You are on page 1of 14
2B @. ed 974 _ Psicoterapias cognitivo-comportamentais : um didlogo com a psiquiatria / Bernard Rangé ...[et al.]. — 2. ed. - Porto Alegre : Artmed, 2011. 800 p. : il. ; 25 cm. ISBN 978-85-363-2573-6 1, Terapia cognitivo-comportamental Psicoterapia. 2. Psiquiatria. I. Rangé, Bernard, cDU 616.89 Catalogagao na publicacao: Ana Paula M. Magnus - CRB 10/2052 Scanned with CamScanner Terapia cognitiva Melanie Pereira Bernard P. Rangé INTRODUCAO © objetivo deste capitulo é apresentar um breve histérico das terapias cogniti- vas, centrando-se mais especificamente no Modelo de Reestruturagéo Cognitiva para Depressio, criado por Aaron Beck, e apre- sentar conceitos bdsicos da terapia cogni- tiva, como niveis de cognicao, conceitua- lizagdo, estrutura de sesso, tratamento e algumas técnicas da terapia, tais como 0 questionamento socratico, a técnica da seta descendente, entre outras. VISAO GERAL HISTORICA DAS TEORIAS E DAS TERAPIAS COGNITIVO-COMPORTAMENTAIS Mudanca de paradigma Na década de 1960, teorias psicanaliticas do- minavam de forma absoluta a psicologia cli- nica e a psiquiatria. Na teoria psicanalitica, a psicopatologia da depressio era atribuida, entre outras hipéteses, & raiva introjetada do objeto perdido, a emogdes negativas re- lacionadas a vivencias traumdticas reais. No entanto, a partir da década de 1970 se desencadeou nos Estados Unidos um mo- vimento de questionamento nos meios cien- tificos quanto a eficdcia da abordagem psi- canalitica para os transtornos mentais. Algumas das teorias cognitivo-compor- tamentais atuais surgiram nesse perfodo, A Terapia Racional Emotiva, desenvolvida por Albert Ellis (1962), estabeleceu a visio de que construgdes cognitivas, como pen- samentos irracionais e negativos, seriam a base dos transtornos psicolégicos. Bandura (1969-1971), com sua teoria da aprendiza- gem social, estabeleceu 0 processo cognitivo como um elemento fundamental na aquisi- Gio e na regulacao do comportamento. Outras teorias comportamentais im- portantes com énfase no processo cognitivo surgiram, como a de Meichenbaum (1973) como Treino de Inoculacao ao Estresse; a de D’Zurilla e Goldfried (1971) com o Treino em Solugio de Problemas; a de Mahoney (1974) com a Modificagéo Cognitiva do Comportamento; representando um meio de o ser humano construir sua capacidade de aprendizado serviram como base para 0 fortalecimento da terapia cognitiva. Construgao do modelo de reestruturacao cognitiva de Beck Foi no periodo entre 1959 1979 que Aaron Beck, psicanalista de formagio, professor e pesquisador da Universidade da Filadélfia, nos Estados Unidos, juntamente com seus colaboradores, desenvolveu e sistematizou © modelo da Terapia Cognitiva. Como psicanalista e pesquisador, a in- tengiio inicial de Beck foi estudar qual seria © processo psicolégico central envolvido nas depressdes. Sua hipétese inicial foi de que @ “raiva intemalizada” seria 0 processo psico- Scanned with CamScanner PSICOTERAPIAS COGNITIVO.COMPORTAMENTAIS: UM DIALOGO COMAPSIQUIATRIA. 21 légico central dos transtornos depressivos, € elegeu os sonhos como objeto de estudo para validar essa ideia, Investigou, inicialmente, contetido dos sonhos de pacientes deprimi- dos e nio deprimidos, nio encontrando uma diferenca significativa em conteiidos hostis ‘ou agressivos entre os dois grupos (1959). Sua hipétese alternativa foi, entio, a de uma necessidade de sofrer ou um ma- soquismo, e elaborou um segundo estudo, quantificando 0 contetido masoquista dos 20 primeiros sonhos de pacientes deprimi- dos (n = 18) e nao deprimidos (n = 12), encontrando uma diferenga significativa na quantidade de temas masoquistas nos so- hos de pacientes deprimidos comparados com os de nao deprimidos (1959). Ele realizou a seguir um estudo maior que confirmou o resultado anterior: uma maior quantidade de contetido masoquista nos sonhos do grupo de pacientes deprimi- dos quando comparado ao grupo dos nio de- rimidos. Além disso, encontrou também um paralelo entre o contetido masoquista dos somhos de pacientes deprimidos e seu com- portamento em estado de alerta; isso 0 levou 420 questionamento de que “a necessidade de sofrer” poderia ser encontrada, além de nos sonhos, em outros fendmenos cognitivos nos individuos depressivos quando acordados. A manipulagdo experimental desses pacientes levou Beck e seus colaboradores a abandonar a hipétese de necessidade de sofrer - 0 ma- soquismo - como o principal elemento psico- égico na depressio. A conclusio final desses estudos foi de que “certos padrées cognitivos poderiam ser responsdveis pela tendéncia do paciente a fazer julgamentos com um viés negativo de si mesmo, de seu ambiente e do futuro que, embora menos proeminentes no periodo fora do epis6dio depressivo, se ativa- riam facilmente durante 0s periodos de de- presséo” (Beck, 1967). Beck passou a utilizar esses achados em sua prética, apontando para seus pacientes deprimidos em atendimento suas distorcdes cognitivas negativas e a relagdo destas com © estado depressivo deles. Para sua surpre- sa, provocé-los no aqui e agora a perceber este viés negativo de pensamento resultou em uma significativa melhora no humor e no comportamento desses individuos. A sistematizagao final dessas observa- ‘Ges e intervengGes foi publicada por Beck e colaboradores no livro Terapia Cognitiva da Depressio (1979). O MODELO COGNITIVO que perturba o ser humano no so os fatos, mas a interpretagio que ele faz destes. (Epitecto, século 1 d.C.) Nossa serenidade nao depende das situagdes, mas de nossa reacao diante delas, Portanto, ao intervirmos no aqui € agora, torna-se possivel provocar ‘mudangas em nosso futuro. (Buda, 563 a.C.) Estoicismo e filosofias orientais — como taoismo e budismo — enfatizam que as emo- ‘ges humanas tém como base o pensamen- to,a mente em constante atividade, gerando raciocinios, afetos e condutas que permitem ao individuo uma maior ou menor percep- fo da realidade. A terapia cognitiva criada por Beck esté baseada nesses principios. Mais que os fatos em si, a forma como 0 individuo os in- terpreta influencia a forma como ele se sen- te e se comporta em sua vida. Uma mesma situagao produz reagées distintas em dife- rentes pessoas, e uma mesma pessoa pode ter reagées distintas a uma mesma situacao em diferentes momentos de sua vida. O individuo com sofrimento psicolégi- co tem sua capacidade de percepgio de si mesmo, do ambiente e de suas perspectivas futuras prejudicada pelas distorgées de con- tetido de pensamento especificas de sua pa- tologia, que acabam por determinar “vicios “na forma como os fatos sao interpretados. Nos estados depressivos, sdo essas dis- torgées cognitivas que influenciam na visio negativa do individuo em relacéo a si mes- mo, ao mundo e ao seu futuro. Nos estados Scanned with CamScanner 22 _BERNARD RANGE & COLS. ansiosos, levam a uma superestimativa de riscos tanto internos como externos, além de uma subestimativa dos prdprios recursos pessoais e de seu ambiente para lidar com esses riscos. A terapia cognitiva de Beck evoluiu a partir da observagio clinica e de testes experimentais dessa forma de pensar peculiarmente negativa dos pacientes com transtornos depressivos. Todas as terapias cognitivo-comporta- mentais derivam do modelo cognitive ¢ compartilham alguns pressupostos basicos: 1. aatividade cognitiva influencia o compor- tamento; 2. aatividade cognitiva pode ser monitorada e alterada; 3. mudangas na cognigao determinam mu- dancas no comportamento (Dobson, 2001). A terapia cognitiva de Beck é uma psi- coterapia focal, baseada no modelo cognitivo que pressupde que, em transtomos mentais, © pensamento disfuncional é um elemento importante. A modificagio de pensamentos disfuncionais leva A melhora sintomética dos transtornos, & modificagio de crencas disfuncionais subjacentes e estabelece uma melhora mais abrangente e duradoura. A terapia cognitiva trabalha basica- mente com identificagao e reestruturagao de trés niveis de cogni¢ao: pensamentos au- tomaticos, crencas intermedirias e crengas nucleares. Pensamentos autométicos sao o nivel de cognigao mais superficial na terapia cog- nitiva: so espontineos, telegréficos, repe- titivos e sem questionamento quanto a sua veracidade ou utilidade e so acompanhados de uma forte emogo negativa ante as mais variadas situagées do cotidiano. Podem ser mais facilmente identificados pelo paciente. Crengas intermediérias sao 0 segundo nivel de cognigao criado por Beck em seu modelo: sio as regras e 0s pressupostos criados pelo individuo para que ele possa conviver com as ideias absolutas, negativas ndo adaptativas, que tem a seu respeito. Funcionam como um mecanismo de sobre- viveneia que o auxiliam a lidar e a se prote- ger da ativagéio extremamente dolorosa das suas crengas nucleares. Grengas nucleares sto o terceiro mais profundo nivel de cognig6es e t¢m sua origem nas experiéncias infantis, Tém uma forma absoluta, negativa, rigida e inflexivel sobre o que o individuo pensa sobre si; si0 mais dificeis de ser acessadas e modificadas; resultam da interacio da natureza genética do individuo e de sua hipersensibilidade pessoal & rejeiciio, ao abandono, & oposicao, as dificuldades inerentes de se estar vivo e de componentes externos do seu ambiente, que podem reforcar ou atenuar fatores posi- tivos e negativos da natureza geneticamente determinada do individuo. CONCEITUALIZACAO COGNITIVA Quando vocé néo esté certo de para onde esta indo, qualquer estrada serve para te fazer chegar. (Lewis Carroll, Alice no Pats das Maravilhas) Elemento fundamental na terapia cognitiva, a conceitualizagdo cognitiva é a habilidade clinica mais importante que o te- rapeuta cognitivo precisa dominar para um planejamento adequado e para a eficdcia do tratamento. Um entendimento adequa- do sobre as razdes do comportamento no adaptativo do paciente é absolutamente ne- cessério para que 0 tratamento nao acabe sendo meramente uma aplicagao de técni- cas cognitivas e comportamentais, sem a es- truturacdo que caracteriza a terapia cogniti- va. E a conceitualizacdo que torna possfvel ctiar o foco, com a colaborago do paciente e do terapeuta em conjunto. E um elemen- to fundamental para qualquer tratamento psicoterdpico, é o mapa que permite a com- Preens&o de como o paciente se estruturou para sobreviver e como se protegeu de suas crengas negativas e do ambiente adverso. Segundo Beck, alguns elementos sio fundamentais para a elaboragdo de uma conceitualizacao: Scanned with CamScanner PSICOTERAPIAS COGNITIVO.COMPORTAMENTAIS: UM DIALOGO COM APSIQUIATRA = 23. 1. diagnéstico clinico do paciente; 2. identificagio de pensamentos automé- ticos, sentimentos ¢ condutas frente a diferentes situages do cotidiano que mo- bilizem afeto e que tenham um significado importante para a pessoa; 3. crencas nucleares e intermediérias; 4, estratégias compensatérias de conduta que 0 individuo utiliza para evitar ter _acesso a suas crengas negativas; 8. dados relevantes da histéria do paciente que contribuiram para formacao ou for- talecimento destas. Este proceso tem inicio desde 0 pri- ‘meiro contato com o paciente: hipéteses so criadas e sio verificadas a partir de situa- ‘Ges e pensamentos repetitivos do dia a dia do individuo, Resumindo, no modelo cognitive de Beck, experiéncias precoces de perda sio in- terpretadas a partir da sensibilidade geneti- camente herdada pelo individuo, criando-se do estruturas cognitivas que ele denomi- nou de crengas centrais negativas em rela- do a si mesmo, seu ambiente e suas pers- pectivas de futuro, estabelecendo um viés no processamento de informagées, um “erro légico na cognigéo”. Essas distorgdes cogni- tivas alteram as emogées, 0 comportamento ea fisiologia do individuo. Sao estas crengas centrais negativas que levam 4 necessidade da elaboracao de regras e pressuposigées que auxiliam o individuo a lidar com esses autoesquemas negativos. PRINCIPIOS DO TRATAMENTO ‘A terapia cognitiva proposta por Beck e ba- seada na conceitualizagao é uma abordagem estruturada, diretiva e colaborativa, com um forte componente educacional, orienta- da para 0 aqui e agora, de prazo limitado, indicada atualmente por sua eficécia cien- tificamente comprovada para o tratamento de uma série de transtornos mentais, como depressio, ansiedade, transtornos de perso- nalidade, esquizofrenia, entre outros. Como em qualquer abordagem psico- terdpica, uma relagio terapéutica sblida e ‘empatica e uma avaliagio diagnéstica cui- dadosa sio elementos fundamentais para 0 sucesso do tratamento, ‘A cada sessio faz-se inicialmente uma verificagio do humor do paciente em relagéo a sesso anterior e como ele se sentiu du- rante a semana. Isso costuma ser feito atra- vés de instrumentos autoaplicdveis, como a Escala de Beck para Depressio (BDI) (Beck etal,, 1961), e Ansiedade (BAI) (Becket al., 1988) ou utilizando instrumentos clinicos como solicitar ao paciente que ele atribua uma nota de 0 a 10 para a intensidade da tristeza ou da ansiedade que sentiu durante a semana. Na terapia cognitiva, uma agenda é estabelecida em cada sesso, em comum acordo entre paciente e terapeuta. No inicio da sesso, costuma ocorrer uma revisio da tarefa proposta na sesso anterior e 0 esta- belecimento de uma hierarquia nos assuntos propostos para serem discutidos na sesso que estd por ocorrer. Discutir os elementos da agenda, esta- belecer uma tarefa para a semana relaciona- da ao trabalhado na sessio, revisar o humor do paciente ao final e solicitar que ele faca um resumo do que considera estar levando de util para sida sessdo e se, na sua opinio, ocorreu ou ndo uma melhora de seu humor sao outros itens de uma sessio tipica de te- rapia cognitiva. Finalmente, ao término, solicita-se ao paciente um feedback de como ele se sentiu durante a sesso, se algum dos assuntos tra- tados Ihe foi desconfortavel ou se algo que tinha interesse de conversar nao foi traba- Ihado. ‘A estrutura original da terapia cogni- tiva de Beck (1979) para o transtomo de- pressivo unipolar tem o formato de 15 a 20 sessdes semanais, por um periodo de seis ‘meses, com duragao de 45 a 60 minutos. Nos iiltimos dois meses, as sessdes ocorrem de 15 em 15 dias, com mais algumas ses- sbes mensais de “reforco” por dois ou trés meses ainda, quando ocorre o término do tratamento. Scanned with CamScanner 24 _ BERNARD RANGE & COLS. A terapia cognitiva ¢ constituida de uma série de componentes e técnicas: Psicoeducacio. dentificagao, avaliagao e modificagio de pensamentos automiticos e crencas. Identificagdo das distorgdes cognitivas. Controle de atividades agendas. Utilizagio de cartées de autoajuda, Treinamento de habilidades, especial- mente da habilidade de solugao de pro- blemas. 1m Realizagéo de tarefas cognitivas e com- portamentais entre sessées. a Exposigio hierdrquica. a Ensaio cognitivo. Dramatizacao. m Exame de vantagens e desvantagens, = Aprendizado de manejo de tempo. 1 Revisdo de videoteipes das sessées. O tratamento ird envolver: = Avaliagdo, identificagio de problemas, delimitacao de um foco. 1 Conceitualizagio, elaborada de forma colaborativa com o paciente. 1 Intervengées para diminuir a frequéncia ea intensidade de pensamentos automé- ticos negativos e ruminagées. = Identificagao, questionamento e revisio de pensamentos automiticos negativos. 1 Identificagao e questionamento de regras suposigdes visando buscar e testar al- ternativas para reduzira vulnerabilidade do individuo. m Prevengio de recalda. Um caso clinico para ilustrar a aplica- gio do modelo serd relatado a seguir. Carla, 32 anos, secretéria, solteira, curso superior completo, procurou tra- tamento por sentir-se deprimida desde que seu namorado rompeu a relagio ha trés meses, Est4 insone, pessimista e sem Ani- mo. Relata em sessio seu encontro com 0 ex-namorado em uma festa no final de se- mana, Terapeuta: O que vocé pensou quando en- controu seu ex-namorado na festa? Pensei que ninguém nunca vai gostar de mim e que ndo deve- ia ter ido a festa, me senti uma. boba. Terapeuta: Vocé pensou entdo: “Ninguém nunca mais vai gostar de mim”; “No deveria ter vindo a festa”; “Sou uma boba”? Paciente: Paciente: Sim. ‘Terapeuta: E como vocé se sentiu ao pensar isso? Paciente: Ansiosa e triste... to triste que resolvi ir embora. Terapeuta: Seria entio... (escrevendo com as palavras da paciente, na ses- sio) (ver Quadro 1.1): Scanned with CamScanner PSICOTERAPIAS COGNITIVO.COMPORTAMENTAIS: UM DIALOGO COMAPSIQUIATRIA. «25 Na terapia cognitiva, nossa primeira tarefa como terapeuta € demonstrar para © paciente a conexio existente entre pen- samento, sentimento e comportamento. & importante tomar 0 paciente atento a essa relaco. Solicitar que registre inicialmente si- tuagées em que se SENTIU emocionalmen- te mobilizado e no que estava PENSANDO no momento que se sentiu desconfortével & uma das primeiras tarefas que se propée ao paciente. Na terapia cognitiva, essa ta- refa & denominada Registro de Pensamento Disfuncional. Como pode ser observado, € mui- to comum a confusio entre pensamento e sentimento. Um exemplo dessa confuséo é quando Carla diz: “me senti uma boba”. O terapeuta, durante a sesso, demonstra esta dificuldade quando escreve, a0 preencher © registro de pensamento disfuncional, as palavras SENTIU e PENSANDO em letras maitisculas. Perguntamos a Carla, apés o registro, qual o pensamento que mais a incomodou, mais trouxe tristeza e ansiedade entre os trés que automaticamente Ihe ocorreram 20 ver seu ex-namorado na festa. Carla responde: Foi, sem duivida, 0 pensamento de que ninguém nunca mais vai gostar de mim. Terapeuta: Quanto vocé acredita realmen- te nisso, de 0 a 100%? Paciente: 100%. Resumindo, o pensamento que auto- maticamente ocorre & paciente ao ver seu ex-namorado na festa € 0 de que nunca mais alguém gostaré dela e, como consequencia dessa ideia, sente-se triste e ansiosa e vai embora da festa (ver Quadro 1.2). Continuando a sesso com Carla: Terapeuta: E ninguém nunca mais vai gos- tar de voce, significa 0 que a seu respeito? Paciente: Que sou um fracasso, Terapeuta: Entéo... pessoas que nao tém parceiros so fracassadas? Paciente: Sim, ter alguém & algo muito importante para mim! Terapeuta: Porque pessoas que tem parcei- Sio felizes, dio certo na vida, sio bem-sucedidas. Terapeuta: Entdo, dentro dessa légica, parece que existe uma regra, no? Caso vocé no concorde, ija: “Pessoas que tém um relacionamento afetivo so bem-sucedidas e pessoas que nao tém um relacionamento afetivo so fracassadas”? Acho que é assim mesmo que eu penso. Paciente: Paciente: Torna-se compreensfvel a reagio de Carla ao término de seu relacionamento de acordo com essa regra que criou como defe- sa de sua ideia de ser um fracasso. Neste trecho da entrevista, & possivel identificar a crenga central de Carla de “ser um fracasso”; este é 0 terceiro e mais pro- fundo nivel de cogni¢éo do modelo de rees- truturagio de Beck. A partir dessa crenca, a paciente inter- preta toda a sua realidade: no ter alguém e Scanned with CamScanner 26 BERNARD RANGE & COLS CRENGAS NUCLEARES E INTERMEDIARIAS Pensamentos automiticos Peerage outset) i Cree FIGURA 1.1 Crencas intermediarias Seca Sere oer caer Tate Se eu tenho um relacionamento afetivo sou bem-sucedida, eet ea its eee ce pestis) Esquema de registro de crencas nucleares e intermediaras da paciente Carla, ter sofrido um rompimento sao “provas” de que sua ideia negativa de si mesma é verda- deira. Ter alguém, uma regra que criou para sobreviver & esta crenca absoluta negativa, estava sendo preenchida. Como ocorre a interven¢ao quando Carla jé 6 capaz de identificar os trés niveis de cognigio nos quais ela funciona? O objetivo maior da terapia cognitiva & tomar o paciente seu préprio terapeuta, Terapeu Paciente: E outta situagio foi... Sou professora. Essa semana trés alunos dormiram em minha sala de aula. Logo pensei que realmente nao consigo fazer as coisas direito, senti um desdni- mo... Terminei a aula mais cedo ¢ fui chorar no banheiro, A visio absoluta de Carla de si mes- ma como um fracasso fez com que ela inter- pretasse as situagdes de seu cotidiano den- tro dessa dtica, praticamente sem nenhum questionamento. A interpretagio da reali- dade a partir da crenga nuclear de ser um fracasso leva Carla a um viés interpretativo da realidade. Esses pensamentos automiticos e as ‘rengas intermediérias podem ser o resulta- do da ativagao de crencas negativas de Carla a respeito de si mesma, o que é comum em quadros depressivos. Mas Carla ¢ ou nfo um fracasso? Outro objetivo da terapia cognitiva é ensinar o pa- ciente a revisar consigo mesmo se seus pen- samentos sio verdadeiros ou nao. O objetivo de um terapeuta ndo é ensinar opaciente a “brincar de contente”, mas tornd- Scanned with CamScanner PSICOTERAPIAS COGNITIVO.COMPORTAMENTAIS: UM DIALOGO COMAPSIQUIATRA 27 Jo capaz de poder interpretar a realidade, Terapeuta: Podemos descrever este fato identificar as distorgdes cognitivas caracteris- como uma evidéncia de que ticas de sua patologia (ver Quadro 1.3). vocé ¢ ou nio é um fracasso? Paciente: Acho que como uma evidéncia Terapeuta: Entdo vocé seria um fracasso de que nio sou um fracasso, porqu Paciente: Levei um fora de meu namora- —Seguimos investigando com a paciente, do, me sinto um fracasso, nio consigo fazer as coisas direito, Terapeuta: Vocé sempre levou o fora nestes minhas festas ndo dio certo e relacionamentos? meus alunos dormem em mi- Paciente: — Digamos que meio a meio, dos nhas aulas. ‘meus cinco namorados, dei dois Terapeuta: Vamos ver ento, Carla. Voce le- foras e levei trés, vou um fora do seu namorado. Terapeuta: Isso é uma prova de vocé ser Voce ja teve outros namorados? um fracasso? Paciente: Sim, trés que eu me lembre, Paciente: Ter rompido dois namoros em mais 0 Jodo quando eu tinha sé cinco nao fecha muito com essa 15 anos. ideia Terapeuta: Quanto tempo eles duraram? __Terapeuta: Entéo, isso é uma evidéncia de Paciente: Ah, eu namoro por bastante que vocé é ou ndo um fracas- tempo, pelo menos dois ou trés so? anos cada um. Paciente: De que nfo sou um fracasso Terapeuta: O fato de vocé ter se envolvido (com expressdo surpresa). em quatro relacionamentos an-Terapeuta: Nao tem ninguém interessado teriores que duraram em média em vocé agora? dois anos € uma evidéncia a Paciente: Minhas colegas dizem que favor ou contra a ideia de que Zeca, um colega de trabalho, ‘nunca mais uma pessoa vai gos- vive na minha volta, tar de vocé? ‘Terapeuta: E isso é uma evidéncia. Paciente: Parando para pensar, acho que Paciente: De que néo sou um fracasso. 6 contra. ‘Agora me lembrei que quando Situagao RA Sentimento __Conduta PA ‘Organizei uma Minhas festas do Me dew Figuei andando de PA- festa este sempre errado. uma tristeza um lado para o Emogio fim de semana Acredita que choveu! outro. Néo conseguia ) sentar para atender | j todo mundo. j Mal conversel. | | Fiquei cansada. ! Sou professora Nao consigofazer as. Diuum Termine’ a aula mais etrés alunos coisas direito. desinimo. __cedo e fui chorar 1no banheiro, Scanned with CamScanner 28 _ BERNARD RANGE & COLS, estava indo embora da festa, 0 Zeca veio falar comigo, mas eu nem dei atencdo a ele, sé queria sair dali. © questionamento socrético, como exemplificado acima, é uma técnica muito utilizada na terapia cognitiva, através da qual o terapeuta coleta informagdes que sustentam ou nao a ideia do paciente; no caso da paciente Carla, ela ser ou néo um fracasso, © mesmo questionamento seria feito com as duas outras situagbes que ela trouxe durante a sessao (ver Quadro 1.4). Investigar evidéncias que sustentam ou no uma crenga nuclear (neste caso, ser um. fracasso) € uma das maneiras de ensinar 0 paciente a revisar suas distorgdes e criar cren- gas alternativas mais dentro da realidade. © objetivo final da terapia cognitiva visa ensinar o paciente a ser capaz de re- construir sua cogni¢do, avaliar o que susten- ta ou nao suas crencas nucleares negativas e © quanto elas sao verdadeiras ou nao - pos- sibilitando a construgo de crengas nuclea- res e intermedidrias alternativas ~ e colocar suas regras em um continuum, nao mais po- larizadas em positivo e negativo. Origem das crencas nucleares e intermediarias negativas Carla relata que seu pai era uma pessoa ex- tremamente exigente e sua irma mais velha, uma pessoa muito bonita e inteligente, uma aluna nota 10. 1, Meu namorado brigou comigo 2. Nao faco as coisas direito 3. Minhas festas nao dao certo 4, Meus alunos dormem na sala de aula 1. Tive cinco namorados 2. Dei dois foras 3. O Zeca esta interessado em mim 4. Ele me procurou antes de eu ir embora da fe Carla sempre foi uma aluna média, Nao se destacava, mas nunca repetia o ano, Seu pai sempre a comparava com a irmd ¢ vivia dizendo que ela seria “um fracasso”, que nao daria certo na vida, caso ndo se es- forcasse como a irma. Carla teve um quadro de depressio maior aos 18 anos porque no passou no seu primeiro vestibular. Seu pai ficou muito decepcionado e assustado, pois o pai dele (0 av6 paterno da paciente) era deprimido e se suicidou. “Ele nunca me perdoou por isso e se afastou definitivamente de mim’, disse Carla. Passamos a falar entio de conceitualiza- co, um instrumento basico na terapia cogni- tiva para a compreensio de como o individuo se organizou para poder interagit com suas crengas nucleares negativas disfuncionais. No modelo de reestruturacao de Beck, 0s dados coletados so organizados em um quadro, como pode ser visto na Figura 1.2. Seguindo com a paciente, seu quadro de conceitualizagao pode ser preenchido a partir de trés situacdes que relata de seu co- tidiano consideradas probleméticas devido a forte carga de afeto e aos pensamentos negativos que provocaram. A elaboracéo de uma hipétese de conceitualizagio pode ocorrer na primeira sesso com o paciente. No caso de Carla, a primeira situagdo relatada foi o encontro com ex-namorado na festa; seu pensamento automético - “Ninguém nunca mais vai gostar de mim” ~ fez. com que se sentisse ansiosa e triste e decidisse ir embora. A situagéo mimero 2, foi quando orga- nizou um churrasco no fim de semana; seu Scanned with CamScanner PSICOTERAPIAS COGNITIVO. COMPORTAMENTAIS: UM DIALOGO COM APSIQUATRIA 29 Diagrama de conceitualizagio cognitiva (© Judith Beck, 1993). pensamento automético foi “Minhas festas sempre dio errado”; sentiu-se triste e desani- mada, nao conseguindo parar de trabalhar e no se permitindo conversar com ninguém. A situagio 3 foi de trés alunos dormi- rem na sua aula; o pensamento automético de Carla foi “Nao consigo fazer as coisas que tenho de fazer”; sentiu-se desanimada etris- te, terminando sua aula mais cedo, © passo seguinte é identificar com Carla 0 que cada pensamento automético significa em cada situagio em relagao a sua pessoa, ou seja, tentar identificar sua crenga nuclear negativa, neste caso: “Sou um fra- asso”, AA partir dessa sua crenca nuclear ne- gativa, “sou um fracasso”, que suas crencas intermedidrias se estabeleceram como, por exemplo: “Se tenho um relacionamento afe- tivo, sou bem-sucedida; se no tenho um relacionamento afetivo, sou um fracasso”; ou afirmagées como: “Pessoas que fazem as coisas de forma absolutamente correta sio bem-sucedidas e pessoas que nao fazem as coisas de forma absolutamente correta sio ‘um fracasso”. Scanned with CamScanner 3O BERNARD RANGE & COLS Dados relevantes de Infancia ‘Suicidio do avd paterno; depressio a partir dos 18 anos; pal exigente; ‘comparagio negativa constante com irmi mals velha renga central Sou um fracasso Crengas intermediarias: regras, afirmacées, pressuposicées “Se tenho uma relacio afetiva, sou bem-sucedida; se ndo tenho, sou um fracasso” “Pessoas que fazem as coisas de forma absolutamente correta so competentes, pessoas que indo fazem as coisas de forma absolutamente correta sio um fracasso” Estratégias compensatérias Ser perfeccionista, evitar Situagéo 1 Situagao2 Situagao 3 Encontra ex- ‘Churrasco em casa ‘Alunos dormem -namorado na festa na sala de aula Pensamento Pensamento Pensamento automatico (PA) automitico automatico ‘Nunca mais alguém 'Nio faco nada Sou uma péssima, ‘al gostar de mim direito professora ‘Significado do PA Significado do PA Significado do PA Sou um fracasso Sou um fracasso Sou um fracasso Emogio Emogio Emogao Tistezae ‘Ansiedade e Tristeza ansiedade desinimo Comportamento Comportamento ‘Comportamento Vai embora No para durante ‘Abandona a sala de afesta aula e chora FIGURA 1.3 Diagrama da conceitualizagio da paciente Carla (© Judith Beck, 1993). Scanned with CamScanner PSICOTERAPIAS COGNITIVO.COMPORTAMENTAIS: UM DIALOGO COMAPSIQUIATRA 3 I A identificagdo de comportamentos € estratégias compensatérias fica visivel: ser perfeccionista, evitar Dados relevantes da histéria da pacien- te, que podem ou nao reforgar ou atenuar a sua crenga negativa, so importantes para uma conceitualizagio adequada e itil. ‘No caso de Carla, 0 suicidio do avé pa- temo, seu diagnéstico de depressio aos 18 anos, um pai critico e exigente e uma irma atraente com uma inteligéncia aparente- ‘mente acima da média so dados de historia que podem ser considerados relevantes. Aelaboragao da conceitualizagéo é um rocesso continuo, vivo e sujeito a modifica- Wes, & medida que novos dados sio revela- dos e hipéteses podem ser confirmadas ou ejeitadas durante 0 processo do tratamen- to. E um instrumento clinico imprescindivel, um guia, seja qual for o diagnéstico psiquis- ttico do paciente. exercicio final da terapia cognitiva 6, através de treinamentos, capacitar o pa- ciente para que ele possa aprender a fazer Teestruturagies cognitivas e conseguir es- tabelecer estratégias que perpetuem essa habilidade de forma duradoura. Mas como isso é posstvel? O registro de pensamento disfuncional & um dos instrumentos da terapia cogniti- va que toma possivel ao paciente aprender € reconhecer a conexao entre pensamento, afeto e conduta, verificar evidéncias prés € contras a veracidade ou a uiilidade de pen- samentos automiticos e crencas nucleares negativas, possibilitando ao final do trata- mento que o paciente seja capaz de reestru- turar seu pensamento e criar pensamentos erengas alternativas, A paciente Carla tem 0 pensamento absoluto: “Ninguém nunca mais vai gostar de mim” e acredita nele 100%. ‘Através do questionamento socratico, torna-se possivel para Carla obter e avaliar evidéncias sobre se este seu pensamento au- tomitico é verdadeiro ou nao. Uma série de fatos pré e contra esta ideia so coletados. ‘Ao serem lidas todas as evidéncias pré e contra para Carla durante a sessio, ocorreu-lhe o pensamento alternativo: “Meu namorado nao gosta mais de mim, mas j4 tive outros ex e nao deixei de ter relaciona- mentos depois”. Durante a sesso, ao ser questiona- da sobre o quanto ela, naquele momento, acreditava no que estava dizendo, Carla disse acreditar 60% no que recém havia elaborado. Ea pratica fora da sessdo, no dia a dia do paciente, por meio de tarefas combina- das a serem praticadas entre uma sesso outra, que da ao paciente o domfnio das diferentes técnicas da terapia cognitiva que © levam a uma reestruturacéo cognitiva e a ‘uma consequente melhora no seu humor € no comportamento cotidiano. REGISTRO DE PENSAMENTO DISFUNCIONAL ~ PENSAMENTO ALTERNATIVO Pensamento Sentimento _—Fatos que confirmam —_Fatos que no automético cesta idela cconfirmem esta ideia | “Ninguém nunca Tristeza Levei um fora de Jative 5 outros | mais vai gostar __Intensidade- 10 meu namorado. rnamorados. de mim.” Me sinto um fracasso. Level o fora de 3 e dei o Acredito - 100% No faco as coisas direto. foraem 2. “Tem um colega de trabalho / interessado em mim. Scanned with CamScanner 32 BERNARD RANGE & COLS. CONCLUSAO Nessas quatro décadas de existéncia da tera- pia cognitiva, varios desdobramentos ocor- eram em relacio ao modelo original, mais de 20 outras formas de terapias cognitivas surgiram. A Terapia do Esquema, de Jeffrey Young (2008), a Terapia Comportamental Dialética para transtomo borderline de personali- dade, de Marsha Linehan (1993), 0 modelo de intervengio para pinico, de David Clark (1986), a Terapia Metacognitiva, de Adrian Wells (2004), e a Terapia de Aceitagdo e Com- promisso (ACT), de Steven Hayes (1983), so alguns exemplos dessa diversidade. Muitas perguntas, no entanto, ainda Quais seriam as bases biol6gicas sobre © porqué pacientes melhoram? Que tipo de conhecimento mais recente poderia auxi- liar em relagao ao modelo cognitive? O que sabemos agora sobre o que torna um indi viduo mais vulnerdvel & depressio? O que contribui para que ela persista? Recentes avangos nas neurociéncias aumentaram a compreensio dos transtornos depressivos e ampliaram o repertério clini- co, mas muito ainda precisa ser feito, como, por exemplo, instrumentos que possibilitem medir mudangas na cogni¢io pela terapia cognitiva nos pacientes, uma reducao ainda maior nos indices de recaida associados & intervencao, dados mais consistentes quan- toa eficdcia da TC em comparacao a outras abordagens para transtornos alimentares, de personalidad, esquizofrenia, etc. A terapia cognitiva, no seu forma- to original e nos seus desdobramentos, é uma construc&o que, sem diivida, propor- cionou uma nova, clara e eficaz estrutura conceitual psicoterdpica para uma série de transtornos mentais, um sdlido instrumen- to terapéutico para que nossos pacientes se torem capazes de lidar com e controlar sua doenga. REFERENCIAS Barlow, D. (2001). Clinical handbook of psychologi- cal disorders (3rd ed.). New York: Guilford. Beck, A., Rush, J., Shaw, B., & Emery, G. (1997). Terapia cognitiva da depressdo. Porto Alegre: Artmed. Beck, J. (1997). Terapia cognitiva: teoria e prética. Porto Alegre: Artmed. Beck, J. (2007). Terapia cognitiva para desafios clinicos, o que fazer quando o bésico néo funciona. Porto Alegre: Artmed. Clark, D., Beck, A., & Alford, B. (1999). Scientific foundations of cognitive theory and therapy of de- pression. New York: John Wiley & Sons. Giacobbe, G. (2009). Como virar Buda em cinco semanas. [S.l.]: Sindicato Nacional dos Edi- tores. Greenberger, D., & Padesky, C. (1996). A mente vencendo o humor. Porto Alegre: Artmed. Knapp, B (Org.). (2004). Terapia cognitivo com- ortamental na prética psiquiétrica, Porto Alegre: Artmed Salkovskis, B (1996). Frontiers of cognitive therapy. New York: Guilford. Scanned with CamScanner

You might also like