You are on page 1of 1
Quem é pardo no Brasil? YURI COSTA (*) MARCO ADRIANO FONSECA\"*) Defensor Publico Federal e Professor UEMA‘) © Juiz de Direito TIMA e Profes~ sor ENFAM e UEMA ("*) Pela primeira vez em décadas, a populacao brasileira ¢ de maio- ria parda, Essa foi a constatacao que o Censo Demografico de 2022 publicou recentemente. O Censo Demografico é produzido pelo IBGEe consiste na principal referéncia estatistica sobre as condigdes de vida da populacao em todos os municipios do pais. Segundo o Censo, cerca de 92,1 mi- Ihdes de pessoas se declararam par- das em 2022, 0 que equivale a 45,3% da populagao brasileira. Desde 1991, 0s pardos nao superavam a popula: ao branca, que chegou a 88,2 m Ihoes (ou 43,5% da populacao). Ou- tras 20,6 milhdes de pessoas se decla- ram pretas (10,2%), enquanto 1,7 mi- Ihdes se declararam indigenas (0,8%) e 8501 mil se declaram amarelas (0,4%). Se comparado ao ultimo Cen- so, de 2010, a populagao parda cres- ceu 119% e sua proporcdo na popula- a0 do pais subits de 43.1% para os ci- tados 45,3%. O resultado esta sendo justa elegi- timamente comemorado por institu- Ges engajadas no combate ao racis- mo. Tendo como critério a auto-atri- buicdo, ou seja, a manifestacdo do préprio entrevistado quanto asua ra- ca ou etnia, os dados do IBGE possu- em relacdo direta com um aumento de consciénciada populaao negra do Brasil quanto a suas origens eavalori zagao da afrodescendéncia. Essa consiatacao, no entanto, esta longe de significar a superagao do racismo em nosso pats. Mas, afinal, quem é considerado pardo no Brasil? Segundo 0 IBGE, ba- sicamente quem assim se declara. Is- so se dé em zespeito ao jamencionado critério da auto-atribui¢ao e por en- tender o Instituto, acertadamente, que a identidade étnico-racial da pes- soa é elemento de sua personalidade, ndo podendo, regra geral, ser influen- ciada pelo julgamento de outra pes- soa. Por outro lado, a auto-atribuicao da raca ou etnia se dé dentro de um universo definido, Hoje a classifica- ‘¢40 utilizada pelo IBGE trabalha com Cinco grupos: pretos, paidos, brancos, amarelose indigenas. Independentemente dos critérios utilizados oficialmente pelo IBGE, é incontestavel que a identificacao de uma pessoa como parda se relaciona com elementos do senso comum, atrelando-se ao imaginario construf- doao longo de nossa hist6riaa respei- to do significado dessa categoria para a definigdo de raga ou etnia. Nesse sentido, 6 luger comum entender 0 pardo como miscigenade, como re- sultado da mestigagem das outras quatro ragas ou etnias, tidas como mais“puras” (preta, branca,amarelae indigena) .O pardo possuiria um cara- ter residual, servindo para designar quem nao se enquadia nas demais classificagoes. Como categoria que identifica quulifica pessoas e grupos humanos, a denominagao “pardo” possuiu des- de sempre uma forte conotacao poli- tica. Historicamente, foi objeto cons- tante de disputas e, predominante- mente, utilizada para discriminagdes negativas. Como exemplo, temos ase- gunda metade do século XIX, contex- to marcado pela forte influéncia das chamadas teorias raciais e quando, num Brasil que consolidava sta inde- pendéncia politica e construia suas instituigdes, a mesticagem foi associ- adaa degeneracao sociale o temo pando utilizado, como regra, para nega: di- reitos de cidadania a ibertos ea pes- soaslivres sem posses. Por outro lado, ainda que fabricada € constantemente reinventada histo- ricamente pelas elites brancas como critério de discriminagao, a categoria ‘pardo” passouaserapropriada pelos movimentos sociais que combatem 0 racismo, Negou-se a condicao parda como hiato entre as ragas e passou-se a atrelé-la a populacio negra, valori- zando-acomo afrodescendéncia eco mo resisténcia ao racismo estrutural ‘em nosso pais. Nao por outra razio, hoje hé forte cxftica dos movimentos sociais ao chamado colorismo, que pulveriza a ia de categorias étnico-raciais a partir das tonalidades de pele. No en- tendimento da professora Alessandra Devulski, consiste 0 colorismo em mais uma estratégia do racismo que reafirma privilégios das elites bran- cas, namedida em que, ao fime ao ca- bo, segrega as pessoas negras. Além disso, 0 colorismo reinventa mitos que sutavizam a miscigenacao da po pulagio brasileira ao longo da hist ria, sabidamente pautada em realida- des brutais e violentas, como 0 estu- pro de mulheres negras por homens brancos ou politicas oficiais ¢ cuge- nistas de embranguecimento da po- pulacio. Porém, foi a primeira década do atual século que elevou a disputa so- bre o significado do “ser pardo” no Brasila outro patamar. O inicio daim- plantagao de politicas de cotas para negros em vestibulares e em concur sos piiblicos aos poucos consolidoua no¢ao de que os pardos nao poderiam ser automaticamente excluidos dessa politica. Os movimentos sociais, prin- cipais defensores das cotas, rapida- mente perceberam os riscos de se to- mar pardo como uma espécie de re- sultado “desracializado” da miscige- naga, sem os privilégios dos brancos ‘© sem acesso a politicas de reparacéo voltadas populacdo negra. No que toca ao conceito de pardo para as politicas de cotas para negros, pds duas décadas de intenso debate e de politicas ptiblicas bem e mal im- plementadas, alguns —_consensos ‘emergiram. Para as cotas, a definigao de pardo ndo é do senso comum, ou seja, nao corresponde a qualquer pes- soa miscigenada. Ha, hoje, uma no- cdo mais tecnicamente construida so- bre essa categoria, que reforga que as cotas raciais sao destinadas aos par- dos negros e nao aos pardos social- mente brancos. 0 pardo, ainda para as cotas, nao 6 um meio termo entre o branco e 0 negro, mas um negro de pele mais clara e que preserva fenoti- picamente tracos negréides. Detoda forma, para as cotas, 0 par- do é sempre um negro, ainda que ndo possua uma pele retinta. Nesse cam- po, o combate a fraudes nas politicas de cotas é fundamental e passa em boa medida pela implantacao de um sistema de verificagao (heteroidentifi- cacao) que possa excluir, sobretudo, pessoas brancas, mas também pardos nao negros

You might also like