava ao ver o que
faziam, mas a minha falta de paciência e a aflição que tudo aquilo
provocava em mim não paravam de aumentar, a tal ponto que eu já não
conseguia comer nem beber. Então disse-lhes: «Ó moços, por favor acabai
com o meu desassossego e contai-me qual causa que vos leva a enfarruscar
a cara e a clamar Eu estaria bem assente na vida, não fosse a minha
curiosidade indevida. Quando não, deixai-me partir para junto da minha
gente e descansar a minha vista destas andanças, porque lá diz o ditado,
Mais vale estar longe sem vos ver do que viver todo este sofrer.» Ao
ouvirem as minhas palavras, aproximaram-se de mim e disseram: «Ó moço,
se nós nos calámos sobre esse assunto, foi só por termos pena de ti, para
que tu não te tornes como nós e não sofras o que sofremos.» Respondi-lhes:
«Mas eu quero que me conteis a verdade.» «Ó moço, nós bem te avisámos,
é melhor aceitares o nosso conselho e não fazeres perguntas, para que não
resultes acabar zarolho como nós», disseram-me eles. E eu disse: «Mas eu
quero saber a verdade.» Ao que eles retrucaram: «Ó moço, se nós
consentirmos no que pedes, não te voltaremos a abrigar nem mais te
sentarás connosco.»
Foram buscar um carneiro, degolaram-no, e tiraram-lhe a pele, com a
qual fizeram um odre. Depois disseram-me: «Toma esta faca e entra para
dentro desta pele, que coseremos contigo lá dentro. Logo de seguida,
partiremos deixando-te aqui sozinho, e virá o pássaro gigante Roca, que te
levará nas suas garras pelos ares fora. Mais tarde irás sentir que ele te deitou
numa montanha e se afastou. Quando sentires que isso aconteceu, rasgas o
saco de pele com esta faca, e ao saíres, o pássaro, ao ver-te, vai-se embora a
voar. Logo de seguida, levanta-te e caminha pelo espaço de meio dia, até
veres diante de ti um castelo mais alto que as nuvens, feito de madeira de
sândalo e de pau d’áquila, chapeado a oiro vermelho, cravejado de
esmeraldas e de todo o género de pedras preciosas. Entra no palácio, e
conseguirás satisfazer o teu desejo, pois o havermos entrado nesse palácio é
a causa de sermos zarolhos e de enfarruscarmos a nossa cara. No entanto, se
te contássemos o que nos aconteceu, nunca mais acabaria a conversa, pois
cada um de nós tem a sua própria versão dos factos que nos levaram a ficar
zarolhos do olho direito.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão espantosa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
58.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, por favor conta-nos como acaba a história do terceiro
dervixe.» E Xerazade disse: «Com todo o prazer:»

Conta-se, ó rei, que os mancebos haviam dito ao rei Ajibe, o terceiro


dervixe: «Ó moço…» [explicando-lhe o que deveria fazer. Depois, o
terceiro dervixe continuou o seu relato à moça:]

Em seguida, puseram-me dentro da pele de carneiro, coseram-na, e


foram-se para o palácio deles. Pouco tempo passou até vir um pássaro
branco, que em me agarrando com as suas garras, me levou pelos ares fora
durante um tempo, tendo-me na tal montanha deitado. Rasguei a pele, saí, e
o pássaro, em me vendo, foi-se. Mui prontamente, levantei-me e caminhei
até chegar ao tal palácio, que era como mo haviam descrito. Tendo
encontrado a porta aberta, entrei e deparei-me com um palácio muito
formoso, tão espaçoso quanto um grande terreiro, com cem despensas
dispostas em roda, cujas portas eram de madeira de sândalo e de pau
d’áquila, chapeadas a oiro vermelho e com aldrabas de prata. Na banda
oposta, vi quarenta raparigas, como se fossem luas, as quais ninguém
jamais se cansaria de olhar, trajando as roupas mais sumptuosas e ricamente
adornadas de jóias. Ao verem-me, disseram em coro: «Bem-vindo, senhor
nosso, bem-vindo, que o nosso amo seja muito bem-vindo, há já tanto
tempo que esperávamos alguém como o senhor. Louvado seja Deus que nos
trouxe quem nos merece e quem nós merecemos.»
Correram para mim, fazendo-me sentar num sofá alto, e disseram: «Hoje,
o senhor é o nosso amo e o nosso soberano, e nós somos suas servas, às
suas ordens sempre que nos requeira.» Estando eu espantado com o
comportamento delas, vieram logo num ápice algumas a trazer-me qualquer
coisa de comer, enquanto outras me aqueceram água e me lavaram as mãos,
os pés, e me mudaram a roupa, e outras se apressaram a aprontar-me e a
servir-me um sumo refrescante, e todas folgaram muito com a minha
chegada, tendo-se depois sentado à conversa comigo, fazendo perguntas
sobre mim até entrar a noite.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
59.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos como acaba a tua história.» E Xerazade disse:
«Assim farei:»

Conta-se, ó rei, que o terceiro dervixe disse à moça:

Minha senhora, quando veio a noite, elas reuniram-se à minha roda, e


cinco dentre elas montaram um banquete, com grande soma de frutos secos
e frescos, assim como jarras de flores aromáticas, tudo de modo bem
arranjado. Tendo elas trazido vasos para o vinho, sentámo-nos a beber, e das
raparigas sentadas à minha roda, algumas cantavam, enquanto outras
sopravam em flautas, e outras tangiam alaúde, cítara, e tocavam todo o
género e feitio de instrumentos. No rodopio dos copos e das taças, enchi-me
de tanta alegria que me esqueci de todas as aflições deste mundo, e disse
para comigo: «Há que viver a vida antes que seja tarde demais.»
Daquele modo continuámos, bem enfrascados, até quase a noite se ir
embora, quando elas me disseram: «Senhor, escolha quem quiser dentre nós
para passar a noite consigo, e a que escolher não tornará a dormir consigo
pelo espaço de quarenta dias.» Então escolhi uma de cara formosa que tinha
todo o género de encantos, olhos e cabelos negros, dentes frontais
espaçados, sobrancelhas unidas, de uma perfeita beleza, lembrando o galho
do salgueiro ou a haste do manjericão, tão bela que quem a visse ficaria
pasmado e com o espírito atarantado, tal como disse o poeta:

Curva-se como o galho do salgueiro sacudido pelo xaroco,


E quando ginga, ah! que andar tão belo, doce e gostoso.
Ao sorrir, os seus dentes revelam brilhantes fagulhas,
Como relâmpagos em conversa com estrelas.
Quando as tranças do seu negro cabelo se desprendem
As manhãs em noite escura como breu se convertem.
E quando nas trevas a sua face cintila de repente,
Todo o cosmo se alumia de oriente a ocidente.

Bem ignaros são os que a comparam à jovem gazela.


Podia lá este antílope ser comparável a ela!
Desde quando tem a gazela tão lindo corpo,
Lábios de sabor tão meloso que nunca sabem a pouco?
Ou uns olhos tão largos e fatais cujas flechas de amor
Perfuram a sua vítima torturando-a com ardor?
Mas eu, tal catraio pagão, a ela me fui oferecer,
Pois quem por amor padece, criança volve a ser.

E essa noite em que dormi com ela foi a melhor de toda a minha vida.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse a sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
60.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, por


favor conta-nos como acaba a história do terceiro dervixe.» E Xerazade
disse: «Assim farei:»

Ouvi dizer, ó rei, que o terceiro dervixe disse à moça:

Quando me amanheceu, levaram-me aos banhos do palácio, onde me


lavaram e me trajaram com as roupas mais sumptuosas. Em seguida
trouxeram comida, e depois de nós comermos, serviram vinho, e ficámos a
beber, com os copos rodando de mão em mão, até à noite, quando elas me
disseram: «Escolha quem quiser dentre nós para dormir consigo, pois nós
somos suas servas e estamos às suas ordens.» Então escolhi uma de cara
formosa e flexibilidade fabulosa, e que era tal como disse o poeta:

No seu pomo, vi dois cofres com almíscar selados


Para impedir o abraço dos amados;
Ela os guarda com as flechas do seu lindo olhar,
E quem transgredir sofrerá flechadas a matar!

E dormi com ela uma belíssima noite, e quando se fez manhã fui aos
banhos e vesti novas roupas.
Minha senhora, para encurtar a história, sentei-me com elas durante um
ano inteiro, vivendo à grande e à larga, e todas as noites escolhia uma das
quarenta para dormir comigo à noite, e jamais fui falto de comida, bebida e
boa companhia. Mas um dia, no início do meu segundo ano, elas puseram-
se a chorar em grandes prantos, despedindo-se de mim agarrando-se ao meu
pescoço. Estando eu espantado com tal carpidura, perguntei-lhes: «O que se
passa convosco que me partem o coração?» «Quem nos dera nunca o
termos conhecido. Já vivemos com muitos outros, mas nunca vimos alguém
mais gentil que o senhor, que Deus não nos separe de si», disseram elas,
chorando. Então perguntei-lhes: «Mas a que se deve a vossa choradeira, que
me deixa tão amargurado?» E elas me disseram: «De todos os males só nos
faltava este; o choro deve-se à nossa separação iminente, cuja única causa
será o senhor. Se nos ouvir atentamente nunca nos separaremos, já se nos
contrariar, a separação é mais que certa. E o nosso coração nos diz que nos
não ouvirá, e que a nossa separação virá.» «Mas contem-me lá que história
vem a ser esta?», perguntei eu. E elas me responderam: «Senhor nosso amo,
saiba que nós somos filhas de reis, e que vivemos em ajuntamento neste
sítio há alguns anos. E em cada ano nos ausentamos pelo espaço de
quarenta dias, e se durante o resto dos anos nos sentamos aqui comendo,
bebendo, gozando a vida e cantando, naqueloutros quarenta nos partimos,
pois esse é o nosso costume. E a causa que o levará a nos contrariar é a
seguinte: em nos ausentando daqui por quarenta dias, iremos deixar-lhe
todas as chaves do palácio, o qual tem cem despensas. Em cada uma delas
há quanto baste para comer, beber e se divertir em pleno durante um dia,
mas uma dessas portas não a poderá abrir, nem sequer dela se aproximar,
pois em o fazendo inevitavelmente causará a nossa separação. Há noventa e
nove despensas à sua disposição, para as abrir e ver e usufruir do que elas
contêm, mas o abrir desta porta aqui de oiro vermelho irá inevitavelmente
causar a nossa separação.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão espantosa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
61.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o terceiro dervixe disse à moça:

Minha senhora, as quarenta moças disseram-me: «O senhor agora já sabe


qual a causa que levará inevitavelmente à nossa separação, e que destas
noventa e nove despensas poderá ter o prazer de bisbilhotar qualquer uma,
mas a centésima despensa causará a nossa separação. Por amor a Deus e a
nós mesmas, tenha paciência e espere por nós quarenta dias até aqui
voltarmos.» Depois, uma delas veio até cerca de mim, abraçou-me a chorar,
e declamou uma poesia:

Em se despedindo antes de mim se apartar,


O seu coração ardia de palpitante amor.
Chorávamos pérolas e cornalinas num clamor,
E todas no pescoço dela formavam um colar.

Despedi-me dela dizendo-lhe: «Por amor de Deus, jamais abrirei aquela


porta.» E em seguida todas se despediram de mim, uma a uma, e nenhuma
houve que não me dissesse uns versos de poesia, até ter escutado quarenta
poesias. Ao depois abalaram, acenando-me com as mãos e relembrando as
advertências que me haviam feito.
Quando elas se foram, sentei-me no palácio sozinho, e disse para comigo:
«Por amor de Deus, jamais abrirei esta porta para que nunca nos
separemos.» Fui então abrir a primeira porta, entrei e topei com um jardim
que era como o Paraíso, com todo o género de frutos e mais algum, em
árvores de grande porte, oferecendo fruta no ponto para ser colhida, e eram
tantas que os ramos se emaranhavam uns nos outros. Correntes de água
fluíam e transbordavam, e os pássaros chilreavam. Não faltando rios e
árvores, para grande gáudio do meu espírito, lancei-me arvoredo adentro,
cheirando o perfume das flores e ouvindo o linguajar dos pássaros a
glorificar o Soberano Absoluto e Único. E as maçãs eram como disse o
poeta:

Havia uma maçã em que duas cores se encontravam.


Eram as bochechas de dois amantes que se colavam,
E se na cama se abraçavam, também se assustavam.
Pois um ficava mais vermelho porque se queimava,
E o outro mais amarelo porque se apartava.

E havia pêras de gosto mais doce que água de rosas e açúcar, e de cheiro
mais perfumante que almíscar e âmbar-gris. E os marmelos eram como
disse o poeta:

O gosto do marmelo a todos conquistou,


E fruto de eleição se tornou.
O gosto lembra o vinho, a cor o oiro, brilhando,
O perfume o almíscar, o feitio a Lua, redondo.

Depois vi ameixas de uma beleza superior que saltava à vista, quais rubis
polidos. Em seguida, saí do jardim e fechei a porta.
Ao outro dia, abri outra das portas e entrei, tendo-me deparado com um
enorme terreiro dotado de grande soma de palmeiras, e à sua roda havia um
rio onde corria água, e na banda do rio que havia à roda do terreiro haviam
plantado rosas, jasmins, alfena, rosa-mosqueta, narcisos, violetas,
malmequeres, crisântemos, goivos e açucenas; e os ventos ao soprarem
espalhavam por todo o terreiro a fragrância daquelas flores. Depois de me
passear um pouco e serenar as minhas aflições por aquele terreiro, saí e
fechei a porta. E ao abrir a terceira porta deparei-me com um grande salão,
incrustado com diversos estilos de mármores coloridos, minérios raros e
pedras preciosas, e vi gaiolas de forma cónica feitas de madeira de sândalo
e de pau d’áquila, onde havia pássaros cantantes, de todos os géneros e
feitios, como rouxinóis, rolas-bravas, rolas-turcas, rolas-do-Senegal,
pombos, melros e noitibós-da-núbia. Depois de me passear contemplando
aquele espectáculo, refrescando o meu coração e aliviando as minhas
aflições, fui dormir.
Quando me amanheceu, abri a quarta porta e deparei-me com uma
grande casa, onde havia quarenta despensas dispostas à roda, todas abertas.
Entrei em todas elas, e em todas topei com grandes amontoados de jóias,
tais como pérolas, esmeraldas, rubis, corais, carbúnculos, assim como
pratas, oiros e outros metais preciosos. Ficando eu espantado ao ver tanta
fortuna junta, disse para comigo: «Estas riquezas todas não podem ser
senão dos maiores reis. Um simples rei não disporia de tudo isto, nem
mesmo todos os pequenos reis juntos.» Sendo impossível sentir-me mais
contente e feliz, disse para comigo: «Eu sou o maior rei da minha era, e à
minha disposição tenho todas estas jóias e riquezas, assim como estas
raparigas só para mim.»
Minha senhora, continuei a abrir despensa atrás de despensa, desfrutando
por esta guisa os meus dias e noites, até que passaram trinta e nove dias,
restando-me só mais um dia e uma noite. Eu já havia aberto noventa e nove
despensas, e só sobrava a centésima, a tal que me haviam advertido para
não abrir.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão


espantosa, ó mana», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
62.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o dervixe disse:

Sobrando só uma despensa para completar a conta de cem, o meu espírito


foi assaltado pela tentação, e havendo Satã se apoderado de mim para
causar o meu infortúnio, não encontrei modo de conter mais a minha
impaciência, apesar de só me faltar uma única noite para a data marcada a
partir da qual as raparigas se sentariam comigo mais um ano. Arrebatado
por Satã, abri a porta chapeada a oiro, e mal a trespassei senti um cheiro tal
que, em se apoderando de mim, me fez estatelar no chão desmaiado durante
um bom bocado. Depois, enchi-me de força e de coragem e entrei na
despensa, deparando-me com um chão recamado com flores de açafrão. Vi
velas aromáticas e candeeiros de oiro e prata, alimentados por óleos caros, e
velas com fragrância de âmbar-gris e pau d’áquila, assim como vi dois
grandes turíbulos, cada um da medida de uma grande tigela, cheios de
brasas e onde se queimava incenso de âmbar-gris, pau d’áquila, almíscar e
olíbano, e o fumo deste incenso espalhava-se por toda a banda, misturado
com o perfume das velas e das flores de açafrão.
Minha senhora, então vi um cavalo de um negro extremo, mais negro do
que a própria noite, arreado e com uma sela de oiro vermelho, havendo à
sua frente duas manjedoiras de cristal branco, uma com sésamo descascado
e a outra com água de rosas almiscarada. Fiquei espantadíssimo ao ver
aquele cavalo e disse para comigo: «Deve haver algo magnífico relativo a
este cavalo.» E sendo arrebatado por Satã, levei o cavalo dali para fora do
palácio, onde o montei, mas arredar pé dali não era com ele. Piquei-o com
os pés, mas ele nem se moveu. Então zanguei-me com o cavalo, peguei na
vara e chicoteei-o, e mal ele sentiu a vergastada, soltou um relincho como
um rugir de trovões, abriu-se-lhe um par de asas, e levou-me pelos ares
fora, mais alto do que os olhos podem avistar. Até que poisou em cima do
terraço de um palácio, e dando um safanão com a sua garupa, deitou-me ao
chão, espetando-me um doloroso coice na cara, o qual me arrancou o olho,
que rolou pela minha cara abaixo, deixando-me zarolho. Então exclamei:
«Tanto insisti com aqueles moços zarolhos que me tornei igual a eles. Não
há força nem poder senão em Deus Altíssimo e Grandioso.»
Olhei então do terraço donde estava lá para baixo, e ao ver dez camilhas
com cobertas azuis, conheci que aquele era o mesmíssimo palácio dos dez
mancebos zarolhos que me haviam aconselhado o que se já sabe. Desci do
terraço e fui sentar-me no meio das camilhas, e mal o fiz vieram os
mancebos e o ancião, que, em me vendo, disseram prontamente: «Aqui não
és bem-vindo nem desejado. Por amor de Deus, não te voltaremos a dar
pouso, pois já tiveste a tua oportunidade.» Disse-lhes então: «Não poisarei
convosco, mas faço questão de saber qual a causa pela qual besuntais as
vossas caras com fuligem e porcaria.» Ao que me responderam: «A cada
um de nós lhe aconteceu o mesmo que a ti, vivendo em grande deleite uma
rica vida, mas incapaz de se pacientar por quarenta dias, de modo a se poder
assentar mais um ano com comida, bebida e servas, comendo galinha e
gozando da pinga, descansando em lençóis de boa linha, e se deliciando de
vinho encostando-se ao peito de formosas moças. Mas como não soubemos
assentar sem matar a nossa curiosidade, ficámos zarolhos, e agora aqui
estamos nós a prantear pelo que se nos passou.» «Por favor», disse-lhes eu,
«não me repreendeis pelo que fiz. Já que me tornei zarolho à vossa
semelhança, peço-vos que me dêem os vossos dez pratos para eu besuntar a
cara de fuligem.» E botei a chorar desalmadamente. Mas eles atalharam: «Ó
meu Deus, não te daremos poiso de forma alguma. Agora desanda daqui!
Vai para Bagdade e encontra por lá quem te ajude.»
Percebendo que não tinha qualquer hipótese e sendo tratado de modo tão
agreste, recordei todos os horrores que me aconteceram e o facto de ter
matado aquele moço, e lembrando-me que Eu estaria bem assente na vida,
não fosse a minha curiosidade indevida, não pude mais aguentar todo o
desassossego da minha existência. Então, rapei a barba e as sobrancelhas,
renunciei ao mundo e a mim mesmo, e tornei-me um dervixe zarolho.
Havendo Deus escrito que eu terminaria a minha viagem são e salvo,
cheguei à Bagdade ontem à noite, tendo encontrado aqueles dois com ares
de estarem atrapalhados. Cumprimentei-os e em lhes dizendo que era
forasteiro, disseram-me: «És forasteiro? Também nós somos.» E formámos
um grupo ao qual não faltava alguma extravagância, porque quis a
coincidência que fôssemos todos zarolhos do olho direito. E esta, minha
senhora, é a causa de eu ser zarolho e de ter rapado a minha barba.

Conta-se, ó rei bem-aventurado, que a moça, quando ouviu o relato do


dervixe, disse para eles: «Dêem graças por ainda terem a vossas cabeças e
vão às vossas vidas.» Mas os dervixes retorquiram: «Por amor de Deus, não
arredamos pé daqui sem ouvir as histórias dos nossos comparsas.» Então a
moça virou-se para o califa, para Jáfar e para Macerur, e disse-lhes:
«Contem-me as vossas histórias», e Jáfar avançou e disse:
«Minha senhora, nós somos de Mossul, e viemos à vossa cidade para
fazer comércio. Ao aqui chegar, hospedámo-nos numa pousada para
mercadores e fizemos comércio com as nossas mercadorias. Esta noite, um
comerciante da vossa cidade organizou uma festa em sua casa e convidou,
não só o nosso grupo como todos os mercadores que estavam na pousada.
Fomos até lá e passámos um tempo muito agradável, com vinho da melhor
qualidade, diversão, boa música e cantoras. Entretanto correram palavras e
gritos entre os convidados, e o intendente da polícia fez-nos uma rusga.
Alguns foram presos, outros escaparam-se, sendo que nós fomos dos que se
livraram de ser presos. Fomos para a pousada, mas estava fechada, e esta
depois de fechar não volta a abrir senão de manhãzinha bem cedo. Então
viemos por aí, atrapalhados sem sabermos aonde ir, com medo de darmos
de caras com o intendente da polícia e sermos presos e cobertos de
vergonha.
Quando a Providência nos conduziu até à vossa residência, e ouvimos um
lindo canto e o som da farra, percebemos que nesta casa havia gente em
festa, e dissemos a nós mesmos que o melhor era entrar e ficarmos ao vosso
serviço, findando a nossa noite na vossa companhia, reavivando a vossa
diversão para acabarmos a nossa noite em cheio. Vós, minhas senhoras,
haveis tido a amabilidade e a gentileza de nos oferecer hospitalidade,
mostrando bondade e nobreza de trato. E esta é causa de termos vindo a
vossa casa.»
Então os dervixes disseram: «Ó mui honorável senhora, muito nos
aprazeria se tivesse a bondade de conceder o perdão a estes três e assim
todos nós partiríamos agradecidos.» Ela virou-se para todos e disse:
«Concedido.» E todos saíram da casa, e cá fora o califa disse aos dervixes:
«Ó gente, aonde ides ainda a manhã se não abriu?» Ao que lhe
responderam: «Ó senhor, nós não sabemos aonde ir.» «Vinde e dormi em
nossa casa», disse o califa. Em seguida virou-se para Jáfar e disse-lhe:
«Leva-os para tua casa para eles dormirem, e amanhã bem cedinho trá-los à
minha presença para registarmos por escrito nas crónicas o que aconteceu a
cada um e tudo aquilo que lhes ouvimos dizer durante esta noite.» Então
Jáfar obedeceu às ordens do califa, e o califa foi para o seu palácio, mas não
conseguiu dormir por estar agitado e não parar de pensar no que sucedera
aos dervixes, que apesar de serem filhos de reis se tornaram no que se
haviam tornado. Ardendo de curiosidade por ouvir o relato da moça e das
duas cadelas negras, assim como o da outra moça flagelada, não pregou
olho toda a noite.
Mal se fez dia, foi logo sentar-se no seu trono, e quando Jáfar entrou e
beijou o chão diante dele, o califa disse-lhe: «Não é altura para mandriares,
vai já buscar as duas moças para eu ouvir a história das duas cadelas, e traz
contigo os dervixes», e rematou, gritando: «Despacha-te!» Jáfar saiu, e não
demorou muito até voltar junto do califa trazendo as três raparigas e os três
dervixes. Colocou os dervixes ante o califa e as mulheres detrás um
cortinado. Depois disse: «Mulheres, nós vos perdoamos em razão da vossa
bondade e gentileza para connosco. E agora se não sabem quem está à
vossa frente, eu vo-lo apresentarei. Vós estais perante Harune Arraxide,
sétimo califa da dinastia abássida, e filho de Almahdi filho de Al-Hadi e
irmão de Assaffâh filho de Mançor. Dito isto, dobra a tua língua, sê franca,
não mintas e diz a verdade e nada mais do que a verdade, porque Deves
dizer a verdade, mesmo que ela te doa como o fogo do inferno, e conta ao
califa porque sovas as duas cadelas negras, porque choras depois, e elas por
sua vez choram contigo.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão


espantosa, ó mana, e tão estranha», disse-lhe Dinarzade. E Xerazade
respondeu: «Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei,
na próxima noite, se o rei me poupar e eu viver.»
63.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a moça, dona da casa, quando


ouviu Jáfar a falar em nome do miralmuminim, disse:

História da primeira moça, dona da casa

A minha história é bem estranha e espantosa, e seria um feito tão


grandioso escrevê-la no canto do olho com uma agulha quanto a lição que
dela se pode tirar. Aquelas duas cadelas negras são as minhas irmãs, e
somos todas filhas do mesmo pai e da mesma mãe, sendo eu a mais moça
de todas. Quanto a estas duas raparigas, a que tem o corpo flagelado e a que
sói ir às compras, são irmãs, mas de outra mãe. Quando o nosso pai morreu,
e depois de dividida a herança, nós as três fomos viver junto de nossa mãe,
enquanto as outras duas foram para junto da sua. Passado tempo, a nossa
mãe morreu, deixando três mil dinares que dividimos entre as três, ficando
cada uma com mil dinares. Com isso, as minhas irmãs mais velhas
arrojaram-se no empreendimento de se casar.
Casaram-se e o marido da mais velha, com o dinheiro de ambos,
comprou mercadorias para negociar, e levou a minha irmã nas suas viagens,
ausentando-se os dois pelo espaço de cinco anos, ao longo do qual ele
esbanjou todo o dinheiro, e depois disso viu-se livre dela, deixando-a
abandonada num país estrangeiro, a vaguear perdida. E durante cinco anos
nada soube dela, até um dia ela me aparecer num estado deplorável trajada
de pedinte, com uma vestidura suja e velha e aos farrapinhos. Em a vendo,
fiquei atónita e perguntei-lhe: «Porque estás neste estado?» E ela
respondeu-me: «Não há palavras que o digam, pois O cálamo escreveu
pelas linhas decretadas.» Então, ó miralmuminim, levei-a prontamente aos
banhos, vesti-a com roupas novas, preparei-lhe um caldo e dei-lhe de beber.
Cuidei dela durante um mês e depois disse-lhe: «Mana, tu és a mais velha
dentre nós, e por isso agora ocupas o lugar de nossa mãe. Deus abençoou o
quinhão que me coube, e eu multipliquei-o produzindo e fiando seda. Por
isso, a minha riqueza doravante será dividida em partes iguais por ambas.»
Tratei-a com a maior bondade possível, e ela assentou comigo por um ano
inteiro, durante o qual os nossos âmagos não pararam de pensar na nossa
outra irmã, que em breve acabou por aparecer num estado ainda mais
deplorável do que a outra, e eu tratei-a como havia feito com a minha irmã
mais velha, cuidando dela e lhe dando a vestir.
Tempo depois, vieram dizer-me: «Ó mana, queremos casar-nos, pois para
assentar na vida precisamos de marido.» E eu lhes disse: «Manas, o
casamento não tem coisa boa e os homens bons raros são. Vós já haveis
experimentado o casamento e nada de valor vos trouxe ele. Mais vale
assentarmos juntas e viver por nós mesmas.» Mas, ó miralmuminim, elas
não me deram ouvidos e foram casar-se sem me consultar, e desta vez fui eu
que lhes aprontei os dotes. E os seus maridos não tardaram a fazer o mesmo
que os anteriores, pegaram em mercadorias e partiram em viagem,
abandonando-as. Depois elas vieram ter comigo, desfazendo-se em
desculpas e dizendo: «Ó mana, tu és mais pequena do que nós em idade,
mas maior em sensatez. Quanto a casamentos, foi esta a última vez. De
agora em diante as nossas línguas não mais conhecerão a palavra
“casamento”. Aceita-nos como tuas servas para termos pão para comer.» E
respondi-lhes: «Ó manas, nada me é mais precioso do que vós mesmas.»
Aceitei-as, mas tratei-as ainda melhor do que antes. Passámos o terceiro ano
juntas, e eu cada vez acumulava mais riquezas, e a minha situação cada vez
melhorava mais.
Então, ó miralmuminim, eu quis vender mercadoria minha em Baçorá.
Mandei aprontar uma grande embarcação, carreguei-a de mercadorias,
bagagens, e com tudo do que eu fosse falta. Viajámos durante dias ao sabor
de ventos favoráveis, mas às tantas demos pelas nossas almas perdidas no
mar, e no mar nos perdemos durante vinte dias, ao cabo dos quais o gajeiro
subiu ao cesto da gávea e gritou: «Alvíssaras!» Desceu todo contente e
disse-nos: «Vi o que parece ser uma cidade com a forma de um pombo.»
Ficámos contentes, e em menos de uma hora chegámos àquela cidade, e
desembarcámos para visitar a cidade. Havendo-me aproximado da porta da
cidade, vi gentes de bastão na mão, e ao acercar-me mais destas gentes vi
que estavam todos transformados em pedra. Fui pela cidade adentro, e vi
que as gentes das lojas também estavam petrificadas, e ali Não havia nem
vivalma nem sombra de alma. Dei voltas pela cidade e vi que toda ela se
havia transformado em pedra muda. Ao chegar às extremas da cidade, vi
uma porta chapeada a oiro vermelho, com um cortinado de seda estendido e
um candeeiro pendurado. Então disse para comigo: «Ó meu Deus, que coisa
tão estranha! Será que aqui mora gente?» Entrei porta dentro e fui ter a uma
sala, que me levou a outra sala, e de seguida a outra, e fui atravessando sala
atrás de sala, sempre sozinha sem encontrar alguém, o que me deixou um
tanto assustada. Em seguida fui aos aposentos onde habitam as mulheres,
onde em todas as paredes havia cortinados com brocado de oiro, e vi sua
alteza a rainha, mulher do rei, trajando um vestido decorado com pérolas
luzidias, cada uma das quais do tamanho de uma avelã, e à sua cabeça tinha
uma coroa embutida com pedras preciosas.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
64.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei, que a moça, dona da casa, dirigiu-se ao califa nos
seguintes termos:

Ó miralmuminim, a rainha tinha na cabeça uma coroa embutida com


variados géneros de pedras preciosas, e o palácio estava decorado com
tapeçarias brocadas a oiro. No meio de uma sala anichada e abobadada,
avistei uma cama de marfim chapeada a oiro cintilante, com duas piruletas
feitas de esmeraldas, e um tule de mosquiteiro com pérolas bordadas.
Avistei também uma luz que irradiava com grande brilho através do tule, e
ao aproximar-me, e pondo a cabeça dentro, vi em cima dum pequeno
pedestal, ó miralmuminim, uma gema da medida de um ovo de avestruz,
com um brilho tão incandescente que cegava os olhos. Os lençóis da cama
eram de seda, assim como a coberta, e à banda das almofadas havia duas
velas acesas, mas o que não havia era pessoa alguma naquela cama. Fiquei
espantada com tudo naquele lugar e mais ainda com aquelas duas velas
acesas, e disse de mim para mim: «Só uma pessoa poderia ter acendido
estas velas.» De seguida, fui explorar outras divisões, e vi a cozinha, a
adega, e os armazéns do tesoiro real. E andando às rodas, de quarto em
quarto e de lugar em lugar, absorta com tudo aquilo e espantada com o que
havia acontecido à gente daquela cidade, acabei por me distrair com o
tempo, e quando veio a noite e procurei a porta do castelo, não a consegui
encontrar e apercebi-me de que estava perdida. Vagueei na escuridão da
noite durante algum tempo, sem conseguir descortinar sítio para me abrigar,
a não ser aquela cama com mosquiteiro e velas acesas. Então fui para lá
dormir e cobri-me com os lençóis, mas o sono não se apoderou de mim.
Lá pela meia-noite, ouvi uma voz melodiosa recitando o Alcorão.
Levantei-me radiante e fui atrás da voz, até topar com uma despensa cuja
porta estava entreaberta. Espreitei lá para dentro, e vi o que parecia ser um
local de culto, com um mirabe, candeeiros pendurados, duas velas, e um
tapete de oração onde estava sentado um jovem elegante a recitar o
Alcorão, o que me deixou espantada, pois se toda a gente da cidade estava
petrificada, como poderia este jovem estar são e salvo?
Então, abri a porta, entrei naquele sítio, cumprimentei-o e disse:
«Louvado seja Deus, que me trouxe até junto de si e de quem poderá vir a
ser a causa da salvação da nossa embarcação e nos poderá ajudar a regressar
para junto da nossa gente. Por favor, ó mui honorável e devoto senhor, pela
virtude do livro que recita, responda ao meu apelo.» O jovem olhou para
mim, sorriu e disse: «Ó boa mulher, conte-me primeiro qual a causa de aqui
ter vindo, e depois lhe contarei o que aconteceu a mim e à gente desta
cidade, e por que causa ficaram petrificados enquanto eu fiquei são e
salvo.» Então fiz-lhe o relato da nossa viagem e de como a nossa
embarcação andou perdida à deriva no mar pelo espaço de vinte dias. E em
seguida perguntei-lhe sobre a cidade e sobre a sua gente, e ele respondeu-
me: «Seja paciente irmã, e contar-lhe-ei.» Depois, ó miralmuminim, fechou
O Livro, pô-lo de lado e fez-me sentar perto de si…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
65.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a moça, dona da casa, disse ao


califa:

Ó miralmuminim, o jovem pôs O Livro junto do mirabe, fez-me sentar à


sua banda, e foi então que vi que a sua cara era tão linda quanto a Lua
cheia, e de feitio bondoso, tal como disse o poeta:

O astrólogo viu uma formosa figura


À noite nos céus, brilhando tal a Lua.
O seu brilho rivalizava com o Sol nascente,
E a atónita Lua se lhe tornava deferente.

Deus Todo-Poderoso havia-o vestido com a própria beleza, e havia


bordado as suas bochechas com o esplendor e a perfeição, tal como disse o
poeta:

Juro pela sua delgada cintura e pálpebras inebriantes;


Pelos seus olhos que flechas mágicas lançam;
Pelo seu macio corpo e olhares acutilantes;
Pela sua branca testa e o negro cabelo;
Pelas suas pestanas que o meu sono interditam
E à sua poderosa vontade me sujeitam;
Por seus caracóis que lacraus lembram,
Enviados para matar os amantes pela rejeição;
Pela barba qual murta nas rosadas bochechas;
Pelos seus lábios de cornalina e dentes de pérola;
Pela fragrância do seu hálito e a saliva refrescante,
Cuja doçura lembra o mel e o vinho vibrante;
Pelo seu elegante pescoço e figura linda tal um galho,
Com um torso onde duas espáduas se destacam.
Pelas suas ancas que gingam, quer em movimento
Quer em repoiso, e pela sua esbelta cintura;
Pela sua pele macia tal seda, e espírito cativante;
E pelos atributos da beleza os quais nenhum lhe falta;
Pela sua prodigalidade e falar sincero;
Pela sua nobreza de nascimento e grande prestígio;
Por tudo isto, eu juro que a sua fragrância
Está na origem do almíscar e o ar perfuma,
E que o Sol ao seu lado perde o brilho,
E a crescente Lua é uma lasca da sua unha.

E, ó miralmuminim, o eu olhar para ele provocou em mim um ardente


suspiro, pois o meu coração quedou-se devoto em o amar, e disse-lhe: «Ó
senhor amado do meu coração, conte-me a história da sua cidade.» E ele
disse:
«Ó mulher devota a Deus, esta cidade é do meu pai, aquela pedra negra
que com certeza já viu dentro deste palácio enfeitiçado, tal como à rainha
que está dentro daquele tule de mosquiteiro e que é minha mãe. Nesta
cidade, cujo rei é o meu pai, todos os que nela vivem são magos52 que, em
vez do Rei Omnipotente, adoram o Sol, e rezam e juram em seu nome. O
meu pai foi abençoado com o meu nascimento já numa idade tardia, e eu
cresci e fui criado com abastança e nada me faltou. Connosco vivia uma
velhota que me ensinava o Alcorão e me dizia que nada deve ser adorado
senão Deus Todo-Poderoso. Foi graças a ela que aprendi o Alcorão, mas
escondia a minha fé do meu pai e do resto da minha família.
»Um dia, ouvimos uma poderosa voz dizer: “Ó gente desta cidade,
renegai a adoração do fogo, e adorai Deus Todo-Misericordioso.” Mas
ninguém o fez, e esta voz ouviu-se três vezes, durante três anos, e no último
ano eis que uma bela manhã toda a cidade se volveu em pedra, e ninguém
se salvou a não ser eu. E agora aqui estou, assente na minha fé de adorar a
Deus Todo-Poderoso, mas por mor da minha solidão e estando falto de
quem me faça convivência, sinto-me à beira de perder a paciência.»
Tendo ele o meu coração cativado e a minha alma conquistado, disse-lhe:
«Venha comigo para a cidade de Bagdade, pois a menina que vê à sua frente
é chefe de família, patroa de homens e escravos, e dona de riquezas e
mercadorias, algumas das quais estão nesta embarcação que deu à costa da
sua cidade quando nos perdemos, porque Deus nos empurrou até aqui, para
que me reunisse à sua juventude.» E continuei a minha solicitação, ó
miralmuminim, até ele dizer que sim. Então passei aquela noite, mal
podendo acreditar em tudo aquilo, dormindo a seus pés.
Em se fazendo manhã, levantámo-nos e arrecadámos dos armazéns do
tesoiro real o que fosse leve de peso e grande de valor, e descemos do
castelo até à cidade, onde avistei as minhas irmãs, o arrais e os meus
criados andando à minha procura, e que ficaram radiantes ao me verem.
Contei-lhes então a história do jovem e da cidade, o que os deixou bastante
espantados. Quanto às minhas irmãs, estas duas cadelas, ó miralmuminim,
em vendo o rapaz comigo, roeram-se de inveja e nutriram dentro de si os
piores sentimentos contra mim.
Subimos a bordo, e todos nós estávamos contentes pelos lucros obtidos,
sendo eu quem mais radiante estava em virtude de haver conhecido aquele
jovem. Depois, sentámo-nos à espera de ventos favoráveis para zarparmos.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
66.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a moça, dona da casa, disse ao


califa:

Ó miralmuminim, quando os ventos se tornaram favoráveis, zarpámos, e


enquanto estávamos sentados à conversa, as minhas irmãs perguntaram-me:
«Ó mana, que vais a fazer com este mancebo?» «Tomá-lo por marido»,
respondi eu. Depois acerquei-me dele e disse-lhe: «Por favor, não me se
oponha, ao chegar a Bagdade, a cidade donde viemos, conto consigo para
que me aceite como sua serva, seja meu marido e eu sua família.» O moço
respondeu: «Claro que sim, e a minha bem-amada senhora e patroa fique
sabendo que faça o que fizer, não me lhe oporei.» Em seguida, virei-me
para as minhas irmãs e disse-lhes: «Tudo o que se trouxe é lucro vosso,
enquanto ele é o meu único lucro. Ele é meu e eu sou dele.» Mas elas,
verdes de inveja, alimentaram dentro si os piores sentimentos contra mim.
Continuámos a viagem com ventos favoráveis até entrarmos no Mar da
Salvação, que atravessámos durante um curto espaço de tempo até nos
aproximarmos de Baçorá. Veio a noite e fomos a dormir, mas as minhas
irmãs esperaram pacientemente que eu estivesse ferrada nos sonhos para me
levarem da cama afora e me botarem ao mar, fazendo o mesmo com o meu
amigo, que se afogou. Quanto a mim, quem me dera ter-me afogado com
ele, mas salvei-me, e dei por mim numa ilha escarpada, e quando acordei e
só vi água à minha roda, conheci que as minhas irmãs me haviam
atraiçoado, e dei graças a Deus por estar sã e salva. Entretanto lá ia a
embarcação mares afora e mais veloz que um relâmpago, enquanto eu
passei a noite toda a pé, até brilhar a manhã e conseguir ver uma língua de
terra seca ligando a ponta da ilha a terra firme. Atravessei-a e em breve
cheguei à costa. Espremi a minha roupa, estendi-a ao Sol para secar, e
aproveitei para comer algumas tâmaras que tinha encontrado e beber água.
Depois de ter caminhado um pouco, sentei-me a descansar, estando já a
umas duas horas da cidade, e eis que vejo uma comprida serpente, grossa
como o tronco de uma palmeira, rastejando rapidamente acercando-se de
mim, enroscando-se à direita e à esquerda, revolvendo a areia, com a
língua, que media um palmo, de fora pendurada. E atrás dela apareceu outra
serpente tão delgada quanto uma lança e comprida como duas lanças, que
abocanhou a primeira pela cauda, que por sua vez desatou aos gritos,
entornando lágrimas, a tentar fugir contorcendo-se à direita e à esquerda.
Então, ó miralmuminim, fui inundada por um sentimento de compaixão e
misericórdia, e agarrei num enorme pedregulho e, pedindo auxílio a Deus,
arremessei-o contra a serpente atacante e matei-a. Mal o fiz, à serpente que
se havia salvo abriram-se-lhe duas asas e voou por esses ares fora, até que a
perdi de vista.
Então sentei-me a descansar e, sentindo-me tão cansada como se já não
dormisse há um ano, adormeci. Ao acordar, deparei-me com uma moça
negra, sentada a meus pés, que tinha em sua companhia duas cadelas e lhes
fazia festinhas. Sentei-me direita e perguntei-lhe: «Irmã, quem és tu?» Ao
que ela respondeu: «Ai assim tão rápido te esqueceste de mim? Eu sou
aquela por quem tu praticaste uma boa acção, e por isso caíste nas minhas
boas graças. Eu sou a serpente que estava ali e a quem tu prestaste um
grande favor ao matar o meu inimigo com a ajuda de Deus Todo-Poderoso.
Não havia outra forma de te retribuir senão perseguindo a embarcação e
levando tudo o que ela continha para tua casa. Depois ordenei aos meus
ajudantes que a afundassem, porque eu estava ciente de como tu durante
toda a vida trataste tão bem as tuas irmãs, e de como elas te trataram a ti e
se roeram de inveja pelo teu amigo, não hesitando em vos botar ao mar,
afogando o rapaz. Aqui estão elas, em forma de duas cadelas negras, e juro
pelo Criador dos céus que se desobedeceres às instruções que te darei, eu
mesma te levarei para te prender debaixo da terra.»
Depois a moça tomou a forma de um pássaro, e levou-nos, a mim e às
minhas irmãs, pelos ares fora, até nos poisar em minha casa, onde me
deparei com todas as minhas riquezas que estavam na embarcação e que ela
havia transportado. Depois ela disse-me: «Juro por ‘Quem fez fluir as duas
massas de água’53, que se me desobedeceres, além do que já disse te
tornarei numa cadela igual às tuas irmãs. A partir de agora, todas as noites
lhes aviarás trezentas chicotadas como castigo pelo que fizeram.» E
respondi-lhe que assim faria. Então ela foi-se e deixou-me. E dês que
prestei aquele juramento que as castigo todas as noites até o sangue lhes
escorrer. Fico muito magoada por fazê-lo, mas elas sabem que o não faço de
minha livre vontade. É esta pois a causa de eu lhes bater e de chorar com
elas, e elas sabem que se lhes bato não é por culpa minha e aceitam as
minhas desculpas. E assim termina a minha história.

Ao terminar o seu relato, o califa estava completamente espantando.


Depois o miralmuminim ordenou a Jáfar que dissesse à segunda moça que
contasse qual a causa de ter o corpo flagelado no peito e nos lados, e ela
disse:

Ó miralmuminim, quando o meu pai expirou…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão


boa», disse a sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com
o que contarei, a ti e ao nosso rei na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
67.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a moça flagelada disse ao


miralmuminim:

História da segunda moça, a flagelada

Quando o meu pai expirou, deixou-me uma grande fortuna, e fui-me


casar com o homem mais afortunado de Bagdade, e durante um ano vivi em
grande abastança. Mas depois ele também morreu, e recebi o que me cabia
da sua herança, que eram noventa mil dinares. Assente na vida com grande
fortuna e felicidade, não me poupei a vestir do bom e do melhor e a
acumular cada vez mais jóias de oiro, e tinha dez vestidos mandados fazer
por mim, sendo que cada um havia custado mil dinares, e por isso a minha
fama se espalhava pela cidade.
Até que um dia, estava eu sentada em casa, quando me aparece uma
velha, e ai que velha aquela, toda corcunda, muito encarquilhada com a pele
pálida tal o gesso, a cara decrépita e às manchas, as sobrancelhas
depenadas, os olhos turvos e cansados, os dentes partidos, o cabelo grisalho,
e o nariz ranhoso, tal como alguém disse numa poesia:
A sua carranca tem olhos turvos e cansados,
Na boca há calhaus, e os cabelos estão ceifados.
Na cara estão plantados sete desatinos,
Um dos quais é a maldição dos destinos.

A velha cumprimentou-me, beijou o chão perante mim e disse: «Minha


senhora, tenho uma filha órfã; hoje é a sua noite de núpcias, em que se
desvelará para o marido, mas nós estamos de coração partido, porque somos
estrangeiras e não conhecemos ninguém nesta cidade. Se vier à festa de
casamento, Deus a recompensará e a sua presença será uma grande honra
para nós. Além do mais, as senhoras desta cidade em sabendo da sua
presença também virão, e assim o coração da minha filha se consolará.» E
em seguida, a velha declamou uma poesia:

É uma grande honra a vossa presença,


A qual nos traz uma alegria imensa,
Não havendo outra excelência
Que colmatasse a vossa ausência.

Depois chorou e implorou-me, e eu, sentindo pena dela, acabei por


aceder ao seu pedido e disse-lhe: «Assim farei por amor a Deus Todo-
Poderoso, mas ela não será desvelada ao seu marido senão com as minhas
roupas, adornos e jóias.» A velha não coube em si de contente e botou-se
aos meus pés, beijando-os, e disse: «Que Deus a recompense com o bem, e
lhe console o coração tal como consolou o meu. Minha senhora, por
enquanto não é necessário tomar cuidado algum, mas apronte-se pela hora
do jantar e eu a virei buscar.»
Quando ela se foi, tratei de fazer os enfiamentos das pérolas, de escolher
os brocados e de reunir as jóias e os adornos, sem saber o que o destino me
reservava. Ao cair da noite, a velha apareceu muito bem-humorada e com
um grande sorriso na boca, e disse: «Ó dona, quase todas as senhoras da
alta sociedade de Bagdade já estão à sua espera, com grandes expectativas
pela sua vinda.» Então levantei-me, acabei de me vestir e de me adornar, e
segui a velha com as minhas criadas atrás de mim. Caminhámos até irmos
ter a uma travessa que estava impecavelmente limpa e lavada, e detivemo-
nos diante duma porta com um cortinado preto pendurado e uma lanterna
com filigranas a oiro, e por cima da porta havia um poema escrito com estes
versos:

Eu sou a casa da eterna festa


E quem aqui mora muito se alegra.
Dentro de mim há uma fonte
Cuja água qualquer mágoa cura
E quatro fragrâncias exala:
Crisântemo, goivo, rosa, e murta.

A velha bateu à porta, e quando a abriram, entrámos e deparámo-nos com


velas acesas e tapetes de seda estendidos pelo chão. As velas estavam
dispostas em duas filas, uma em cada banda, formando um corredor desde a
porta até ao salão, onde havia uma camilha feita em madeira de zimbro,
cravejada de gemas, com um mosquiteiro feito de cetim vermelho
alaranjado e brilhante. E mal entrei no salão, eis que saiu de lá de dentro
uma moça, e quando olhei para ela, ó miralmuminim, ela era tão bonita
quanto o crescente, com uma face tão brilhante quanto a Lua cheia ou o Sol
nascente, tal como disse o poeta:

Apareceu entre as virgens oferecidas a César,


Tal prenda digna de grandiosos reis persas.
Mostrava as suas bochechas tão belamente rosadas
Como se houvessem sido pelo pau de sapão tintadas.
Delgada, de lânguido olhar invocando volúpias,
Da própria Beleza herdou as suas delícias.
Como se a franja que sobre a testa pendia
Fosse a triste noite antes da manhã da alegria.

A moça saiu de lá de dentro e disse: «Bem-vinda seja esta nossa ilustre e


querida irmã.» E declamou uma poesia:

Se a casa soubesse quem a visita,


Exultaria de alegria e o chão beijaria,
E à sua maneira cantaria
As boas-vindas a gente tão bendita.

Depois, ó miralmuminim, aproximou-se de mim e disse: «Minha


senhora, eu tenho um irmão que é ainda mais bonito do que eu, e ao ver a
senhora numas festas de casamento e em outras cerimónias, vendo que a
beleza e o requinte são atributos que o destino não lhe negou, e ouvindo que
a senhora é chefe da sua família, tal como ele, quer o meu irmão dar o nó
consigo, para que a senhora seja sua família e ele seja seu marido.» E eu
respondi-lhe: «Às suas ordens.» Ó miralmuminim, mal disse estas palavras,
ela bateu palmas, e eis que se abriu a porta dum armário e de lá saiu um
belo moço na flor da idade, todo galante e trajando roupas imaculadamente
limpas, de corpo gracioso e harmonioso, irradiante beleza e perfeita lindeza,
com umas sobrancelhas que eram como arcos antes das flechas serem
disparadas, e olhos que cativam os corações com a sua magia branca, tal
como disse o poeta:

A sua face é mais brilhante que a própria Lua,


E as pérolas do seu sorriso alegria nua e crua.

Mal o vi, o meu coração quedou-se logo enamorado. Ele sentou-se à


minha banda e ficámos um pouco à conversa. Depois a moça tornou a bater
palmas, e eis que se abriu a porta dum armário e de lá saíram um juiz e
quatro testemunhas, que se sentaram a redigir o contrato de casamento.
Depois o moço fez-me prometer que eu nunca trataria com nenhum homem
senão ele, e não se deu por satisfeito enquanto não lho jurei solenemente.
Eu estava radiante da vida e mal podia esperar que fosse noite, até que
finalmente nos retirámos e eu dormi com ele a mais bela noite de toda a
minha vida. De manhã, ele sacrificou animais, honrou-me com favores e
entre nós havia só amores. Durante um mês inteiro, não podia ter vivido de
guisa mais feliz.
Um dia, querendo eu ir comprar um tecido, pedi-lhe autorização e ele
mui prontamente ma deu. Então fui ao mercado, acompanhada da velha e
de duas criadas. Ao chegar ao mercado da seda, vai a velha e diz-me:
«Minha senhora, conheço um mercador, um jovem moço que tem uma loja
magnífica, e o que quer que peça, ele tem, e tem tecidos que mais ninguém
tem no mercado. Vamos até lá e vai ver que lhe poderá comprar o que seja
que queira.» Então lá fomos, e ao entrar na sua loja, vi um moço bem
jovem, magro e formoso, tal como disse o poeta:

Eis um esbelto jovem de cabelo cuja beleza


Todos os mortais cativa, na luz e na treva.
E não censures o sinal na sua bochecha,
Também a anémona tem negra mancha.

Então disse à velha: «Peça-lhe que nos mostre um belo tecido.» Mas a
velha respondeu: «Peça-lhe antes a senhora.» E eu disse-lhe: «Então não
sabe que eu jurei não falar com outros homens?» A velha lá disse ao moço:
«Mostre-nos alguns tecidos.» Ele assim fez, e havendo alguns que me
agradaram, eu disse à velha: «Pergunte-lhe pelo preço.» E quando ela
perguntou, ele respondeu: «Não os vendo nem por prata nem por oiro, mas
só por um beijo na cara desta dama.» «Deus me livre de tal coisa!» rebati
eu. Vai a velha e diz-me: «Ó dona, não precisa de lhe falar, nem ele de lhe
falar. Basta só inclinar a cara para ele lhe dar um beijinho e nada mais!»
Então, incitada pela velha, estendi-lhe a cara, mas vai o moço e ferra-me os
dentes na bochecha, arrancando-me um pedaço de carne. Perdi os sentidos e
pouco depois, quando acordei, vi que ele havia fechado a loja e
desaparecido, enquanto me escorria sangue pela cara abaixo e a velha se
mostrava muito pesarosa e compadecida.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


68.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a moça flagelada disse ao


miralmuminim:

A velha, mostrando-se muito pesarosa e compadecida, lamentando-se


pelo sucedido, disse: «Minha senhora, graças a Deus que não foi pior, agora
recomponha-se e evite o escândalo. Quando chegarmos a casa, finja estar a
dormir e doente, e cubra-se com o véu, que lhe hei-de trazer uns pós e umas
compressas para tratar a sua bochecha, e vai ver que fica boa em três dias.»
Levantei-me e pouco a pouco fomos caminhando até casa, e quando lá
cheguei caí no chão, sentindo cada vez mais dores. Depois cobri-me com
um véu e bebi um pouco de vinho.
Ao chegar de noite, o meu marido apareceu e perguntou: «Ó amor, passa-
se alguma coisa?» «Tenho uma dor de cabeça», respondi eu. Ele acendeu
uma vela, acercou-se de mim, olhou para a minha cara e ao ver a minha
bochecha ferida, perguntou: «Como aconteceu isto?» E eu respondi-lhe:
«Hoje, ao ir ao mercado para comprar alguns tecidos, cruzei-me com um
cameleiro que trazia lenha, e como a passagem naquele sítio era demasiado
estreita, ele roçou por mim e um dos bocados de lenha rasgou o meu véu e
feriu a minha bochecha.» Nisto diz-me ele: «Amanhã mesmo irei pedir ao
governador da cidade que enforque todos os cameleiros.» Ao que eu
retorqui: «Ó senhor meu, esses homens não merecem ser enforcados pelo
que aconteceu. Isso só serviria para mancharmos as nossas mãos com
sangue, e para carregarmos o fardo da culpa pela morte de inocentes.» Nisto
ele perguntou: «Mas então o que causou esse ferimento?» E eu respondi:
«Eu montava um burro e o almocreve que o conduzia fazia-o de um modo
brusco; às tantas, o burro revoltou-se e botou-me ao chão, e eu caí de cara,
havendo por mero acaso um pedaço de vidro no chão que me atingiu
direitinho na bochecha, ferindo-a.» Vai ele e diz-me: «Valha-me Deus! O
Sol não se tornará a erguer sem que eu peça a Jáfar, o Barmecida54, para
enforcar todos os almocreves e varredores.» Ao que eu lhe disse: «Por amor
de Deus, não foi bem isto o que se me sucedeu, por favor não mate pessoas
por minha causa.» E ele perguntou: «Então qual é a causa verdadeira do
ferimento nessa bochecha?» Eu respondi-lhe: «Tropecei nos desígnios de
Deus.» E enquanto eu balbuciava no que ia dizendo, ele foi insistindo e
endurecendo a voz, e ao travar-me de razões com ele, não tive mão em mim
e falei-lhe grosso e feio. Então, nesse momento, ó miralmuminim, ele solta
um berro, e eis que se abriu a porta dum armário e de lá saíram três
escravos negros, a quem ele ordenou que me arrancassem da cama e me
estendessem no chão de costas no meio da casa. Depois ordenou a um dos
escravos que se sentasse aos meus joelhos, a outro que segurasse na minha
cabeça com as pernas e ao outro que desembainhasse a espada, a quem lhe
disse: «Sâad, desfere-lhe um golpe que a corte ao meio; os outros que cada
um pegue numa das partes e a lance ao rio Tigre para alimentar os peixes.
Esta é a recompensa para aqueles que traem uma promessa.» E com a fúria
bem ao rubro, pôs-se a declamar uma poesia:

Se aquela que eu amo tem outro amante,


Não a amarei, mesmo que morra de paixão agonizante.
E dir-lhe-ei: «É mais nobre provar a morte,
Que partilhar a amada com outro consorte.»

Depois ordenou ao escravo que me desferisse o golpe fatal. Quando o


escravo se assegurou da ordem dada, baixou-se para se acercar de mim e
disse: «Minha senhora, tem algum último desejo antes de morrer? Este é o
último momento da sua vida neste mundo.» E eu respondi: «Afastai-vos de
mim, para eu poder falar ao meu marido.» Então levantei a cabeça e olhei
para o estado em que me encontrava, pensando como havia descido do mais
prestigioso nível para a mais baixa humilhação, e da vida para a morte,
chorando aos soluços baba e ranho. Ele olhou para mim, com raiva nos
olhos, e declamou uma poesia:

Dizei a quem partiu por outro amado


E de mim se aborreceu, pondo-me de lado,
Que em me fazendo sofrer em primeiro,
O que havia entre nós já não tem cheiro.

Quando ouvi este poema, ó miralmuminim, chorei e, olhando para ele,


declamei uma poesia:

Levasteis o meu amor ao rubro e vos haveis retirado,


Deixando os meus olhos doridos e acordados enquanto dormíeis.
E permaneceis entre os meus olhos e a minha insónia,
Sem que eu vos consiga do meu coração apagar nem a lágrima
[conter.
Haveis prometido tão absoluta fidelidade,
Mas em conquistando o meu coração, a promessa haveis traído.
Amo-vos como uma criança que não sabe o que é o amor,
Por isso não me mateis, que eu ainda estou a aprender.

Quando ouviu a poesia que eu declamei, ó miralmuminim, ele encheu-se


ainda mais de raiva, e olhando-me com olhos furiosos, declamou estes
versos:

Não abandonei a amada do coração por aborrecimento,


Mas por uma questão de grande discernimento,
Quando ela ao nosso amor quis um concorrente,
A fé do meu coração não tolerou tal vertente.

Olhando para ele, chorei, implorei, e declamei uma poesia:

O peso da paixão esmagou-me de tal modo,


Que já nem forças tenho para uma camisa vestir.
E já me não espanta que a minha alma seja devastada,
Mas espanta-me como fica o meu corpo depois de vos irdes.

Quando ouviu as minhas palavras, proferiu injúrias contra mim e


recriminou-me; e olhando para mim declamou uma poesia:

Uma outra companhia que não a minha haveis preferido,


Mostrando o vosso desejo de me abandonardes, coisa que nunca fiz.
Se a minha presença detestais, deixar-vos-ei a sós,
E, tal como haveis feito, o fim do amor lamentarei,
E outra amada que vos substitua encontrarei.
Não fui eu quem o amor degolou, mas haveis sido vós.

Depois ele gritou uma ordem ao escravo: «Corta-a ao meio e livra-me


dela, que a vida dela de nada vale.» Então, ó miralmuminim, depois desta
batalha de poemas, quando eu já estava ciente que ia morrer e dava a minha
vida por perdida, veio a velha, prostrou-se aos pés do meu marido a chorar,
e disse: «Ó filho, pelo direito que me cabe por te haver criado e por te haver
dado as minhas mamas para tu mamares, por te haver servido, concede-me
o seu perdão. Dizem que Quem mata, também morre, e tu ainda és
demasiado jovem para isso. Porque te preocupas com essa imunda? Varre-a
da tua vida e do teu coração.» E continuou a chorar, até o seu pedido ser
satisfeito e ele dizer: «Mas terei de lhe deixar uma marca que lhe fique para
sempre.» Então, ordenou aos escravos que me arrancassem as roupas, me
estendessem no chão e se sentassem sobre mim para me agarrarem,
enquanto ele pegou numa vara de marmeleiro, e me arriou vergastadas a
torto e a direito nos meus costados, até que dei os prazeres da vida por
perdidos e perdi os sentidos. Em seguida, ordenou aos escravos que ao cair
da noite me levassem para minha casa, e que a velha os orientasse no
caminho. Os escravos obedeceram ao seu senhor, levaram-me e
arremessaram-me para dentro de casa, indo-se embora enquanto eu ainda
estava desmaiada.
De manhã, pus pomadas e remédios no meu corpo, e ao olhar para ele vi
como estava feito num oito, com as marcas salientes do chicote. Fiquei de
cama durante quatro meses, e quando fiquei boa, fui até casa do meu
marido, mas ao lá chegar deparei-me só com ruínas, e toda a travessa, de
um cabo ao outro, havia sido arrasada, e da casa só restavam uns montes de
entulho. O que ali havia acontecido eu não fazia qualquer ideia. Então fui à
da minha irmã, esta que também aqui está e que é irmã só da parte do meu
pai, e ao lá chegar vi-a com duas cadelas negras. Cumprimentei-a e dei-lhe
parte da minha história, e ela disse: «Ó mana, mas quem está a salvo das
tribulações do mundo e da vida?» E declamou uma poesia:

Assim vai o mundo, preparai-vos para os perigos


Quando desaparece o dinheiro e se vão os amigos.

Depois, ó miralmuminim, ela contou-me a sua história, e o que as irmãs


lhe haviam feito e no que se haviam tornado. Assentámo-nos a viver juntas
e nunca mais as nossas línguas invocaram qualquer homem. Quanto à outra
irmã, a moça que sói ir às compras, tornou-se nossa amiga, e todos dias vai
ao mercado e compra tudo o que precisamos para o dia e para a noite. Deste
modo vivemos nós durante longo tempo, até que ontem à noite, quando a
nossa irmã saiu como sói para ir às compras, veio com o carregador, que
pas-sou a noite connosco para nos rirmos dele. Ainda não havia passado um
quarto da noite, quando estes três dervixes se juntaram a nós e estivemos na
conversa com eles. E ainda não havia passado um terço da noite, quando
três honoráveis mercadores de Mossul se juntaram a nós, e ficámos à
conversa e eles nos contaram as suas aventuras. Nós impusemos-lhes uma
condição, mas eles não a acataram, e por isso tivemos de tomar as devidas
medidas. Quando os interrogámos sobre as suas vidas, eles contaram-nos o
que se lhes havia sucedido, e nós os perdoámos e eles se partiram. E eis que
esta manhã viemos à sua presença. E esta é a nossa história.

O califa, ó rei bem-aventurado, ficou pasmado com aqueles relatos e com


o que lhes havia sucedido.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa, tão estranha e espantosa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei na próxima
noite, se o rei me poupar e eu viver.»
69.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó gloriosíssimo rei, que o califa, pasmado com tudo o que


acabara de ouvir, virou-se para a primeira moça e perguntou: «Diz-me, tens
alguma notícia da serpente-ifrita que encantou as tuas irmãs em cadelas?
Sabes em que bandas ela pára? Terá ela acordado um dia em que se
reencontraria contigo?» Ela respondeu: «Ó miralmuminim, ela deu-me um
punhado de cabelos seus e disse-me: “Se precisares de mim, basta
queimares dois destes cabelos e eu aparecerei mui prontamente mesmo que
esteja no monte Qaf.”» Então o califa perguntou: «E onde estão esses
cabelos?» Ela trouxe-os e o califa queimou-os a todos, e eis que mui
prontamente o palácio estremeceu e a serpente apareceu, e disse: «A paz
seja contigo, ó miralmuminim, fica sabendo que esta mulher plantou as
sementes da bondade e eu não tenho modo de lhe retribuir, pois ela livrou-
me da morte e matou o meu inimigo. Quando me lembrei do que as irmãs
dela lhe fizeram, determinei que não havia outro modo de lhe retribuir
senão vingando-me delas e as enfeitiçando em cadelas. E só as não matei,
como de início pensei em fazer, porque receei que as suas mortes fossem
um golpe demasiado duro para ela. Mas agora, ó miralmuminim, se
quiseres que eu as desencante, fá-lo-ei com todo o prazer, pois estou às tuas
ordens, ó miralmuminim.» O califa respondeu: «Ó espírito, desencanta-as
para as livrarmos das suas tormentas. Depois de o fazeres, irei tentar
descobrir, se Deus me ajudar e facilitar nesta tarefa, quem oprimiu a moça
flagelada e lhe usurpou os seus direitos. Pois tenho a certeza que ela fala
verdade.» E a serpente-ifrita disse: «Ó miralmuminim, irei desencantá-las,
assim como te direi quem agiu mal com a moça flagelada e lhe bateu, e que
é alguém muito próximo de ti, ó miralmuminim.»
Em seguida, ó rei, ela pegou numa taça de água, conjurou um encanto
pronunciando palavras que nós não compreendíamos, e quando borrifou as
duas irmãs, elas libertaram-se do encanto e tornaram à sua forma original.
Então a serpente-ifrita disse: «Ó miralmuminim, quem bateu na moça
flagelada foi o teu filho Amine, irmão de Mâmune. Ele ouviu falar na
beleza e formosura dessa moça, e montou uma armadilha para se casar com
ela segundo a lei. Mas a culpa de lhe ter batido não é dele, porque ele lhe
havia exigido que para se concretizar o casamento ela tinha de jurar
solenemente que não faria certas coisas, e foi ela quem traiu esse acordo.
Ele até a quis matar, mas ao pensar como isso é pecado e receando Deus
Todo-Poderoso, contentou-se que a flagelassem e depois enviou-a de volta
para casa dela. E esta é a história da segunda moça, mas só Deus é que sabe
tudo.»
Quando o califa ouviu o que a serpente-ifrita disse sobre quem tinha
batido na moça, ficou espantadíssimo e disse: «Glória a Deus Grandioso
que me abençoou com o desencantamento destas duas mulheres e as
libertou da magia e da tortura, e que me abençoou uma segunda vez ao me
ser relatada a história desta moça. Meu Deus, o que eu vou fazer em
seguida far-me-á ser relembrado para toda a posterioridade.»
Ó rei, então o califa mandou chamar à sua presença o seu filho Amine e
interrogou-o para apurar quanta verdade havia naquela história. Depois
mandou chamar um juiz, testemunhas, os três dervixes, a primeira moça, as
duas moças que haviam sido encantadas, a moça flagelada e a moça que ia
às compras. Quando estavam todos presentes, o califa fez casar as duas
raparigas que haviam sido encantadas e a primeira moça, que era irmã
delas, com os três dervixes que eram filhos de reis, e nomeou-os camaristas,
dando a cada um uma tença55, e oferecendo-lhes cavalos e tudo do que
fossem faltos. Instalou-os num palácio de Bagdade e tornaram-se validos do
califa. Depois casou a moça flagelada com o seu filho Amine, renovando o
contrato de casamento, e regalou-os com dinheiro à farta e mandou que lhes
construíssem uma casa ainda melhor e mais bonita do que a primeira. Em
seguida, o califa casou ele mesmo com a terceira moça, a que soía fazer as
compras. E todos ficaram maravilhados com a generosidade, a sabedoria e a
indulgência do califa, e depois de se recolherem todos os factos, registaram
estes acontecimentos nas crónicas.

História das três maçãs

Algumas noites depois, o califa disse a Jáfar: «Quero ir à cidade para


ouvir as novas que circulam, e indagar junto do povo sobre as decisões dos
meus governantes. Assim, aqueles de quem houver queixas serão afastados,
e aqueles de quem houver elogios serão promovidos.» E Jáfar disse:
«Assim seja.» Quando a noite veio, o califa foi à cidade, acompanhado de
Jáfar e Macerur, e atravessaram as ruas e os mercados, e em cortando por
uma travessa viram um velho muito velho, que trazia à cabeça uma alcofa e
uma rede de pesca, e segurava um bastão. O califa disse a Jáfar: «Este é um
homem pobre e falto», e depois perguntou ao velho: «Ancião, como ganhas
a vida?» E ele respondeu: «Eu sou pescador, meu senhor. Tenho família e
hoje saí de casa pelo meio-dia para ir pescar, mas até agora não me sorriu a
sorte e nada tenho para prover de ceia à minha família. Estou tão destroçado
e amargurado da vida, que já só quero morrer.» Então o califa disse: «Ó
pescador, não queres volver a lançar a tua rede à beira do rio Tigre,
pescando para mim? Iremos contigo, e pelo quer que seja que à tua rede
venha, dar-te-ei cem dinares.» E o pescador, todo contente, respondeu:
«Assim seja, meu nobre senhor.»
Então volveu ao rio Tigre, e eles foram com o pescador, que em lá
chegando lançou a rede, e depois de juntar as calas, alou-a, e nela encontrou
uma arca fechada e pesadona. O califa deu os cem dinares ao pescador, e
Macerur carregou-a até ao palácio. Em a abrindo, encontraram um alcofa de
folhas de palmeira cosida com fio de lã vermelha, e ao abrirem a alcofa
deram com o farrapo de uma carpete, e quando retiraram esse farrapo viram
um manto de mulher dobrado em quatro; levantaram-no e por baixo deste
encontraram uma moça na flor da idade, brilhando como um lingote de
prata, assassinada e espostejada.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu ainda for
viva.»
70.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a moça havia sido espostejada em


dezanove pedaços. Em a vendo, o califa condoeu-se e ficou triste,
escorrendo-lhe as lágrimas, e voltando-se para Jáfar, disse furiosamente:
«Ah, cão de vizir, matam pessoas na minha cidade e deitam-nas à água, e
por causa do seu sangue ficarei de consciência pesada até ao Dia do Juízo
Final. Juro que farei justiça a esta moça, e darei a pior das mortes a quem a
matou. Se me não encontrares quem a matou, enforcar-te-ei a ti e a quarenta
primos teus.» Tomando-se de uma enorme fúria, disparou um urro violento
para Jáfar, que respondeu: «Ó miralmuminim, peço que me sejam
concedidos três dias.» E o califa respondeu: «Concedido.» Então Jáfar
retirou-se, e indo pela cidade triste e apoquentado, sem saber o que fazer,
dizia lá de si para si: «Como poderei encontrar e levar ao califa quem matou
a moça? Se levar alguém da prisão, ficarei de consciência pesada. Não faço
ideia alguma do que fazer. Não há força nem poder senão em Deus
Altíssimo e Grandioso.»
O vizir quedou-se em casa durante o primeiro dia, e durante o segundo, e
durante o terceiro até ao meio-dia, quando o califa mandou alguns
camaristas buscá-lo, e em ele se apresentando ante ele, o califa perguntou-
lhe: «Onde está quem matou a moça?» E o vizir disse: «Ó miralmuminim,
serei eu um perito em encontrar assassinos?» O califa ficou furioso, gritou-
lhe, e ordenou que o enforcassem ante o palácio, tendo mandado um
pregoeiro lançar um pregão pela cidade dizendo: «Quem quiser assistir ao
espectáculo do enforcamento do vizir Jáfar e de quarenta barmecidas56 seus
primos, então apareça ante o palácio para se divirtir.» Veio o governador e
alguns camaristas, e trouxeram Jáfar e os barmecidas, e colocaram-nos à
banda do patíbulo.
Enquanto aguardavam que vissem o lenço à janela — e este era o sinal
usado — e a multidão que lá se encontrava chorava por eles, eis que
aparece um jovem, trajando roupas imaculadamente limpas, com uma face
brilhante como a Lua, olhos negros, uma testa radiante, barba juvenil, e
bochechas rosadas onde havia um sinal que parecia um disco de âmbar-gris.
Rompeu por entre a turba até se acercar de Jáfar, beijou-lhe a mão, e disse:
«Ó grão-vizir, grandioso emir e refúgio dos pobres, possa eu salvá-lo desta
atrocidade! Enforque-me antes a mim para que justiça seja feita à moça
assassinada, pois fui eu que a matei!» Ao ouvir aquelas palavras serem
proferidas, o vizir ficou contente e triste, contente pela sua salvação, e triste
pela perdição daquele rapaz. Mas enquanto falava com ele, eis que um
velho muito entrado nos anos rompe por entre a turba até se acercar de Jáfar
e diz: «Ó mui valoroso vizir, não acredite no que diz este jovem, fui eu
quem a matou e mais ninguém. Enforque-me antes a mim em vez dele, para
que seja feita justiça à moça. Se o não fizer apontá-lo-ei como responsável
perante Deus Todo-Poderoso.» Ao que o jovem retrucou: «Ó vizir, mas fui
eu quem a matou e mais ninguém.» Mas o velho disse: «Ó filho, eu já sou
velho e já vivi quanto baste, e tu ainda és um jovem de tenra idade.
Sacrificar-me-ei por ti.» E dirigindo-se ao vizir acrescentou: «Fui eu quem a
matou e mais ninguém. Apresse-se a enforcar-me, porque eu não mereço
viver mais depois de ela haver morrido.»
Jáfar espantou-se ao ouvir a conversa de ambos, então pegou neles e
levou-os ao califa. Depois de beijar o chão diante do califa sete vezes, disse:
«Ó miralmuminim, trouxe quem matou a moça. Estes homens ambos, o
jovem e o velho, cada um diz que foi ele que a matou e não o outro. E aqui
estão eles na sua presença.» O califa olhou para o jovem e para o velho, e
perguntou: «Quem dentre vós matou a moça e a deitou à água?» E o velho
disse: «Fui eu quem a matou e mais ninguém.» Mas vai o jovem e diz: «Fui
eu sozinho quem a matou.» Então o califa disse a Jáfar: «Enforca-os aos
dois.» Mas Jáfar respondeu: «Ó miralmuminim, se só um deles é que a
matou, iremos cometer uma injustiça ao enforcar o outro.» Mas vai o jovem
e diz: «Por Aquele que ergueu o céu, juro que fui eu quem a matou, e a pus
numa alcofa de folhas de palmeira, cobrindo-a com um manto de mulher e
o farrapo de uma carpete, e cosendo a alcofa com fio de lã vermelha. E faz
quatro dias que a deitei ao mar. Por Deus e pelo Último Dia, que eu não seja
poupado depois de ela haver morrido, e que eu seja enforcado para que se
lhe faça justiça.»
O califa, espantado com o que havia ouvido, perguntou ao jovem: «Qual
a causa que te levou a matá-la tão injustamente? E por que causa te
denunciaste a ti mesmo?» Ao que o jovem respondeu: «Ó miralmuminim, a
história do que se me sucedeu com ela seria um feito tão grandioso escrevê-
la no canto do olho com uma agulha quanto a lição que dela se pode tirar.»
E o califa disse: «Conta-nos a história do que se te sucedeu com ela.» E o
jovem disse: «Às suas ordens, oiço e obedeço a Deus e ao miralmuminim.»
Então o moço…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


71.a NOITE

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o jovem disse:

Ó miralmuminim, a moça assassinada era a minha mulher e a mãe dos


meus filhos. Era minha prima, filha deste ancião, que é meu tio, irmão do
meu pai, e ma deu em casamento quando ela era uma donzela virgem.
Morei com ela onze anos, durante os quais ela foi abençoada por Deus, pelo
que me foi dado gerar três filhos machos. Comigo ela sempre se comportou
mui amavelmente, havendo-me servido da melhor maneira possível, e eu
por minha vez amava-a enormemente. Mas há um mês ela ficou muitíssimo
doente e cada vez ia ficando pior, e não me poupei a servi-la com os
melhores cuidados, e ao cabo de um mês ela começou a melhorar um
pouco. E um dia, antes de ir aos banhos, disse-me: «Primo, quero que me
satisfaças um desejo.» Respondi-lhe: «Às tuas ordens, mesmo que fossem
mil desejos.» E ela disse: «Apetece-me uma maçã. Se eu pudesse cheirar
uma e dar-lhe uma dentada, já poderia morrer em paz.» «Fica sossegada»,
disse-lhe eu.
Então procurei por toda a sua cidade, ó miralmuminim, mas não
encontrei uma única maçã, e se houvesse encontrado uma que fosse, por um
dinar a compraria. Desgostoso por lhe não satisfazer o apetite, voltei para
casa e disse-lhe: «Ó prima, juro por Deus que nada encontrei.» Ela ficou
transtornada e já estando adoentada, piorou ainda mais durante aquela noite.
Em a manhã amanhecendo, desatei logo a dar voltas por todos os
pomares, um a um, mas nada encontrei. E um ancião de muita idade deu-me
uma pista: «Ó rapaz, não encontras maçã alguma a não ser nos pomares do
miralmuminim em Baçorá, e é o seu caseiro quem as guarda.» Volvi a casa,
e sob a força do meu amor por ela e da minha hombridade, aprontei-me
para a viagem. Durante meio mês, ó miralmuminim, viajei dia e noite a eito,
indo e regressando com três maçãs compradas ao caseiro por três dinares de
oiro. Em lhas trazendo, ela não lhes ligou nenhuma e pô-las de lado.
Havendo a sua condição piorado, fiquei transtornado por ela durante outros
dez dias em que foi visitada pela doença.
Um dia, estava eu sentado na minha loja, comerciando tecidos, quando
de repente me deparei com um escravo, alto como uma cana e largo como
um banco de pedra, de figura muito feia, que em entrando na zona das lojas
trazia consigo uma das três maçãs pelas quais eu havia viajado meio mês.
Então chamei-o e perguntei-lhe: «Ó bom escravo, onde arranjaste essa
maçã?» E ele respondeu: «Esta maçã foi a minha miúda que ma deu,
quando um dia a visitei; estando ela doente, encontrei junto dela três maçãs,
e ela disse-me que havia sido o chulo do seu marido que havia viajado meio
mês para as trazer. Então, depois de comer e beber com ela, trouxe uma das
maçãs comigo.» Ao ouvir estas palavras, ó miralmuminim, foi como se o
mundo se houvesse tornado negro ante a minha face. Fechei a minha loja e
volvi a casa, louco de raiva e rancor.
Ao chegar a casa e em procurando as maçãs, só encontrei duas, então
perguntei à minha mulher: «Ó prima, onde está a outra maçã?» Ela levantou
a cabeça e disse: «Por amor de Deus, ó primo, não sei.» Quando me
assegurei que era verdade o que o escravo me havia dito, peguei numa faca
afiada, acerquei-me dela por detrás sem lhe dirigir palavra, ajoelhei-me em
cima dela, e cravei-lhe a faca no pescoço, degolando-a. Mui prontamente,
enfiei-a numa alcofa, cobria-a com um manto de mulher e com o farrapo de
uma carpete, cosi a alcofa, e tendo-a numa arca colocado, levei-a à cabeça e
deitei-a ao rio Tigre. Por favor, ó miralmuminim, apresse-se a enforcar-me
para que lhe seja feita justiça, pois se o não fizer apontá-lo-ei como
responsável perante Deus Todo-Poderoso.
Ao voltar para casa, após deitá-la ao rio, encontrei o meu filho mais
velho a choramingar. «Que tens?», perguntei-lhe eu, e ele respondeu: «Ó
pai, hoje de manhã, roubei uma das três maçãs que trouxeste à mãe. Levei-a
comigo até ao mercado, e enquanto estava por lá com os meus irmãos, veio
um escravo negro e alto e ma arrebatou. Eu ainda lhe gritei: “Por amor de
Deus, ó bom escravo, esta é uma das três maçãs por mor das quais o meu
pai viajou meio mês para ir a Baçorá e as trazer à minha mãe que está
doente. Não me cries problemas.” Mas ele nem se virou para mim, e então
eu tornei a dizer o que já lhe havia dito uma segunda vez, e à terceira vez
ele pregou-me uma bofetada e desapareceu. Com medo, eu e os manos
fomos a esconder-nos nos arrabaldes da cidade até que anoiteceu, e agora
estou com medo por ela; por favor pai, não lhe diga nada que a possa pôr
ainda mais doente.»
Ao ouvir as palavras do meu filho, ó miralmuminim, assim como os seus
medos e choros, apercebi-me que havia matado a moça injustamente, e
quão desmerecida havia sido a sua morte, e que o calamitoso escravo havia
falado mentira e calúnia, depois de ter ouvido a história das maçãs da boca
do meu filho. Após haver escutado o meu filho, chorei tanto que os meus
filhos também choraram comigo, e quando este ancião, que é meu tio e pai
dela, chegou, eu contei-lhe tudo o que havia sucedido. E ele chorou e todos
nós chorámos até à meia-noite, e ficámos de luto durante três dias,
deplorando a sua morte tão injusta, e tudo por culpa daquele escravo. E esta
é a minha história com a moça assassinada. Por isso, pelos seus pais e avós,
mate-me pelo meu crime para que seja feita justiça, que eu não mereço
viver mais depois de ela haver morrido.

Quando o califa acabou de o ouvir…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


72.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o califa ficou espantadíssimo ao


ouvir aquele jovem, e disse: «Meu Deus, não enforcarei ninguém a não ser
o escravo calamitoso, e o que farei curará a sede de vingança e satisfará
Deus o Glorioso Rei.» E depois disse a Jáfar: «Vai e traz-me o escravo,
senão cortar-te-ei a cabeça.» Então Jáfar abalou, e desfeito em lágrimas
disse de si para si: «Chamei a morte a deitar-se na minha cama e não há
artimanha que dela me livre, pois a jarra nem sempre pode ser salva, mas
talvez o Senhor Soberano Absoluto e Omnipotente que me salvou da
primeira vez me possa salvar uma segunda vez. Meu Deus, não sairei de
casa durante três dias e deixarei que ‘Deus cumpra o que decretou.’57» E
veio o primeiro dia, e o segundo, e ao meio-dia do terceiro o vizir, dando a
sua vida por perdida, mandou alguém buscar juízes e testemunhas para
escrever o seu testamento. Chamou as suas filhas e despediu-se delas a
chorar. Veio o mensageiro do califa e disse-lhe: «O califa tomou-se de uma
fúria implacável e jurou que o dia de hoje não passaria sem que tu sejas
crucificado.» Então Jáfar chorou, e com ele choraram os escravos e todos os
que estavam em casa.
Quando Jáfar acabou de se despedir das suas filhas e da gente de sua
casa, a filha mais pequena, que era de uma beleza irradiante e que Jáfar
amava mais do que todas as outras, aproximou-se dele e ele abraçou-a e
beijou-a, chorando por se ir separar da sua família e das suas crianças. E
quando se abraçaram, com toda a força da paixão dela pelo pai e com todo
o amor que ele tinha pela filha que até o seu coração ardia com a força do
abraço dela, ele sentiu que a filha tinha qualquer coisa guardada na
algibeira, e perguntou: «Ó minha querida menina, o que tens na algibeira?»
E a pequena respondeu: «É uma maçã que tem nela escrito o nome do nosso
senhor, o califa. Foi Rayhane, o nosso escravo, quem a trouxe, e não ma
quis dar a não ser quando lhe dei dois dinares de oiro.» Ao ouvir a filha
mencionando a maçã e o escravo, Jáfar deu um grito, e pondo a mão na
algibeira da filha, sacou uma maçã, e percebendo que maçã era aquela,
exclamou: «O alívio está para breve!»
Então ordenou que o escravo fosse trazido à sua presença, e quando ele
veio, perguntou-lhe: «Maldito sejas, Rayhane! De onde te veio esta maçã?»
E o escravo respondeu: «A mentira salva, mas a verdade salva e ressalva.
Juro que não roubei esta maçã, nem do seu palácio, nem do palácio ou dos
jardins de sua excelência, o miralmuminim. A verdade é que há quatro dias,
seguia eu por uma das travessas da cidade, quando me deparei com uns
miúdos brincando, e um deles deixou cair esta maçã. Preguei-lhe uma
bofetada e tirei-lhe a maçã, enquanto ele chorava e dizia: “Ó escravo, esta
maçã é da minha mãe que está doente e que pediu ao meu pai que lhe
trouxesse uma maçã. E ele viajou durante meio mês trazendo-lhe três
maçãs, e eu roubei uma delas, por isso devolve-ma.” E eu recusei devolvê-
la e trouxe-a comigo, tendo-a vendido por dois dinares à menina mais
moça. E esta é a história da maçã.»
Quando Jáfar ouviu aquilo, ficou espantado com a história e que a causa
de todo aquele rebuliço proviesse de um dos seus próprios escravos.
Radiante de alegria, pegou no escravo e foi à presença do miralmuminim, a
quem contou toda a história, de fio a pavio. O califa, espantado até mais
não, riu-se tanto que até caiu para trás. E disse: «Afinal, como podes ver, a
causa de todo este rebuliço é o teu escravo.» E Jáfar concordou: «É isso
mesmo, ó miralmuminim.»
Estando o califa tão espantado com tantas coincidências, vai Jáfar e diz-
lhe: «Não se espante com esta história, pois não é mais espantosa do que a
história dos dois vizires, Nureddine Ali do Egipto e Badreddine Haçane de
Baçorá58.» Então o califa perguntou-lhe: «Ó vizir, poderá a história desses
dois vizires ser mais espantosa que esta?» E ele respondeu: «Sim é, e é
ainda mais estranha, mas não lha contarei senão com uma condição.»
Então, havendo o coração do califa ficado imediatamente apegado à
história, disse: «Vamos lá então, ó vizir, conta-me essa história. Se ela for
mais espantosa que as coincidências que se nos acabaram de deparar, então
perdoarei o teu escravo. Mas se não for, matá-lo-ei. Vamos lá então, conta-
me o que sabes e que chegou ao teu conhecimento.» E Jáfar disse:

História dos dois vizires, Nureddine Ali do Egipto e Badreddine


Haçane de Baçorá

Ó miralmuminim, ouvi dizer que era uma vez, há muito tempo atrás, nas
terras do Egipto, um rei que era amigo da justiça e da paz, generoso e
bondoso, amando os pobres e confraternizando com os sábios, corajoso e
poderoso. Este rei tinha um vizir que era muito inteligente, experiente e
influente, dotado de conhecimentos, cauteloso no agir, e exímio na escrita.
O vizir, que era um ancião entrado em anos, tinha dois filhos, que eram
como duas luas ou duas formosas gazelas, e cada um era feito de irradiante
beleza e perfeita lindeza, com um corpo gracioso e harmonioso. O maior
chamava-se Xamseddine Muhammad59 e o mais pequeno Nureddine Ali,
que era o mais belo dos dois irmãos, não havendo Deus criado ninguém
naqueles tempos mais belo do que ele. Por via das circunstâncias e do
destino, o pai deles morreu. O rei ficou muito triste pela sua morte, e
chamou os filhos do vizir junto de si, tratando-os como seus próximos,
ofereceu-lhes trajes de honra, e disse-lhes: «O cargo do vosso pai agora é
vosso, sereis parceiros no vizirato do Egipto.» Eles beijaram o chão diante
do rei, retiraram-se e estiveram de luto pelo pai durante um mês, ao cabo do
qual assumiram ambos o cargo de vizir, revezando-se à vez em cada sexta-
feira e para cada viagem do rei. Não só os dois irmãos moravam na mesma
casa como também falavam a uma só voz.
Uma noite, nas vésperas de ser a vez do mais velho ir em viagem com o
rei, aconteceu estarem sentados ambos à conversa, quando o mais velho
disse: «Mano, o que nós devíamos fazer era casarmo-nos com duas
mulheres que fossem irmãs, redigir os contratos de casamento no mesmo
dia e consumar o casamento na mesma noite.» E Nureddine disse: «Ó
mano, é uma ideia muito feliz. Por mim pode ser assim mesmo, mas
esperemos que regresses da viagem antes de escolhermos as noivas. E que
Deus nos traga o bem.» Então o mais velho disse a Nureddine: «Ó mano,
diz-me lá, se eu e tu redigíssemos os nossos contratos de casamento no
mesmo dia, e consumássemos o casamento no mesmo dia, e a minha e a tua
mulher emprenhassem na noite de núpcias, isto é, na mesmíssima noite, e
em passando os devidos meses e noites parissem no mesmo dia, e se a tua
mulher trouxesse ao mundo um macho e a minha uma fêmea, então
aceitarias casar o teu filho com a minha filha?» E Nureddine respondeu:
«Assim faria, ó mano Xamseddine», e perguntou: «E quanto pedirias de
dote ao meu filho para dar à tua filha?» E respondeu o mais velho: «Não
pediria menos de três mil dinares, três pomares, três herdades, mais o que
fosse estipulado no contrato.» E Nureddine disse: «Ó mano Xamseddine,
que exagero é esse? Isso é muito, então nós os dois somos irmãos e vizires,
e cada um conhece os seus deveres. Tu deverias oferecer ao meu filho a tua
filha sem dote, pois o macho é preferível à fêmea. Mas tu fazes comigo
como alguém que foi ter com uma pessoa para lhe pedir um favor, e esta lhe
respondeu: “Com certeza, vou ajudar-te, mas amanhã.”» E declamou uma
poesia:

Quando alguém para amanhã adia um favor,


O sábio percebe logo que a resposta é: «andor!»

Xamseddine disse: «Chega de te vangloriares. Maldito sejas por dizeres


que o teu filho é preferível à minha filha e por fazeres essa comparação.
Valha-me Deus, tu não tens juízo nem siso, e ainda dizes que somos
parceiros no vizirato. Se eu to deixei partilhares comigo foi só para me
ajudares e para não ferir os teus sentimentos. Mas agora, por amor Deus,
jamais casarei a minha filha com o teu filho. Não deixarei que o teu filho se
torne meu genro, nem sequer pelo peso da minha filha em oiro. Juro que
nunca a casarei com ele, mesmo que tenha de beber do copo da morte.»
Quando Nureddine ouviu as palavras do irmão, tomado de uma enorme
fúria, perguntou: «Nunca casarás a tua filha com o meu filho?» E o outro
respondeu: «Nunca, nem quero nem permitirei que ele sequer toque numa
lasca da unha dela. E se eu agora não estivesse à beira de partir em viagem,
dar-te-ia uma lição. Mas logo que regresse mostrar-te-ei o que vale a minha
hombridade.» A fúria e a raiva de Nureddine era tanta que ficou fora de si,
mas conteve-se para o irmão se calar, e ambos passaram a noite em
diferentes bandas, cada um pleno de rancor contra o outro.
Em a manhã amanhecendo, o rei abalou para as pirâmides, acompanhado
de Xamseddine, já que era a sua vez de ser vizir. E quando Nureddine Ali
acordou, ainda lhe pesando todo aquele rancor, foi ao seu cofre e ensacou
um pequeno alforge com oiro e nada mais. Pondo-se a pensar como o seu
irmão o havia rejeitado e insultado, declamou uma poesia:

Viaja, pois encontrarás novos amigos na errância,


Persiste, pois as delícias da vida advêm da persistência.
Ficar não te trará honra alguma nem te livrará do exílio,
Vai por esse mundo afora e abandona o teu domicílio.

A água apodrece quando fica parada e não corre


Mas sabe tão bem quando se move e escorre.
Se o Sol não se mover e congelar na sua órbita celestial,
Árabes e bárbaros, ambos sofreriam uma devastação total.

Se a Lua não se escondesse nos bastidores,


Não a admirariam olhos tão perscrutadores.
Se o leão não saísse do covil, a sua presa não caçaria.
Se a flecha não se separasse do arco, no alvo não acertaria.

Nas minas, as pepitas de oiro são apenas pedras.


O pau d’áquila, no país donde vem, é só madeiras.
Mas quando aquele viaja, torna-se um tesoiro,
E quando estoutro viaja, vale tanto quanto oiro.

E em acabando a sua poesia, ordenou a um dos seus pajens que lhe


arreasse uma mula com um selim robusto e um xairel, mula essa que era
uma cavalgadura das melhores, de pelagem tordilha, orelhas que eram
como cálamos afiados, e pernas fortes como pilares. Mandou o pajem arreá-
la com o aparelho completo e com os alforges, e mandou cobri-la com uma
alfombra de seda, que lhe servia de assento macio e que descaía sobre os
alforges. E disse aos criados e aos escravos: «Sigo para fora da cidade para
me distrair um pouco, fazendo uma excursão pelas cercanias de Caliubia e
outras regiões. Ficarei fora uma noite ou duas, porque um grande
desassossego me anda a estorvar. E não quero que ninguém venha atrás de
mim.»
Dito isto, montou a mula, levando consigo algumas provisões, e partiu da
grande cidade do Cairo por ermos afora. Pelo meio-dia chegou a uma
cidade chamada Bilbeis, onde descavalgou para descansar e comer qualquer
coisa. Depois dele e da mula comerem qualquer coisa, partiu daquela cidade
e foi-se por ermos afora, espicaçando a mula para acelerar o passo. E mal
havia anoitecido quando chegou a Saídiya, onde passou a noite na posta.
Depois de percorrer seis ou sete voltas com a mula, deu-lhe forragem e
sacou algo para ele mesmo comer. Em seguida, estendeu a alfombra que lhe
servia de assento, e deitou-se nela com os alforges por baixo da cabeça, e
com a raiva ainda destilando dentro de si, disse de si para si: «Meu Deus,
continuarei a fugir desta injustiça mesmo que acabe por chegar a Bagdade.»
Ao depois adormeceu, e quando amanheceu continuou a viagem.
Então, ó miralmuminim, deu-se o acaso de encontrar um correio, e
passou a acompanhá-lo, cavalgando e pernoitando com ele, até que chegou
são e salvo à cidade de Baçorá, tal como Deus havia escrito. E em chegando
aos arrabaldes da cidade, deu-se o acaso de o vizir de Baçorá andar por
aquelas bandas, e quando este viu o viajante, reparou que era um jovem
formoso e de aparência decente. Foi ter com ele, cumprimentou-o e indagou
sobre a sua situação, e Nureddine, falando sobre si, disse: «Irritei-me com a
minha família e jurei para comigo que jamais regressaria antes de visitar
todos os países do mundo, mesmo que conheça o passamento antes de
alcançar o meu intento.» Ao ouvir aquelas palavras, o vizir de Baçorá disse:
«Ó filho, não o faças, a maioria dos países é uma desolação, e eu tenho
medo do que te possa acontecer.»
Ao depois, o vizir pegou em Nureddine Ali e levou-o para sua casa,
tratando-o bondosa e generosamente, e nutrindo por ele um grandíssimo
afecto, vindo-lhe a dizer: «Ó filho, eu sou velho e entrado em anos, e nunca
fui abençoado com um filho macho, só com uma filha. Filha esta que te
iguala em beleza, e apesar de muitos homens notáveis e muitos outros
abastados a terem pedido em noivado, sempre recusei. Mas visto que o meu
coração nutre tanta afeição por ti, aceitarias tu que a minha filha fosse tua
servidora e se tornasse tua família, e tu o seu marido? Se aceitares, irei
junto do rei e dir-lhe-ei que és como um filho para mim, e intercederei junto
dele para que sejas nomeado vizir e assumas o meu cargo, pois assim
poderei descansar em casa, porque eu, ó filho, valha-me Deus, mas já estou
bem entrado em anos e cansei-me e fartei-me. Serás como um filho para
mim, e governarás o meu dinheiro e o vizirato da cidade de Baçorá.»
Ao ouvir as palavras do vizir, Nureddine curvou-se reverente e
longamente, e respondeu: «Às suas ordens.» O vizir ficou radiante com a
resposta, e ordenou aos criados que aprontassem comida e doçaria e que
enfeitassem o grande salão usado para as festas de casamento, e eles num
pronto assim o fizeram. Juntou os seus amigos e mandou chamar os mais
abastados de Baçorá e os notáveis do reino, e quando estes apareceram,
disse-lhes: «Ficai sabendo que eu tenho um irmão no Egipto que é vizir e
que foi abençoado com um filho. Quanto a mim, como sabem, fui
abençoado com uma filha. Havendo o filho dele atingido a idade de se
casar, e a minha filha também, ele enviou-mo; aqui está ele; e eu quero
redigir o contrato do casamento entre ele e a minha filha e que o casamento
seja consumado em minha casa. Depois disso, aprontá-lo-ei para a viagem e
mandá-lo-ei de volta com a sua mulher.» E eles disseram: «Que ideia tão
bela e tão feliz; e que desígnio tão louvável. Que Deus consolide a vossa
fortuna com prosperidade e faça o vosso caminho ser o mais imaculado.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


73.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Jáfar disse ao califa:

Ainda mal os notáveis de Baçorá haviam dito: «Que Deus faça o vosso
caminho ser o mais imaculado», apareceram logo as testemunhas. Os
criados puseram as mesas e serviram o banquete, havendo os convidados
comido até se fartarem, e quando serviram os doces comeram ainda mais do
que podiam. Então, havendo os criados retirado as mesas, avançaram as
testemunhas, e redigiram e celebraram o contrato de casamento. Depois
disso, acenderam incenso, e os convidados foram à sua vida. Quanto ao
vizir, ordenou que os criados pegassem em Nureddine Ali do Egipto e o
levassem aos banhos, havendo-lhe enviado o vizir um traje completo digno
de um rei, assim como toalhas, incenso e tudo de que fosse falto. Após uma
horita, Nureddine veio dos banhos e parecia a Lua cheia quando nasce ou o
Sol quando se levanta, tal como disse o poeta:

A fragrância é almíscar, a face é uma rosa,


Os dentes são pérolas, e a saliva a vinho sabe;
O corpo é um galho e a anca uma duna suave,
O cabelo é a noite, e a cara a Lua vistosa.
Ao ver o seu sogro, beijou-lhe a mão, e o vizir levantou-se ante ele em
deferência, sentando-o à sua banda. Voltou-se para ele e disse-lhe: «Ó filho,
quero que me contes qual a causa de haveres largado a tua família, e como
puderam eles deixar que deles te separasses. Mas não me escondas nada, e
mantém-te na senda da sinceridade, porque lá diz o poeta:

Sê sincero, mesmo quando a sinceridade


Devasta com fogo infernal a tua felicidade.
E agrada ao Senhor e não aos Seus servos
Para não incorreres nos Seus castigos.

»Eu quero levar-te ao rei e quero que assumas o meu cargo.» Ao ouvir as
palavras do seu sogro, Nureddine disse: «Ó vizir grandioso e senhor
valoroso, eu não sou da plebe nem larguei a minha família com o devido
consentimento. É meu dever informá-lo que o meu pai era vizir», e contou-
lhe o que havia sucedido depois do pai expirar, assim como a conversa que
havia ocorrido entre si e o irmão, e cujos detalhes não há necessidade de
aqui repetir, e continuou dizendo: «E o senhor foi bondoso comigo e
favoreceu-me, casando-me com a sua filha. E esta é a minha história.»
Quando o vizir ouviu as palavras de Nureddine ficou espantado, riu-se e
disse: «Ó filho, vós os dois haveis querelado ainda antes de vos casardes e
de serdes abençoados com filhos! Mas agora, ó filho, trata de consumar o
teu casamento com a tua mulher, e amanhã levar-te-ei ao rei, relatar-lhe-ei a
tua história, e que Deus Todo-Poderoso te abençoe com o bem.»
Nureddine Ali levantou-se e foi consumar o casamento com a sua
mulher. E quis o destino, disposto e decretado por Deus, que naquela noite
o seu irmão Xamseddine Muhammad consumasse casamento com uma
rapariga no Egipto, na mesmíssima noite em que Nureddine Ali houvera
consumado casamento com a sua mulher em Baçorá. E eis o que o destino
causa!

Conta-se que Jáfar disse ao califa:

Ouvi dizer que quando Nureddine abalou do Egipto e lhe sucedeu o que
sucedeu, o seu irmão mais velho Xamseddine viajou com o rei do Egipto
durante um mês, e quando regressaram o rei foi para o seu palácio, e
Xamseddine para sua casa, onde procurou o irmão, mas não o encontrou. E
perguntando por ele, os criados disseram: «Naquela madrugada em que o
nosso nobre senhor abalou em viagem, ainda o Sol se não havia levantado e
já ele estava numa terra distante. Disse que iria pernoitar fora uma noite ou
duas, mas dês daí que dele não nos chegou nem nova má nem boa.» Ao
ouvir aquilo ficou muitíssimo triste, e disse de si para si: «Sem dúvida que
alvorou, e que deverei procurá-lo mesmo que tenha de ir ao mais longínquo
país.»
E dito isto, Xamseddine enviou correios atrás dele, mas nesse mês
Nureddine já havia chegado a Baçorá, e quando os correios chegaram a
Alepo, não ouvindo sobre ele nova má nem boa, regressaram sem haver
conseguido cumprir a missão. Perante isso, Xamseddine ficou desolado, e
disse de si para si: «Fui demasiado longe com o meu irmão naquela história
do casamento. Não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e
Grandioso.»
Dias depois, quis Deus Todo-Poderoso que ele noivasse a filha de um
homem rico do Egipto, e redigiu-se o contrato de casamento na mesma
noite em que o seu irmão redigiu o seu contrato de casamento em Baçorá, e
consumou o casamento na mesma noite em que o seu irmão consumou o
seu casamento em Baçorá. Pois Deus, Todo-Poderoso e Glorioso, para
executar o seu desígnio relativamente às suas criaturas, permitiu que os dois
irmãos redigissem os seus contratos de casamento no mesmo dia e
consumassem os seus casamentos na mesma noite, estando um no Cairo e o
outro em Baçorá, por uma só razão, ó miralmuminim, e que é a vontade de
Deus Todo-Poderoso.
De seguida, a mulher de Xamseddine Muhammad, vizir do Egipto, pariu
uma filha; e a mulher de Nureddine Ali, vizir de Baçorá, pariu um filho
macho; mas o filho de Nureddine envergonhava o Sol e a Lua, com a sua
fronte irradiante, bochechas rosadas, pescoço branco como mármore, e um
sinal que parecia um disco de âmbar-gris na bochecha direita, tal como
descrito por um poeta:

Eis um esbelto jovem de cabelo cuja beleza


Todos os mortais cativa, na luz e na treva.
E não censures aquele sinal na sua cara,
Também a anémona tem mancha negra.
Ora, este pequenote havia sido dotado por Deus de irradiante beleza e
perfeita lindeza, e de um corpo gracioso e harmonioso, tal como um galho,
com a sua beleza capaz de encantar qualquer coração e de cativar o âmago
de qualquer um com a sua perfeição. A sua compleição era tão perfeita,
tanto no que tocava ao aspecto exterior como à nobreza de carácter, a ponto
das gazelas lhe haverem roubado o pescoço e olhar, e todas as outras graças,
sem se haverem esquecido de nenhuma, tal como descrito por um poeta:

A fim de o compararem, levaram-no à Beleza,


E ela, em o vendo, de vergonha baixou a cabeça.
Perguntaram: «Já viste alguém como ele, ó Beleza?»
«Não, nunca vi ninguém que com ele se pareça.»

Nureddine Ali deu-lhe o nome de Badreddine Haçane, e o seu avô, o


vizir de Baçorá, ficou radiante e ofereceu banquetes em sua honra e
presentes dignos de reis. Findados estes festarejos, o vizir pegou em
Nureddine Ali, o vizir egípcio, e foi com ele ao rei. Ao comparecer ante o
rei, Nureddine Ali beijou o chão, e como era um homem bondoso e
respeitoso, cultivado e inteligente, declamou:

Que seja longa a vossa vida e glória, dia e noite,


E a vossa eterna prosperidade nunca se amoite.

O rei agradeceu o poema que Nureddine Ali havia declamado e


perguntou ao vizir: «Quem é este jovem que veio contigo?» Então o vizir
contou a história de Nureddine Ali, de fio a pavio, e depois disse: «Alteza,
Nureddine é eloquente quanto baste para assumir o meu cargo, quanto a
mim, estou cada vez mais velho, e este seu mameluco já vai ficando falto
em zelo e vigor, e fraco de raciocínio. Em dádiva pelo meu serviço a vossa
alteza, peço-lhe que tenha a bondade de nomear Nureddine para o meu
cargo e lhe outorgue o vizirato, pois ele é dotado da necessária
competência.» E dito isto beijou o chão. Então o rei olhou para Nureddine,
vizir do Egipto, perscrutou-o, e ficou agradado pela sua pessoa, e havendo
Nureddine granjeado a sua simpatia, o rei disse: «Assim seja», e ordenou
que fossem prestadas as devidas honras a Nureddine e que lhe fosse feito
um traje de honra, e ofereceu-lhe uma mula das melhores cavalgaduras do
estábulo real, e outorgou-lhe salário e abonos. E em voltando para casa,
Nureddine e o sogro disseram: «O bebé Haçane abençoou-nos com a boa
fortuna!»
Ao outro dia, Nureddine apresentou-se ao rei e, sentando-se no lugar do
vizir, levou a cabo as tarefas habituais dos vizires, assinando, instruindo,
outorgando e julgando, e nada estava fora do seu alcance, havendo caído
nas boas graças do rei. Ao voltar para casa, Nureddine Ali do Egipto estava
feliz e radiante com o seu cargo de vizir, com os poderes e favores que o rei
lhe havia acordado, e ainda por mor do seu filho Badreddine Haçane e por
levar a cabo a tarefa de o criar.
E assim foi durante dias e noites a fio, e à medida que Badreddine
Haçane ia crescendo e vicejando ia-se tornando mais belo e formoso. Aos
quatro anos, o avô, pai de sua mãe e antigo vizir, adoeceu, haven-do-lhe
deixado em herança todos os seus bens. E quando expirou, fizeram
banquetes e ficaram de luto durante um mês inteiro.
Nureddine Ali continuou como vizir de Baçorá, enquanto o seu filho
Badreddine crescia e vicejava. Ao perfazer sete anos de idade, o pai pô-lo
na escola, e disse ao mestre: «Cuide desta criança e instrua-a. Dê-lhe a
melhor educação e ensine-lhe as boas maneiras.» Continuou durante dois
anos a estudar e a aprender sob a alçada daquele mestre, e durante esses
tempos de escola todos se deslumbravam com ele, porque era inteligente,
ajuizado, sensato, bem-educado e eloquente.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


74.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei, que Jáfar disse ao califa:


Aos seus doze anos, Badreddine Haçane havia aprendido caligrafia,
jurisprudência, língua árabe, aritmética e a arte da escrita. E Deus Todo-
Poderoso havia-o dotado de irradiante beleza e perfeita lindeza, e de um
corpo gracioso e harmonioso, tal como descrito por um eloquente poeta:

Rivaliza com a Lua a sua perfeita formosura,


E o galho imita a elegância da sua figura.
A Lua cheia ergue-se no encanto da sua testa,
E o Sol põe-se nas anémonas das suas faces.
Ele é o rei de toda a beleza, e nele os mundos têm
A origem de onde todas as formosuras provêm.

Enquanto crescia, ele nunca saiu para ir à cidade, até que um dia o pai
Nureddine lhe vestiu um traje completo, montou-o numa mula, e saíram à
cidade, atravessando-a para chegarem ao palácio do rei. E quando as gentes
o viram e olharam para o seu rosto, puseram-se a orar a Deus para que o
protegesse dos males que pudessem afectar a sua beleza, e era grande a
vozearia que se alevantava com as preces que todo o mundo proferia em
favor dele e de seu pai, formando-se uma grande azáfama de gente para o
ver e admirar a sua irradiante beleza e perfeita lindeza. E ele passou a
cavalgar todos os dias com o pai, e todos os que o viam se espantavam com
o seu encanto, pois ele era tal como um poeta descreveu:

Ao aparecer, disseram: «Que seja abençoado!


Glória a Deus por criatura tão única ter moldado!»

Ele e mais ninguém é o Anjo da Formosura,


Não há súbdito seu que lhe não seja fiel.
Da sua boca não escorre saliva, mas doce mel,
E dentes não tem, mas pérolas de candura.

Ninguém rivalizava com a sua beleza,


E todos se lhe rendem à delicadeza,
Como se estivesse escrito nas faces dele:
«Testemunho que não há ninguém belo senão ele.»60

Quando ele se inclinava era tão galante quanto um galho de salgueiro, e


as suas faces eram como rosas e anémonas vermelhas. Era uma sedutora
tentação para amantes, um jardim procurado por corações ardentes, de doce
falar e sorrir tão belo que envergonhava a própria Lua cheia.
Ao cumprir vinte anos, o seu pai, Nureddine Ali do Egipto, adoeceu e,
chamando-o à sua presença, disse-lhe: «Filho, quero que saibas que este
mundo é uma morada passageira habitada pela morte, enquanto o Outro
Mundo é a morada da eternidade. Quero aconselhar-te com o que o meu
entendimento alcançou e o meu conhecimento arrecadou. Dar-te-ei cinco
conselhos.» E dito isto, veio-lhe à memória o seu país e terra natal, e
recordou-se do seu irmão, caindo-lhe as lágrimas dos olhos por se haver
separado dos seus entes queridos e por mor da distância da sua terra natal.
Devastado pela paixão e em ofegante respiração, pôs-se a declamar uma
poesia:

Censuro-vos e anuncio-vos o meu amor ardente.


Comigo está o meu corpo, convosco o meu coração.
E me não queria de vós separar, mas o quinhão
Por Deus decretado vence qualquer Seu ente.

Quando acabou de declamar e de chorar, virou-se para o filho e disse:


«Filho, antes de te dar os conselhos, quero que saibas que tens um tio, meu
irmão, que é vizir do Egipto, e de quem eu me separei sem o devido
consentimento, mas assim ditaram os destinos.» E pegando num rolo de
papel, escreveu o que havia sucedido entre si e o irmão antes de haver
partido em viagem. Escreveu o que lhe havia acontecido em Baçorá, como
se havia tornado vizir, e que se havia casado no dia tal e consumado o
casamento na noite tal, e que a quezília com o irmão ocorrera antes dos seus
quarenta anos. «Esta é uma carta para o meu irmão; que Deus o proteja na
minha ausência.» Então dobrou-a, selou-a e disse: «Haçane, filho, guarda
esta carta e nunca te separes dela.» Haçane pegou na carta e fez um rolinho
que embrulhou num tecido e coseu-o dentro do solidéu que usava por baixo
do turbante, enquanto os seus olhos se inundavam de lágrimas por estar
prestes a separar-se do pai, que já começava a debater-se contra a agonia da
morte.

Quando o pai de Haçane tornou a acordar, disse:

Haçane, filho, o primeiro conselho que te dou é que não te associes a


ninguém; só assim estarás a salvo de muitas tribulações, pois estar sozinho
é a tua melhor salvaguarda, sem te associares nem te misturares com
ninguém, tal como ouvi um poeta dizer:

Não há amizade alguma que possas desejar,


Nem amigo leal em tempo de má conjuntura.
Vive sozinho e esquece qualquer outra criatura.
Já disse quanto baste, e nada vou acrescentar.

O segundo conselho, filho, é que não oprimas ninguém, para que a vida
não te oprima a ti, pois a vida são dois dias, um a teu favor e o outro contra,
e é um empréstimo que tem de ser repago, tal como ouvi um poeta dizer:

Tem calma e não te apresses na tua pretensão,


Sê clemente com todos, e a clemência conhecerás.
A mão de Deus está acima de qualquer mão,
E, por isso, se oprimires, oprimido serás.

O terceiro conselho é que saibas guardar silêncio, e te ocupes dos teus


defeitos e não dos dos outros, e tenhas tino na língua. E tal como se diz,
Quem se cala, tem safa, também ouvi um poeta dizer:

O silêncio é d’oiro e muito sossego traz,


Se falares, não te percas em tagarelares.
E se alguma vez do silêncio te cansares,
Do que disseres para sempre te arrependerás.

O quarto conselho, filho, é que te abstenhas de beber vinho, pois o vinho


é a fonte de todos os vícios e um usurpador da razão. Toma cuidado, muito
cuidado, com o vinho, e segue o que ouvi um poeta dizer:

Abandonei o vinho e toda a bebida


E malquistei quem lhe dava guarida.
Pois o beber à perdição nos leva
E às portas do mal nos entrega.

E o quinto, filho, é que protejas e cuides da tua riqueza, e esta te


protegerá e de ti cuidará. Não a esbanjes, para não te tornares dependente
dos outros. Cuida bem dos teus dirames, que eles são um bálsamo, tal como
ouvi um poeta dizer:

Quando o dinheiro falta, não tenho companheiro;


Se abunda, a minha companhia todos procuram.
Tantos se fazem meus amigos graças ao dinheiro,
Mas quando escasseia, todos me abandonam!
Filho, acata bem os conselhos que te dou.

E não parou de dar conselhos até que a sua alma se separou do corpo. E
todos se enlutaram e fizeram-lhe o funeral.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história
tão boa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei na próxima noite, se eu ainda for
viva.»
75.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse: «Ó mana, conta-nos o resto da


história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa:

Quando o vizir morreu, o seu filho Badreddine Haçane de Baçorá, triste


pela morte do seu pai, quedou-se em casa durante dois meses inteirinhos,
sem cavalgar nem comparecer para servir o rei, que se enfureceu e recorreu
a um dos camaristas, nomeando-o vizir, e dando-lhe ordens para ir com
alguns camaristas e mensageiros confiscar os bens do falecido vizir
Nureddine Ali, apreender-lhe todo o dinheiro e selar-lhe todas as casas,
posses e bens, sem esquecer um único dirame que fosse.

O novo vizir, acompanhado de camaristas, mensageiros, chefes de


polícia, tabeliões e inspectores do tesoiro, dirigiu-se a casa do vizir
Nureddine Ali do Egipto. Ora, um dos mamelucos do falecido vizir
Nureddine Ali do Egipto seguia com este rancho, e em ouvindo o que se
dizia, acelerou o passo do seu cavalo para chegar mais rápido a casa de
Badreddine Haçane, onde o encontrou sentado à porta, cabisbaixo, triste e
de coração partido.
O mameluco descavalgou, beijou-lhe a mão, e disse-lhe: «Meu senhor e
filho do meu senhor, despache-se bem rápido antes que soe a hora da sua
morte.» Badreddine Haçane estremeceu e perguntou: «Como assim?» E ele
respondeu: «O rei está furibundo consigo e mandou que o prendessem. Eu
precedo a calamidade que aí vem atrás de si. Salve a sua vida e não se deixe
apanhar, que eles não o pouparão.» Badreddine ficou com o coração
queimado de susto e a cara pálida de pavor, e disse: «Irmão, haverá ainda
tempo para entrar em casa?» Mas ele respondeu: «Não, meu senhor,
levante-se e fuja de sua casa.» Então levantou-se e disse uma poesia:

Se uma injustiça sofreste, a tua vida salvarás,


Abandona a casa que só a lamentará seu pedreiro.
Se te encontras nesta terra ou acolá tanto te faz,
Mas outra alma para substituir a tua não terás.
Se for importante, não envies o teu mensageiro,
Ninguém é mais leal contigo senão tu mesmo.
E tal o leão quando espeta as suas garras,
Ninguém luta pela tua vida senão tu mesmo.

Atónito com a situação, o jovem Badreddine calçou os sapatos, cobriu a


cabeça com as abas do seu traje, e abalou dali para fora, amedrontado e
apavorado, sem saber para onde ir nem que caminho seguir. Acabou então
por se dirigir ao túmulo do pai, e em rompendo por entre as campas,
descaiu-se-lhe o traje de cima da cabeça, e esta tinha uma ourela em tabi
brocado onde em linhas de oiro se liam estes versos:

Ó tu de semblante tão radiante


Que o orvalho e as estrelas imita,
O teu brio jamais será esquecido
E a tua glória é eterna e infinita.

Enquanto caminhava, Badreddine encontrou um judeu que seguia para a


cidade, e que era cambista, trazendo na mão uma cesta, e em o vendo,
Badreddine cumprimentou-o.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão


boa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com
o que contarei, a ti e ao nosso rei, se eu viver.»
76.a NOITE

Na noite seguinte, Dinarzade disse: «Conta-nos a história.» E a sua irmã


disse:

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa:

Quando o judeu viu Badreddine, beijou-lhe a mão e disse-lhe: «Meu


senhor, aonde vai? Já está próximo o final do dia, e traz tão poucas roupas e
tem a cara tão pálida.» E Badreddine respondeu-lhe: «Adormeci um pouco,
e sonhei com o meu pai, e ao acordar determinei visitá-lo antes de o dia
abalar.» E o judeu disse-lhe: «O seu pai, o senhor nosso vizir, antes de
morrer tinha um comércio no mar. E havia ao seu serviço várias
embarcações, que neste momento estão de regresso. Dar-me-ia um grande
prazer se tivesse a generosidade de não vender a ninguém a sua carga senão
a mim.» E Badreddine Haçane respondeu: «Com certeza.» Ao que o judeu
lhe disse: «Então, meu senhor, comprar-lhe-ei agora mesmo a carga da
primeira embarcação que entrar no porto por mil dinares.» E dito isto, sacou
da cesta uma bolsa, abriu-a, e foi despejando o seu conteúdo até equilibrar
os dois pratos da balança, perfazendo mil pesos de oiro, e Badreddine
Haçane dizer: «Vendido.»
Depois o judeu pediu-lhe: «Meu senhor, escreva-me um papel com a sua
letra.» E Badreddine pegou em um papel e escreveu:
«Faço aqui notícia que eu, Badreddine Haçane de Baçorá, vendi a Isaac,
o Judeu, a carga da primeira embarcação que entrar no porto por mil
dinares, e recebi o valor.» «Meu senhor, ponha o papel na bolsa», disse-lhe
o judeu, e Badreddine pegou no papel, botou-o na bolsa, apertou-a e
fechou-a, pendurou-a à sua cintura e separou-se do judeu. Em seguida,
rompeu por entre as campas até chegar à do seu pai, onde se sentou a chorar
algum tempo, havendo declamado uma poesia:

Depois de haverdes desaparecido,


Já não há lar que lar seja,
Nem vizinho que vizinho seja.
Pois da vossa companhia fui desprovido.

E as luzes do dia em breu se cobriram,


Pois o Sol e a Lua o brilho perderam.
De saudade encheu-se a minha vivência
Ante a vossa por mim sentida ausência.

E os campos e as terras
Nas trevas mergulharam.
Que fiquem sem ninho nem penas Os corvos que nos separaram.

Foi-se-me a paciência do meu corpo a desfalecer;


Que ignóbil desonra foi o dia da nossa separação.
Pergunto se as nossas noites ainda regressarão,
E se a casa que nos unia casa voltará a ser.

Badreddine Haçane chorou sobre a campa do seu pai durante uma boa
hora, pensando nos apuros em que se encontrava e sentindo-se desnorteado
quanto ao que fazer, sem saber para onde ir nem que caminho seguir, então,
enquanto chorava, encostou a cabeça à campa do pai e adormeceu —
glorificado seja Aquele que nunca dorme — e enquanto dormia, a cabeça
escorregou da campa, e ele tombou de costas, estatelando-se em cima da
campa com as mãos e as pernas estendidas.
Ora, naquele cemitério havia um ifrite-génio, que ali se abrigava durante
o dia e de noite voava ares afora, indo-se abrigar noutro cemitério. Em
caindo a noite, o ifrite saiu do seu abrigo, mas antes de voar ares afora viu
um homem estatelado de costas e vestido com um traje. Acercou-se dele e
ao olhar para a sua cara, tal era a sua beleza que ficou admirado e pasmado.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu ainda for
viva.»
77.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa:

Quando o ifrite olhou para Badreddine Haçane de Baçorá, e o viu


dormindo de barriga para cima, ficou pasmado com a sua beleza e disse de
si para si: «Não pode ser senão quem designam por huri, essa criatura do
Paraíso criada por Deus para seduzir quem quer que seja61.» Pôs-se a olhar
para ele durante algum tempo e depois voou ares afora bem alto até ficar
entre o céu e a terra, e aconteceu que esbarrou com as asas de uma ifrita, a
quem perguntou: «Quem és tu?» «Uma ifrita», respondeu ela.
Cumprimentou-a e perguntou-lhe: «Ifrita, vens comigo até ao meu
cemitério para veres o que Deus Todo-Poderoso criou entre a humanidade?»
E ela respondeu: «Está bem.» Baixaram ambos até ao cemitério, e em lá
chegando, o ifrite disse à ifrita: «Já alguma vez viste em toda a tua vida
rapazito mais belo do que este?» Quando a ifrita olhou para ele e observou
o seu rosto, disse: «Glória Àquele que não tem quem se Lhe pareça. Meu
Deus, ó irmão, se me permitires, con-tar-te-ei uma coisa bem espantosa que
vi esta mesmíssima noite nas terras do Egipto.» Ao que o ifrite respondeu:
«Conta lá.» E a ifrita disse:
Fica sabendo, ó ifrite, que na cidade do Cairo há um rei, e o seu vizir, que
se chama Xamseddine Muhammad, tem uma filha cuja idade ronda os vinte
anitos, e que é incrivelmente parecida com este moço, e dotada de irradiante
beleza e perfeita lindeza, e de um corpo gracioso e harmonioso. Quando ela
atingiu a idade que agora tem, o rei do Egipto ouviu falar dela, e o vizir seu
pai foi chamado à presença do rei, que lhe disse: «Vizir, ouvi dizer que tens
uma filha, e eu quero noivá-la.» Ao que o vizir lhe respondeu: «Alteza,
aceite o meu pedido de perdão e não me repreenda, mas seja indulgente
comigo. Como vossa alteza sabe, eu tenho um irmão chamado Nureddine
Ali, que partilhava comigo o vizirato ao seu serviço. E um dia, aconteceu
que ambos nos sentámos e conferenciámos sobre o nosso casamento e
filhos. Mas quando amanheceu, partiu em viagem e nunca mais dele soube
nova má nem boa. Já lá vão vinte anos, mas recentemente ouvi dizer, ó rei
dos tempos, que ele morreu em Baçorá, onde era vizir, havendo deixado um
filho. Havendo eu registado a data do dia em que me casei, e da noite em
que consumei o meu casamento, e do dia em que a minha mulher pariu,
reservei a milha filha para o meu sobrinho. Ao nosso nobre senhor e rei não
faltam outras moças e mulheres.» Ora, o rei enfureceu-se com as palavras
do vizir.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu ainda for
viva.»
78.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa o que a ifrita disse ao ifrite:

O rei enfureceu-se com as palavras do vizir Xamseddine e disse-lhe:


«Maldito sejas! Alguém como eu pede a alguém como tu a sua filha, e ele
ousa recusar-ma com um argumento esfarrapado», e jurou que não faria a
filha do vizir casar-se senão com o mais ignóbil dos seus servidores. E
lembrando-se que tinha um moço das cavalariças que era corcunda com
duas bossas, uma à frente e outra atrás, mandou que o trouxessem à sua
presença, juntamente com testemunhas, e ordenou ao vizir que redigisse o
contrato de casamento entre a sua filha e o corcunda naquele mesmo dia. E
o rei jurou ainda que iria ser feito um cortejo de casamento e que o
corcunda consumaria o casamento com ela naquela mesmíssima noite.
Vim de lá neste preciso momento, enquanto todos os emires com os seus
mamelucos estavam à porta dos banhos, já com velas na mão, esperando
que o corcunda de lá saísse para liderarem o cortejo com as suas velas.
Quanto à filha do vizir, estava com as damas de honor, que a vestiam com
fatos e ornatos. Já quanto ao pai dela, está sob escolta até o corcunda
consumar o casamento com a filha. Ó ifrite, nunca vi moça tão formosa e
tão esplendorosa.
Então o ifrite disse-lhe: «O moço que eu vi é bem mais formoso. Estás a
mentir!» Ao que a ifrita respondeu: «Pelo Senhor do Trono, a juventude
dela não merece senão um jovem como este aqui. Que desperdício, se ela se
casar com aquele corcunda.» Então o ifrite disse: «Vamos é pormo-nos por
baixo deste jovem adormecido e transportá-lo, levando-o até ela, e
deixaremos os dois um com o outro, para os juntarmos.» Ela assentiu: «Está
bem.» E ele propôs: «Eu transporto-o na ida e tu na volta.» A ifrita
concordou: «Está bem.»
O ifrite pôs-se por baixo de Badreddine Haçane de Baçorá, ergueu-o e
voou com ele pelos ares fora bem alto, acompanhado da ifrita que seguia à
sua banda, até que ele baixou à terra, junto da porta da cidade do Cairo,
onde botou Badreddine num banco e o despertou. E quando Badreddine
acordou, deu por si numa cidade desconhecida, e quis indagar, mas o ifrite
deu-lhe um safanão e passou-lhe para as mãos uma vela grossa, dizendo:
«Vai àquela casa de banhos e mistura-te com as gentes e os mamelucos, e
segue com eles até ao salão de casamento. Vai furando para ficares mais à
frente, e entra no salão como se fosses um dos que seguram uma vela. Põe-
te à direita do noivo corcunda, e sempre que as damas de honor, as cantoras,
ou a noiva se aproximarem de ti, atiras-lhes com uma mancheia do que
houver na tua algibeira, e nada receies, pois cada vez que a tua mão entrar
na algibeira, de lá não sairá a não ser cheia de oiro para presenteares quem
se aproximar de ti. E não te pasmes com tal coisa, que não se deve ao teu
poder nem à tua força, mas sim ao poder e à força de Deus, e à Sua vontade
em administrar a Sua sábia justiça entre as Suas criaturas.» Então,
Badreddine Haçane pegou na vela, acendeu-a, pôs na cabeça um turbante de
duas abas, e seguiu caminho até aos banhos, onde encontrou o noivo
corcunda já montado a cavalo, e misturou-se entre as gentes da guisa já
mencionada.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei na próxima noite, se o rei me poupar
e eu viver.»
79.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa:

Badreddine Haçane de Baçorá marchava no cortejo, e sempre que as


cantoras paravam de cantar, para as gentes as presentearem, ele punha a
mão na algibeira, e em a encontrando cheia de oiro, botava uma mancheia
dele nas pandeiretas das cantoras, recheando-as de dinares. As cantoras e as
gentes estavam deliciadas e pasmadas com a sua generosidade, bondade e
beleza, e ele assim continuou, até chegarem todos a casa do seu tio, o vizir,
onde os camaristas repeliram as gentes e as impediram de entrar.
Mas as cantoras refilaram: «Por amor de Deus, não entramos sem este
jovem forasteiro, pois nunca vimos alguém mais belo, bondoso e generoso
em toda a nossa vida; e não desvelaremos a noiva sem ele, pois presenteou-
nos, a ela e a nós, uma pipa de oiro.» Assim entrou ele no salão de festas, e
sentaram-no no estrado ao lado do corcunda. As mulheres dos emires, dos
vizires, dos camaristas, dos delegados, e todas as que estavam no salão de
festas, cada uma vestindo um véu e segurando uma grande vela acesa,
dispuseram-se em duas fileiras opostas, desde o estrado, passando pelo
trono da noiva, até à sala por onde ela entraria.
Quando as mulheres olharam para a graciosidade de Haçane de Baçorá,
viram o quanto havia nele de beleza e lindeza, e como a sua cara era tão
reluzente quanto o crescente, como se ele fosse a própria Lua cheia,
encantando com os seus olhares galantes e gingando como o galho de
salgueiro ao sabor do vento; e quanto mais ele as regava com dinheiro, mais
elas se enamoravam dele, ajuntando-se todas à sua roda, com as velas na
mão, atónitas com a sua graciosidade e invejando a sua beldade, piscando o
olho umas às outras, com o desejo dentro delas atiçado, cada qual querendo
dormir no seu colo. E todas as mulheres diziam: «Ninguém merece tanto a
nossa noiva como este jovem. Que desperdício casar esta noiva com este
corcunda inútil. Que Deus amaldiçoe quem haja sido a causa disto»,
referindo-se ao rei.
O corcunda usava uma veste de brocado e um turbante de duas abas, e
tinha a cabeça enterrada entre os ombros, sentando-se como uma bola de
kebbah, parecendo mais um boneco do que um homem, tal como foi
descrito por um poeta:

Olhem bem este corcunda aqui aparecido,


Com uma bossa qual pérola na ostra escondida,
Ou um ramo de bafureira todo apodrecido
Onde um fruto vacila de guisa desmedida.

As mulheres desataram a praguejar contra o corcunda e a zombar dele,


enquanto pediam a Deus que abençoasse Badreddine Haçane e procuravam
a sua companhia. E mais tarde, quando as damas de honor trouxeram a
noiva, as cantoras começaram a bater nos seus pandeiros e a soprar nas suas
flautas.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão espantosa», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se o rei me poupar e eu viver.»
80.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa:

Enquanto Badreddine Haçane de Baçorá, filho de Nureddine Ali do


Egipto, estava sentado no estrado ao lado do corcunda, as damas de honor
trouxeram a sua prima, depois de a terem perfumado com vários aromas,
enfiado no seu cabelo saquinhos de almíscar, e de a haverem incensado com
cardamomo e âmbar-gris. A noiva só apareceu depois das damas de honor
terem cuidado dela, penteando-lhe o cabelo e fazendo-lhe tranças, vestindo-
a com fatos e ornatos que eram dignos de reis persas. As suas vestes, em
poucas palavras, eram brocadas em oiro, formando todo o género de
floreados, acompanhados de figuras de pássaros e feras, cujos olhos e bicos
eram pedras preciosas, e cujas patas eram rubis e olivinas. E haviam-lhe
posto ao pescoço um colar valioso e precioso, jamais alguém vira tal coisa,
com gemas grandes e redondas que deixavam a visão de qualquer um
deslumbrada e a razão atordoada.
As damas de honor seguiam à frente da noiva, e o brilho das velas de
cânfora que traziam consigo acesas reluziram na cara dela, tornando-a ainda
mais radiante que a Lua na décima quarta noite.
Com o seu olhar mais acutilante que uma espada desembainhada, as suas
pestanas que encantavam qualquer coração, as bochechas rosadas, e o seu
andar bamboleante, ela desfilava, a todos deslumbrando com os seus olhos
de uma formosura que nenhum intelecto podia descrever. As cantoras
acolhiam-na tocando os pandeiros e todo o género e feitio de instrumentos.
Badreddine estava sentado, enquanto as mulheres não paravam de o
admirar, como se ele fosse a Lua entre as estrelas, com a sua testa radiante,
as bochechas rosadas, o pescoço branco como mármore, a cara mais
brilhante que a Lua, e um sinal na bochecha que parecia um disco de
âmbar-gris.
Enquanto a noiva se aproximava, já desvelada, bamboleando o seu corpo
à medida que desfilava, veio o corcunda para a beijar, mas ela desviou-se e
escapuliu-se, pondo-se diante de Badreddine Haçane, seu primo, o que
levou as gentes a gritarem e a cantoras a bradarem. Então Badreddine
Haçane pôs a mão na algibeira, e em a encontrando atulhada de dinares,
botou uma mancheia deles nas pandeiretas das cantoras, não parando de
proceder desta guisa, e por sua vez elas pediam a Deus que o abençoasse, e
faziam-lhe sinais com os dedos como querendo dizer: «Quem nos dera que
fosses tu o noivo.» E como todas as mulheres na boda o admiravam, ele não
parava de sorrir, enquanto o corcunda ficou encostado a um canto como um
macaco.
Badreddine não parava de se mexer, curvar e torcer, enquanto as criadas e
as servas o rodeavam, trazendo às suas cabeças grandes pratos cheios de
oiro e dinares, que ora eram oferendas para a noiva, ora para os convidados.
E quando a noiva se escapuliu para diante dele, ele pôs-se a olhar para ela,
admirando a beleza que Deus havia atribuído a ela e a mais ninguém,
enquanto as criadas lançavam peças de oiro sobre as cabeças, tanto de
miúdos como de graúdos. E Badreddine ficou radiante de alegria e rejubilou
com o que viu.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
81.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa:

As damas de honor apresentaram a noiva com o seu primeiro vestido de


casamento, e ao olhar para a sua prima, Badreddine Haçane ficou radiante
de alegria e rejubilou com o que via, pondo-se a olhar para a cara dela por
ser tão radiante e brilhante, com aquele vestido de cetim vermelho, que o
maravilhava, enquanto ela toda galante bamboleava o corpo, deixando
qualquer mulher ou homem com a razão atordoada, pois ela era tal como
disse um sublime poeta:

Parece o Sol no canavial das dunas,


Mostrando-se tal uma romã na azinhaga.
Rega-me com o vinho dos seus lábios,
E o meu fogo na sua boca se apaga.

Mudaram-lhe o vestido por um de cor azul como o lápis-lazúli, e quando


ela regressou parecia a Lua brilhante, com o seu cabelo negro, bochechas
tenras, lábios sorridentes, seios bem firmes, e curvas generosas. Ao
apresentarem-na naquele segundo vestido, ela lembrava o que disse um
poeta de espírito elevado:
Vestia-se cor de lápis-lazúli tão celestial,
Tal uma Lua de verão em noite invernal.

Depois mudaram-lhe aquele vestido por outro, e do seu abundante cabelo


fizeram um véu, deixando-lhe descaídas as suas negras tranças, que com a
sua negrura e longura lembravam o breu da noite, e os seus olhos
enfeitiçantes disparavam flechas aos corações. E ao apresentarem-na
naquele terceiro vestido, ela lembrava uma poesia que um poeta disse:

De bochechas com o cabelo veladas,


Apareceu ela trazendo a sua febril sedução.
Disse-lhe: «Velaste a manhã com a noite.»
«Não! Foi antes a Lua que eu velei com a escuridão.»

E depois vestiram-na com o quarto vestido, e ela parecia o Sol nascente,


bamboleando-se toda galante, e curvando-se com a graciosidade de uma
gazela, perfurando os corações com as flechas do seu olhar, tal como
descrito por um poeta:

A todos ela parece ser o Sol da Beleza,


Irradiante e galante, fingindo-se surpresa.
E até o Sol em a vendo e ao seu sorriso,
Esconde-se atrás das nuvens indeciso.

E veio com a quinta veste, tal uma donzela mostrando os seus encantos,
parecendo-se com a gazela quando se inclina para beber ou o galho do
salgueiro ao sabor do vento. Os caracóis do seu cabelo eram como lacraus
que se enrolavam e se entrechocavam, as suas ancas balançavam e as suas
tranças dançavam, tal como descrito pelo poeta quando disse numa poesia:

Apareceu tal Lua cheia numa noite de fortuna,


Com coxas generosas e fina cintura,
Olhos cuja beleza qualquer um cativam,
Bochechas que nem ao rubi se comparam.

O negro cabelo descaía-se-lhe até às ancas.


Cuidado com os seus caracóis que são cobras!
Porque o seu corpo é flexível, suave e ledo,
Mas o seu coração é mais duro que rochedo.

Com as sobrancelhas arqueadas, olhares ela dispara,


Tais setas que nunca falham o alvo, longe ou perto,
E quando a tento abraçar, e pela cintura a acerco,
Com o seu peito ela me afasta e o meu abraçar aparta.

Ah! Como a sua beleza supera toda a formosura


E até o tenro galho é vexado ao lado de tal figura.

Então apresentaram-na com o sexto vestido, que era verde, e ela com a
sua postura vexava até a içada lança de bronze. Os galhos flexíveis
quedavam-se cativos da sua flexibilidade e do seu bambolear, a sua face
brilhava mais que a Lua nascente, e nem o horizonte conseguia ser mais
belo que a sua fronte. Não havia desejo que lhe não fosse satisfeito pela
própria Beleza, e ela partia todos os corações com a formosura das suas
qualidades, tal como disse o poeta:

Era uma donzela de tão grande finura


Que o Sol parecia provir da sua formosura.
Vestia uma camisa verde pela manhã,
Da cor das folhas que escondem a romã.

Perguntámos-lhe: «Qual o nome desta veste?»


E ela respondeu de guisa tão doce e celeste,
«São tantos os que sofreram as minhas seduções,
Que eu decidi chamar-lhe Quebra-Corações.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão


espantosa, ó mana», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
82.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa:

Sempre que apresentavam a noiva com um novo vestido e a traziam


diante do corcunda, ela desviava a cara e escapulia-se, pondo-se diante de
Badreddine Haçane, que por sua vez tirava uma mancheia de oiro do bolso
para oferecer às cantoras. E assim foi até a exibirem com o sétimo vestido,
após o qual mandaram as mulheres embora, e toda a gente que estava na
boda abalou e não se quedou ninguém senão Badreddine e o corcunda. Por
sua vez, as gentes da casa levaram a noiva para lhe tirarem as jóias e a
deixarem aprontada para o noivo. Nisto, o corcunda disse a Badreddine:
«Ficámos maravilhados com a sua bela companhia, mas agora é altura de se
ir embora.» E ele respondeu: «Com certeza», levantando-se e saindo do
salão, mas ao atravessar o corredor, deparou-se com o ifrite e a ifrita, que
lhe disseram: «Aonde vais? Não saias daqui! Quando o corcunda for à
casinha fazer as suas necessidades, vais entrar no quarto e aguardar na
cama. E quando a noiva se achegar a ti e te falar, tu lhe dirás: “Sou eu que
sou o teu marido, pois o rei planeou isto tudo só para se rir do corcunda,
que nós alugámos por dez moedas de prata e uma tigela de comida, e
entretanto ele já foi à sua vida.” E isto dito, avanças para ela para a
desflorares e consumares o casamento. Nós estamos contra o corcunda, pois
ninguém merece esta donzela senão tu.»
E estando eles à conversa, saiu o corcunda para ir à casinha das
necessidades, e quando lá chegou, cagou que nem um boi, e a bosta não
parava de lhe sair do cu. Nisto, vai o ifrite e sai de dentro da bacia da água,
na forma de um gato preto, e põe-se a guinchar: «Miau, miau!» E o
corcunda gritou-lhe: «Vai-te foder, ó gato da má fortuna!» E o gato pôs-se a
crescer e a inchar até se tornar num grande jumento, zurrando bem forte:
«Him-hom! Him-hom!» E tal não foi o susto que o corcunda se cagou todo
pelas pernas abaixo, e transtornado pôs-se a gritar: «Ó da casa! Acudam!
Acudam!» E o jumento cada vez mais ia crescendo até que ficou com a
forma dum búfalo, e com uma voz humana disse: «Maldito sejas, ó
corcunda!» O corcunda tremeu com tanto medo que até se sentou em cima
do buraco da latrina com as suas roupas, e amedrontado disse: «Ao seu
serviço, ó rei dos búfalos.» E o ifrite continuou: «Maldito sejas, ó corcunda
de meia-tigela, será que o mundo para ti é assim tão pequeno ao ponto de te
casares com a minha amada?» E o corcunda respondeu: «Ó meu senhor, a
culpa não é minha, eles é que me obrigaram. Eu nem sabia que ela tinha um
búfalo como amante. O que quer que eu faça?» E o ifrite respondeu: «Juro-
te que se saíres deste sítio ou se abrires o bico antes do Sol se erguer,
arrancar-te-ei o pescoço. E quando o Sol se erguer, vais-te logo embora à
tua vida, e não mais voltarás a entrar nesta casa nem a dar notícias.» Dito
isto, o ifrite pegou no corcunda, virou-o de pernas para o ar, enfiando-lhe a
cabeça no buraco da latrina, e disse-lhe: «Preza bem a tua vida, pois ficarei
aqui para te vigiar, e se te tentares erguer antes do Sol se levantar, agarrar-
te-ei pelas pernas e esborrachar-te-ei contra a parede.»
E isto foi o que aconteceu ao corcunda. Já no que toca a Badreddine
Haçane, depois do corcunda ter entrado na casinha das necessidades,
Badreddine apressou-se a ir para a cama, que era fechada por um
mosquiteiro, onde se quedou sentado um tempo, até que a noiva entrou no
quarto, e uma velha que vinha com ela disse: «Ó anormal, toma lá o teu
presente divinal.» E antes de abalar ainda lhe chamou lixeira. A moça, que
se chamava Sitt-al-Husne62, ao abrir o tule do mosquiteiro viu Badreddine e
disse: «Ó amor, ainda estás por aqui? Meu Deus, como eu gostaria que tu e
o corcunda me partilhassem!» Ao ouvir aquelas palavras, Badreddine
ripostou: «Ó Sitt-al-Husne, e porque havia o corcunda imundo de te
partilhar comigo?» E respondeu-lhe Sitt-al-Husne: «E porque não? Não é
ele o meu marido?» Mas ele disse: «Deus me livre, ó bem-amada senhora,
aquele casamento não passou de uma mascarada! Não viste que as damas
de honor, as cantoras, e os teus entes próximos, te apresentavam ante mim e
ao mesmo tempo se riam dele? O teu pai sabe muito bem que nós alugámos
o corcunda por dez moedas de prata e uma tigela de comida, e que após lhe
darmos a sua paga, abalou.» Quando Sitt-al-Husne ouviu isto, riu-se e disse:
«Meu Deus! Fazes-me feliz e o fogo da minha aflição apagas! Ó bem-
amado senhor, leva-me contigo e abraça-me no teu colo.»
E estando ela sem calças, Badreddine também despiu as suas, enrolando-
as à roda da bolsa que continha o oiro que havia recebido do judeu, no valor
de mil dinares, e pôs tudo debaixo do colchão. Tirou o turbante e pô-lo em
cima da cadeira, ficando só em camisa e com o solidéu na cabeça. Mas
estando ele um tanto reticente, Sitt-al-Husne puxou-o para junto de si e
disse-lhe: «Amor, não me deixes à espera, rega-me com o teu desejo e faz-
me gozar com as tuas carícias.» E declamou uma poesia:

Por favor, põe as tuas pernas entre as minhas,


Pois nada mais há que eu possa querer.
E deixa-me ouvir a tua voz, pois as minhas orelhas
Amam tanto o teu falar quanto eu amo o teu ser.
E alma alguma te abraça com tanta ternura
Quanto o meu braço à roda da tua cintura.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão espantosa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
83.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa:

Badreddine Haçane e Sitt-al-Husne abraçaram-se e ele tomou-a e


desflorou-a. Depois, ela pôs uma mão por baixo da cabeça dele e outra no
sovaco, e adormeceram face a face, queixo a queixo. E houve um poeta que
numa poesia descreveu a união daqueles dois:

Vai com quem realmente amas


E as palavras da inveja ignora.
No amor, nunca ajuda o invejoso.

Poderá mais bela vista criar o Misericordioso


Que dois amantes na mesma cama,
Abraçados e só o manto do prazer vestindo?

Nos braços um do outro investindo,


Quando os corações pelo amor se unem,
A conversa dos outros torna-se fria e trivial.

Se na vida alguém o amor te dedica,


Não o deixes, que é um dom bem raro.

E tu, que aos amantes condenas o amor,


Saberás curar um coração cheio de rancor?

Enquanto dormiam, o ifrite disse à ifrita: «Põe-te por baixo dele, levanta-
o e leva-o para o mesmo lugar onde estava a dormir, antes que a manhã nos
surpreenda.» A ifrita pôs-se por baixo de Badreddine, e voou com ele pelos
ares fora, levando-o assim mesmo como estava, com o solidéu de seda da
china de cor azul, a requintada camisa de cequins venezianos com brocados
marroquinos em oiro, e sem calças.
Lá ia a ifrita sempre a voar, acompanhada do ifrite que seguia à sua
banda, quando Deus Todo-Poderoso e Glorioso permitiu que a aurora
raiasse, e os almuadens subiram ao topo das almádenas e proclamaram a
unicidade do Soberano Absoluto e Único. Nisto, vão os anjos e disparam
duas estrelas cadentes e incandescentes; o ifrite morreu logo todo tostado,
mas Deus salvou a ifrita, que se escapou e baixou à terra com Badreddine.
Ditou o destino que a terra alcançada fosse Damasco, havendo a ifrita
largado Badreddine ao pé de uma das portas da cidade, antes de voar pelos
ares e ir à sua vida.
Ao brilhar a luz do dia, a porta da cidade de Damasco foi aberta, e
quando as gentes de lá saíram, e viram aquele moço tão lindo, apenas com
uma camisa e um solidéu, sem outras roupas nem calças, a dormir e a
ressonar devido às canseiras da noite anterior, do cortejo com velas, do
desvelamento da noiva, e de tudo o resto, ao vê-lo, as gentes puseram-se à
sua roda e disseram: «Que sortudo aquele que passou a noite com ele!
Devia era ter esperado que se tornasse a vestir!» E vai outro e diz: «Coitado
deste jovem! Vejam bem o que acontece aos nossos filhos! Devia andar nos
copos e veio à rua fazer uma necessidade, mas já estava tão tomado pela
bebida que adormeceu todo nu. Talvez não tenha encontrado a porta de
casa, e andou a vaguear meio perdido, até que se deparou com a porta da
cidade fechada, e aqui mesmo adormeceu.»
E enquanto cada um dizia seu parecer e sentença, soprou uma aragem e
levantou a camisa de Badreddine, deixando à mostra o seu bem desenhado
ventre e bem delineado umbigo, e umas coxas e per- nas tão cristalinas e
mais macias que a manteiga. E pondo-se todos a gritar: «Ai, que
maravilha!», acordaram Badreddine Haçane, que ao ver-se à porta de uma
cidade com tanto mundo, gentes e entes à sua roda, perguntou cheio de
espanto: «Onde estou eu? E porque estais todos ao meu redor?» E
responderam-lhe: «Nós encontrámos-te aqui estendido aquando da chamada
para a oração da madrugada, e isto é tudo o que sabemos sobre ti. Onde
dormiste a noite passada?» E ele respondeu: «Ó gentes, juro por Deus que a
noite passada estava a dormir no Cairo.» Houve logo alguém que disse:
«Oiçam-no bem!» E outro disse: «Preguem-lhe mas é um pontapé!» E
outros disseram-lhe: «Ó filho, tu tás é louco! Então, havias lá tu de dormir
no Cairo e acordar em Damasco?» E Badreddine respondeu: «Por Deus vos
juro, ó gentes, que passei a noite em casas cairotas; e durante o dia de
ontem estava em Baçorá; e agora aqui estou eu em Damasco!»
E alguém disse: «Valha-me Deus, que esta é mesmo boa!» E outro disse:
«Esta agora!» E outro disse mais: «Cá p’ra mim é maluco!» «É maluco!»,
bradavam as pessoas contra Badreddine, fazendo com que ele forçosamente
passasse por maluco. Enquanto isso, outras diziam entre si: «Que
desperdício, este jovem!» e «Não há dúvida que é maluco.» E ao depois
disseram-lhe: «Põe a cabeça no sítio, não há ninguém no mundo que em
sendo dia esteja em Baçorá, à noite no Cairo, e na manhã seguinte em
Damasco.» E Badreddine Haçane disse: «Mas eu ontem estava no Cairo na
festa do meu próprio casamento.» Disseram-lhe: «Não, não estavas, deves
ter sonhado e foi o que viste enquanto dormias.» Badreddine começou a
duvidar de si mesmo, mas ainda disse: «Será que sonhei que estive no
Cairo, e que a noiva foi desvelada ante mim e ante o corcunda? Não! Valha-
me Deus, não foi um sonho! Onde está a bolsa com o meu oiro, e onde está
a minha roupa, o meu traje, o meu turbante e a minha adaga?» O moço
estava mesmo confuso da cabeça.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão espantosa», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
84.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa:

As pessoas bradavam contra Badreddine Haçane: «É maluco! É maluco!»


Ele desatou a correr, e elas perseguiam-no aos gritos: «Maluco! Maluco!»
Badreddine entrou na cidade e rompeu por entre os mercados, e perante a
azáfama de pessoas que seguiam atrás dele, entrou numa casa de pasto. O
cozinheiro que era dono daquela casa havia sido um bandido hábil em
manhas e finuras, mas arrependera-se da vida do crime e abrira uma casa de
pasto. Toda a gente em Damasco tinha medo dele e das suas maldades, e
quando viram Badreddine entrando na sua casa de pasto, recuaram,
dispersaram-se e foram à sua vida.
O cozinheiro, em vendo Badreddine de Baçorá, perguntou-lhe: «De onde
vens, ó moço?» E ele contou-lhe a sua história de fio a pavio, mas não há
necessidade de repetir aqui os detalhes. Então o cozinheiro disse: «O que
contas é espantoso, mas não o repitas a mais ninguém até que Deus te traga
o alívio. Assenta vida comigo nesta casa de pasto, porque como eu não
tenho filhos, irei reconhecer-te como sendo meu filho.» E Badreddine
respondeu: «Com certeza.» O cozinheiro saiu então a comprar roupas para
vestir Badreddine, e levou-o perante testemunhas, a quem declarou
solenemente que ele era seu filho, e daí em diante Badreddine tornou-se
conhecido em Damasco como sendo o filho do cozinheiro e dono daquela
casa de pasto, com quem vivia, e sentava-se na casa de pasto junto da
balança.
E isto foi o que aconteceu a Badreddine Haçane de Baçorá. Já no que
toca à sua prima Sitt-al-Husne, quando ela acordou ao raiar da aurora e não
encontrou Badreddine, cuidou que ele havia ido à casinha das necessidades,
e sentou-se à sua espera durante um tempo. Nisto, apareceu o seu pai
Xamseddine Muhammad, vizir do Egipto e irmão de Nureddine Ali, pai de
Badreddine Haçane, e que estava destroçado e arrasado por mor da
vergonha que o rei lhe havia feito passar, forçando-o a casar a sua filha com
o mais ignóbil dos servos, um mero e miserável corcunda. O pai caminhou
até junto do tule do mosquiteiro da cama de sua filha, e chamou-a: «Sitt-al-
Husne!» E ela respondeu: «Aqui estou», saiu da cama, beijou a mão do pai,
e estava tão esplendorosa e formosa, com uma cara tão radiante e brilhante
depois dos abraços com a bela gazela que era Badreddine, que o seu pai lhe
disse: «Maldita sejas, como podes estar tão feliz com esse maldito
corcunda!»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
viver.»
85.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa:

Quando Sitt-al-Husn ouviu o seu pai dizer: «Como podes estar tão feliz
com esse maldito corcunda!» sorriu e disse: «Paizinho, pare lá com isso, já
basta o que eu passei durante o dia de ontem, com as mulheres a arrasarem-
me e a de mim troçarem por mor de um corcunda de meia tigela que não
serve nem para trazer ao meu marido a sua mula ou as suas polainas.
Ontem, Deus congratulou-me com a mais bela noite que passei em toda a
minha vida. Pare de troçar de mim e de me fazer recordar o corcunda que o
pai alugou para afastar o mau olhado contra o meu marido.» O pai quedou-
se confuso ao ouvir as palavras da filha, e olhando-a nos olhos, disse-lhe:
«Maldita sejas! Mas que conversa vem a ser esta? O corcunda não dormiu
contigo?» E a moça respondeu: «Já chega de mo fazer recordar, que Deus
amaldiçoe esse corcunda! Arre! O pai não pára de teimar em mencioná-lo!
Eu não dormi nos braços de ninguém a não ser do meu verdadeiro marido,
que tem olhos negros e sobrancelhas arqueadas e negras.» E disse-lhe o pai,
aos berros: «Maldita sejas, sua desavergonhada! Mas estás maluca ou quê?»
Ela respondeu: «Basta, ó pai, valha-me Deus, não me fatigue mais, que me
parte o coração. Por amor de Deus, o meu marido, que me desflorou e me
emprenhou, é um moço bem formoso, e neste momento está na casinha das
necessidades.»
Nisto, vai o pai à casinha das necessidades, e encontra o corcunda, virado
de pernas para o ar, com a cabeça enfiada no buraco da latrina. O vizir ficou
atónito e disse: «Ah, seu corcunda!» «Ai, sim, sou eu,» respondeu-lhe ele. E
o vizir perguntou-lhe: «Mas que vem a ser isto? E quem te pôs assim?» Ao
que o corcunda respondeu: «Mas será que não puderam encontrar ninguém
para me casarem a não ser a moça dos búfalos, amada dos ifrites?»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
86.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa:

O corcunda disse ao pai da noiva: «Mas será que não puderam encontrar
ninguém para me casarem a não ser a moça dos búfalos, amada dos ifrites?
Maldito seja o diacho e o meu barbicacho!» O vizir disse-lhe: «Vá! Vai-te
embora.» «Só se eu for maluco!», disse o corcunda: «Daqui não arredo pé a
não ser quando o Sol se erguer. Pois eu ontem, quando vim fazer uma
necessidade, e sem eu dar por ela, um gato preto subiu pela latrina acima e
pôs-se a gritar comigo, e não parou de crescer até se tornar do tamanho dum
búfalo, e o que me disse não me sai da cabeça. Por isso, deixe-me e vá à sua
vida, e que Deus Todo-Poderoso o recompense e amaldiçoe a noiva.» Mas o
vizir sacou-o da latrina, e assim mesmo como estava lá teve de ir o
corcunda à presença do rei para lhe dar parte do que lhe havia feito o
demónio.
Já o pai da noiva, esse voltou para casa, atrapalhado da cabeça, com a
razão meio atordoada e perplexo com a história da filha. Foi ter com ela e
disse-lhe: «Ai de ti se me não contares a tua história.» «Ah! Ó pai, qual
história?» respondeu ela: «Só sei que dormiu comigo aquele a quem eu
ontem fui desvelada, que me desflorou e me emprenhou. E aqui em cima
desta cadeira está o turbante dele, a adaga e o traje, e debaixo da cama estão
outras roupas também dele, enroladas à roda de não sei o quê.»
O vizir olhou para o turbante do seu sobrinho Badreddine, pegou nele,
observou-o com atenção, e disse: «Meu Deus, mas isto é um turbante de
vizir! Só que está atado à maneira de Mossul.» E ao observar melhor o
solidéu63 reparou que havia nele um rolinho cosido ao tecido, que tirou para
ver mais tarde com a devida atenção. Depois desembrulhou as calças e
encontrou a bolsa com os mil dinares e um papel, e quando abriu o papel,
nele se lia: «Faço aqui notícia que eu, Badreddine de Baçorá, vendi a Isaac,
o Judeu, a carga da primeira embarcação que entrar no porto por mil
dinares, e recebi o valor.» E depois de ler aquele papel, deu um berro e caiu
desmaiado.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
87.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa:

Ó miralmuminim, em acordando do seu desmaio, Xamseddine estava


espantado com o que havia descoberto, e quando abriu o rolinho e leu o que
estava escrito com a letra do seu irmão, ficou ainda muito mais espantado, e
disse: «Ó filha, sabes quem te desflorou? Meu Deus! não foi outro senão o
teu primo! E estes mil dinares são o teu dote. Glória ao Omnipotente que
tudo comanda, e que encontrou um fim justo para a minha quezília com o
meu irmão Nureddine. Quem me dera perceber como tudo isto aconteceu.»
Então pôs-se a examinar novamente o rolinho, e encontrou uma data
escrita pelo punho do seu irmão Nureddine Ali, pai de Badreddine Haçane
de Baçorá, e ao ver a letra do seu irmão, beijou-a vezes sem conta,
lamentou-se e chorou, e recordando-se do seu irmão, declamou:

Pela saudade sou consumido após sua partida,


E lágrimas ao ver as ruínas de suas casas não meço.
A quem me castigou separando-os de mim, eu diga
Que me presenteie com o seu regresso.
Abriu mais a folha de papel que estava enrolada, leu-a e viu que ela
continha a data da chegada do seu irmão a Baçorá, da redacção do seu
contrato de casamento, da consumação do seu casamento, do parto da sua
mulher, mãe de Badreddine, e do ano em que morreu. Ao tomar
conhecimento destas datas, foi tomado pelo espanto e tremeu de emoção,
porque ao comparar o que havia acontecido ao irmão com o que lhe havia
acontecido a si, viu que as datas coincidiam todas umas com as outras, e
que as datas em que o seu irmão se casou em Baçorá, em que consumou o
casamento, e em que nasceu o filho do irmão eram as mesmíssimas datas do
seu próprio casamento no Cairo e de todas as outras coisas que nós já
sabemos. E ao se lembrar como pouco tempo depois veio o seu sobrinho e
consumou casamento com a sua filha, pegou nesta folha e na outra que
estava na bolsa do dinheiro, e foi logo dar parte ao rei, que, ficando
espantadíssimo, ordenou que se registassem estes acontecimentos nas
crónicas.
Então o vizir foi para casa e esperou o dia inteiro que o seu sobrinho
viesse, mas não veio. E esperou um segundo dia, e um terceiro, e continuou
esperando até ao sétimo dia, mas dele não lhe chegou nem nova má nem
boa. E não havendo recebido qualquer sinal dele, disse: «Vou fazer algo que
jamais alguém antes de mim fez.» Pegou num tinteiro e numa folha de
papel, e anotou tudo o que havia no quarto de núpcias, descrevendo de
maneira exacta como tudo estava disposto. Em seguida ordenou que tudo
fosse guardado, e pegou no turbante, e também esse foi guardado, tal como
as calças e a bolsa.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
88.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Jáfar disse ao califa:

Quando a filha do vizir completou os devidos meses e noites, gerou um


filho macho, que tinha uma face tão redonda quanto a Lua cheia quando
nasce ou o Sol quando se ergue, uma testa radiante, e bochechas rosadas.
Cortaram-lhe o cordão do umbigo, puseram-lhe kohl64 nos olhos, e o seu
avô chamou-lhe Ajibe65. Depois entregaram-no aos cuidados das amas de
leite, governantas e serventes.
Ajibe cresceu, e aos sete anos de idade o avô pô-lo na escola e
encarregou o mestre de o educar e de lhe ensinar as boas maneiras. Ajibe
andou na escola durante uns três, quatro anos, até começar a ser ruim com
os outros miúdos da escola, batendo-lhes e insultando-os. Então os miúdos
juntaram-se e foram-se queixar ao aluno mais velho, que fazia as vezes de
monitor, das maldades que Ajibe lhes fazia, e o monitor disse-lhes:
«Amanhã quando ele vier para a escola, fazei o que vos vou dizer, e ireis
ver que ele não mais voltará nem o tornareis a ver. Então é assim, quando
ele chegar amanhã, ponde-vos à roda dele a brincar, e dizei: “Não brinca
connosco quem não disser o nome da sua mãe e do seu pai; quem não o
souber é um bastardo e connosco não brinca!”»
Os miúdos gostaram da ideia, e no dia seguinte foram para a escola, e
quando o filho de Badreddine de Baçorá chegou, puseram-se à roda dele e
disseram: «Queremos brincar, mas só com quem nos disser o nome da sua
mãe e do seu pai.» E todos disseram: «De acordo.» Vai um deles e diz: «O
meu nome é Májide, a minha mãe chama-se Sittita e o meu pai Izzeddine.»
E assim outros fizeram o mesmo, até vir a vez de Ajibe, que disse: «O meu
nome é Ajibe, a minha mãe chama-se Sitt-al-Husne e o meu pai
Xamseddine, o vizir.» E disseram os outros: «Como assim? Valha-nos
Deus, ele não é o teu pai!» E Ajibe disse-lhes: «Malditos sejam, desde
quando o vizir Xamseddine não é o meu pai?» E os miúdos riram-se dele,
bateram palmas e disseram: «Que Deus o ajude! Ele não sabe quem é o seu
pai. Não pode brincar nem sentar-se ao nosso lado, valha-nos Deus!» E
fugiram dele, rindo-se às gargalhadas, deixando-o a chorar e a soluçar em
lágrimas.
Veio o monitor e disse-lhe: «Ó Ajibe, então tu não sabes que o vizir
Xamseddine não é o teu pai, mas sim o pai da tua mãe Sitt-al-Husne?
Quanto ao teu pai, nem nós nem tu sabemos quem ele é, porque o rei casou
a tua mãe com um corcunda, mas vieram os génios e dormiram com ela, e
não se sabe quem é o teu pai. Não tornarás a ver os miúdos da escola, pelo
menos enquanto não souberes quem é o teu pai, senão serás tratado como
um bastardo. Então não vês que mesmo o filho do vendedor ambulante sabe
quem é o seu pai, e do merceeiro também, mas tu, sendo filho do vizir do
Egipto, não sabes quem é o teu pai? Ó Ajibe, que coisa mais espantosa!»66

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
viver.»
89.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Jáfar disse ao califa:

Ao ouvir as palavras insultuosas dos outros miúdos, Ajibe saiu da escola


e foi ter com a mãe Sitt-al-Husne, entrando em casa a chorar. Em o vendo, o
coração dela ficou em brasa, e perguntou-lhe: «Ó filho, porque choras? Que
Deus não faça os teus olhos chorarem alguma vez mais.» A chorar, ele
contou-lhe o que se lhe havia sucedido, e depois perguntou: «Quem é o meu
pai?» E respondeu ela: «É o vizir do Egipto.» Mas ele ripostou: «A mãe está
a mentir! O vizir do Egipto é o seu pai, o seu próprio pai, e eu dele sou neto.
Mas de quem sou eu filho?» Ao ouvir o seu filho falar do seu marido e
primo, que era pai do seu filho, rompeu em grande choro, e recordando-se
da noite de núpcias, declamou uma poesia:

Deixaste o meu coração em brasa,


E logo de seguida fugiste de casa
E de quem nela habitava, por um itinerário
Que me deixou sem santuário.

E ao me abandonares, tudo me abandonou:


O solaz, a calma e a minha persistência.
Tudo se foi, e a alegria de mim se apartou,
Porque o meu coração ficou sem residência.

Quedou-se-me o sangue nos olhos escorrendo


Copiosamente por mor da tua ausência.
E quando anseio por ti a mim volvendo,
A minha saudade em vão por ti desespera;
A tua imagem no meu coração vou vendo
Rodeada de lembranças e paixão sincera.

Ó tu, cuja lembrança como manto me aquece,


A minha devoção fez do amor a minha prece.
Mas porque não vens resgatar a tua diva,
Nem consolar a quem partiste o coração?
Nem curar quem de amor ficou cativa,
E pela tua partida adoeceu de paixão?

Ó amor, até quando a tua descura?


Até quando a minha solidão sem cura?

Enquanto ela e o filho choravam, apareceu o vizir Xamseddine, que,


vendo-os a chorar, perguntou: «Porque chorais?» Então a filha dele deu-lhe
conta do que havia sucedido ao filho, e o vizir, ao lembrar-se do irmão, e do
sobrinho do qual ignorava o paradeiro, e do que havia sucedido à sua filha,
também com eles se pôs a chorar.
Logo de seguida, foi à presença do rei do Egipto, e depois de lhe dar
parte daquela história, beijou o chão diante dele, e implorou que lhe fosse
dada licença para viajar até às terras do Oriente e alcançar a cidade de
Baçorá, de guisa a perguntar pelo seu sobrinho, e que lhe fossem
outorgados éditos reais dirigidos a todas as províncias e regiões,
autorizando-o a trazer consigo o seu sobrinho onde quer que ele se
encontrasse. E chorou ante o rei, que teve dó dele e lhe escreveu cartas e
éditos dirigidos a todos os países e províncias. O vizir, radiante de alegria,
deu graças ao rei, pediu a Deus que abençoasse o monarca, e despediu-se.
Logo de seguida, foi-se aprontar para a viagem, pegou na sua filha e em
Ajibe, e abalaram.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
90.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Jáfar disse ao califa:

O vizir do Egipto, tio de Badreddine Haçane de Baçorá, viajou com a sua


filha e o seu neto pelo espaço de vinte dias até chegarem a Damasco e
verem os seus pássaros e rios, que eram tal como disse o poeta:

Uma vez em Damasco, uma noite passei eu,


Que o tempo jurou não deixar que se repita.
A noite tranquila com as suas asas nos acolheu
Até a manhã sorrir com a sua luz tão bonita.
E nos galhos, as gotas de orvalho tombavam
Como pérolas que ao sabor do vento dançavam,
Todo o rio era um poema pelos pássaros cantado
Que as nuvens e a brisa na água haviam grafado.

O vizir assentou arraiais no Terreiro dos Seixos, e depois de montar as


tendas disse aos que o acompanhavam: «Ficaremos aqui dois ou três dias
para descansar.» Então os criados e os serventes foram à cidade para tratar
dos seus afazeres, um para vender, outro para comprar, e aqueloutro para ir
aos banhos. E Ajibe também saiu para dar um passeio pela cidade e se
divertir, seguindo atrás dele um eunuco que trazia na mão um bastão
vermelho feito de galhos de amendoeira entrelaçados, que Se se batesse
com ele num camelo, este desataria aos saltos até ao Iémene.
As gentes de Damasco, em vendo como Ajibe, sendo ainda pequeno de
idade, era já feito de uma beleza tão irradiante e de uma formosura tão
perfeita, tal como descrito por quem disse esta poesia:

A fragrância é almíscar, a face é uma rosa,


Os dentes são pérolas, e a saliva a vinho sabe;
O corpo é um galho e a anca uma duna suave,
O cabelo é a noite, e a cara a Lua vistosa.

puseram-se a segui-lo, e outros corriam para se adiantarem e esperar que ele


passasse para o poderem ver. E permitiram os decretos do destino que o
eunuco parasse à frente da casa de pasto do seu pai, Badreddine Haçane de
Baçorá, que, havendo já decorridos doze anos desde a sua chegada a
Damasco, já tinha a barba crescida e a razão amadurecida. Quanto ao
matreiro do cozinheiro, já havia morrido, e Badreddine havia herdado todos
os seus bens e a casa de pasto, visto que o havia reconhecido como sendo
seu filho. Então, quando o seu filho Ajibe e o eunuco pararam em frente da
casa de pasto…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. E o rei disse de si para


si: «Meu Deus, não a matarei até ouvir o que aconteceu ao vizir Badreddine
Haçane, ao seu filho, ao seu tio e à sua prima, e então matá-la-ei como
todas as outras.»
91.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Jáfar disse ao califa:

Quando Ajibe e o eunuco pararam em frente da casa de pasto de


Badreddine de Baçorá, e este os viu, pôs-se a olhar para o seu filho Ajibe, e
sentiu algo estranho ao ver quão belo e formoso ele era, e o seu coração
começou a pular, o estômago a palpitar, a felicidade a transbordar, e porque
a empatia que liga os parentes de sangue é de tal modo divina, sentiu-se
ligado a ele por um afecto instintivo — glória ao Omnipotente que tudo
comanda.
Badreddine havia estado a cozinhar sementes de romã em açúcar, e ao
ver as espantosas67 vestes de Ajibe e as suas estranhas maneiras, disse-lhe:
«Ó meu senhor, e dono da minha alma e do meu coração, por quem o meu
sangue derramaria, teria a amabilidade de entrar na minha casa para comer
o que estive a cozinhar, e assim o meu coração consolar?» E dito isto, os
seus olhos banharam-se em lágrimas, recordando-se dos dias em que havia
sido vizir e feliz, e pôs-se a declamar uma poesia:

Ó amor, minhas lágrimas a derramar


Por mor do meu ardente amar.
Se ao vos ver, me tento apartar
Sinto tão violenta paixão.
Não é ódio nem consolação,
Somente sou uma alma amante
Ciente do seu amor fulgurante.

Ajibe sentiu afecto por ele e o seu coração palpitou. Virou-se para o
eunuco e disse: «Tutor, sinto simpatia e pena por este cozinheiro, pois ele
deve ter perdido um filho ou um irmão. Entremos na sua casa e aceitemos a
sua hospitalidade para que possamos consolar a sua alma, e talvez assim
Deus recompense esta acção facilitando o reencontro com o meu pai.» Ao
ouvir aquelas palavras, o eunuco tomou-se de fúrias e disse: «Valha-me
Deus! O filho de um vizir a comer numa casa de pasto! Como poderei eu,
que ando com esta vara para impedir que as pessoas olhem para ti, velar
pela tua segurança deixando-te entrar numa casa de pasto?» Ao ouvir as
palavras do eunuco, Badreddine virou-se para o filho, e pôs-se a declamar
uma poesia:

Espanta-me que te guardem com um só escravo,


Quando tantos pela tua beleza seduzidos são.
Não seria assim de temer algum agravo?
Pois a tua barba juvenil é fresco manjericão,
O sinal na tua cara é um disco de âmbar-gris,
Os teus dentes pérolas, e as bochechas rubis.

Então Badreddine virou-se para o eunuco e disse: «Ó nobre senhor,


consolareis vós a minha alma entrando na minha casa de pasto? Vós sois
como a castanha, negra por fora e branca por dentro, tal como um poeta
descreveu.» O eunuco riu-se e disse: «Valha-me Deus! E o que disse esse
poeta que me descreveu?» E Badreddine declamou ao eunuco:

Não fosse ele de confiança e boas maneiras,


Jamais o poriam em casa de monarcas.
No harém é um eunuco tão zeloso
Que até os anjos do céu o louvam.
Que negritude tão perfeita é a sua,
Mas é por acções brancas como a Lua
Que com tantos sorrisos o abençoam.

O eunuco, espantado com o poema, riu-se, pegou em Ajibe e entraram os


dois na casa de pasto do cozinheiro Badreddine, que lhes trouxe uma tigela
com o cozinhado de sementes de romã, amêndoas da melhor selecção e
açúcar, que havia acabado de preparar e que estava uma verdadeira delícia.
Serviu-os e eles puseram-se a comer. E Ajibe disse ao seu pai: «Sente-se e
coma connosco, talvez assim Deus Todo-Poderoso me reúna com quem está
separado de mim.» E disse Badreddine: «Ó filho, também tu e tão pequeno
em idade já provaste o sabor de estares separado de um ente querido?» E
Ajibe respondeu: «É verdade, ó tio, e por estar separado de um ente querido
vive o meu coração cheio de úlceras. Eu e o meu avô corremos mundo à sua
procura. Quem me dera com ele me reunir.» E pôs-se a chorar, e em vendo
o seu filho a chorar, Badreddine de Baçorá também chorou, recordando-se
da distância que o separava da sua mãe e da sua terra, e inundado de
saudade declamou uma poesia:

Quando finalmente nos reunirmos a sós


Muito haverá para eu me queixar entre nós.

Pois não há carta que cure o coração dolente,


Nem mensageiro que dê voz à dor de quem ama.
Tantas lágrimas verto e o sábio as repreende,
Mas elas são tão poucas para toda esta flama.

Quando trará Deus quem eu tanto amo de volta,


E para sempre se dissipará toda esta dor maldita?
No nosso reencontro não abafarei a minha revolta,
Pois não há mensageiro que a minha dor transmita.

O eunuco teve pena de Badreddine, e depois de comerem foram-se


embora. Mas Badreddine, havendo-se quedado pela sua casa de pasto,
sentiu como que se a sua alma também ela se houvesse ido embora com
eles, e não conseguindo mais estar sem eles por momento que fosse, saiu
para a rua e fechou a casa de pasto.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
viver.»
92.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Jáfar disse ao califa:

Badreddine Haçane de Baçorá fechou a sua casa de pasto e seguiu atrás


do filho, sem saber que ele era o seu filho, e caminhou até os apanhar antes
de saírem pela porta da cidade, e continuou passo a passo atrás deles, até
que o eunuco se virou, e em o vendo, disse, usando o mesmo jeito com que
se dirigiria a um efeminado: «Maldita sejas, o que queres tu?» E ele
respondeu: «Nobre senhor, depois de vós os dois haverdes partido senti
como se a minha alma também ela se houvesse ido embora convosco, e
como tinha um assunto a tratar nos arrabaldes da Porta da Vitória, vou tratar
dele antes de regressar.»
O eunuco tomou-se de fúrias e disse a Ajibe: «Eis o que tu me fizeste e
que eu bem temia. Quem é cego, cego é, e só porque entrámos lá na sua
casa de pasto, e comemos da sua comida desgraçada, agora acha que nos
pode assediar, tal mendigo seguindo-nos aonde quer que vamos.» Ajibe
virou-se e vendo o cozinheiro atrás de si, ficou vermelho de fúria, e disse ao
eunuco: «Deixemo-lo seguir o caminho de qualquer muçulmano, e se ele
sair pela porta da cidade, e virar em direcção ao nosso acampamento, então
teremos a certeza que nos segue.»
De seguida, Ajibe baixou a cabeça e seguiu caminho, juntamente com o
eunuco que vinha atrás dele. E Badreddine seguiu-os até ao Terreiro dos
Seixos, e quando já estavam cerca do acampamento, Ajibe virou-se para
trás e deparou-se com o cozinheiro. Ficou todo corado e pálido, e com
medo que o seu avô viesse a saber que ele havia entrado numa casa de
pasto, e que o seu cozinheiro o havia seguido, então tomou-se de fúrias, e
ao ver Badreddine de olhos fixos nos seus, especado como se fosse um
cadáver sem alma, achou que eram os olhos de um traiçoeiro ou de um
bastardo depravado68, e ficou ainda mais furibundo. Então apanhou do chão
um calhau que pesava um meio arrátel, ergueu-o com a mão, e atirou-o
contra o seu pai. O calhau acertou-lhe na testa, e cortou-a de sobrancelha a
sobrancelha, e ele caiu no chão desmaiado, com o sangue escorrendo-lhe
cara abaixo, enquanto Ajibe e o eunuco seguiram para o acampamento.
E assim se quedou Badreddine durante um tempo, e quando acordou,
limpou o sangue, tirou o turbante e atou-o à roda da ferida, culpando-se a si
mesmo e dizendo: «Ofendi o moço ao fechar a casa de pasto e ao segui-lo, e
fi-lo pensar que eu era um traiçoeiro ou um bastardo.» Depois, volveu à sua
casa de pasto, mas de quando em quando assaltava-lhe a saudade da sua
mãe e de Baçorá, e, chorando, pôs-se a declamar uma poesia:

Não é justo que justiça ao destino peças


Porque o destino anda sempre às avessas,
Ora é pura felicidade, ora mágoas turvas.
Põe a aflição de parte e toma as partes boas.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão bela
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
93.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Jáfar disse ao califa:

Badreddine volveu à sua casa de pasto e continuou a vender comida.


Quanto ao vizir, seu tio, quedou-se por Damasco três dias, e depois abalou
em direcção a Homs. Entrou na cidade, esquadrinhou-a e depois abalou.
Depois alcançou a cidade de Hama, onde pernoitou enquanto a
esquadrinhava, e depois continuou viagem, em passo acelerado até entrar na
cidade de Alepo, onde se quedou dois dias, e depois prosseguiu viagem.
Alcançou as cidades de Mardin, Mossul, e Sinjar, havendo ainda
atravessado Diarbaquir. E continuou caminho até chegar a Baçorá. Entrou
na cidade, e foi-se reunir com o rei, que o recebeu e o honrou com grande
estima. Quando este o questionou sobre a causa da sua vinda, Xamseddine
informou-o da sua história e de que o seu vizir, Nureddine Ali do Egipto,
era o seu irmão. E o rei pediu que Deus tivesse misericórdia da alma de
Nureddine Ali, e disse: «Ó vizir, ele esteve connosco durante quinze anos e
depois morreu, deixando um filho, que após a morte do pai viveu nesta
cidade durante um só mês, e depois desapareceu sem deixar rasto, e sem
nós dele virmos a saber nova má ou boa. Mas a mãe, que era filha do meu
antigo grão-vizir, ainda vive nesta cidade.» Então Xamseddine Muhammad
pediu para a visitar e o rei consentiu.
Xamseddine foi a casa do seu irmão Nureddine Ali, observou-a
atentamente e beijou a soleira da porta, e lembrando-se dele e de como
havia morrido forasteiro num sítio estrangeiro, pôs-se a declamar uma
poesia:

Percorro a casa, a casa que Leila ocupou.69


E parede após parede eu beijo.
Não é pela casa que eu ardo de desejo,
Mas pela amada que nesta casa habitou.

Entrou pela porta principal, e foi ter a um grandioso pátio, onde havia
uma porta arqueada construída em granito com mármores incrustados de
vários géneros e feitios, formando floreados de várias cores. Caminhou à
roda da casa, observando-a atentamente, até que encontrou numa parede
uma inscrição com nome do seu irmão, Nureddine Ali, feita em oiro e lápis-
lazúli iraquiano. Abeirou-se dela e beijou-a, e lembrando-se do seu irmão e
da separação, chorou e pôs-se a declamar uma poesia:

Ao Sol, sempre que se ergue, por ti pergunto,


E no relâmpago, quando faísca, por ti procuro.
A noite eu a passo com os grilhões da dor.
Ó amada, se se alonga entre nós a distância,
Em pedaços dilacerar-me-á a tua ausência,
Mas nunca lamentarei o infernal fogo do amor.

Se abençoares o meu olhar com o teu passo,


Poderá alguma vez haver reunião mais bela?
Não penses que me passeio com outra donzela,
Que para outras no meu coração não há espaço.

Tende piedade do amante torturado e dolente,


Que em pedaços se estilhaça o seu coração.
Se o destino vos trouxesse a mim novamente,
Quantas graças lhe daria pela nossa reunião.
Que Deus castigue bem quem mal nos quer,
E nos afaste de quem nos afastar bem quer.

Depois avançou até à porta do salão, onde se encontrava a mulher do seu


irmão, mãe de Badreddine Haçane de Baçorá, que dês do desaparecimento
do seu filho a nada se dedicava senão ao choro e ao pranto, dia e noite, e
passado muito tempo pusera um túmulo para o seu filho no meio do salão, e
passara a chorar sobre ele dia e noite. Em chegando, o seu cunhado quedou-
se à porta, vendo-a com o seu cabelo espalhado sobre o túmulo, chorando o
seu filho Badreddine Haçane, e declamando uma poesia:

Ó túmulo, ó túmulo, terá ele as suas belezas perdido?


Ou terás sido tu a perder os teus olhares tão radiantes?
Ó túmulo, se tu não és uma estrela nem um paraíso,
Como poderão o Sol e a Lua ser os teus ocupantes?

Xamseddine entrou no salão, cumprimentou-a e deu-lhe parte de que era


seu cunhado e contou-lhe o que havia sucedido.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
viver.»
94.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Jáfar disse ao califa:

Xamseddine contou-lhe o que havia sucedido, e que há dez anos atrás


Badreddine havia passado uma noite em sua casa e desaparecido pela
madrugada, e durante essa noite consumou casamento com a sua filha,
desflorou-a e emprenhou-a. E quando ela completou os devidos dias, pariu
um filho macho: «E aqui está ele comigo, o filho do teu filho», disse
Xamseddine. E quando a mãe de Badreddine ouviu estas novas sobre o seu
filho e que ele ainda estaria vivo, havendo gerado descendência, olhou para
o cunhado, botou-se aos seus pés e chorou desalmadamente, declamando
uma poesia:

Abençoado seja quem anuncia que eles já chegaram,


Pois é a nova mais feliz de quantas boas novas já ouvi.
E se houver por bem aceitar uns meros farrapos meus,
Dar-lhe-ei um coração esfarrapado pela dor do adeus.

Então levantou-se e abraçou Ajibe, apertando-o com força, e beijou-o e


Ajibe também a beijou. Pondo-se ela algum tempo a chorar, o vizir disse-
lhe: «Este não é o momento para chorares, mas para te aprontares e
connosco até ao Egipto viajares. Talvez nós ainda nos venhamos a reunir
com o teu filho e meu sobrinho. E esta é uma história para ser registada nas
crónicas!» E num pronto ela se levantou e foi tratar dos preparos, enquanto
o vizir foi à presença do rei para se despedir. E o rei proveu-o daquilo de
que ele fosse falto, e enviou através dele presentes para o rei do Egipto, e
despediu-se dele.
Xamseddine abalou de Baçorá para regressar a casa, e não parou até
chegar a Alepo, onde se quedou três dias. Depois continuou a viagem até
chegar a Damasco, e assentando arraiais num arrabalde da cidade chamado
Alcabune, disse a quem estava consigo: «Ficaremos aqui dois, três dias para
comprarmos presentes e tecidos para o rei.» E ocupou-se dos seus assuntos.
Quanto a Ajibe, disse ao eunuco: «Tutor, vamos dar um passeio pela
cidade e gozar as vistas? E ver o que é feito daquele cozinheiro cuja comida
nós comemos e que nós o atacámos. Ele tratou-nos tão bem e nós tratámo-
lo tão mal!» E o eunuco consentiu. Deixaram então o acampamento, porque
os laços de sangue impulsionavam Ajibe para reencontrar o seu pai, e
caminharam até Damasco, entrando pela Porta dos Paraísos, e depois de
haverem estado a contemplar a Mesquita dos Omíadas até se acercar a hora
da oração da tarde, atravessaram a cidade e o Mercado Grande, e
caminharam até à casa de pasto de Badreddine Haçane de Baçorá, que havia
feito um magnífico prato de sementes de romã cozinhadas com amêndoas,
açúcar e água de rosas, e estava pronto a servir.
Quando Ajibe olhou para ele, sentiu ternura, e viu que na sua testa havia
ficado uma grande marca da pedra que lhe havia atirado à cara, deixando-
lhe uma cicatriz negra de sobrancelha a sobrancelha. Então o seu coração
enterneceu-se por ele e foi tomado de compaixão, e disse ao pai: «A paz
seja consigo. Tenho pensado muito sobre si.» Quando Badreddine olhou
para ele, o seu coração começou a pular e o estômago a palpitar por mor da
empatia que liga os parentes de sangue. Inclinou a cabeça e quis mexer a
língua para responder, mas não conseguiu. Então ergueu a cabeça, olhando
de guisa reverente e submissa para o seu filho, e pôs-se a declamar uma
poesia:

Tanto desejei encontrar o meu amor,


Mas em o vendo, Ah! Sem ver nem voz fiquei,
Baixei a cabeça com reverente temor,
Tentei esconder o que esconder não poderei
Ao meu coração, que após tanto tempo vazio,
Ao te ver nem uma palavra da garganta me saiu.

Depois disse a Ajibe: «Consolará o senhor a minha alma entrando na


minha casa de pasto para comer da minha comida, juntamente com o nobre
senhor que o acompanha? Meu Deus, não consigo olhar para si sem sentir o
meu coração aos pulos. Quando fui atrás de si, foi só porque estava fora de
mim.» E Ajibe respondeu…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
95.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Jáfar disse ao califa:

Badreddine disse ao filho: «Quando fui atrás de si, foi só porque estava
fora de mim.» E Ajibe respondeu: «É um amante muito exigente! Comemos
a comida que nos serviu, e julgando que estávamos em dívida para consigo,
ia causando a nossa desgraça. Agora não voltaremos a comer o que cozinha,
senão com uma condição, que nos jure que não sairá atrás de nós, nem de
nós reclamará obrigação alguma. Senão não voltaremos a vir ter consigo,
pois ainda iremos ficar nesta cidade uma semana, enquanto o meu avô
compra presentes para o rei do Egipto.» E Badreddine respondeu: «Assim
seja, ficai descansados.»
Então Ajibe e o eunuco entraram na casa de pasto, e Badreddine
mergulhou uma tigela na panela para a encher, e botou-a à frente deles. Ao
que Ajibe lhe disse: «Sente-se e coma connosco.» E ele todo contente foi
sentar-se e comeu com o filho, ficando embasbacado a olhar para ele, pois
sentia-se ligado a ele da ponta dos pés à ponta dos cabelos. Então Ajibe
disse: «Ah, ah! Não lhe disse já que é um amante incómodo? Pare de olhar
assim para mim!» Badreddine suspirou e pôs-se a declamar:

No fundo do meu coração há um segredo íntimo,


Invisível e escondido por te amar muitíssimo.
Ó tu cuja beleza envergonha a Lua brilhante,
Cujas graças rivalizam com a manhã radiante.
O brilho da tua face é um desejo tão inalcançável
E por isso as aflições crescem de modo imparável.
A tua face é o Paraíso divinal, mas inferniza-me o fogo;
A tua saliva é água celestial, mas de sede eu morro.

Depois comeram juntos, e Badreddine ora levava mais um bocado à boca


de Ajibe, ora mais outro à boca do eunuco, até ficarem satisfeitos e se
levantarem. Então Badreddine verteu água nas mãos deles, tirou a toalha
que tinha à cintura para eles limparem as mãos, e borrifou-os com água de
rosas. Depois saiu a correr e apressou-se a regressar com uma albarrada
com uma bebida feita de oximel, gelo e açúcar e aromatizada com água de
rosas70, que lhes deu a beber, dizendo: «E por último, tenham a bondade.»
Ajibe pegou nela e bebeu, e passou-a ao eunuco para ele beber, e beberam
os dois até se fartarem e ficarem com a pança cheia, pois haviam comido
mais do que lhes era habitual. Agradeceram e despediram-se dele, e saindo
pela Porta do Leste, estugaram o passo para chegar ao acampamento.
Ajibe foi ter com a avó, mãe de Badreddine, e beijou-a, e ela lembrou-se
de Badreddine e dos dias que havia passado com ele, e suspirou e chorou
até o véu ficar encharcado, e declamou uma poesia:

Não houvesse em mim esperança de te reencontrar,


A vontade de viver já há muito a teria perdido;
Que no meu coração só o te amar é permitido,
Mas só Deus se pode de todos os segredos inteirar.

E depois perguntou: «Ó filho, aonde estiveste?» E deu-lhe uma tigela de


comida, e por via do destino também ali se havia cozinhado um prato com
sementes de romã, mas com menos açúcar. A avó deu-lhe uma tigela cheia
e um naco de pão, e disse ao eunuco que estava com ele: «Come com ele.»
O eunuco disse lá de si para si: «Meu Deus, nem o pão consigo cheirar», e
sentou-se.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
96.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa:

O eunuco sentou-se, e tinha a barriga cheia do que já havia comido e


bebido. Ajibe mergulhou um naco de pão no prato de sementes de romã e
deu uma dentada, e em o achando pouco doce, pois também Ajibe estava
cheio, disse: «Chiça! Que comida horrível vem a ser esta?» A avó espantou-
se, e disse: «Ó filho, porque dizes mal da minha comida? Que eu mesma a
cozinhei com as minhas mãos, e não há ninguém que cozinhe tão bem como
eu, a não ser o meu filho Badreddine.» E Ajibe disse: «Mas a comida da
avó é horrível! Nós, mesmo há pouco, vimos um cozinheiro na cidade que
fez o mesmo prato com sementes de romã, e só o cheiro deliciava o
coração, e o sabor abria logo o apetite. A comida da avó ao lado da dele de
nada vale!»
Ao ouvir aquelas palavras, a avó enfureceu-se, e olhando para o eunuco,
disse: «Maldito sejas! Andas a perverter o meu neto, levando-o à cidade
para ele comer em casas de pasto!» O eunuco, ao ouvir aquelas palavras,
amedrontou-se e respondeu: «Valha-me Deus, minha senhora, nós não
comemos nada; apenas passámos ao lado de uma casa de pasto.» Mas vai
Ajibe e diz: «Meu Deus, ó avó, pelo contrário, entrámos na casa de pasto e
comemos, tanto desta vez como da outra, o mesmo prato de sementes de
romã que a avó cozinha, mas muito melhor.» A avó ficou fula, e foi dar
parte do sucedido ao cunhado, para o virar contra o eunuco, e veio
Xamseddine e disse ao eunuco: «Maldito sejas! Aonde levaste o meu
filho?» E o eunuco negou tudo com medo de levar pancada, mas Ajibe
desmentiu-o: «Ó avô, juro por Deus que comemos e ficámos tão cheios que
a comida até saía pelas narinas. E o cozinheiro ainda nos deu a beber
oximel com gelo e açúcar.»
Então o vizir, cada vez mais furioso, disse: «Ó calamitoso escravo,
entraste ou não com o meu neto numa casa de pasto?» Como o eunuco tudo
negou, o vizir ripostou: «O meu neto afirma que vós os dois haveis comido
até vos fartardes. Se tu falas verdade, então come esta tigela de sementes de
romã que está à tua frente.» O eunuco, dizendo que sim, levou a mão à
tigela e engoliu um naco, mas não sendo capaz de engolir um segundo,
cuspiu-o boca fora e afastou-se da comida, e disse: «Por favor, meu senhor,
estou cheio do que comi ontem.»
Assim conheceu o vizir a verdade, e mandou que o deitassem no chão e o
açoitassem. Moído de pancada, o eunuco clamou misericórdia e disse:
«Meu senhor, entrámos na casa de pasto e comemos um prato feito pelo seu
cozinheiro com sementes de romã, e que era melhor do que este.» A mãe de
Badreddine ficou furiosa e disse: «Ó filho, valha-me Deus! Queira Deus
que eu me volte a reunir com o meu filho. Tens de me ir buscar uma tigela
desse prato de sementes de romã a esse cozinheiro para o teu amo o provar,
assim veremos qual deles é melhor, se o dele ou o meu.» E o eunuco
respondeu: «Com certeza!» E ela deu-lhe uma tigela e meio dinar, e lá saiu
o eunuco a correr até chegar junto do cozinheiro e lhe dizer: «Ó cozinheiro
prestigioso, fiz uma aposta sobre a sua comida em casa do meu amo. Dê-me
meio dinar do seu prato de sementes de romã, e que seja do melhor, que eu
já comi tareia só por haver entrado na sua casa de pasto. Não me deixe
saborear mais pancada à custa da sua comida.» Ele riu-se e disse: «Ó nobre
senhor, esta receita ninguém a cozinha tão bem senão eu mesmo e a minha
mãe, que agora está num país distante.» E mergulhou uma tigela para a
encher, escolhendo as melhores partes, e selou-a. O eunuco pegou nela e
apressou-se a levá-la de volta. A mãe de Badreddine pegou na tigela e
provou-a, e em vendo a qualidade daquele cozinhado, reconheceu logo
quem era o seu cozinheiro, e um berro largou, e desmaiada tombou. O vizir
ficou atónito e com água a borrifou, e ela em acordando disse: «Se o meu
filho Badreddine ainda neste mundo vive, então ninguém pode ter
cozinhado esta comida senão ele mesmo.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
97.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa:

A mãe de Badreddine disse: «Ninguém pode ter cozinhado esta comida


senão o meu filho Badreddine, pois ninguém a sabe cozinhar tão bem como
ele.» Ao ouvir aquelas palavras, o vizir rejubilou de alegria e disse: «Eia!
Eia, ó sobrinho! Isto deve ser Deus a reunir-nos contigo!» E logo num
pronto se levantou e gritou aos homens que estavam consigo, aos escravos,
criados e cameleiros, aí uns cinquenta homens, e disse: «Ide à casa de pasto
deste cozinheiro, levai convosco varas, chibatas e afins, e parti tudo o que lá
dentro houver, até os copos e os pratos. E depois de haverdes deixado tudo
em ruínas, atai as mãos do cozinheiro com o seu turbante, e dizei-lhe:
“Foste tu que cozinhaste este horrível prato de sementes de romã!” E trazei-
o até aqui, enquanto eu vou e venho ao palácio do vice-rei [de Damasco]. E
que ninguém lhe bata ou lhe faça mal, apenas atai-lhe as mãos e trazei-o à
força» E eles responderam: «Com certeza.»
Depois, o vizir montou a sua cavalgadura e foi ao palácio do vice-rei de
Damasco, e em lhe mostrando régios éditos, ele os beijou e os leu, e
perguntou: «Onde está o teu rival?» E ele respondeu: «É um cozinheiro.»
Então ordenou ao camarista que fosse à casa de pasto, e lá foi ele, e à sua
frente seguiam quatro capitães, quatro guardas do palácio e seis soldados,
que caminhavam à sua frente. Ao chegarem à casa de pasto encontraram-na
desfeita em ruínas e tudo o que lá havia estava partido, pois enquanto o
vizir havia ido ao palácio, a sua rapaziada não perdeu tempo, e se um pegou
numa chibata, um outro pegou numa vara de tenda, outro num malho, e
outro numa espada, e todos juntos voaram a correr até à casa de pasto, e
sem dirigir palavra a Badreddine lançaram-se aos copos e aos pratos, e
partiram-nos, e partiram as tigelas, as prateleiras, as travessas e as panelas,
tudo foi escaqueirado, até as grelhas. E Badreddine perguntou-lhes: «Ó boa
gente, mas que vem a ser isto?» E eles perguntaram-lhe: «Foste tu que
cozinhaste o prato de romã que o eunuco comprou?» E ele respondeu:
«Sim, fui eu. E ninguém o cozinha assim tão bem.» E gritaram-lhe uns
quantos insultos, enquanto desfaziam a casa de pasto em cacos. Nisto, todo
o mundo se agrupou ali à roda, e em vendo umas cinquenta, sessenta almas
a fazer a casa de pasto em ruínas, as gentes diziam: «Que cena mais
assombrosa!»
Badreddine, aos gritos, perguntou: «Ó muçulmanos, será algum crime
cozinhar esta comida para assim me tratardes? E me partirdes a loiça e me
desfazerdes em cacos a minha casa de pasto?» Mas eles replicaram: «Não
foste tu quem cozinhou o prato de sementes de romã?» E ele respondeu:
«Sim, sim, fui eu, e então? E que mal tem para assim me tratardes?» E
todos lhe berraram, o injuriaram e ralharam com ele, e depois rodearam-no,
tiraram-lhe o turbante e com ele lhe ataram as mãos, e à força o levaram,
enquanto ele gritava, chorava e por ajuda clamava.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
98.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa:

Badreddine continuou a chorar, a clamar por ajuda, e a perguntar: «Que


mal haveis encontrado no meu prato de sementes de romã?» Mas eles
continuavam a replicar: «Não foste tu quem cozinhou o prato de sementes
de romã?» E ele lá respondia: «Sim, sim, fui eu, mas ó muçulmanos, que
defeito tem o meu prato para eu ter de sofrer desta guisa?»
E quando já estavam próximos do acampamento, juntaram-se a eles o
camarista, que havia sido enviado, os capitães e quem com eles estava. O
camarista afastou as gentes que rodeavam Badreddine para o ver, arriou-lhe
com a chibata nos ombros e disse: «Maldito sejas! Então foste tu quem
cozinhou o prato de sementes de romã?» Badreddine chorou por mor da dor
da chibatada, e disse: «Sim, meu senhor, mas por amor de Deus, deixe-me
perguntar-lhe que defeito tem o meu prato.» Mas o camarista ralhou com
ele e injuriou-o, e disse aos seus: «Arrastai daqui para fora este cão que
cozinhou o prato de sementes de romã.»
Com o coração angustiado, Badreddine chorou, e disse de si para si: «Ó
que infortúnio o meu, mas que mal terão eles encontrado no meu prato de
sementes de romã para me vilipendiarem com tanto vilipêndio?» Assim se
lamentou aquele que desconhecia qual o seu crime, enquanto os homens o
continuaram a arrastar até chegarem ao acampamento, onde esperaram que
o vizir regressasse de junto do vice-rei de Damasco, depois deste lhe haver
dado autorização para partir em viagem e dele se haver despedido.
E quando chegou, o vizir perguntou: «Onda está o cozinheiro?» Então
levaram Badreddine à sua presença, e quando este viu o seu tio, o vizir
Xamseddine, Badreddine chorou e disse: «Meu senhor, que crime cometi eu
aos seus olhos?» Mas Xamseddine ripostou: «Maldito sejas, não foste tu
quem cozinhou o prato de sementes de romã?» E gritando de guisa tal como
se a alma lhe houvesse saído do corpo, Badreddine disse: «Sim, fui eu, meu
senhor. Que desgraça a minha! Serei decapitado?» Xamseddine respondeu:
«Esse infortúnio será a tua menor punição.» E Badreddine perguntou: «Meu
senhor, não me dará a conhecer qual foi o meu crime e qual o defeito do
meu prato de sementes de romã?» Xamseddine respondeu: «Sim, agora
mesmo», e chamou os criados, e aos gritos lhes disse: «Carregai tudo,
vamos abalar!» E num pronto, desarmaram as tendas, e os camelos
ajoelharam-se para ser carregados. Puseram Badreddine numa arca,
fecharam-na à chave e carregaram-na em cima de um camelo. Depois
partiram-se de Damasco, viajando até ser noite, quando pararam para
comer. Tiraram Badreddine de Baçorá da arca, deram-lhe de comer, ataram-
no e de novo o puseram na arca.
E desta guisa continuaram viajando até chegarem ao Cairo.
Desmontaram fora da cidade, e o vizir ordenou que tirassem Badreddine da
arca. Tiraram-no e levaram-no à sua presença. Então o vizir ordenou que
lhe trouxessem o carpinteiro e madeira, e disse ao carpinteiro: «Constrói um
boneco de madeira em forma de cruz.» E Badreddine perguntou: «Meu
senhor, que fará com esse boneco de madeira?» E ele respondeu: «Vou
enforcar-te e depois pregar-te-ei ao boneco, que farei circular por toda a
cidade, por mor do teu infortunado prato de sementes de romã, tão falto de
pimenta.» Badreddine disse: «Mas já não basta? Tudo isto por um prato de
sementes de romã ser falto de pimenta?»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
99.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa:

Badreddine de Baçorá disse: «Por um prato de sementes de romã ser falto


pimenta, vós me haveis aviado pancada, desfeito a minha casa de pasto em
cacos e partido a minha loiça, tudo por causa de um prato de sementes de
romã ser falto de pimenta. Ó muçulmanos, não vos bastou me haverdes
atado as mãos e me prendido nesta arca, dias e noites, e me alimentado com
uma só refeição por dia, e me torturado com todos os géneros e feitios de
torturas, e tudo por um prato de sementes de romã ser falto de pimenta? Ó
muçulmanos, não vos bastou os meus pés agrilhoados, mas haveis também
construído um boneco de madeira onde me ireis cravejar com pregos, e tudo
por um prato de sementes de romã ser falto de pimenta?» Badreddine, não
se podendo espantar mais com tudo aquilo, perguntou ainda: «Se de facto o
meu prato de sementes de romã estava assim tão falto de pimenta, que
poderei eu agora esperar?» E o vizir respondeu-lhe: «A crucificação!»
Badreddine disse: «Ai, Ai! Serei crucificado por um mero prato de
sementes de romã ser falto de pimenta?» Então bradou, chorou e disse:
«Ninguém foi assim tão esmagado como eu fui, nem tanto sofreu como eu
sofri. A torto e a direito levei pancada, a minha casa de pasto foi pilhada e
em ruínas desfeita, e agora irei ser crucificado por um prato de sementes de
romã ser falto de pimenta! Que Deus amaldiçoe este e todos os pratos de
semente de romã! ‘Quem me dera haver morrido antes disto.’71» E deitou a
chorar.
Quando trouxeram os pregos, Badreddine chorou e lamentou-se em
grande pranto por vir a ser crucificado. E em vindo o escuro da noite e o seu
breu, o vizir pegou em Badreddine e o botou na arca, fechando-a à chave, e
disse-lhe: «Espera até amanhã, pois ainda não será hoje que procederemos à
tua crucificação.» Então ele entrou na arca a chorar e a dizer de si para si:
«Não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e Grandioso! Ai, ai!
morrerei crucificado, mas afi-nal porque serei eu crucificado? Não matei
ninguém nem fiz nada de mal; não blasfemei nem reneguei Deus. Apenas
me disseram que cozinhei um prato de sementes de romã falto de pimenta.»
E isto foi o que se passou com Badreddine. Quanto ao vizir, esse botou a
arca que estava à sua frente em cima de um camelo, e entrou na cidade
depois dos mercados fecharem, e foi para sua casa, acompanhado do seu
séquito. Pela calada da noite, ajoelharam-se os camelos, e as bagagens e
haveres foram descarregados e levados para dentro de casa. O vizir não
esperou um momento e foi logo dizer à sua filha Sitt-al-Husne: «Ó filha,
louvado seja Deus que te reuniu com o teu primo e marido.» [E virando-se
para os criados disse:] «Agora mobilai a casa e ponde tudo como estava na
noite de núpcias há doze anos atrás.» E eles responderam: «Com certeza.»
Então o vizir ordenou que cuidassem das velas, e quando eles acenderam
as velas e as lanternas, trouxeram também a folha de papel na qual o vizir
havia escrito de maneira exacta como tudo estava disposto naquela noite. E
foi lendo-a enquanto arranjavam o quarto de guisa a ficar tal e qual estava
na noite de núpcias; e tudo foi posto no sítio devido: o turbante em cima da
cadeira tal como Badreddine o havia deixado naquela noite, as velas acesas
tal como estavam, e as calças e a bolsa com os mil dinares debaixo do
colchão tal como Badreddine havia deixado naquela noite.
Então o vizir veio até ao corredor e disse à filha: «Tira as tuas roupas e
põe-te tal como estavas na noite em que ele consumou casamento contigo e
vai para a cama. Quando ele vier, dizes-lhe, “Bem-amado senhor, demoraste
tanto tempo nos lavabos!” Depois deixa-o deitar-se ao teu lado e faz
conversa com ele até ser de manhã, e só então lhe revelaremos toda esta
história espantosa.»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
100.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa:

Ouvi dizer, ó miralmuminim, que o vizir saiu do quarto de Sitt-al-Husne


e foi desagrilhoar Badreddine, e despiu-lhe as roupas, deixando-o só em
camisa. Badreddine caminhou, e pouco a pouco acabou por chegar à porta
do quarto onde a noiva se havia desvelado para ele, e onde ele havia
dormido com ela e a desflorara. Ao olhar para o quarto, reconheceu-o, e
quando viu a cama, o mosquiteiro e a cadeira, ficou atónito e espantado.
Botou um pé dentro do quarto e deixou o outro de fora, e atarantado da
cabeça, esfregou os olhos e disse lá de si para si: «Glória a Deus Grandioso!
Estarei acordado ou a dormir?» Sitt-al-Husne ergueu o tule do mosquiteiro
e disse-lhe: «Ai, ó bem-amado senhor, então não entras? Demoraste tanto
tempo na casinha das necessidades! Volta para a tua cama.» Em ouvindo
aquelas palavras, Badreddine riu-se de espanto, e disse: «Ó meu Deus, é
verdade, fiquei muito tempo na casinha das necessidades!»
Ao entrar no quarto, Badreddine pôs-se a pensar no que lhe havia
sucedido durante aqueles doze anos, e ao ver aquele quarto não parava de
pensar nisso, atónito e confuso, sem poder acreditar no que lhe estava a
acontecer. Olhou para a cadeira, e em cima dela lá estavam o seu turbante, a
sua adaga e o seu traje; acercou-se da cama e com a sua mão apalpou e
encontrou debaixo do colchão as suas calças e a bolsa. Então riu-se e disse:
«Meu Deus, esta é mesmo boa!» E Sitt-al-Husne disse-lhe: «Eh! ó bem-
amado senhor, que tens para te rires assim sem razão, e para olhares tão
espantado e atónito para o quarto?» Ao ouvir as palavras dela, riu-se e
perguntou: «Quanto tempo estive ausente?» E ela respondeu: «Ah, que o
nome de Deus o Todo Misericordioso, o Mui Misericordioso, seja contigo!
Ah, terás tu perdido a cabeça? Então não foste fazer uma necessidade e
voltaste?»
Então riu-se e disse para ela: «Meu Deus, ó mulher, tens razão. Mas
quando saí de ao pé de ti, esqueci-me de mim mesmo nos lavabos e
adormeci. Sonhei que vivi em Damasco uns dez anos e trabalhava como
cozinheiro. Às tantas um miúdo e um eunuco vieram ter comigo», e ao
passar a mão pela testa sentiu a cicatriz, e disse: «Não, meu Deus, mas só
pode ter sido verdade, pois ele atingiu-me com um calhau e deixou-me a
testa aberta. Ó meu Deus, parece que aconteceu mesmo na realidade.»
Depois pensou e disse: «Não, meu Deus, ó mulher, parece que quando te
abracei e nós adormecemos, eu vi nos meus sonhos que havia ido a
Damasco sem calças nem solidéu, e que trabalhava como cozinheiro.»
Pondo-se de novo a pensar, disse: «Ai, meu Deus, ó mulher, parece que foi
como se houvesse visto nos meus sonhos que eu cozinhei um prato de
sementes de romã que tinha pouca pimenta. Ai, meu Deus, ó bem-amada
senhora, devo ter adormecido nos lavabos e vi tudo isto em sonhos, só que,
meu Deus, ó bem-amada senhora, foi um longo sonho.»
Então ela disse: «Por amor de Deus, ó bem-amado senhor, conta-me com
que mais sonhaste.» E Badreddine disse: «Ó bem-amada senhora, se eu não
houvesse acordado, ter-me-iam crucificado.» E ela perguntou: «Porquê?» E
ele respondeu: «Porque eu cozinhei um prato de sementes de romã falto de
pimenta. E sonhei que eles haviam feito a minha casa de pasto em cacos e
partido a minha loiça; ataram-me, agrilhoaram-me e puseram-me numa
arca. Depois trouxeram um carpinteiro para fazer um boneco de madeira
para nele me crucificarem, e isto tudo por um prato de sementes de romã ser
falto de pimenta. Mas graças a Deus que tudo isto aconteceu em sonhos e
não na realidade.» Sitt-al-Husne riu-se e abraçou-o, e ele por sua vez
abraçou-a. Mas relembrando-se de novo de tudo aquilo, disse: «Ó bem-
amada senhora, o que me sucedeu não pode ter acontecido senão na
realidade, mas não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e
Grandioso; meu Deus, que história tão estranha!»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história
tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
101.a NOITE

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa:

Badreddine passou aquela noite com a cabeça aturdida, e tanto dizia:


«Foi um sonho», como dizia: «Foi como se eu estivesse acordado.» Ora
dizia uma coisa ou outra, ora se punha a mirar o quarto, a mobília e a noiva,
e espantado com tudo aquilo, dizia: «Meu Deus, até agora nem sequer
terminou a minha primeira noite com ela.» Depois punha-se a pensar em
tudo o que se passara, e dizia: «Foi como se eu estivesse acordado.» E não
parou de matutar desta guisa até ser manhã e o seu tio entrar no quarto a
desejar os bons dias. Quando o viu, reconheceu-o e ficou atarantado da
cabeça, e disse: «Ai, ai, mas não estou eu diante daquele que ordenou que
me carregassem de pancada, me agrilhoassem e me crucificassem por mor
de um prato de sementes de romã falto de pimenta?» E o vizir respondeu-
lhe: «Ó filho, a verdade veio ao de cima e o invisível tornou-se visível. Tu
és o meu verdadeiro sobrinho, e se eu fiz o que fiz foi só para me assegurar
que fostes bem tu que consumaste casamento com a minha filha naquela
noite, pois só tu reconhecerias o teu turbante, as tuas roupas, a bolsa de oiro
e a folha de papel escrita pelo meu irmão e que estava cosida e escondida no
solidéu do teu turbante. E se aquele que aqui trouxemos não fosses tu, então
ele não reconheceria estes haveres.» E declamou uma poesia:
O destino é feito de incerteza,
Ora traz alegria, ora tristeza.

Depois o vizir chamou a mãe de Badreddine, e quando ela o viu, atirou-


se a ele, chorou desalmadamente, e declamou uma poesia:

No nosso reencontro, queixar-nos-emos.


Pois jamais soube algum mensageiro
Transmitir ao outro, de modo inteiro,
As tantas amarguras que já sofremos.

A carpideira se for alugada chorará,


Mas sem a dor de coração da sofrente.
E nenhum mensageiro jamais saberá
Dizer o que eu direi directamente.

Depois contou-lhe o quanto ela havia sofrido depois da sua partida, e ele
por sua vez contou-lhe o que havia sofrido, e os dois deram graças a Deus
pela sua reunião.
Ao outro dia, o vizir foi dar parte da situação ao rei, e este ficou
espantado até mais não, e ordenou que se registassem aqueles
acontecimentos por escrito nas crónicas. Daí em diante, o vizir, o seu
sobrinho Badreddine e a filha Sitt-al-Husne viveram a mais saborosa das
vidas em grande prosperidade e felicidade, comendo, bebendo e regalando-
se até chegar o momento de beberem o copo do fenecimento.

E isto, ó miralmuminim, foi o que aconteceu ao vizir de Baçorá e ao vizir


do Egipto.

O califa disse: «Meu Deus, ó Jáfar, que coisa mais espantosa!» E ordenou
que se registassem aqueles acontecimentos por escrito nas crónicas, e
libertou o escravo. Quanto ao jovem, ofertou-lhe uma das suas concubinas
favoritas, outorgou-lhe um ordenado que lhe permitisse viver, e tornou-se
seu amigo até que a morte os visitou e os separou.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se eu ainda for viva.»

__________________________
1 Por Orientalismo, entende-se a produção cultural que o Ocidente desenvolveu num contexto de
dominação colonial, reproduzindo uma visão imaginária do outro, neste caso do Oriental e do Árabe,
baseada em preconceitos e fantasias que serviam os interesses dessa dominação colonial, e cuja
crítica foi brilhantemente tecida por Edward Said, na sua obra mais conhecida, publicada em 1978,
Orientalism. Mais do que uma maneira de definir o outro, o Ocidente define-se a si mesmo através de
uma forma de pensar que imagina, exagera e distorce as diferenças entre ocidentais e orientais,
contrapondo a uma cultura das «Luzes» uma cultura oriental exótica, geralmente vista como atrasada,
incivilizada e déspota. Ao construir-se o Oriente como sendo diferente e inferior, justificou-se a
necessidade de uma intervenção ou missão de salvação por parte do Ocidente. Na obra citada, Said
considera que o Orientalismo é um estilo de pensamento que estabeleceu «a distinção entre Oriente e
Ocidente como ponto de partida para elaborar teorias, epopeias, romances, descrições sociais e
relatórios políticos a respeito do Oriente, a sua gente, costumes, “mentalidade”, destino, etc.» (SAID,
Edward W., Orientalismo — Representações ocidentais do Oriente, 2.a edição, Cotovia, Lisboa,
2004, pp. 3-4).
2 ABBOT, Nadia, «A Ninth-Century Fragment of the “Thousand Nights” New Light on the Early
History of the Arabian Nights», Journal of Near Eastern Studies, vol. 8, n.° 3 (Jul., 1949), pp. 129-
164.
3 «Aparentemente» porque o estado do manuscrito não permite uma leitura plena e segura.
4 KHOURY, Raif Georges, «L’apport de la papyrologie dans la transmission et codification des
premières versions des Mille et Une Nuits», em Edgard Weber (dir.), Les Mille et Une Nuits, contes
sans frontière, AMAM, Toulouse, 1994.
5 AL-MASʿŪDĪ, Abū al-Ḥasan ben ʿalī, Murūj adh-Dhahab wa Maʿādin al-Jawhar, al-Maktabah
al-ʿaṣrīyah, Ṣaydā/Bayrūt, 2011.
6 A edição desta obra aqui seguida menciona «Alf Laylah wa Laylah [As Mil e Uma Noites]».
Trata-se de uma variante seguida por várias edições contemporâneas da obra em questão, mas muito
possivelmente a adição de «e Uma» é um acrescento posterior, como será discutido mais à frente.
7 A questão dos nomes das personagens e diversas ortografias registadas nos manuscritos será
discutida mais à frente. O facto de Dinarzade ser apresentada como a escrava de Xerazade, e não
como a sua irmã, pode ter tanto a ver com alterações que o quadro principal da história sofreu, como
poderá resultar da possibilidade de Almaçudi não ter um conhecimento profundo do livro que
mencionava.
8 Trata-se de um ciclo de histórias com exemplos morais que não deve ser confundido com o mais
conhecido Sindbad, o Marinheiro.
9 AN-NADĪM, Abu al-Faraj Muḥammad ben Abī Yaʿqūb Isḥāq, Al-Fihrist, Dār al-Kutub al-
ʿilmīyah, Bayrūt, 2010.
10 CHRAÏBI, Aboubakr, Les Mille et une nuits — Histoire du texte et Classification des contes,
L’Harmattan, Paris, 2008.
11 Note-se ainda que a palavra árabe para nome, ism, é cognata do hebraico shem, sendo
conveniente mencionar que ambas as línguas pertencem à mesma família linguística, e não sendo,
por isso, surpreendente que ambas as palavras partilhem a mesma raiz (tal como, por exemplo, a
palavra portuguesa «nome» e a palavra francesa «nom»).
12 Falando os persas uma língua da família indo-europeia, aquando a sua islamização viram-se na
necessidade de aprender e ensinar uma língua da família semita completamente diferente da sua, o
árabe. Apesar de os persas terem recusado abdicar da sua língua e serem arabizados, deram uma
grande importância à compreensão e ao ensino da língua árabe.
13 Um mapa das várias línguas coloquiais árabes pode ser consultado em
https://en.wikipedia.org/wiki/Varieties_of_Arabic#/media/File:Arabic_Dialects.svg (acedido em
Junho de 2017).
14 As questões debatidas neste parêntesis merecem um aprofundamento muito maior que não se
justifica neste Preâmbulo. Ao leitor que queira compreender estas questões com mais detalhe e
exactidão, nomeadamente o que são as línguas árabes numa perspectiva histórica, linguística e
académica, aconselha-se a leitura de Kees VERSTEEGH, The Arabic Language, Columbia
University Press, Nova Iorque, 1997.
15 Esta história aparece no segundo volume desta edição.
16 SCOTT, James C., Domination and the Arts of Resistance — Hidden Transcripts, Yale
University Press, New Haven/London, 1990.
17 HORTA, Paulo Lemos, Marvellous Thieves — Secret Authors of the Arabian Nights, Harvard
University Press, Massachusetts, 2017.
18 LADENBURGER, Thomas, Al-Halqa — In The Storyteller’s Circle, Taskovski Films Ltd.,
Alemanha, 2010.
19 O manuscrito é integralmente acessível, em linha ou para descarregar em formato «pdf»,
através da seguinte hiperligação da Bibliothèque nationale de France:
http://archivesetmanuscrits.bnf.fr/ark:/12148/cc31493v (acedido em Dezembro de 2015).
20 MAHDI, Muhsin S. (ed.), The Thousand and One Nights (Alf Layla wa-Layla): From the
Earliest Known Sources. The Classic Edition (1984-1994), Brill, Leiden, 2014 (texto em árabe).
21 Em árabe havia o costume de fazer cada letra corresponder a um número.
22 Op. cit.
23 O manuscrito é integralmente acessível em linha, através da seguinte hiperligação do sítio Web
da referida biblioteca: http://enriqueta.man.ac.uk/luna/servlet/
detail/Manchester∼91∼1∼370881∼125203 (acedido em Dezembro de 2015).
24 Op. cit.
25 Op. cit.
26 MAHDI, Muhsin, The Thousand and One Nights, E.J. Brill, Leiden, 1995, pp. 132-134.
(Apesar do título, este livro não se deve confundir nem com uma tradução nem com a outra obra
citada de Mahdi).
27 MAHDI, op. cit. (2014).
28 Esta tradução ainda reconstitui uma 282.a noite, a partir de outros manuscritos. Mas a partir
daqui, como previamente mencionado, a conclusão da história de Camarezzamane será traduzida a
partir de outro manuscrito, com outra numeração de noites, que figurará em apêndice no segundo
volume.
29 MAHDI, op. cit. (1995).
30 Os detalhes dos encontros entre Lucas e Diab, e entre este e Galland, assim como o impacto
deste encontro na criação literárias d’As Mil e Uma Noites de Galland, são brilhantemente descritos
por Paulo Lemos Horta (op. cit.), através da documentação existente, incluindo os diários e/ou livros
de viagens de Galland, Lucas e Diab.
31 Trata-se de O Cavalo de Ébano.
32 Op. cit., pp. 79-87.
33 Horta (op. cit.) observa também que na história de Ali Babá contada por Diab esta personagem
chamava-se Hogia Babá. A mudança de nome para Ali Babá foi da responsabilidade de Galland.
34 Ibn KHALDŪN, ʿAbd ar-Raḥmān ibn Muḥammad, Muqaddimat ibn Khaldūn, Dār al-Arqam
ibn Abī al-Arqam, Bayrūt, 2001, III parte, capítulo 42 (Fī anna naqṣ al-ʿaṭāʾ min as-sulṭan naqṣ fī
al-jibāyah).
35 MAHDI, op. cit. (1995), p. 22.
36 MAHDI, op. cit. (1995), p. 87.
37 Alguns deles figuram a título de exemplo em Mahdi (1995), op. cit., no capítulo «Galland as
Translator».
38 Tradução portuguesa sobre a versão francesa de Antoine Galland por Martim Velho Sotto
Mayor, com o título As Mil e Uma Noites, Editorial Estampa, Lisboa, 1976.
39 Tradução portuguesa sobre a versão francesa de Antoine Galland (1976), op. cit.
40 Na ortografia francesa, respectivamente, Zobéide, Amine, Safie. Note-se, no entanto, que a
terminação em «e» em vez de «a» resulta mais da fidelidade a certas pronúncias coloquiais levantinas
e menos da ortografia francesa ou de alguma originalidade ou erro de Galland. Curiosamente a
atribuição destes nomes próprios às três moças tornou-se uma prática usada em vários manuscritos
forjados que foram aparecendo a partir do século XVIII, assim como na versão árabe impressa de
Bulaq, que serve de base a quase todas as versões correntes em árabe anunciadas como «originais e
completas».
41 Na realidade, o texto árabe usa nomes para designar estas funções e não frases. Assim, para a
«dona da casa» usa o título honorífico sitt, que talvez em português tenha equivalência ao «senhora
dona», ou ao «Dona» quando usado para uma rainha, como por exemplo, «rainha Dona Leonor»; aṣ-
ṣabīyah al-bawwābah, que literalmente significa «a moça porteira», mas que por várias razões de
ordem diegética preferiu-se não usar; e, por último, a expressão coloquial aṣ-ṣabīyah al-ḥūshkāshah
que designa a moça que vai às compras.
42 MAHDI, op. cit. (1995), p. 37.
43 Uma análise crítica bem detalhada e de grande qualidade, não só sobre a tradução de Burton,
como de outras da mesma época, algumas plagiadas pelo próprio Burton, e os modos em que estas
foram produzidas, é feita na já citada obra de Paulo Lemos Horta.
44 Op. cit.
45 Na Índia, e no actual Paquistão e Bangladexe, não se fala árabe, mas em algumas regiões onde
predominam comunidades muçulmanas, a língua árabe era (e continua a ser) usada como uma língua
de cultura ligada sobretudo ao estudo da religião islâmica. Não sendo de forma alguma uma língua de
disseminação popular, era, no entanto, usada pelas elites religiosas. Os britânicos, apesar de na Índia
não se falar o árabe como língua nativa, chegaram a usá-lo como língua oficial durante pouco tempo,
juntamente com o persa. Note-se, porém, que o ensino de língua ministrado a oficiais britânicos não
englobava só o árabe e o persa, mas também diversas línguas nativas do continente indiano, assim
como eram ensinados os códigos legais existentes, nomeadamente o islâmico e o hindu.
46 Por esta razão, esta versão geralmente é conhecida por manuscrito de Bagdade, e durante longo
tempo julgou-se ser autêntica.
47 Ibn BAṬṬūṬAH, Abū ʿAbdallāh Muḥammad ibn ʿAbdallāh al-Lawātī aṭ-Ṭanjī, Riḥlat ibn
Baṭṭūṭah al-musammāh Tuḥfat an-naẓẓār fī gharāʾib al-amṣār (sharaḥahu wa kataba
hawāmishahu Ṭalāl Ḥarb), Dār al-Kutub al-ʿilmīyah, Bayrūt, s. d.
48 Sobre o sentido dado à palavra azóia ao longo da presente tradução, ver nota 41, p. 227 (1.°
Vol.).
49 Cidade persa localizada entre Hamadan e Ray. Note-se que o nome do xeque, Assaui (as-Sāwī),
significa originário de Saveh (em árabe: Sāwah), levando a crer que o episódio narrado terá ocorrido
nessa cidade, de onde, provavelmente, o xeque seria natural ou na qual terá vivido antes de chegar a
Damieta.
50 Ibn KHALDŪN, op. cit.
51 Op. cit., final da III parte.
52 MARDRUS, J. C., Le livre des mille nuits et une nuit (Tome premier), Paris, Éditions de la
revue blanche, 1900.
53 Por exemplo, o título do monarca do Omã é sultão e não rei. Em Marrocos, até à sua
independência, o monarca também usava o título de sultão e não de rei.
54 Uma palavra derivada da mesma raiz (sulṭah) continua a ser usada com o sentido de
«autoridade»; por exemplo, «as-Sulṭah al-Filistīnīyah» significa «Autoridade Palestiniana».
55 No texto árabe: qāmū at-tlāt bnāt lahum não deixa margem de dúvidas que o verbo qāma é
usado com o sentido de levantar-se e não como verbo que marca o início de uma acção.
56 A respectiva tabela e regras para transliteração do árabe podem ser consultadas em
https://www.loc.gov/catdir/cpso/romanization/arabic.pdf (acedido em Junho de 2017).
57 Apesar do objectivo de um sistema de transliteração ser transliterar os caracteres como se
escrevem, independentemente da pronúncia, decidiu-se incorporar duas excepções para efeitos de
aproximação à pronúncia e uma respeitante a questões de maiúscula e minúsculas. Assim, a primeira
diz respeito às chamadas letras solares do alfabeto árabe; quando uma palavra árabe começa por uma
destas letras (t, th, d, dh, r, z, s, sh, ṣ, ḍ, ṭ, ẓ, l, n) e é antecedida pelo artigo definido al (que é neutro
relativamente a género e número), a letra l do artigo transforma-se, na pronúncia, mas não na escrita,
nessa mesma letra. Assim, ao contrário do estabelecido pela norma ALA-LC, grafou-se, por
exemplo, az-zayt em vez de al-zayt («o óleo», que em português deu «azeite»), az-zabīb em vez de
al-zabīb («a passa de uva», que em português deu «acepipe»), entre outros casos.
A segunda excepção diz respeito à letra n que, quando antecede a letra b, se pronúncia m, como
por exemplo como na palavra ʿambar, que segundo a norma ALA-LC se deveria grafar ʿanbar.
A terceira excepção prende-se com o hábito de se usar maiúsculas em nomes próprios a seguir à
letra ʿ (ʿayn), como por exemplo, em ʿAjīb. No entanto, como esta letra é para todos os efeitos uma
consoante, não faz sentido pôr a vogal que lhe sucede como maiúscula e, assim, por exemplo, grafou-
se ʿajīb em vez de ʿAjīb. Note-se que a norma ALA-LC não dispõe de nenhuma alternativa para
representar uma versão maiúscula desta letra, e que em árabe não existem maiúsculas e minúsculas.
58 A título de exemplo, pense-se no canal de televisão árabe chamado Aljazira (al-Jazīrah), que se
traduz por «A Península» (V. http://america.aljazeera.com/tools/ faq.html#3, acedido em 1/7/2017),
designando mais concretamente a península Arábica (E note-se ainda que o país onde este canal está
sediado, o Catar, é, ele mesmo, uma península). Hoje em dia, por vezes também se usa a expressão
shibh jazīrah, que literalmente significa «pseudo-ilha», para designar uma península.
59 Uma das excepções é a versão de Mardrus.
60 Ibn BAṬṬŪṬAH, op. cit.
61 Note-se ainda que, neste manuscrito, é Xariar, e não Xazamane, quem governa Samarcanda.
62 Note-se que logo no início d’As Mil e Uma Noites é dito que a acção do quadro principal com
as personagens Xerazade, Dinarzade, Xariar e Xazamane, se passa «durante a época dos Sassânidas»,
que foram a última dinastia a governar a Pérsia, de 224 até 651, antes do advento do Islão. Mas várias
histórias narradas por Xerazade referem muçulmanos, práticas rituais destes, e personagens históricos
bem posteriores aos Sassânidas, como o califa Harune Arraxide (reinou entre 786-809).
63 Tanto o português Aarão como o árabe Hārūn provêm do hebraico Aharon.
64 Uma grafia alternativa e corrente em outros manuscritos e versões para este nome é Duniazade
(Dunyāzād), que significa «a emancipada do mundo».
65 Entre outras possibilidades, também se poderia dissecar esta história e a presença dos negros ao
longo do texto pelo prisma de problemáticas raciais. Note-se também que as versões manuscritas
mais tardias, assim como as forjadas e as primeiras edições impressas, não esquecendo ainda algumas
«originalidades» introduzidas por vários tradutores, pautam-se por um racismo mais explícito e
evidente do que o dos manuscritos mais antigos. É provável que a exacerbação do racismo na
evolução histórica do texto d’As Noites se deva não só ao Orientalismo, mas também a um maior
distanciamento social entre escravos negros e árabes livres de baixa condição social que, segundo
algumas interpretações históricas, terão participado juntos na conhecida Rebelião dos Zanj em finais
do século ix contra o Califado Abássida. No entanto, a evolução histórica das relações raciais no
mundo árabe exige um estudo muito complexo e detalhado que está muito além do alcance deste
Preâmbulo.
66 Apesar das várias críticas tecidas ao longo deste Preâmbulo, é de notar que os estragos culturais
do Orientalismo em relação aos textos d’As Mil e Uma Noites são irrelevantes quando comparados
com os estragos políticos em territórios nelas descritos, bastando pensar, por exemplo, nas invasões
napoleónicas, ou no Acordo Sykes-Picot, ou na actual guerra que assola a Síria e arrasou várias das
cidades que aparecem nestas histórias, ceifando a vida dos seus habitantes e obrigando ao
deslocamento em massa de pessoas. Não sendo os únicos responsáveis, o contributo de várias
potências mundiais, que continuam a olhar «de cima» o mundo árabe, para o arrastamento da actual
situação parece difícil de descartar.
1 Thamud e Aad foram duas tribos árabes pré-islâmicas que pereceram devido a desastres naturais.
No Alcorão são referenciadas como um exemplo do castigo de Deus reservado aos povos que se
recusam a acreditar na unicidade divina, depois de Deus lhes ter enviado sinais e profetas.
2 Nenhum faraó é especificado, mas talvez haja um certo eco daquele que é referido várias vezes
no Alcorão e na Bíblia como sendo o faraó que perseguiu o povo de Israel no tempo de Moisés.
3 Vizir, wazīr em árabe, significa «ministro». Neste caso concreto, trata-se do vizir do rei (ou grão-
vizir), o cargo mais importante a seguir ao rei.
4 Saadeddine Massude são dois nomes próprios usuais em árabe, aqui usados de forma conjunta; o
primeiro pode ser traduzido por «Fortuna-da-Religião» e o segundo por «Afortunado.»
5 Tal como os génios, os ifrites são demónios que podem ser bons, ao serviço de Deus, ou
malignos, ao serviço de Satã, como também podem ser masculinos ou femininos. Neste último caso,
chamam-se ifritas. Em relação aos génios, caracterizam-se por serem mais fortes.
6 Paráfrase do Alcorão (12:28), reproduzindo uma fala de Potifar no contexto da história aí
relatada de José, Potifar e sua mulher Zuleikha.
7 Também conhecida por Festa do Sacrifício, é uma das festividades mais importantes do
calendário islâmico, e é celebrada em memória da disposição do profeta Ibrāhīm (Abraão) em
sacrificar um dos seus filhos conforme a vontade de Deus.
8 Moedas de ouro puro. Na época provavelmente seguir-se-ia o peso padrão de 4,25 g de ouro por
moeda, estabelecido durante o califado omíada. Hoje em dia esta denominação continua a ser
utilizada como nome da moeda nacional de vários países, tais como a Tunísia ou o Iraque. É uma
palavra cujo parentesco grego é partilhado com a palavra portuguesa «dinheiro».
9 Os manuscritos mais antigos não contêm a história do terceiro ancião, pelo facto de esta nunca
ter feito parte do conjunto original. No entanto, isso parece ter deixado os ouvintes e leitores d’As Mil
e Uma Noites insatisfeitos, e a partir de dada altura começou a aparecer nos manuscritos do ramo
egípcio a história do terceiro ancião. Uma vez que não se trata de uma lacuna do manuscrito aqui
seguido, esta história de formulação posterior não é aqui incluída, mas será publicada em apêndice no
segundo volume desta tradução.
10 Medida de volume de cereais cujo valor unitário sempre variou conforme a região e a época,
muito possivelmente entre um mínimo de 90 e um máximo de 280 litros. Ainda hoje esta unidade é
utilizada no Egipto, onde o seu valor unitário está estabelecido em cerca de 198 litros. Dois irdabbes
seriam provavelmente qualquer coisa entre 180 e 560 litros.
11 Em várias tradições mitológicas, Sakhr teria sido um ifrite que se recusou a obedecer ao rei
Salomão.
12 [Sic] Esta contradição é também reproduzida em outro manuscrito posterior da tradição síria.
No entanto, a maioria das outras versões manuscritas harmonizaram para mil e oitocentos anos, o
mesmo número que aparece na noite anterior, ou para um outro número ligeiramente superior. Porém,
a análise comparativa sugere a probabilidade de a hipotética versão matriz, que não sobreviveu até
aos dias de hoje, também enunciar na noite anterior oitocentos anos, e que a adição de mil anos tenha
sido inicialmente correcção de alguém com outros conhecimentos de cronologia, visto que o reino de
Salomão não poderia ter existido oitocentos anos antes. Note-se ainda que a soma total dos anos que
o ifrite enumera é setecentos, aos quais acrescem «mais todos estes anos», apesar de esta última
expressão não permitir qualquer quantificação precisa.
13 Zumane, caso não seja um nome fictício, estaria localizada possivelmente na Arménia ou no
Curdistão. O geógrafo Yaqut al-Hamawi, no seu «Dicionário de países e lugares» (c. 1224-28),
menciona que Zum seria uma região arménia próxima da cidade de Mossul. O mesmo geógrafo
refere-se ainda aos Zumane como uma facção de curdos que governava uma província. Note-se ainda
que Yaqut menciona a possibilidade de haver outro local com o mesmo nome no Hijaz, na península
Arábica. A esmagadora maioria das versões posteriores utiliza antes o nome «Rumane», que
literalmente significa «romanos», mas que neste contexto tanto pode designar o Império Bizantino
como a região islamizada da Anatólia turca (algumas versões grafam «Rummane», que significa
«romãzeira», mas trata-se provavelmente de uma gralha). Essa alteração posterior para «Rumane» é
possivelmente uma tentativa de fazer sentido com os nomes, visto que «al-Yunane» (note-se a
aposição do artigo definitivo árabe «al-») significa «Grécia», havendo aliás alguns tradutores que
preferiram traduzir rei Yunane por «rei grego» ou por «rei dos gregos que habitavam numa cidade
persa».
Tendo em conta que o manuscrito que seguimos, que é o mais antigo, é o único a usar «Zumane»,
seria então «Zumane» a forma original e mais antiga, ou seria antes uma singularidade do
manuscrito, quiçá um erro, que diferenciaria esta das outras versões correntes da época e que não
chegaram até nós?
Mais importante que o rigor geográfico, que não é de forma alguma uma característica d’As Mil e
Uma Noites, é o facto de os três nomes, Yunane, Zumane (ou Rumane) e Dubane, rimarem.
14 Do árabe mamlŪk, com o sentido literal de «posse, pertença», também traduzível por
«escravo». Os mamelucos eram uma força militar, composta originalmente por escravos originários
sobretudo do Cáucaso e da Anatólia. Os mamelucos ascenderam ao poder e tornaram-se os
governantes do chamado Império Mameluco com sede no Egipto entre meados do século XIII até
inícios do século XVI, e governaram ainda o Iraque entre os séculos xviii e xix.
15 A ghula é um ser demoníaco que se alimenta de carne humana. Do árabe ghŪlah, feminino de
ghŪl.
16 Alcorão 66:8.
17 Do árabe kuḥl, trata-se de um cosmético muito usado desde tempos imemoriais, sobretudo na
Ásia e em África, que serve sobretudo para delinear de cor negra as pestanas, sendo-lhe também
atribuídas propriedades medicinais.
18 O dirame era uma pequena moeda de prata que correspondia ao valor de uma fracção do dinar,
e o seu peso na época seria 2,97 g. Ainda hoje é a denominação da moeda oficial em Marrocos e nos
Emirados Árabes Unidos. É uma palavra que provém do dracma grego.
19 Ver nota 1, pág. 63.
20 Numa primeira leitura do texto árabe lê-se literalmente «toalhas de mesa em coiro mequense».
No entanto, a palavra no original que significa «mequense» ou «de Meca» (makkīyah) é,
provavelmente, erro de copista, reproduzido também no manuscrito da Biblioteca Apostólica
Vaticana, pois Meca não era nem é conhecida pelas suas toalhas de mesa em coiro, e haveria muitos
outros adjectivos que o narrador facilmente poderia ter escolhido para enaltecer a qualidade ou
proveniência das mesmas. A intenção do narrador talvez fosse mukabbabah, que em árabe facilmente
se confunde com makkīyah, e que significa «enrolada», e portanto a leitura seria «toalhas de mesa em
coiro enroladas». Mas muito mais provavelmente seria mikabbah, que designa um tipo de cone de
palha usado para proteger a comida, e então teríamos além das toalhas em coiro os referidos cones.
21 Trata-se da flor denominada anémona, mais concretamente da espécie Anemone coronaria, cujo
centro da flor, onde se localiza o gineceu, é quase negro.
22 Do árabe mawāliyā, é um género poético que consiste em poemas muito curtos, em árabe
padrão ou coloquial, e que apareceu inicialmente no Iraque no começo da época abássida.
Reza a lenda que eram cantados pelos escravos durante as suas viagens e durante o trabalho, e que
assim foram chamados porque no final de cada poema exclamavam: «Yā mawāliyā», expressão
traduzível por «Ó patrões meus». Outra lenda afirma ter sido uma escrava dos barmecidas (v. nota
54, pág. 297) de seu nome Mawāliyā que os inventou, e daí o nome. Ambas as lendas carecem de
fundamento histórico, e, como sugere Pierre Cachia no artigo da Encyclopédie de l’Islam (nouvelle
édition) referente a este género, possivelmente foram explicações construídas posteriormente para
explicar um nome cuja origem era desconhecida.
Mais tarde, a mawāliyā evoluiu para um género de poesia popular em árabe coloquial, e depois
para um género de música popular, em que os poemas eram cantados, geralmente a solo, e
acompanhados com instrumentos como a flauta de cana e o rebabe.
23 Nome árabe que se pode traduzir por «louvado» ou «louvável».
24 Nome árabe que significa «Afortunada».
25 As raquetas em questão seriam placas largas de madeira, sem rede, com uma pega, e com as
quais se batia numa bola. Este jogo de raquetas era usual na Pérsia, tal como o pólo, que já apareceu
anteriormente na história do rei Yunane de Zumane e do sábio Dubane, no entanto as suas regras
exactas não são muito conhecidas.
26 Montanha lendária que seria o ponto mais distante da Terra, muito para além do mundo
habitado.
27 Mago (majŪs, no texto árabe): palavra usada na época para designar os zoroastrianos.
Nazareno: palavra usada na época para designar os cristãos.
28 Uqīyah, no texto árabe, é uma unidade de peso, ainda hoje usada em alguns locais, que
corresponde a um duodécimo do arrátel árabe, e portanto equivalente
29 Muito possivelmente um poeta fictício, mas talvez a intenção do contador fosse fazer referência
a Abu Tammame, o famoso poeta do século ix.
30 Literalmente no texto árabe «muwashshaḤāt wa balālīq». A muwashshaḤah é um género
poético que partilha algumas semelhanças com as canções de amor e de amigo, com origens no
Levante e que esteve muito em voga na península Ibérica durante a época islâmica, com
características e especificidades próprias que podem ser consultadas na literatura especializada. As
balālīq são um género mais popular e basicamente equivalem às cantigas de escárnio e maldizer.
31 Literalmente no texto lê-se «o caravançarai do Pai-de-Macerur» (Khān AbŪ MasrŪr). Macerur
é um nome próprio corrente que em árabe significa contente, alegre, gaio. Em árabe, o prefixo «Pai-
de» também serve para formar uma alcunha (kunyah) que designa alguém em quem abundam as
características do significado do nome aposto, neste caso Macerur, e portanto não deve ser lido, neste
contexto, literalmente como Pai-de-Macerur.
32 Na realidade o texto original não utiliza dervixe (darwīsh em árabe, do persa darvīsh) mas sim
qarandalī, corruptela coloquial de qalandarī (plural em árabe: qalandarīyah). Os qalandaris são uma
ordem não organizada de dervixes sufis que fazem voto de pobreza e vivem como mendicantes,
partilhando determinadas concepções místicas específicas, e, conforme se refere no Preâmbulo da
presente tradução, eram conhecidos naquela época por raparem a cabeça, a barba e as sobrancelhas,
prática esta que não sobreviveu até aos dias de hoje. Terão surgido possivelmente no século xii, tendo
existido desde o al-Andaluz até ao Sul da Ásia. Hoje em dia são desconhecidos no mundo árabe,
mantendo-se activos sobretudo entre os muçulmanos do Sul da Ásia e da Ásia Central (sendo que
estes sufis normalmente adoptam o nome Qalandar como título aposto ao nome próprio). Optou-se
por usar «dervixe», não só porque a palavra já existe em português, mas também porque, no fundo,
qarandalī é usado no sentido lato de dervixe ao longo do texto, que refere explicitamente que estas
três personagens em concreto tinham a cabeça, a barba e as sobrancelhas rapadas (nada no texto
sugere que isso fosse uma característica conhecida dos qalandaris da época, e só pelo cruzamento de
outras fontes da mesma época, referidas no Preâmbulo, é que se infere tal juízo).
33 Faquir, do árabe faqīr, com o sentido literal de «pobre», designa o indivíduo asceta que, ou
sendo pobre de condição ou tendo abdicado das suas riquezas materiais, se dedica à vida religiosa,
vivendo de esmolas e da caridade. No fundo, esta palavra é praticamente sinónima de «dervixe»
(palavra de origem persa, tendo também nesta língua o sentido literal de «pobre»). Note-se ainda que
ao longo do texto esta palavra é traduzida por «faquir» unicamente quando empregue explicitamente
no sentido de asceta. Nas restantes ocorrências é traduzida por «pobre».
34 Trata-te do famoso carrasco ao serviço do califa Harune Arraxide.
35 Como em língua árabe não é costume anotarem-se as vogais curtas, a palavra maqām (local,
sítio) pode ser lida muqām (banquete, serviço de mesa de um festim). Nesta última acepção, teríamos
«um banquete tão bem composto e apetrechado» em vez de «num sítio tão elegante e tão bem
decorado».
36 Em todos os manuscritos, com excepção deste que seguimos e o da Biblioteca Apostólica
Vaticana, que são os mais antigos que se conhecem (sem contar com pequenos fragmentos), surge um
pequeno acrescento nesta parte, e que pode ser resumido assim: Uma das moças ofereceu um copo de
vinho ao califa, mas quando Jáfar explicou que o califa já havia feito sete vezes a peregrinação a
Meca, a moça desculpou-se e trouxe-lhe antes uma bebida aromática sem álcool.
37 Trata-se de um género de quadras populares surgido em Bagdade, que inicialmente consistia em
contos rimados que começavam pela expressão «Era uma vez» (Kān wā kān, literalmente «Havia e
havia»), tendo posteriormente incorporado também, como neste caso, canções amorosas, onde a
mencionada expressão já não aparecia.
38 A «Xâtibiya» (ash-Shāṭibīyah) é o nome pelo qual é conhecido um poema cujo título mais
formal é traduzível por «O santuário da aspiração às sete leituras e o começo da congratulação no seu
domínio». Nele se explica, ao longo dos seus 1173 versos, a forma correcta de recitar o Alcorão em
sete das dez leituras tradicionalmente reconhecidas. Por «leitura» entende-se uma forma distinta de
recitar, pontuar e vocalizar o texto árabe do Alcorão. Ainda hoje este poema continua a ser uma obra
de referência no estudo das leituras do Alcorão. Devido ao nome do seu autor, Abu Muhammad al-
Cácime ben-Firruh ax-Xâtibi (1143-1194), ficou conhecido por Xâtibiya. Por sua vez, Xâtibi é um
epíteto toponímico relativo à cidade de Xàtiva, localizada na província de Valência, actual Espanha,
onde o autor da referida obra nasceu.
39 Nome fictício e exótico, possivelmente construído para ter alguma sonoridade grega.
40 Em versões egípcias d’As Mil e Uma Noites, este ifrite chama-se Jirjis, descendente da tia
maternal do Diabo.
41 Do árabe az-zāwyah e podendo ser traduzido por azóia, o termo designa, neste contexto, uma
instituição de caridade com fins religiosos fundada por alguém (normalmente um mestre sufi) que
disponibiliza uma parte ou a totalidade da sua riqueza para que pessoas pobres nela possam aprender
o Alcorão e instruir-se nos ensinamentos islâmicos, sendo-lhes ainda dada guarida e comida. Pode
também ser entendida como o espaço físico onde o mestre sufi reúne os seus discípulos para os
instruir numa determinada prática religiosa e, após a sua morte, o lugar onde está a sua tumba. Na
actualidade, e sobretudo no Magrebe, muitas azóias são locais de visitação para pessoas que
acreditam nos poderes miraculosos do mestre sufi, mesmo após a sua morte. O padroeiro fundador de
uma azóia é referido, em árabe, pelo nome de walī, e os seus discípulos, na época eram chamados
faquires (ver nota 33, pág. 186). Note-se ainda que as azóias também serviam como estalagens para
viajantes e eram visitadas por pessoas ilustres e de todas as classes sociais.
42 Xeque (do árabe shaykh, com o significado literal de «ancião») é um título de respeito usado
em situações diversas, por razões que podem ser religiosas, sociais, políticas, ou pela idade da
pessoa. Neste caso concreto é usado em referência ao vizinho invejado, em razão da sua devoção
religiosa..
43 Trata-se de mil pesos de ouro. Um peso de ouro equivale a um dinar de ouro. Ver nota 8, pág.
97.
44 Ver nota 14, pág. 118.
45 Nome árabe traduzível por «Dama da Beleza» ou «Dona Beleza».
46 A tradução corrige o que aparenta ser uma contradição com o que já foi dito, pois no texto
original lê-se literalmente: «Deste jovem, que é filho do rei Ephetimarus, monarca da Ilha dos
Ébanos, e que foi encantado pelo ifrite filho da filha do Diabo, que o encantou em macaco depois de
haver morto a sua própria mulher, filha do rei».
47 Alcorão 19:17.
48 Ajibe, do árabe ʿajīb, significa «espantoso, maravilhoso, fabuloso». É um nome fictício,
invulgar, por ser raramente atribuído a pessoas reais. Como adjectivo é dos mais usados ao longo
d’As Mil e Uma Noites e da literatura fantástica árabe de tradição popular, sendo este mesmo
adjectivo usado para designar este género de «histórias espantosas» ou «maravilhosas» (ḥikāyāt
ʿajībah). Note-se ainda que a forma plural (ʿajāʾib) aparece numa das variantes mais longas com que
por vezes se designam As Mil e Uma Noites: ʿajāʾib wa gharāʾib ḥikayāt alf laylah wa laylah,
traduzível por As Espantosas e Estranhas Histórias d’As Mil e Uma Noites. O radical que forma este
nome é também usado no verbo «espantar-se», assaz usado ao longo deste texto.
49 Conhecida no Magrebe por smən, no Egipto por smana e em árabe-padrão por samn, é muito
semelhante à manteiga de garrafa usada no Nordeste brasileiro e ao gheen da Índia.
50 Alcorão 8:42 e 8:44.
51 Esta frase é aqui intercalada a partir de um manuscrito posterior e não consta no manuscrito
principal aqui seguido. Os manuscritos mais antigos não mencionam explicitamente a partida do
barco. Um manuscrito tardio do século XVIII (Ms. 207 da Christ Church Library), de onde se
intercalou esta frase, menciona ainda que antes do barco zarpar, o pai do rapaz acidentalmente
assassinado por Ajibe, filho de Khacibe, declama um longo poema de despedida, e em seguida «deu
um tal suspiro que a alma se lhe separou do corpo». Após grande pranto por parte dos escravos, o
barco parte, e Ajibe filho de Khacibe, sozinho na ilha, declama também um curto poema de
despedida. Pelo interesse que este trecho juntamente com os poemas possa suscitar, resolveu-se
traduzi-lo e publicá-lo no apêndice do segundo volume desta tradução.
52 Ver nota 27, pág. 160.
53 Alcorão 25:53. As duas massas de água são a água salgada e a água doce, que compõem a
hidrosfera terrestre.
54 Trata-se de Jáfar, o já referido vizir de Harune Arraxide. Os barmecidas foram uma família de
nobres persas de grande influência política durante o reinado dos califas abássidas, e à qual Jáfar
pertencia.
55 Interpretação de burak, plural de burkah, que literalmente significa «moagem» ou «salário do
moleiro», cuja paga geralmente equivale a uma parte do produto moído. No entanto, a mesma palavra
também se pode ler como bark, que significa «um grupo de camelos», geralmente ajoelhados, mas
esta interpretação seria demasiado forçada tendo em conta o vocabulário usado ao longo do texto
árabe, o facto de esta palavra ser usada em contextos muito específicos, geralmente na gíria e na
poesia dos poetas beduínos, e outras razões demasiado exaustivas para aqui serem analisadas. Note-
se ainda que talvez pela dificuldade em interpretar esta palavra, várias versões árabes manuscritas
posteriores substituíram-na por outras variantes de acepção mais óbvia, tais como por exemplo:
«roupas e criados»; «roupas e presentes (nomeadamente na forma de grandes quantias de dinheiro
e/ou de criados e/ou de equipagem doméstica)»; «cavalgaduras (nomeadamente camelos, mas
também qualquer animal que possa ser montado, tal como o cavalo, a mula ou o burro)», etc.
56 Ver nota 54, pág. 297.
57 Ver nota 50, pág. 259.
58 Nomes próprios árabes. Nureddine significa «A Luz da Religião». Ali significa «Alto, Elevado,
Excelente». Badreddine significa «A Lua Cheia da Religião». Haçane significa «O Belo» (ou «O
Bom»), havendo vários trocadilhos ao longo do texto entre o seu nome, Haçane, e o facto de ser belo.
59 Xamseddine significa «O Sol da Religião.» Muhammad significa «louvado, louvável», e, como
se sabe, é também o nome do profeta mais importante do Islão, seguido, em termos de importância,
por Jesus, Abraão e Moisés, entre outros da tradição abraâmica.
60 Este último verso é uma paráfrase da proclamação «Testemunho que não há nenhuma divindade
senão Ele [o Deus Único]», em que a palavra «divindade» foi substituída pela palavra «belo».
61 Huri, em árabe al-ḥŪr al-ʿīn (forma plural), literalmente «de olhos negros e belos», é a
expressão usada no Alcorão para designar as criaturas eternamente jovens e belas do Paraíso que
conviverão com os mortais que alcançarem a eterna recompensa, sendo muitas vezes erradamente
traduzida por «as virgens do Paraíso».
Apesar de esta expressão poder se aplicada, na sua forma plural, no masculino e no feminino, a
interpretação feita pelos vários comentaristas do Alcorão anteriores à redação d’As Mil e Uma Noites,
baseando-se na tradição dos ditos do profeta do Islão (Muhammad), considera que essas criaturas
seriam mulheres, tendo-se, no entanto, discutido, entre alguns comentaristas, se seriam criadas
integralmente no Paraíso ou se corresponderiam à forma que as mulheres da Terra ganhariam ao
alcançar o Paraíso e, neste último caso, todas se tornariam jovens e belas, mesmo que tivessem sido
consideradas velhas e feias na Terra. O que este passo tem de singular é o facto de aparentar estar em
jogo uma concepção de huris que não parece corresponder de forma alguma à das autoridades
religiosas da época, nomeadamente em questões de género, sendo tentador ver neste passo um indício
de que o Islão prático, como hoje ainda acontece, tinha concepções assaz divergentes das correntes
oficialmente estabelecidas.
62 Ver nota 45.
63 Depreende-se que o solidéu estaria agarrado ao turbante, mas é uma contradição óbvia com o
que já foi dito antes, nomeadamente que, tal como descrito na 83.a noite, Badreddine havia sido
levado de regresso para Damasco pelos ifrites, nu da cintura para baixo, tendo na cabeça o solidéu.
Mesmo que fosse uma gralha e que neste passo se devesse ler «turbante» em vez de «solidéu»,
continuaria em contradição com o que foi dito na 74.a noite, nomeadamente que Badreddine havia
cosido o tal rolinho de papel no solidéu, para nunca se separar dele, tal como o pai lhe havia pedido.
64 Ver nota 17, pág. 133.
65 Sobre o significado do nome, ver nota 48, pág. 249.
66 Trocadilho com o significado do nome Ajibe (ver nota 48, pág. 249).
67 Ver nota 66, pág. 362.
68 Ao longo do texto, a expressão walad az-zinā, literalmente «filho da fornicação» (fornicação no
sentido clássico do termo, isto é, relações fora do casamento), é sempre traduzida pelo seu
equivalente em português: «bastardo». No contexto e na época em que este livro foi produzido, o
termo «bastardo» era dos piores insultos, correspondendo a uma das mais baixas categorias sociais,
tal como acontecia também em todo o espaço mediterrânico, incluindo Portugal. No entanto, quando
nesta passagem é dito que Ajibe achou que Badreddine fosse um «bastardo», a palavra tem antes o
sentido de «depravado», seja de um ponto de vista social, moral ou sexual, não sendo por acaso que
anteriormente o eunuco o interpela «usando o mesmo jeito com que se dirigiria a um efeminado».
Note-se também que o facto de antigamente os bastardos serem marginalizados contribuía para que
se socorressem de actividades consideradas desviantes. Optou-se por «bastardo depravado» em vez
de apenas «depravado» – palavra que bastaria para traduzir o sentido desta passagem – de forma a
preservar também a ironia inerente ao facto de Ajibe ter sido ostracizado e expulso da escola por ser
considerado bastardo.
69 Leila refere-se aqui à mítica personagem da lenda árabe que relata o amor entre Majnune e
Leila. Majnune significa «louco, possuído» e a lenda é conhecida em árabe por MajnŪn Laylā, isto é,
«Louco por Leila», e terá começado a circular oralmente talvez a partir dos séculos viii-ix, e
consolidando-se na escrita a partir do século X, tanto por autores árabes como persas, e mais tarde
turcos, indianos e outros. Reza a lenda, numa das suas várias versões, que Majnune e Leila desde
tenra idade se apaixonaram, mas que ao crescerem foram impedidos pelas duas famílias de se
casarem. Entretanto, para evitar escândalos, a família de Leila casa-a com um homem muito rico, que
a levou consigo para longe. Majnune refugia-se no deserto, onde passa o tempo num estado de
loucura total, excepto quando fica lúcido para escrever poemas a Leila. Por sua vez, Leila vem a
morrer de desgosto não muito tempo depois de se casar.
A lenda tem muitas parecenças com a história de Romeu e Julieta, e a persona-gem de Majnune é
miticamente associada a diversos personagens semi-históricos, sendo o mais conhecido o poeta árabe
Qays al-Mulawwaḥ, que teria vivido na segunda metade do século VII, mas que vários historiadores
consideram ser uma personagem mítica, e que o cancioneiro reunido em seu nome é uma invenção
posterior. O cognome deste poeta é aliás MajnŪn Laylā, havendo ele escrito vários poemas dedicados
a uma mulher chamada Leila. A ele atribui a tradição popular a autoria do poema aqui incluso.
70 Apesar de eventualmente não ser muito explícito, a bebida em questão é sorvete, palavra que
traça a sua genealogia na língua árabe (sharbah, por via do persa sharbat, por via do turco şerbet, por
via do italiano sorbetto). Trata-se de uma bebida meio sólida, feita com gelo picado, sem produtos
lácteos ou ovos, ao qual se adicionam aromas, xarope açucarado e/ou puré de frutas. A palavra
oximel, uqsimā no texto árabe, é de origem grega, e designa aqui um xarope agridoce (pelo menos é
esse o sentido em grego), ou só doce, feito com mel e vinagre (ou outro ácido).
71 Alcorão 19:23.
Índice

Introdução
História do rei Xariar e de Xerazade filha do vizir
História do burro e do boi
História do mercador e de sua mulher
História do mercador e do génio
História do primeiro ancião
História do segundo ancião
História do pescador e do ifrite
História do rei Yunane de Zumane e do sábio Dubane
História do marido e do papagaio
História do filho do rei e da ghula
História do rei encantado
História do carregador e das três moças de Bagdade
História do primeiro dervixe
História do segundo dervixe
História do invejoso e do invejado
História do terceiro dervixe
História da primeira moça, dona da casa
História da segunda moça, a flagelada
História das três maçãs
História dos dois vizires, Nureddine Ali do Egipto e Badreddine Haçane de
Baçorá
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Hugo Xavier

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