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Capitulo 11 ARQUEOLOGIA DA VIOLENCIA: A GUERRA NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS. 158 Arqueologia da violéncia: a guerra nas sociedades primitivas’ Consideremos a abundante literatura etnografica que, ha algumas décadas, dedica-se a descrever as sociedades primitivas, a compreender seu modo de funcionamento: se a violéncia é (raramente) mencionada, € principalmente para mostrar 0 quanto essas sociedades empenham-se em controlé-la, codifica-la, ritualizé- la, em suma, mostrar que elas tendem a reduzi-la, quando nao a aboli-la. Evoca-se a violéncia, mas sobretudo para mostrar o horror que cla inspira as socicdades primitivas, para estabelecer que elas sio, no final das contas, sociedades contra a violéncia. Nao sera surpreendente entao constatar, no campo de pesquisa da etnologia ivi contemporanea, a quase auséncia de uma reflexio geral sobre a violéncia em sua forma ao mesmo tempo mais brutal ¢ mais coletiva, mais pura ¢ mais social: a guerra. Se o leitor curioso, ou o pesquisador em ciéncias sociais, limitar-se, portanto, ao discurso etnolégico ou, mais precisamente, & inexisténcia de um tal discurso sobre a guerra primitiva, deduziré, com razio, que (salvo algumas anedotas secundarias) a violéncia no figura no horizonte da vida social dos selvagens, que o ser social primitive se desenvolve fora do conflito armado, que a guerra nfo pertence ao funcionamento normal, habitual das sociedades primitivas. A guerra é assim excluida do discurso da etnologia, pode-se pensar a sociedade primitiva sem pensar ao mesmo tempo a guerra. A questo é evidentemente saber se esse discurso cientifico enuncia a verdade sobre 0 tipo de sociedade a que se refere: deixemos por um instante de escuté-lo e voltemo-nos para a realidade de que ele fala. Foi o descobrimento da América que, como se sabe, forneceu ao Ocidente a ‘ocasiao de seu primeiro encontro com aqueles que, desde entio, seriam chamados de selvagens. Pela primeira vez os europeus viram-se confrontados com um tipo de sociedade radicalmente diferente de tudo 0 que até entéo conheciam, precisaram pensar uma realidade social que ndo podia ter lugar em sua representagao tradicional do ser social: em outras palavras, o mundo dos selvagens era literalmente impensavel para o pensamento europeu. Aqui nao é o lugar de analisar em detalhe as razées dessa verdadeira impossibilidade epistemolégica: elas se relacionam a certeza, coextensiva a toda a historia da civilizagao ocidental, sobre 0 que é e o que deve ser a sociedade humana, certeza expressa desde a aurora grega do pensamento europeu do politico, da polis, na obra fragmentaria de Herdclito. A saber, que a representagao da sociedade como tal deve encarnar-se na figura do Um exterior 4 sociedade, na disposigao hierarquica do espago politico, na fungdo de comando do chefe, do rei ou do déspota: * Publicado originalmente era Libre, n. 1, 1977. 159 sé ha sociedade sob o signo de sua divisio em Senhores e Siditos. Resulta dessa vistio do social que um grupo humano que nao apresente o carater da divisio ndo pode ser considerado como uma sociedade. Ora, quem é que os descobridores do Novo Mundo viram surgir nas praias atlanticas? "Gente sem fé, sem lei, sem rei", s do século XVI. A causa era assim entendida: esses homens no segundo os croni estado de natureza ndo haviam ainda chegado ao estado de sociedade. Quase unanimidade, perturbada apenas pelas vozes discordantes de Montaigne ¢ de La Boétie, nesse julgamento sobre os indios do Brasil. Mas unanimidade irrestrita quando, em troca, tratava-se de descrever os costumes dos sclvagens. Exploradores ou missiondrios, mercadores ou viajantes estudiosos, do século XVI até o final (recente) da conquista do mundo, concordam todos num ponto: quer sejam americanos (do Alaska 4 Terra do Fogo) ou afticanos, siberianos das estepes ou melanésios das ilhas, nomades dos desertos australianos ou agricultores sedentarios das selvas da Nova Guiné, os povos primitivos so sempre apresentados como apaixonadamente dados 4 guerra, é seu cardter particularmente belicoso que impressiona sem excegdo os observadores europeus. Da enorme massa documental reunida em crénicas, relatos de viagem, relatérios de padres ¢ pastores, militares ou traficantes, surge, incontestada, primeira, a imagem mais evidente que oferece de safda a infinita diversidade das culturas descritas: a do guerreiro. Imagem suficientemente domina-dora para induzir uma constatagdo sociolégica: as sociedades primitivas so sociedades violentas, seu ser social é um ser-para-a-guerra, Eis em todo caso a impressio que recolhem, sob todos os climas e ao longo de varios séculos, testemunhas diretas, muitas delas tendo partilhado durante longos anos a vida das tribos indigenas. Serd tdo facil quanto indtil constituir uma antologia desses julgamentos relativos a populagdes de lugares e épocas bem diferentes. As disposigdes agressivas dos selvagens so quase sempre severamente julgadas. Como cristianizar, civilizar, convencer das virtudes do trabalho e do comércio povos preocupados principalmente em guerrear contra seus vizinhos, vingar as derrotas ou celebrar as vitérias? Na realidade, a opiniao dos missionarios franceses e portugueses sobre os indios Tupi do litoral brasileiro, na metade do século XVI, antecipa e condensa todos os discursos por vir: ndo fosse, dizem eles, a guerra incessante que essas tribos movem umas contra as outras, o pais estaria superpovoado. E a aparente prevaléncia da guerra na vida dos povos primitivos que primeiro chama a atengdo dos tedricos da sociedade. Thomas Hobbes opée ao estado de Sociedade, que ¢ para ele a sociedade do Estado, a figura nao real mas logica do homem em sua condi¢ao natural, um estado dos homens antes de viverem em sociedade, isto é, "sob um poder comum que mantém a todos em respeito", Ora, pelo que é que se distingue a condigao natural 160 dos homens? Pela "guerra de todos contra todos", Mas, dirdo, essa guerra que opde uns aos outros homens abstratos, inventados para as necessidades da causa defendida pelo pensador do Estado civil, essa guerra imaginaria nada tem a ver com a realidade empirica, etnografica, da guerra na sociedade primitiva. E possivel. No entanto, 0 proprio Hobbes acredita poder ilustrar o fundamento de sua dedugdo com a referéncia explicita a uma realidade conereta: a condigdo natural do homem no & apenas a construg&o abstrata de um filésofo, mas sim a sorte efetiva, observavel, de uma humanidade recentemente descoberta. "Pensardo talvez que um tal tempo jamais existiu, nem um estado de guerra como esse. Acredito, de fato, que jamais tenha sido assim, de uma mancira geral, no mundo inteiro. Mas ha muitos lugares em que os homens vivem desse modo atualmente. De fato, em muitos lugares da América, os selvagens, excetuado 0 governo de pequenas familias cuja concérdia depende da concupiscéncia natural, no tém governo nenhum, ¢ vivem até hoje da maneira quase animal que mencionei mais acima."" Nao nos surpreenderemos demais com o tranqiiilo desprezo de Hobbes em relagao aos selvagens; sio as idéias accitas de seu tempo (mas idéias recusadas, repetimos, por Montaigne e La Boétie): uma sociedade sem govemo, sem Estado, ndo é uma sociedade; logo, os selvagens permanecem no exterior do social, vivem na condigao natural dos homens, em que reina a guerra de todos contra todos. Hobbes nao ignorava a intensa belicosidade dos indios americanos; por isso via em suas guerras reais a confirmagdo manifesta de sua certeza: a auséncia do Estado permite a generalizag3o da guerra ¢ torna impossivel a instituigdo da sociedade. A equago mundo dos selvagens = mundo da guerra, por verse constantemente verificada "no local", atravessa toda a representagdo, popular ou erudita, da sociedade primitiva. E assim que um outro filésofo inglés, Spencer, escreve em seus Principios de Sociologia: "Na vida dos selvagens e dos barbaros, os acontecimentos dominantes so guerras", como num eco ao que, trés séculos antes dele, dizia dos Tupinamba o jesuita Soares de Souza: "Como os Tupinamba sio muito belicosos, toda a sua preocupagdo € saber como fario a guerra a seus adversarios". Mas os habitantes do Novo Mundo detém o monopélio da paixdo guerreira? De modo nenhum. Num livro ja antigo,’ Maurice R. Davie, refletindo sobre as causas e¢ as fungdes da guerra nas sociedades primitivas, empreende uma amostragem sistematica do que ensinava a esse respeito a etnografia da época. Ora, de sua meticulosa prospec¢ao resulta que, com rarissimas excegdes (os Esquimés do Centro e do Leste), , nenhuma delas, quaisquer que sejam seu modo de produgio, seu sistema teeno-econémico ou seu ambiente ecolégico, ignora ou recusa o desdobramento guerreiro de uma violéncia ' Thomas Hobbes, Leviatdn (Paris: Sirey, p. 125). ? Maurice R. Davie, La Guerre dans les sociétés primitives (Paris: Payot, 1931). 161 que envolve o ser mesmo de cada comunidade implicada no conflito armado. Parece bem estabelecido, portanto, que ndo se pode pensar a sociedade primitiva sem pensar também a guerra, a qual, como dado imediato da sociologia primitiva, adquire uma dimensfo de universalidade. A essa presenga macica do fato guerreiro responde, se possivel dizer, 0 siléncio da etnologia mais recente para a qual, diriamos, a violéncia e a guerra s6 existem nos meios proprios a conjuré-las. De onde provém esse siléncio? Em primeiro lugar, seguramente, das condigdes em que vivem atualmente as sociedades das quais se ocupam os etnélogos. Sabemos bem que praticamente nio existem mais, no mundo, sociedades primitivas absolutamente livres, auténomas, sem contato com o ambiente sécio-econdmico "branco". Em outras palavras, os etnélogos quase no tém mais ocasido de observar sociedades suficientemente isoladas para que 0 jogo das forcas tradicionais que as definem e sustentam possa manifestar-se livremente: a guerra primitiva é invisivel porque no ha mais guerreiros para fazé-la. Sob esse aspecto, a situagdo dos Yanomami amazénicos é dinica: seu secular isolamento permitiu a esses indios, certamente a Ultima grande sociedade primitiva no mundo, viver até hoje como se a América nao tivesse sido descoberta. Assim, 14 se pode observar a onipresenga da guerra. O que no é uma razio para tragar, como fizeram alguns, um quadro caricatural desses indios, em que o gosto do sensacional eclipsa quase toda a capacidade de compreender um poderoso mecanismo sociolégico.” Em suma, se a etnologia ndo fala da guerra, ¢ que primitivas, quando se tornam objeto de estudo, ja estio a caminho do desmembramento, da destruigo ¢ da morte: como ofereceriam 0 espetdculo de sua ocasitio de falar, é que as sociedades livre vitalidade guerreira? Mas talvez essa no seja a Gnica razio. Com efeito, pode-se supor que os etndlogos, quando saem a trabalho, abordam a sociedade escolhida nao apenas com seu cademo de notas ¢ seu gravador, mas também com uma concepgo, previamente adquirida, do ser social das sociedades primitivas e, conseqiientemente, do estatuto que nelas possui a violéncia, das causas que a desencadeiam e dos efeitos que ela exerce. Nenhuma teoria geral da sociedade primitiva pode deixar de levar em conta a guerra, Nao apenas o discurso sobre a guerra faz parte do discurso sobre a sociedade, como também Ihe da sentido: a idéia da guerra serve de medida A idéia da sociedade, Por isso a auséncia, na ctnologia atual, de uma reflexo sobre a violéncia poderia se explicar, primeiramente, pelo desaparecimento efetivo da guerra, consecutivo a perda da liberdade que instala os selvagens num pacifismo forgado, mas também pela adestio a um tipo de discurso sociolégico que tende a excluir a guerra do campo das * Cf Napoleon A. Chagnon, Yanomamé. The Fierce People (Nova York: Holt, Rinehart & Winston, 1968). 162 relagdes sociais na sociedade primitiva. A questio é evidentemente saber se tal discurso é adequado a realidade social primitiva. Assim convém, antes de interrogar essa realidade, expor, ainda que brevemente, 0 discurso aceito sobre a sociedade ¢ a guerra primitivas. Heterogéneo, ele se desenvolve segundo trés grandes diregdes: ha sobre a guerra um discurso naturalista, um discurso economista e um discurso relativo a troca. © discurso naturalista € enunciado com uma firmeza particular por A. Leroi- Gourhan em seu livro Le Geste et la parole [O gesto e a fala} e, sobretudo, no pentltimo capitulo do tomo II, no qual o autor desenvolve, tendo em vista uma indiscutivel (¢ muito discutivel) amplitude, sua concepgao histérico-ctnolégica da sociedade primitiva e das transformagdes que a modificam. Em conformidade com a indissolivel conjungdo entre sociedade arcaica e fendmeno guerreiro, o esforgo geral de Leroi-Gourhan inclui logicamente um exame da guerra primitiva, exame cujo sentido é suficientemente indicado pelo espirito que percorre toda a obra ¢ pelo titulo do capitulo onde ele aparece: o organismo social. Assim afirmado, o ponto de vista organicista sobre a sociedade implica e engloba, de maneira muito coerente, uma certa idéia da guerra, O que ¢ entio a violéncia segundo Leroi-Gourhan? Sua resposta é clara "O comportamento de agressio pertence a realidade humana desde os australopitecos pelo menos, ¢ a evolug&o acelerada do dispositivo social em nada alterou o lento desenrolar da maturagao filética" (p. 237). A aj a mo comportement isto » soda Violence, relaciona-te portant & humenidade como” espécie)ié'coextensiva alela: Propriedade, em suma, zoolégica da espécie humana, a violéncia é identificada aqui como um fato irredutivel, como um dado natural que mergulha suas raizes no ser biolégico do homem. Essa violéncia especifica, realizada no comportamento agressivo, ndo ¢ sem causa nem finalidade, ela esté sempre orientada e dirigida a um objetivo: "Em todo 0 curso do tempo, a agressdo aparece como uma técnica fundamentalmente ligada a aquisigéio e, no primitivo, seu ponto de partida est na caga, onde a agressio e a aquisigao alimentar se confundem" (p. 236). Tnerente ao homem como ser natural, a violéncia determina-se portanto como meio de subsisténcia, como meio de assegurar a subsisténcia, como meio de uma finalidade naturalmente inscrita no coragéo do organismo vivo: sobreviver. Donde a identificagao da economia primitiva como economia de predagdo. O homem primitivo esta, enquanto homem, condenado ao comportamento de agressao; enquanto primitivo, ele é ao mesmo tempo apto e determinado a sintetiz naturalidade e sua humanidade na codificagao técnica de uma agressividade dai por diante util e rentavel: ele é cagador. r sua “Cf, Andeé Leroi-Gourhan. Le Geste et laparole, technique et langage. (Paris: Allin Michel, 1964) 163 Admitamos essa articulagio entre a violéncia, disciplinada em técnica de aquisigdo alimentar, ¢ o ser biolégico do homem, cuja integridade ela tem por missio manter, Mas onde se situa essa agresso muito particular manifestada na violéncia guerreira? Leroi-Gourhan nos explica: "Entre a caga e seu andlogo, a guerra, uma sutil a imilagao se estabelece progressivamente, & medida que ambas se concentram numa classe que nasceu da nova economia, a dos homens de armas" (p. 237). Eis portanto levantado, numa frase, 0 mistério da origem da divisio social: por “ssi sutil" (2) os cagadores tomam-se aos poucos os guemeiros que, ‘BESS PEERS SCENE £ um tanto surpreendente a leviandade de tais afirmagdes, sob a pena de um cientista cuja obra é, com razio, exemplar em sua especialidade, a pré-historia, Tudo isso exigitia uma exposigao especial, mas a ligdo a tirar é clara: hd bem mais do que imprudéncia nessa aposta no continuismo ao analisar-se fatos humanos, nessa redugio do social ao natural, do institucional ao biolégico. A sociedade humana tem a ver ndo com uma zoologia, mas com a sociologia. Voltemos portanto ao problema da guerra. Esta teria herdado da caga — técnica de aquisiedo alimentar — sua carga de agressividade, a guerra seria apenas uma repetigio, um "anélogo", um desdobramento da caga: dito mais prosaicamente, a guerra, para Leroi-Gourhan, é a caga ao homem. Isso é verdadeiro ou falso? Nao é dificil sabé-1o, basta consultar aqueles mesmos dos quais Leroi-Gourhan eré falar, os primitivos contempordneos. O que nos ensina a experiéncia etnolégica? E muito evidente que, se 0 objetivo da caga é adquirir alimento, o meio de obté-la & uma agressio: é preciso matar o animal para comé-lo. Mas entio deve-se incluir no campo da caga como técnica de aquisigio todos os comportamentos destruidores de uma outra forma de vida a fim de se alimentar: ndo apenas os animais, peixes e aves carnivoras, mas os insetivoros (agressdo do passarinho contra o inseto que ele engole etc), De fato, toda técnica de aquisigdo alimentar violenta deveria logicamente ser analisada em termos de comportamento de agressio. Nao ha nenhuma razio para privilegiar 0 cagador humano em relagdo ao cagador animal. Na realidade, o que motiva principalmente 0 cagador primitivo 0 apetite, com exclusio de qualquer outro sentimento (0 caso das cagas nao alimentares, isto é, rituais, pertence a outro dominio). O que distingue radicalmente a guerra da caga é que a primeira bascia-se inteiramente numa dimensio ausente da segunda: a agressividade. E nao basta que a mesma flecha possa matar um homem ou um macaco para identificar guerra e caga. Por isso ndo se pode relacionétas uma @ outra: a guerra é um puro comportamento de agressdo e agressividade. Se a guerra é a caga, entio a guerra é a 164 caca ao homem, e a caga deveria ser portanto a guerra aos bisdes, por exemplo. A menos que se suponha 0 objetivo da guerra ser sempre alimentar ¢ que 0 objeto desse tipo de agressio & 0 homem como animal de caga destinado a ser comido, essa redugio da guerra a caga operada por Leroi-Gourhan nao tem nenhum fundamento. Se a guerra é de fato 0 "andlogo" da caga, entdo a antropofagia generalizada é seu horizonte. Sabemos bem que nio é assim: mesmo entre as tribos canibais, 0 objetivo da guerra nunca é matar os inimigos para comé-los. E mais, essa "biologizagiio" de uma atividade como a guerra conduz inevitavelmente a suprimir sua dimensio propriamente social: a inguietante concepgo de Leroi-Gourhan leva a uma dissolugo do sociolégico no biolégico, a sociedade torna-se um organismo social ¢ toda tentativa de articular sobre a sociedade um discurso néo zoolégico revela-se inutil de antemao, E preciso estabelecer, ao contrario, que a guerra primitiva nada natureza mas para a cultura. O discurso economista €, de certo modo, anénimo por ser, nao a obra precisa de um tedrico determinado, mas antes a expresso de uma convicgao geral, uma certeza vaga do senso comum. Esse “discurso" formou-se no século XIX, a partir do momento em que se comegou na Europa a pensar separadamente a idéia de selvageria ea idéia de felicidade, a partir do momento em que, com ou sem razo, desconjuntou- se a crenga de que a vida primitiva era a vida feliz. Produziu-se entio uma virada do discurso antigo em seu contririo: 0 mundo dos selvagens passou a ser doravante, com ‘ou sem razo, 0 mundo da miséria ¢ da infelicidade. Bem mais recentemente, esse "saber" popular recebeu das ciéncias ditas humanas um estatuto cientifico, tornou-se discurso cientifico, discurso dos cientistas: os fundadores da antropologia econémica, acolhendo como verdade a certeza da miséria primitiva, passaram a buscar as razdes, disso ¢ a revelar suas conseqiiéncias. Dessa convergéncia entre o senso comum e 0 discurso cientifico resulta portanto esta proclamagao incessantemente repisada pelos etndlogos: a economia primitiva é uma economia de subsisténcia que permite apenas ‘aos selvagens subsistir, isto ¢, sobreviver. Se a economia dessas sociedades nao pode transpor o lamentavel limiar da sobrevivéncia — da ndio-morte — é por causa de seu subdesenvolvimento tecnolégico e de sua impoténcia diante de um meio natural que cla ndo consegue dominar. A economia primitiva é assim uma economia da miséria, é sobre esse fundo que vem se instalar o fenémeno da guerra. O discurso economista explica a guetta primitiva pela fraquéza'das forcas produtivas; a escassez dos bens materiais disponiveis provoca a disputa por sua posse entre os grupos movidos pela 165 necessidade, e essa Iuta pela vida resulta no conflito armado: nfo ha o bastante para todo mundo. Convém notar que essa explicagdo da guerra primitiva pela miséria dos selvagens é aceita como uma evidéncia inquestiondvel. Davie, em seu ensaio jé citado, ilustra perfeitamente esse ponto de vista: "Mas cada grupo, além da luta por sua existéneia contra a natureza, deve sustentar uma concorréneia contra qualquer outro grupo com o qual entra em contato; rivalidades ¢ colisées de interesses se produzem, e, quando estas degeneram em contestaco pela forga, chamamos isso de guerra” (p. 28). E ainda: "A guerra foi definida: uma contestagdo pela forga que nasce entre grupos politicos, sob a agdo da concorréncia vital... Assim, a importancia da guerra num grupo dado varia em razo direta da intensidade de sua concorréncia vital" (p. 78). Como se viu, esse autor constata, a partir da informagio etnografica, a universalidade da guerra na sociedade primitiva: somente os Esquimés da Groenléndia escapam a essa condigo, excegiio devida, explica Davie, a extrema hostilidade do meio natural, que os impede de dedicar energia a outra coisa que no a busca do alimento: "A cooperagio na luta pela existéneia é absolutamente imperativa no caso deles" (p. 79). Mas, poder-se-ia observar, os australianos nao parecem melhor aquinhoados, em seus desertos super-aquecidos, que os Esquimés na neve: no entanto, no so menos guerreiros que os outros povos. Convém igualmente assinalar que esse discurso crudito, simples enunciado "cientifico” do postulado popular sobre a miséria primitiva, ajusta-se exatamente, volens nolens,” ao avatar mais recente da concepgao “marxista" da sociedade, a saber: a “antropologia" marxista. No que se refere 4 questo da guerra primitiva, é a antropdlogos norte-americanos que se deve (se é possivel dizer) a interpretagdo marxista. Mais répidos que seus correligionarios franceses, prontos a dizer a verdade marxista tanto sobre as classes de idade africanas ou 0 potlatch americano, como sobre as relagdes entre homens e mulheres onde quer que seja, pesquisadores como M. Harris ou D. Gross explicam as razées da guerra entre os indios amazénicos, especialmente os Yanomami’ Quem espera desse marxismo uma luz imprevista ficard bastante decepcionado: seus defensores nao dizem mais (e pensam certamente menos) que todos os seus predecessores nao marxistas. Se a guerra é particularmente intensa entre os indios sul-americanos, isto se deve, segundo Gross e Harris, 4 escassez das proteinas na alimentacdo, a necessidade consecutiva de conquistar novos territérios de caga e ao inevitavel conflito armado com os ocupantes desses territérios. Em suma, a velhissima tese formulada por Davie, entre outros, sobre a incapacidade da economia primitiva de + Querenda ou nao, [¥. §D. Gross, "Proteine Capture and Cultural development in the Amazon Basin”, American Anthropologist, 1975; Marvin Harts, "The ‘Yanomamé and the Causes of War in Band and Village Societies", in M. Margolis & W. Carter (eds.). Brazil: Anthropological Perspectives. Nova York: Columbia University Pres, 1979, 166 fornecer & sociedade uma alimentagdo adequada.' Contentemo-nos com indicar um ponto que aqui nao pode ser mais desenvolvido. Se o discurso "marxista" (0 discurso economista perfeito) assimila tao facilmente as representages mais sumérias do senso comum, é ou porque esse senso comum é marxista espontancamente (6 sonho de Mao!), ou porque esse marxismo s6 se distingue do senso comum pela cémica pretensdo de afirmar-se como discurso cientifico. Mas ha outra coisa, O marxismo, enquanto teoria geral da sociedade ¢ também da historia, é obrigado a postular a miséria da economia primitiva, isto é 0 baixissimo rendimento da atividade de produgdo. Por qué? Porque a teoria marxista da hist6ria (¢ trata-se da teoria mesma de Karl Marx) descobre a Iei do movimento histérico ¢ da mudanga social na tendéncia irreprimivel das forgas produtivas a se desenvolver. Mas, para que a histéria se ponha em marcha, para que as forgas produtivas ganhem impulso, é preciso que no ponto de partida de tal processo essas mesmas forgas produtivas existam inicialmente na mais extrema fraqueza, no mais completo subdesenvolvimento: sem 0 qué nio haveria a menor razdo para que tendessem a se desenvolver, ¢ ndo se poderia articular mudanga social e desenvolvimento das forgas produtivas. Por isso o marxismo, como teoria da historia fundada na tendéncia das forgas produtivas ao desenvolvimento, deve ero das for produtivas: atribuir-se, como ponto de apoio, uma espécie de grau z exatamente a economia primitiva, pensada desde entio como economia da miséria, como economia que, querendo sair da miséria, tendera a desenvolver suas forgas produtivas. Sobre esse ponto, seria uma grande satisfagio conhecer o ponto de vista dos antropélogos marxistas, se conseguirem apresenté-lo: muito elogiientes quanto a invengao das formas de exploragao nas sociedades primitivas (primogénito/cacula, homen/mulher etc), sio bem menos elogiientes quanto ao fundamento da doutrina que invocam. Pois a sociedade primitiva coloca 4 teoria marxista uma questdo crucial; se 0 econémico nado constitui a infraestrutura por meio da qual torna-se transparente o ser social, se as forgas produtivas, nao tendendo a se desenvolver, ndo funcionam como determinante da mudanga social, qual é entdo 0 motor que poe em marcha o movimento da Hist6ria? Dito isto, voltemos ao problema da economia primitiva. E ela, sim ou nao, uma economia da miséria? Suas forgas produtivas representam ou nao o minimo possivel do desenvolvimento? As pesquisas mais recentes, e as mais escrupulosas, de antropologia econémica demonstram que a economia dos selvagens, ou Modo de Produgio Doméstico, permite na realidade uma satisfagdo total das necessidades materiais da sociedade, ao prego de um tempo reduzido de atividade de produgao e de uma baixa intensidade dessa atividade. Em outras palavras, longe de consumir-se ‘ Jueques Lizot, que conhece bem demais os Yanomami para deixar-se enganar, mostra como uma grande ignorincia trabalhos de Gross e Harris. CL. "Population, ressources et guerre chez les Yanomam". Libre, n. 2, 1977. 167 incessantemente tentando sobreviver, a sociedade primitiva, seletiva na determinagio de suas necessidades, dispde de uma "maquina" de produgdo apta a satisfazé-las, funciona de fato segundo o principio: a cada um conforme suas necessidades. Por isso, Marshall Sahlins péde, com razio, falar da sociedade primitiva como da primeira sociedade de abundancia, As andlises de Sahlins e de Lizot sobre a quantidade de alimento necessario a uma comunidade e sobre o tempo gasto em obté- lo indicam que as sociedades primitivas, quer se trate de cagadores némades ou de agricultores sedentirios, so na verdade, considerando 0 pequeno tempo dedicado a produgdo, verdadeiras sociedades de lazer. Os trabalhos de Sablins e os de Lizot recuperam assim ¢ confirmam o material etnografico fornecido pelos antigos viajantes e cronistas. O discurso economista, em suas variantes popular, erudita ou marxista, explica a guerra pela concorréncia dos grupos tendo em vista apropriar-se de bens escassos. Ja seria dificil compreender de onde os selvagens, envolvidos 0 tempo inteiro numa busca exaustiva de alimento, tirariam energia e tempo suplementares para guerrear contra os vizinhos. Mas, além disso, as pesquisas atuais mostram que a economia primitiva é, a0 contrario, uma economia da abundancia endo da escassez: portanto, a violéncia nao se articula com a miséria, ¢ a explicag&io economista da guerra primitiva vé desabar seu ponto de apoio. A universalidade da abundancia primitiva impede, precisamente, que possamos relaciond-la com a universalidade da guerra. Por que as, tribos esto em guerra? Pelo menos ja sabemos o que vale a resposta "materialista E, se 0 econdmico nada tem a ver com a guerra, entdo serd preciso talvez voltar 0 olhar para 0 politico.’ © discurso relative & troca sobre a guerra primitiva subjaz ao trabalho sociolégico de Claude Lévi-Strauss. Tal afirmagdo pareceré, 4 primeira vista, paradoxal: com efeito, na obra considerdvel desse autor a guerra nao ocupa, é 0 minimo que se pode dizer, senfo um pequeno volume. Mas, além de que a importincia de um tema ndo se mede necessariamente pelo espago que lhe é concedido, verifica-se, no caso, que a teoria geral da sociedade elaborada por Lévi- Strauss depende estritamente de sua concepgo da violéncia: 0 que estd em jogo nessa concepgio é © préprio discurso estruturalista sobre o ser social primitive. Trata-se portanto de avaliar esse discurso. ° Cf. Marshall Sablns, Age de pierre, dige d'abondance.L’Economie des sociéts primitives (Paris: Gallimard, 1976). * As catistrofes naturis(secas, inundayGes, teremotos, desaparecimento de uma espécie animal et.) podem provocar uma rarefagdo local dos recursos. Mas ela teria que ser bastante duradoura para provocar 0 confita. Um outro tipo de situagio poderia, parece, cconffontar uma sociedade com a eseassez, sem que a natuteza fosseresponsivel: a conjuagio de um espago absolutamente fechado & de uma demografia absolutamente aberta (isto €, erescente) conteria o risco de uma patologia social que desembocasse na gue”? Isso nfo é evidente, mas cabe aos especialistas da Polinésia ou da Melanésia (has, ito &, espagos fechados) responder. 168 ‘A questo da guerra é considerada num inico texto em que Lévi-Strauss analisa as relagdes que ela mantém, entre os indios da América do Sul, com 0 coméreio.’ A guerra é ai situada claramente no campo das relagdes sociais: "Entre os Nambikwara, como certamente entre numerosas populagdes da América pré-colombiana, a guerra e © comércio constituem atividades que ¢ impossivel estudar isoladamente" (p. 136). E ainda: "... 0 conflitos guerreiros e as trocas econémicas no constituem apenas, na América do Sul, dois tipos de relagdes coexistentes, mas sobretudo os dois aspectos, opostos ¢ indissoliiveis, de um mesmo e tnico proceso social" (p. 138). Portanto, segundo Lévi-Strauss, ndo se pode pensar a guerra por si mesma, ela no possui especificidade prépria e, a0 contritio, esse tipo de atividade, longe de requerer um exame particular, s6 pode ser compreendido na "continuidade propria aos elementos do todo social" (p. 138). Em outras palavras, na soviedade primitiva no ha MSHS ereretalesioree alone: esta sé adquire sentido vinculada a rede geral das relagdes que encerram os grupos, a violencia é apenas um caso particular desse sistema global. Se Lévi-Strauss quer indicar com isso que a guerra primitiva é uma atividade de ordem estritamente sociolégica, evidentemente ninguém 0 contestard, com excegao de Leroi-Gourhan, que dissolve a atividade guerreira na ordem biolégica. Por certo, Lévi-Strauss ndo se atém a essas vagas gencralidade contrario, ele fornece uma idéia precisa sobre 0 modo de funcionamento da sociedade primitiva, amerindia em todo caso. A identificagiio desse modo de funcionamento ao assume a mais alta impor 4 que determina a natureza e o alcance da violéncia e da guerra, j4 que as determina em seu ser. Qual é, para Lévi-Strauss, a relagdo entre guerra ¢ sociedade? A resposta é clara; "As trocas comerciais representam guerras potenciais pacificamente resolvidas, e as guerras so 0 resultado de transagées mal- sucedi-das" (p. 136). Portanto, ndo apenas a guerra se inscreve no campo do sociolégico, mas recebe seu ser e seu sentido ultimo do funcionamento particular da sociedade primitiva: as relagdes entre comunidades (tribos, bandos, grupos locais: pouco importa) so antes de mais nada comerciais, e € do sucesso ou do fracasso desses empreendimentos comerciais que dependem a paz ou a guerra entre as tribos. Nao apenas guerra e comércio devem ser pensados na continuidade, mas é 0 ‘comércio mesmo que detém, em relagdo 4 guerra, uma prioridade sociolégica, uma prioridade de certo modo ontolégica por se instalar no nucleo mesmo do ser social. Acrescentemos por fim que, longe de ser nova, a idéia de uma conjungao entre guerra e comércio é na verdade uma banalidade etnolégica, tanto quanto a convicgiio da escassez como horizonte da economia primitiva. Assim vemos afirmada, exatamente nos mesmos termos que os de Lévi-Strauss, a relacgao intrinseca entre guerra e CL Claude Lévi-Strauss, "Guerre et commerce chez les Indiens de TAmérique du Sud. Renaissance, v. Nova York, 1943, 169 comércio, por Davie, por exemplo: "Nos casos primitivos, 0 comércio 6 com freqiiéncia uma alternativa a guerra, e a maneira pela qual é conduzido mostra que ele uma modificacao desta" (op.cit., p. 302). Poder-se-ia objetar que o texto discutido, alias menor, de modo nenhum pée em jogo a teoria geral do ser social tal como a desenvolveu Lévi-Strauss em trabalhos de outra dimensao. Isso nao é verdade. Com efeito, as conclusées tedricas desse texto suposto menor sao integralmente retomadas na grande obra sociolégica de Lévi- Strauss, As estruturas elementares do parentesco, na conclusdo de um dos capitulos mais importantes, 0 principio de reciprocidade: "Ha uma ligagdo, uma continuidade entre as relagées hostis ¢ 0 fornecimento de prestagées reciprocas: as trocas sio guerras pacificamente resolvidas, as guerras sio o resultado de transagdes malsucedidas."° Com a tnica diferenga de que, na mesma pagina, é explicitamente (e sem comentarios) eliminada a idéia de comércio. Descrevendo as trocas de presentes entre grupos indigenas estrangeiros, Lévi-Strauss tem 0 cuidado de marcar seu abandono da referéncia ao comércio: "Trata-se portanto de dadivas reciprocas, ¢ nio de operagées comerciais". Examinemos tudo isso mais de perto. A firmeza com que Lévi-Strauss distingue a dadiva reciproca da operagdo comercial ¢ inteiramente legitima. Mas no ser supérfluo explicar a razio disso, num rapido desvio pela antropologia econémica. Se a vida material das sociedades desenrola-se sobre um fundo de abundancia, 0 modo de produgdo doméstico apresenta também uma propriedade essencial sublinhada pela reflexdo de Sablins, a de que ele é sustentado por um ideal de autarquia: cada comunidade aspira a produzir ela propria tudo o que necesita para a subsisténcia de seus membros. Dito de outro modo, a economia primitiva tende ao fechamento da comunidade em si mesma e 0 ideal de autarquia econdmica dissimula um outro, do qual € © meio: 0 ideal de independéncia politica. Ao decidir ndo depender senio de si mesma para sua produgio de consumo, a comunidade primitiva (aldeia, bando etc.) exclui por isso mesmo a necessidade de relagdes econdmicas com os grupos vizinhos. Ndo é a necessidade que funda as relagdes "internacionais" na sociedade primitiva — a qual & capaz precisamente de satisfazer todas as suas necessidades sem ser forgada a solicitar a assisténcia de outrem: produz-se tudo (alimento ¢ instrumentos) de que se necessita, portanto tem-se condigdes de passar sem os outros, Em outras palavras, 0 ideal autérquico é um ideal anticomercial. Como todo ideal, cle no se realiza sempre, nem em toda parte: mas dos selvagens pode-se dizer que, se as circunstincias o exigem, eles podem se orgulhar de no depender dos outros. " Les Structures élémentaires de Ja. parenté(Pasis: Mouton, [1949] 1967, 2 ed, p. 78) 170 Eis por que 0 Modo de Produgio Doméstico ignora as relagdes comerciais que seu funcionamento econdmico tende precisamente a excluir: a sociedade primitiva, em seu ser, recusa 0 risco, imanente ao comércio, de alienar sua autonomia, de perder sua liberdade. Assim, & com razdo que o Lévi-Strauss das Estruturas cuidou de ndo retomar 0 que escrevera em "Guerra e comércio"... Portanto, para compreender alguma coisa da guerra primitiva, deve-se evitar articulé-la com um comércio que néo _ existe. Desse modo, nao € mais o comércio que da sentido a guerra, é a troca; a interpretag3o da guerra procede da concepgio relativa a troca da sociedade, ha continuidade entre a guerra ("resultado de transagdes malsucedidas") © a troca ("guerras pacificamente resolvidas"). Mas, assim como, na primeira versio da teoria lévi-straussiana da violéncia, a guerra era vista como o n&o-éxito eventual do comércio, vemos também atribuida, na teoria da troca, uma equivalente prioridade a esta diltima, da qual a guerra ndo senao o fracasso. Em outras palavras, a guerra ndo possui por si mesma nenhuma positividade, ela exprime nio o ser social da sociedade primitiva mas a ndo-realizagio desse ser-para-a-troca: a guetta & o negative ¢ a negacao da sociedade primitiva na medida em que esta é o lugar privilegiado da troca, na medida em que a troca é a esséncia mesma da sociedade primitiva. Segundo essa concepgaio, a guerra, como desvio, como ruptura do movimento em diregio a séncia, o nao-ser da sociedade. Ela é 0 acessério troca, s6 poderia representar a ndo-es em relagio ao principal, o acidente em rela primitiva quer é a troca: tal é seu desejo socioldgico, o qual tende constantemente a a substancia, O que a sociedade realizar-se, realiza-se efetivamente quase sempre, salvo em caso de acidente, Entdo surgem a violéncia e a guerra. A légica da concepgio relativa a troca conduz assim a uma quase dissolugdo do fendmeno guerreiro. A guerra, despojada de positividade pela prioridade atribuida 4 troca, perde toda dimensio institucional: ela nfo pertence ao ser da sociedade primitiva, € apenas uma propriedade acidental, casual, acesséria, a sociedade primitiva & pensdvel sem a guerra. Esse discurso sobre a guerra primitiva, discurso imanente A teoria geral que Lévi-Strauss desenvolve sobre a sociedade primitiva, nao leva em conta este dado etnografico: a quase universalidade do fenémeno guerreiro, quaisquer que sejam as sociedades consideradas, seu meio natural ou seu modo de organizagio sécio-econémico; a intensidade, naturalmente varidvel, da atividade guerreira. Assim a concepgio relativa a troca ¢ seu objeto resultam, de certo modo, exteriores um ao outro, a realidade primitiva ultrapassa o discurso de Lévi-Strauss. Nao por negligéncia ou ignoréncia do autor, mas porque a consideragiio da guerra & 171 incompativel com sua andlise da sociedade, andlise que s6 se sustenta excluindo a fungdo sociolégica da guerra na sociedade primitiva. Isso significa que é preciso, para respeitar a realidade primitiva em todas as suas dimens s, abandonar a idéia da sociedade como lugar da troca? De modo nenhum. Com efeito, nao ha tal alternativa: ou a troca ou a violéncia. Nao é a troca em si que é contraditéria com a guerra, mas o discurso que reduz o ser social da sociedade primitiva exclusivamente a troca. A sociedade primitiva é 0 espago da troca ¢ é também o lugar da violéncia: a guerra, tanto quanto a troca, pertence ao ser social primitivo. Nao se pode, e & 0 que sera preciso estabelecer, pensar a sociedade primitiva sem pensar ao mesmo tempo a guerra. Para Hobbes, a sociedade primitiva era a guerra de todos contra todos. O ponto de vista de Lévi-Strauss é simétrico ¢ inverso ao de Hobbes: a sociedade primitiva é a troca de todos com todos. Hobbes nao considerava a troca, Lévi-Strauss no considera a guerra. Mas seria 0 caso, por outro lado, de justapor simplesmente o discurso sobre a troca e o discurso sobre a guerra? A reabilitago da guerra como dimensao essencial da sociedade primitiva deixa subsistir intacta a idéia da troca como esséncia do social? Isso é evidentemente impossivel: enganar-se sobre a guerra é enganar-se sobre a sociedade. De onde provém o erro de Lévi-Strauss? De uma confusdo dos planos sociolégicos em que funcionam respectivamente a atividade guerreira © a troca. Querer situd-los no mesmo plano é ser levado fatalmente a climinar um ou outro ¢ assim a deformar, mutilando-a, a realidade social primitiva. A troca e a guerra devem portanto ser pensadas, nao segundo uma continuidade que permitiria passar por graus de uma outra, mas segundo uma descontinuidade radical que é a unica a manifestar a verdade da sociedade primitiva. A extrema fragmentagdo sob a qual se apresenta em toda parte a sociedade primitiva seria a causa, como amiiide se escreveu, da freqiiéncia da guerra nesse tipo de sociedade. O engendramento mecanico, descrito na seqiiéncia: escassez dos recursos -> concorréncia vital > isolamento dos grupos, produziria, como efeito geral, a guerra. Ora, se ha de fato uma relagdo profunda entre a multiplicidade das unidades séciopoliticas e a violéncia, sé se pode compreender sua articulagio invertendo a ordem habitual em que se apresentam: nao é a guerra que é 0 efeito da fragmentagio, a fragmentagio & que é 0 efeito da guerra. E no é somente o efeito, mas a finalidade: a guerra é ao mesmo tempo a causa e o meio de um efeito e de um fim buscados, a fragmentagéo da sociedade primitiva. Em seu ser, a sociedade primitiva quer a dispersdo. Esse querer da fragmentagdo pertence ao ser social primitivo que se institui como tal na e pela realizagéio dessa vontade sociolégica. Em 172 outras palavras, a guerra primitiva é 0 meio de um fim politico. Portanto, pergunta se por que os selvagens fazem a guerra é interrogar o ser mesmo de sua sociedade. Cada sociedade primitiva particular exprime igual e integralmente as propricdades essenciais desse tipo de formagio social, a qual encontra sua realidade conereta no nivel da comunidade primitiv: é constituida por um conjunto de individuos em que cada um reconhece e reivindica, precisamente, sua pertenga a esse conjunto. A comunidade como conjunto, portanto, retine ¢ ultrapassa, integrando~ s num todo, as diversas unidades que a constituem e que, na maioria das vezes, inscrevem-se no eixo do parentesco: familias elementares, estendidas; linhagens, clas, metades etc, mas também, por exemplo, sociedades militares, confrarias ccrimoniais, classes de idade etc. Assim, a comunidade é mais que a soma dos grupos que ela retine, ¢ esse mais a determina como unidade propriamente politica. A unidade politica da comunidade encontra sua inscrigdo espacial imediata na unidade do habitat: as pessoas que pertencem 4 mesma comunidade vivem juntas no mesmo local. Segundo as regras de residéncia pés-marital, um individuo pode ser naturalmente levado a deixar sua comunidade de origem para juntar-se A de seu cOnjuge: mas a residéncia nova nao abole a pertenca antiga, ¢ as sociedades primitivas também inventam numerosos meios de contomar as regras de residéncia, se sio julgadas muito penosas. ‘A comunidade primitiva é portanto © grupo local. Essa determinagdo transcende a variedade econémica dos modos de produgio, pois & mével do habitat. Um grupo local pode ser constituido tanto por cagadores némades quanto por agricultores sedentarios; o bando errante de cagadores-coletores possui, do indiferente ao carter fixo ou mesmo modo que a aldeia estavel de plantadores, as propriedades sociolégicas da comunidade primitiva. Esta, enquanto unidade politica, no apenas se inscreve no espago homogéneo de seu habitat como também estende seu controle, sua codificagio, seu direito sobre um territério. Isso € evidente no caso dos cagadores, & verdade também para agricultores que sempre contam, para além de suas plantagdes, com um espago selvagem onde podem cagar e colher as plantas titeis: simplesmente, 0 territério de um bando de cagadores tem todas as chances de ser mais extenso que o de uma aldeia de agricultores. A localidade do grupo local € portanto seu territério, como reserva natural de recursos materiais, certamente, mas sobretudo como espago exclusivo de exercicio dos direitos comunitarios. A exclusividade no uso do territério implica um movimento de exclusio, e aqui aparece com clareza a dimensio propriamente politica da sociedade primitiva como comunidade que inclui sua relagdo essencial com o territério: a existéncia do Outro é desde o inicio posta no ato que o exclui, & contra as outras comunidades que cada sociedade afirma seu direito 173 exclusivo sobre um territrio determinado, a relagio politica com os grupos vizinhos é imediatamente dada. Relagdo que se institui na ordem politica e njo na ordem econémica, lembremos: sendo o modo de produgao doméstico o que é, nenhum grupo local tem, em principio, qualquer necessidade de invadir o territério dos vizinhos a fim de se abastecer. © controle do territério permite comunidade realizar seu ideal autarquico garantindo=lhewayauto-suficiénciayemprecursosyy cla néo depende de ninguém, é independente. Disso deveria resultar, sendo todas as coisas iguais para todos os grupos locais, uma auséncia geral da violéncia: esta s6 poderia surgir nos raros casos de violagdo do territério, deveria ser apenas defensiva, portanto jamais sc produzir, cada grupo contando com seu proprio territério de onde nao tem a menor razdo de sair. Ora, sabemos que a guerra é geral e com muita freqiiéncia ofensiva. Logo, a defesa territorial nao é a causa da guerra, e assim nao esta esclarecida ainda a relagao entre guerra e sociedade. Como ¢ o ser da sociedade primitiva, enquanto se realiza, idéntico, na série infinita de comunidades, bandos, aldeias ou grupos locais? A resposta esté presente em toda a literatura etnografica, desde que 0 Ocidente se interessa pelo mundo dos selvagens. O ser da sociedade primitiva sempre foi visto como lugar da diferenga absoluta em relagéo ao ser da sociedade ocidental, como espago estranho © impensavel da auséncia — auséncia de tudo o que constitui o universo sécio-cultural dos observadore: mundo sem hierarquia, homens que nio obedecem a ninguém, sociedade indiferente posse da riqueza, chefes que ndo mandam, culturas sem moral porque ignoram 0 pecado, sociedade sem classes, sociedade sem Estado ete. Em suma, 0 que os escritos dos viajantes antigos ou dos estudiosos modemos nao cessam de clamar sem chegar a dizé-lo é que a sociedade primitiva 6, em seu ser, indivisa. Ela ignora — porque impede seu aparecimento — a diferenga entre ricos e pobres, a oposigiio entre exploradores ¢ explorados, a dominagdo do chefe sobre a sociedade. O Modo de Produgdo Doméstico, que assegura a autarquia econémica da comunidade como tal, permite também a autonomia dos grupos de parentesco que compdem o conjunto social, ¢ mesmo a independéncia dos individuos. Com efeito, exceto a que pertence aos sexos, nao ha na sociedade primitiva nenhuma divisiio do trabalho: cada individuo é, de certo modo, polivalente, todos os homens sabem fazer tudo o que os homens devem saber fazer, todas as mulheres sabem cumprir as tarefas que toda mulher deve cumprir. Nenhum individuo apresenta, na ordem do saber e da habilidade, uma inferioridade tal que dé ocasido ao dominio de um outro, mais dotado ou melhor aquinhoado: os parentes da "vitima" logo fariam desencorajar a vocagao do aprendiz de explorador. Os etndlogos nao cessam de apontar a indiferenga dos 174 selvagens diante de seus bens e posses — que eles tornam a fabricar facilmente quando se gastam ou quebram —, a auséncia neles de todo desejo de acumulagio. Por que tal desejo apareceria? A atividade de produgdo é exatamente medida pela satisfagdo das necessidades ¢ no vai mais além. A produgdo de excedente é perfeitamente possivel na economia primitiva, mas ¢ também totalmente inatil: que se faria com ele? Por outro lado, a atividade de acumulagao (produzir um excedente inutil) sé poderia ser, nesse tipo de sociedade, um empreendimento estritamente individual: 0 "empresério" ndo poderia contar senio com as proprias forcas, a exploragdo de outrem sendo, sociologicamente, impossivel. Imaginemos porém que, apesar da soliddo de scu esforgo, o empresario sclvagem consiga constituir, com 0 suor de seu rosto, um estoque de recursos dos quais, lembremos, ele no sabe o que fazer, pois trata-se de um excedente, isto é, de uma quantidade de bens no necessdrios na medida em que ndo mais tém a ver com a satisfagdo das necessidades Que aconteceré? A comunidade simplesmente o ajudaré a consumir esses recursos gratuitos: 0 homem "rico" 4 custa de seu esforgo verd sua riqueza desaparecer num piscar de olhos nas mios, ou nos est6magos, de seus vizinhos. A realizagdo do desejo de acumulagio se reduziria assim a um puro fenémeno de auto-exploragio do individuo por si mesmo e de exploragao do rico pela comunidade. Os selvagens sio bastante sensatos para no se entregar a essa loucura, a sociedade primitiva funciona de tal maneira que a desigualdade, a exploragiio ¢ a divisdo sejam impossiveis. Compreendida em seu plano efetivo de existéncia — o grupo local — a sociedade primitiva apresenta duas propriedades socioldgicas essenciais, porquanto dizem respeito a seu ser mesmo, esse ser social que determina a razio de ser ¢ 0 principio de inteligibilidade da guerra. A sociedade primitiva é ao mesmo tempo totalidade e unidade. Totalidade porque ¢ conjunto acabado, auténomo, completo, atento em preservar a todo instante sua autonomia, sociedade no sentido pleno do termo. Unidade porque seu ser homogéneo persevera na recusa da divisio social, na exclusdo da desigualdade, na interdigdo da alienagdo. A sociedade primitiva é totalidade una porque o principio de sua unidade nao Ihe é exterior: ela nao deixa nenhuma figura do Um destacar-se do corpo social para representé-la, para encarné-la como unidade. Eis por que o critério da indivisdo é fundamentalmente politico: se 0 chefe selvagem nao tem poder é porque a sociedade nao aceita que o poder se separe de seu ser, que a divisio se estabelega entre quem manda e quem obedece. E também por isso, na sociedade primitiva, é o chefe que tem a incumbéncia de falar em nome da sociedade: em seu discurso, 0 chefe jamais exprime o capricho de seu desejo individual ou de sua lei privada, mas apenas o desejo sociolégico que tem a sociedade de permanecer indivisa e o texto de uma Lei que ninguém fixou, pois nao depende da 175 decisio humana © legislador & também o fundador da sociedade, sio os antepassados miticos, os herdis culturais, os deuses. E dessa Lei que 0 chefe é porta- voz: a substancia de seu discurso & sempre a referéncia a Lei ancestral que ninguém pode transgredir, pois cla é o ser mesmo da sociedade: violar a Lei seria perturbar, mudar © corpo social, introduzir a inov absolutamente. © a mudanga que ele rechaga Comunidade que assegura o controle de seu territério sob o signo da Lei responsavel por sua indivisio: assim é a sociedade primitiva. A dimensio territorial ja inclui o vineulo politico na medida em que ela é exclusio do Outro. E justamente 0 Outro como espelho — os grupos vizinhos — que devolve 4 comunidade a imagem de sua unidade e de sua totalidade. £ diante das comunidades ou bandos vizinhos que tal comunidade ou tal bando determinado se afitma e pensa como diferenga absoluta, liberdade irredutivel, vontade de manter seu ser como totalidade una. Eis portanto como aparece concretamente a sociedade primitiva: uma multiplicidade de comunidades separadas, cada uma zelando pela integridade de seu territério, uma série de neoménadas, cada uma delas afirmando frente as outras sua diferenga. Cada comunidade, enquanto indivisa, pode se pensar como um Nés. sse Nos, por sua vez, se pensa como totalidade na relac%o igual que mantém com os Nés equivalentes que constituem as outras aldeias, tribos, bandos etc. A comunidade primitiva pode se afirmar como totalidade porque se institui como unidade: ela é um todo finito porque éum Nés indiviso. Nesse nivel de andlise, cumpre admitir que a estrutura geral da organizagio primitiva é pensavel na pura estatica, na inércia total, na auséncia de movimento, Com efeito, o sistema global parece poder funcionar tendo em vista apenas sua propria repeticao, tornando impossivel qualquer emergéncia de oposigao ou conflito. Ora, a realidade etnografica nos mostra o inverso: longe de ser inerte, o sistema esta em movimento perpétuo, nao pertence a estdtica mas a dindmica; e a ménada primitiva, ao invés de permanecer fechada em si mesma, abre-se para as outras na intensidade extrema da violéncia guerreira. Como entio pensar ao mesmo tempo 0 sistema e a guerra? E a guerra um simples desvio que traduziria o fracasso ocasional do sistema, ou nao poderia o sistema funcionar sem a guerra? Seria a guerra uma condigiio de possibilidade do ser social primitivo? Seria ela, ndo a ameaga de morte, mas a condig&o de vida da sociedade primitiva? Um primeiro ponto é claro: a possibilidade da guerra estd inscrita no ser da sociedade primitiva. Com efeito, a vontade de cada comunidade de afirmar sua diferenga é suficientemente vigorosa para que 0 menor incidente logo transforme a diferenga desejada em contenda real. Violagdo de territério, agressio suposta do 176 xami dos vizinhos: ndo ¢ preciso mais para que a guerra irrompa. Equilibrio fragil, portanto: a possibilidade da violéncia e do conflito armado é aqui um dado imediato. Mas serd que se poderia imaginar essa possibilidade nunca se tornando realidade, e que em vez da guerra de todos contra todos, como pensa Hobbes, houvesse ao contrario a troca de todos com todos, tal como impli Strauss? Consideremos, pois, a hipétese da amizade generalizada. Muito rapidamente se © ponto de vista de Lévi- percebe que ela é, por varias razées, impossivel. Antes de mais nada, por causa da dispersdo espacial. As comunidades primitivas mantém entre si certa distincia, no sentido préprio ¢ no sentido figurado: entre cada bando ou aldeia estendem-se scus respectivos territérios, 0 que permite a cada grupo guardar sua distancia em relagado aos outros. A amizade ndo combina com o afastamento. Ela é mantida facilmente com vizinhos préximos, que podem ser convidados para festas, de quem se pode aceitar convites ¢ que podem ser visitados. Com os grupos distantes, esse tipo de relagdo nio pode ser estabelecido. Uma comunidade primitiva sente aversio por afastar-se muito e por muito tempo do territério que conhece porque ¢ o seu: tio logo ndo esto mais "em casa", os selvagens experimentam, com ou sem raziio, mas na maioria das vezes com razio, um vivo sentimento de desconfianga e temor. As relagdes amistosas de troca s6 se desenvolvem, portanto, entre grupos préximos uns dos outros, os grupos distantes estio excluides: cles siio, no melhor dos casos, os Estrangeiros. Mas, por outro lado, a hipétese da amizade de todos com todos entra em contradigdo com desejo profundo, essencial de cada comunidade de manter & desdobrar seu ser de totalidade una, isto é, sua diferenga irredutivel em relagdo a todos os outros grupos, inclusive os vizinhos amigos e aliados. A l6gica da sociedade primitiva, que é uma ldgica da diferenga, entraria em contradigdo com a légica da troca generalizada que é uma l6gica da identidade, por ser uma légica da identificagdo. Ora, é isto que a sociedade primitiva recusa acima de tudo: identificar- se aos outros, perder o que a constitui como tal, seu ser e sua diferenga, a capacidade de se pensar como um Nés auténomo. Na identificagiio de todos a todos que a troca generalizada acarretaria, na amizade de todos com todos, sua individualidade. A troca de todos com todos seria a destruigo da sociedade primitiva: a identificagiio é um movimento para a morte, o ser social primitive é uma cada comunidade perderia afirmagao de vida. A légica da identidade daria lugar a uma espécie de discurso igualizador, a palavra-chave da amizade de todos com todos sendo: "Somos todos iguais!" Unificagao em um Meta-Nés da multiplicidade dos Nés parciais, supressdo da diferenga prépria a cada comunidade auténoma: abolida a disting%o do Nés ¢ do 177 Outro, é a propria sociedade primitiva que desapareceria. Aqui nio se trata de psicologia primitiva mas de légica sociologica: ha, imanente sociedade primitiva, uma légica centrifuga da atomizagio, da dispersio, da cistio, de modo que cada comunidade tem necessidade, para se pensar como tal (como totalidade una), da dade da violéncia esta figura oposta do estrangeiro ou do inimigo, ¢ assim a possibi inscrita de antemao no ser social primitivo; a guerra ¢ uma estrutura da sociedade primitiva ¢ nao o fracasso acidental de uma troca malsucedida. A esse estatuto estrutural da violéncia corresponde a universalidade da guerra no mundo dos selvagens. Por funcionamento estrutural, a amizade gencralizada ¢ a troca de todos com todos so impossiveis. Deve-se portanto dar razio a Hobbes e, da impossibilidade da amizade de todos com todos, tirar a conclusio da realidade da guerra de todos contra todos? Vejamos agora a hipétese da hostilidade generalizada. Cada comunidade acha- se em situagdo de confronto com todas as outras, a maquina guerreira funciona a todo vapor, a sociedade global compée-se apenas de inimigos que aspiram 4 sua destruicdo reciproca. Ora, toda guerra, como se sabe, acaba por deixar frente a frente um vencedor ¢ um vencido. Qual seria nesse caso o efeito principal da guerra de todos contra todos? Ela instituiria essa relagdo politica cuja emergéncia a sociedade primitiva procura justamente impedir, a guerra de todos contra todos levaria ao estabelecimento da relagdo de dominagdo, da relagdo de poder que © vencedor poderia exercer pela forga sobre 0 vencido. E entdo se esbogaria uma nova figura do social ineluindo a relagdo de comando-obediéneia, a divisdo politica da sociedade em Senhores © Stiditos. Em outras palavras, seria a morte da sociedade primitiva enquanto ela é ¢ quer ser um corpo indiviso. Por conseguinte, a guerra generalizada produziria exatamente 0 mesmo efeito que a amizade generalizada: a negagio do ser social primitive, No caso da amizade de todos com todos, a comunidade perderia, por dissolugdo de sua diferenga, sua propriedade de totalidade auténoma. No caso da guerra de todos contra todos, ela perderia, por irrupgdo da divisio social, seu carater de unidade homogénea: a sociedade primitiva &, em seu ser, totalidade una, Ela ndo pode consentir na paz universal que aliena sua liberdade, assim como nao pode se entregar 4 guerra geral que abole sua igualdade. Nao é possivel, entre os selvagens, nem ser 0 amigo de todos nem ser o inimigo de todos. E, no entanto, a guerra pertence a esséncia da sociedade primitiva, cla é, como a troca, uma estrutura des sociedade. Quer isso dizer que o ser social primitivo seria uma espécie de composto de dois elementos heterogéneos — um pouco de troca, um pouco de guerra — e que o ideal primitivo consistiria em manter 0 equilibrio entre esses dois componentes, na busca de um justo meio-termo entre elementos contririos, 178 quando nao contraditérios? Seria persistir na idéia lévi-straussiana de que a guerra e a troca desenvolvem-se no mesmo plano e que um & sempre o limite e 0 fracasso do outro. Nessa perspectiva, com efeito, a troca generalizada elimina a guerra, mas, a0 fazé-lo, extingue também a sociedade primitiva; ¢ a supressio da troca pela guerra O ser soci generalizada tem a mesma conseqiiénci: | tem portanto, simultaneamente, necessidade da troca e da guerra para poder a uma s6 vez conjugar o ponto de honra autonomista e a recusa da divisdo. E com essa dupla exigéncia que se relacionam o estatuto e a fungdo da troca e da guerra, que se desdobram em planos distintos. A impossibilidade da guerra de todos contra todos opera, para uma comunidade dada, uma imediata classificagiio da gente que a cerca: os Outros sio de saida classificados em amigos ¢ inimigos. Com os primeiros se tentara fazer aliangas, com os segundos se aceitara — ou se buscaré — o risco da guerra. Seria um erro reter dessa descrigao apenas a banalidade de uma situagdo inteiramente geral na sociedade primitiva. Pois & preciso agora colocar a questo da alianga: por que uma comunidade primitiva tem necessidade de aliados? A resposta é evidente: porque ela tem inimigos. Ela teria que estar muito segura de sua forga, estar muita certa de uma vitéria repetida sobre os adversarios, para dispensar 0 apoio militar, ou mesmo apenas a neutralidade, dos aliados. Na pratica, isso nunca acontece: uma comunidade nunca se langa na aventura guerreira sem antes proteger sua retaguarda por meio de iniciativas diplométicas — festas, convites — que resultam em aliangas supostamente durdveis, mas que devem constantemente ser reativadas, pois a traigdo ¢ sempre possivel e, com freqiiéncia, real. Aqui aparece o trago descrito pelos viajantes ou etndgrafos como a inconstancia © 0 gosto dos selvagens pela perfidia. Porém, mais uma vez, ndo se trata de psicologia primitiva: a inconstdncia significa simplesmente que a alianga nao é um contrato, que seu rompimento nunca é visto pelos selvagens como um escandalo, e que, enfim, uma comunidade dada nem sempre tem os mesmos aliados nem os mesmos inimigos. Os termos ligados pela alianga e pela guerra podem permutar e o grupo B, aliado do grupo A contra o grupo C, pode perfeitamente, em conseqiiéncia de acontecimentos fortuitos, voltar-se contra A ao lado de C. A experiéncia de "campo" nao cessa de oferecer o espetdculo de tais reviravoltas, que os responsdveis podem sempre justificar. O que se deve reter é a permanéncia do dispositive de conjunto — divisio dos Outros em aliados e inimigos — e nao a posigao conjuntural e variével ocupada nesse dispositive pelas comunidades envolvidas. Mas essa desconfianga reciproca, e fundada, que os grupos aliados sentem, indica bem que é geralmente a contragosto que se consente a alianga, que esta ndo & desejada como um fim, mas apenas como um meio: 0 meio de atingir com o menor risco e ao menor custo um objetivo que é o empreendimento guerreiro. Vale dizer que 179 a alianga é aceita com resignagdo porque seria muito perigoso langar-se sozinho em operagdes militares, e que, se fosse possivel, dispensar-se-iam de bom grado aliados nunca totalmente seguros. Disso resulta uma propriedade essencial da vida intemacional na sociedade primitiva: a guerra prevalece sobre a alianga, é a guerra como instituigdéo que determina a alianga como tati Pois a estratégia é rigorosamente a mesma para todas as comunidades: perseverar em seu ser auténomo, conservar-se como 0 que elas sao, Nés indivisos. Jé se constatou que, pela vontade de independéncia politica ¢ 0 controle exclusivo de seu territério manifestados por cada comunidade, a possibilidade da guerra esta imediatamente inscrita no funcionamento dessas sociedades: a sociedade primitiva é 0 lugar do estado de guerra permanente. Vé-se agora que a busca da alianga depende da guerra efetiva: hd uma prioridade sociolégica da guerra sobre a alianga. Aqui aparece a verdadeira relagdo entre a troca e a guerra. Com efeito, onde se estabelecem as relagdes de troca; que unidades sdciopoliticas o principio de reciprocidade reine? Sdo precisamente os grupos implicados nas redes de alianga, os parceiros de troca so os aliados, a esfera da troca coincide exatamente com a da alianga, Isso no significa, € claro, que se no houvesse alianga nao haveria mais tro esta simplesmente se acharia circunscrita ao espago da comunidade auténoma no seio da qual nunca cessa de operar, ela seria estritamente intracomunitaria. Fazem-se trocas, portanto, com os aliados, ha troca porque hé alianga. Nao se trata apenas de troca de boas maneiras (ciclo de festas as quais os grupos, ora um ora outro, convidam-se), mas também de presentes (sem verdadeira significacdo econémica, repetimos) ¢ sobretudo de mulheres. Como escreve Lévi-Strauss, "... a troca de esponsais no ¢ sendo o termo de um processo ininterrupto de dadivas reciprocas..." (p. 79). Em suma, a realidade da alianga funda a possibilidade de uma troca completa, relativa no apenas aos bens e servigos mas as relagdes matrimoniais. O que é a troca das mulheres? No ambito da sociedade humana como tal, ela assegura a humanidade dessa sociedade, isto é, sua nao-animalidade, ela significa que a sociedade humana nao pertence 4 ordem da natureza mas a da cultura: a sociedade humana manifesta-se no universo da regra ¢ nado no da necessidade, no mundo da instituigdo e nao no do instinto. A troca exogamica das mulheres funda a sociedade como tal na proibigdo do incesto. Mas, precisamente, trata-se aqui da troca enquanto instauradora da sociedade humana como sociedade nao animal, ¢ nao da troca tal como ela se institui no quadro de uma rede de aliangas entre comunidades diferentes e que se manifesta num outro nivel. No quadro da alianga, a troca das mulheres adquire uma evidente importancia politica, 0 estabelecimento de relagdes matrimoniais entre grupos diferentes 6 um meio de concluir e reforgar a alianga 180 politica a fim de enfrentar nas melhores condigées os inimigos inevitaveis. De aliados que sdo também parentes pode-se esperar mais constincia na solidariedade guerreira, ainda que os lagos de parentesco nao sejam de modo algum uma garantia definitiva de fidelidade a alianga. Segundo Lévi-Strauss, a troca das mulheres é 0 termo ultimo do "processo ininterrupto de dadivas reciprocas". Na realidade, quando dois grupos entram em relagao, eles de modo algum buscam trocar mulheres: o que querem é a alianga politico-militar, e © melhor meio de chegar a isso é trocar mulheres. Exatamente por isso ¢ que, se 0 campo da troca matrimonial pode ser mais restrito que o da alianga politica, ele ndo pode, em todo caso, excedé-lo: a alianga ao mesmo tempo permite a troca ca interrompe, 6 0 limite desta, a troca nao vai além da alianga. Lévi-Strauss confunde o fim e o meio. Confusdo obrigatoria por causa de sua concepgdio mesma da troca, que situa no mesmo plano a troca como ato fundador da sociedade humana (proibigao do incesto, exogamia) ¢ a troca como conseqiiéncia © meio da alianga politica (os melhores aliados, ou os menos ruins, so parentes). No final das contas, 0 ponto de vista que sustenta a teoria lévi-straussiana da troca é que a sociedade primitiva quer a troca, que ela é uma sociedade-para-a-troca, que funciona melhor quanto mais troca houver. Ora, foi visto que, tanto no plano da economia (ideal de autarquia) quanto no da politica (vontade de independéncia), a sociedade primitiva desenvolve constantemente uma estratégia destinada a reduzir 0 maximo possivel a necessidade da troca: ela nado é em absoluto a sociedade para a troca, mas antes, pelo contririo, a sociedade contra a troca. E isso se manifesta com a maior nitidez exatamente no ponto de jungdo entre troca de mulheres e violéncia. Sabe-se que a captura de mulheres ¢ um dos objetivos de guerra afirmados com mais insist€ncia por toda sociedades primitivas: ataca-se o inimigo para apoderar-se de suas mulheres. Pouco importa que a razio invocada seja uma causa real ou um simples pretexto as hostilidades. Aqui, a guerra manifesta com evidéncia a profunda repugnancia da sociedade primitiva a entrar no jogo da troca: com efeito, na troca de mulheres, um grupo ganha mulheres, mas perde outras tantas, enquanto na guerra pelas mulheres o grupo vitorioso ganha mulheres sem perder nenhuma. O risco é considerdvel (ferimentos, morte), mas o beneficio é da mesma ordem: ele ¢ total, as mulheres sao gratuitas. O interesse exigiria, pois, preferir sempre a guerra a troca: mas ai haveria uma situag%o de guerra de todos contra todos, cuja impossibilidade se viu. A guerra passa ento pela alianga, a alianga funda a troca, Ha troca de mulheres porque nio se pode fazer de outro modo: j4 que se tem inimigos, é preciso obter aliados e tentar transformd-los em cunhados. Inversamente, quando por uma razio ou outra (desequilibrio do sex-ratio em favor dos homens, extensio da poliginia etc.) 0 181 grupo deseja obter esposas suplementares, tentard obté-las pela violéncia, pela guerra e nao por uma troca onde nada ganharia. Resumamos. O discurso relativo a troca na sociedade primitiva, ao querer reduzir esta iltima integralmente a troca, engana-se em dois pontos distintos mas logicamente ligados. Ignora, em primeiro lugar — ou recusa admitir —, que as sociedades primitivas, longe de querer sempre estender o campo da troca, tendem, ao contrario, a reduzir constantemente seu alcance. Tal discurso desconhece, portanto, a importancia real da violéncia, pois a prioridade e a exclusividade concedidas a troca conduzem de fato a abolir a guerra. Enganar-se sobre a guerra, diziamos, é enganar-se sobre a sociedade. Acreditando que o ser social primitivo é ser-para-a-troca, Lévi- Strauss é levado a dizer que a sociedade primitiva ¢ sociedade-contra-a-guerra: a guerra é a troca mal-sucedida. Seu discurso é muito coerente, mas falso. A contradi¢do nao é interna a esse discurso, é 0 discurso que é contrario 4 realidade sociolégica, etnograficamente legivel, da sociedade primitiva. Nao é a troca que tem a primazia, é a guerra, inscrita no modo de funcionamento da sociedade primitiva. A guerra implica a alianga, a alianga conduz a troca (entendida nao como diferenga do homem e do animal, como passagem da natureza a cultura, mas, evidentemente, como manifestagdo da socialidade da sociedade primitiva, como livre jogo de seu ser politico). 6 por meio da guerra que se pode compreender a troca, ¢ nao o inverso. A guerra nao é um fracasso acidental da troca, a troca é que ¢ um efeito tatico da guerra. Nao é, como pensa Lévi-Strauss, o fato da troca que determina o ndo-ser da guerra, é © fato da guerra que determina o ser da troca. O problema constante da comunidade primitiva ndo é: com quem iremos fazer trocas? Mas, como poderemos manter nossa independéncia? O ponto de vista dos selvagens sobre a troca é simples: é um mal necessdrio; jé que é preciso ter aliados, é melhor que sejam cunhados. Hobbes acreditava, erradamente, que 0 mundo primitivo nao é um mundo social, pois nele a guerra impediria a troca, entendida nao apenas como troca de bens e servi¢os, mas sobretudo como troca de mulheres, como respeito 4 regra exogamica na proibigo do incesto. De fato, no diz ele que os selvagens americanos vivem de "mancira quase animal" ¢ que a auséncia de organizagdo social transparece em sua submissio 4 "concupiscéncia natural” (nao ha entre eles universo da regra)? Mas 0 erro de Hobbes nao faz a verdade de Lévi-Strauss. Para este Ultimo, a sociedade primitiva é 0 mundo da troca: mas ele confunde a troca fundadora da sociedade humana em geral ¢ a troca como modo de relagdo entre grupos diferentes. Assim ele no pode escapar a eliminagdo da guerra, enquanto esta é a negagdo da troca: se ha guerra nao ha troca e, se nao ha mais troca, nao ha mais sociedade. Por certo, a troca é imanente ao social humano: ha sociedade humana porque ha troca de mulheres, 182 porque ha proibigtio do incesto. Mas essa troca nada tem a ver com a atividade propriamente sociopolitica que é a guerra, e esta, evidentemente, de modo nenhum coloca em questo a troca como respeito a proibigdo do incesto. A guerra coloca em questiio a troca como conjunto das relagdes sociopoliticas entre comunidades diferentes, mas coloca-a em questo precisamente para fundé-la, para institui-la pela mediagio da alianga. Ao confundir os dois planos da troca, Lévi-Strauss inscreve igualmente a guerra nesse mesmo plano onde ela nao cabe ¢ de onde deve, portanto, desaparecer: para esse autor, a aplicagdo do principio de reciprocidade traduz-se na busca da alianga, esta permite a troca das mulheres e a troca conduz 4 negagio da guerra. Tal descrigdo do fato social primitivo scria inteiramente satisfatoria se a guerra no existisse: mas conhecemos sua existéncia ¢ também sua universalidade. A realidade etnografica impée assim 0 discurso contrario: 0 estado de guerra entre os grupos torna necesséria a busca da alianga, a qual provoca a troca das mulheres. A anélise bem feita dos sistemas de parentesco ou de sistemas mitoldgicos pode assim coexistir com um discurso defeituoso sobre a sociedade. O exame dos fatos etnograficos demonstra a dimensao propriamente politica da atividade guerreira. Ela nao se relaciona nem a especificidade zoolégica da humanidade, nem a concorréncia vital das comunidades, nem enfim a um movimento constante da troca dirigido A supresso da violéncia. A guerra articula-se com a sociedade primitiva enquanto tal (nisso ela é também universal), é um modo de funcionamento dela. 5 a natureza mesma dessa sociedade que determina a existéncia ¢ o sentido da guerra, guerra que, em razao do extremo particularismo ostentado por cada grupo, esta presente de antemio, como possibilidade, no ser social primitivo. Para todo grupo local, todos os Outros sao Estrangeiros: a figura do Estrangeiro confirma, para todo grupo dado, a conviegao de sua identidade como Nés auténomo. Vale dizer que o estado de guerra é permanente, pois com os estrangeiros se tem apenas uma relagdo de hostilidade, manifesta efetivamente ou nao numa guerra real. Nao é a realidade pontual do conflito armado, do combate, que é essencial, mas a permanéncia de sua possibilidade, o estado de guerra permanente na medida em que mantém em sua diferenga respectiva todas as comunidades. O que é permanente, estrutural, & 0 estado de guerra com os estrangeiros, que culmina as vezes, a intervalos mais ou menos regulares, mais ou menos freqiientemente conforme as sociedades, na batalha efetiva, no confronto direto: o Estrangeiro é entao o Inimigo, 0 qual engendra por sua vez a figura do Aliado. O estado de guerra ¢ permanente, mas nem por isso os selvagens esto o tempo todo guerreando. 183 A guerra como politica extema da sociedade primitiva relaciona-se com sua politica interna, com © que poderiamos chamar de conservadorismo intransigente dessa sociedade, expresso na incessante referéncia ao sistema tradicional das normas, a Lei ancestral que deve sempre ser respeitada, que ndo se pode alterar com nenhuma mudanga. O que busca conservar a sociedade primitiva com seu conservadorismo? Ela busca conservar seu proprio ser, ela quer perseverar em seu ser. Mas que ser é esse? E um ser nao dividido: 0 corpo social é homogéneo, a comunidade é um Nés. O conservadorismo primitive busca portanto impedir a inovaco na sociedade, quer que o respeito a Lei assegure a manutengdo da indivisdo, quer impedir 0 aparecimento da divisdo na sociedade. Tal é, tanto no plano cconémico (impossibilidade de acumular riquezas) quanto no plano da relagtio de poder (o chefe existe mas nio manda), a politica interna da sociedade primitiva: conservar-se como Nés indiviso, como totalidade una Mas percebe-se bem, por outro lado, que a vontade de perseverar em seu ser indiviso anima de maneira igual todos os Nés, todas as comunidades: a posigdo do Si de cada uma delas implica a oposigao, a hostilidade as outras; o estado de guerra ¢ to permanente quanto a capacidade das comunidades primitivas de afirmar sua autonomia umas em relago as outras. Se uma se mostra incapaz disso, serd destruida pelas outras. A capacidade de manter a relagio estrutural de hostilidade (dissuasio) e a capacidade de resisténcia efetiva as incursées dos outros (rechagar um ataque), em suma, a capacidade guerreira de cada comunidade é a condigdo de sua autonomia. Dito de outro modo: o estado de guerra permanente e a guerra efetiva periodicamente se revelam como o principal meio que a sociedade primitiva utiliza para impedir a mudanga social. A permanéncia da sociedade primitiva passa pela permanéncia do estado de guerra, a aplicagdo da politica interna (manter intacto 0 Nés indiviso e auténomo) passa pela aplicagdo da politica externa (concluir aliangas para fazer a guerra): a guerra esté no centro do ser social primitivo, ¢ ela que constitui o verdadeiro motor da vida social. Para poder se pensar como um Nés, é preciso que a comunidade seja ao mesmo tempo in-divisa (una) e independente (totalidade): a indivisdo interna ¢ a oposigdo externa se conjugam, uma € condig&o da outra. Ao cessar a guerra, cessa de bater 0 coragdo da sociedade primitiva. A guerra é seu fundamento, a vida mesma de seu ser, sua finalidade: a sociedade primitiva é sociedade para a guerra, cla é, por esséncia, guerreira... A dispersio dos grupos locais, trago mais imediatamente perceptivel da sociedade primitiva, no é portanto a causa da guerra, mas seu efeito, sua finalidade "" Lembremos aqui, nfo 0 discurso dos ocidentais sobre o homem primitive como guerrcito, mas o des Ineas, diseurso talver mais inesperado, mas que procede da mesme Logica, Das tribos que se agitavam nas fronteras do Império, os Incas diziam que eram selvagens conslantemente em estado de guerra: © que legitimava todas as tentaivas de integri-los por meio da conquista na pax 184 especifica. Qual a fung&o da guerra primitiva? Assegurar a permanéncia da dispersio, da fragmentagdo, da atomizagdo dos grupos. A guerra primitiva é 0 trabalho de uma logica centrifuga, de uma légica da separagdo, que se exprime de quando em quando no conflito armado. A guerra serve para manter cada comunidade em sua independéncia politica. Enquanto houver guerra, ha autonomia: é por isso que ela nao pode, ndo deve cessar, é por isso que ela é permanente. A guerra é 0 modo de existéncia privilegiado da sociedade primitiva enquanto esta se distribui em unidades sociopoliticas iguai: inventa-los. livres ¢ independentes: se nao houvesse inimigos, seria preciso Portanto, a légica da socicdade primitiva é uma légica do centrifugo, uma légica do miltiplo. Os selvagens querem a multiplicagdo do miltiplo. E qual ¢ 0 efeito principal exercido pelo desenvolvimento da forca centrifuga? Ela opée uma barreira intransponivel, 0 mais poderoso obstdculo sociolégico a fora inversa, a forga centripeta, a légica da unificagiio, 4 légica do Um. Por ser sociedade do miiltiplo, a sociedade primitiva nao pode ser sociedade do Um: quanto mais houver dispersio, menos havera unificagdo. Vé-se assim que é a mesma légica rigorosa que determina tanto a politica interna quanto a politica externa da sociedade primitiva. Por um lado, a comunidade quer perseverar em seu ser indiviso e impede para tanto que uma instancia unificadora se separe do corpo social —a figura do chefe comandante — ¢ introduza a divisao social entre o Senhor ¢ os Suditos. Por outro lado, a comunidade quer perseverar em seu ser auténomo, isto é, permanecer sob o signo de sua propria Lei: ela recusa assim toda légica que a levaria a submeter-se a uma lei exterior, ela se opée a exterioridade da Lei unificadora. Ora, qual é esse poder legal que engloba todas as diferengas a fim de suprimi-las, que s6 se sustenta ao abolir a légica do miiltiplo para substitui-la pela légica contréria da unificagdo, qual é 0 outro nome desse Um que recusa por esséncia a sociedade primitiva? E 0 Estado. Prossigamos. O que é 0 Estado? Eo sinal acabado da divisdo na sociedade, na medida em que é 0 6rgdo separado do poder politico: a sociedade doravante é dividida entre os que exercem o poder e os que se submetem a ele. A sociedade nao é mais um Nés indiviso, uma totalidade una, mas um corpo partido, um ser social heterogéneo. A divisdo social, a emergéncia do Estado, sio a morte da sociedade primitiva. Para que a comunidade possa afirmar sua diferenga, é preciso que ela seja indivisa, sua vontade de ser uma totalidade exclusiva de todas as outras apdia-se na recusa da divi: io social: para se pensar como Nés exclusivo dos Outros, é preciso que 0 Nés seja um corpo social homogéneo. A fragmentagdo externa e a indivisio "2 ssa Logica diz respeito nfo apenas as relagdes intercomunitiias, mas também a0 funeionamento da propria comunidade. Na Amiérica do Sul, quando o porte demogréfico de um grupo ultrapassa olimiar considerado dtimo pela sociedade, uma parcela de seus ‘membros parte para fundar mais adiante outra aldeia, 185 interna so as duas faces de uma realidade una, os dois aspectos de um mesmo funcionamento sociologico, da mesma légica social, Para que a comunidade possa enfrentar eficazmente o mundo dos inimigos, é preciso que ela seja unida, homogénea, sem divisio. Reciprocamente, ela tem necessidade, para existir na indivisio, da figura do Inimigo, no qual pode ler a imagem unitaria de seu ser social. A autonomia sociopolitica e a indivistio sociolégica so condigo uma da outra, e a logica centrifuga da atomizagdo € uma recusa da légica unificadora do Um. Isso significa coneretamente que as comunidades primitivas nunca podem atingir grandes dimensGes sociodemograficas, pois a tendéneia fundamental da sociedade primitiva & para a dispersdo ¢ nfo para a concentragdo, para a atomizagio ¢ nao para o ajuntamento. Se se observa, numa sociedade primitiva, a agiio da forca centripeta, da tendéneia ao agrupamento visivel na constituigdo de macro-unidades sociais, é que essa sociedade esté em vias de perder a légica primitiva do centrifugo, é que essa sociedade perde as propriedades de totalidade ¢ de unidade, é que esta deixando de ser primitiv. Recusa da unificagao, recusa do Um separado, sociedade contra o Estado, Cada comunidade primitiva quer permanecer sob 0 signo de sua propria Lei (autonomia, independéncia politica) que exclui a mudanga social (a sociedade continuaré sendo o que ela é: ser indiviso). A recusa do Estado é a recusa da exo-nomia, da lei exterior, & simplesmente a recusa, inscrita como tal na estrutura da sociedade primitiva, da submissa . $6 os tolos podem acreditar que, para recusar a alienagio, preciso primeiro té-1a experimentado: a recusa da alienagdo (econdmica ou politica) pertence ao ser mesmo dessa sociedade, exprime seu conservadorismo, sua vontade deliberada de continuar sendo um Nés indiviso. Deliberada de fato, e no apenas efeito do funcionamento de uma maquina social: os selvagens sabiam perfeitamente que toda alteragiio de sua vida social (toda inovagio social) s6 podia traduzir-se para eles como perda da liberdade. O que é a sociedade primitiva? E uma multiplicidade de comunidades indivisas que obedecem todas a uma mesma légica do centrifugo, Que instituigao exprime garante ao mesmo tempo a permanéncia dessa légica? E a guerra, como verdade das relagdes entre as comunidades, como principal meio sociolégico de promover a forga centrifuga de dispersao contra a forga centripeta de unificagdo, A maquina de guerra é 0 motor da maquina social, o ser social primitivo baseia-se inteiramente na guerra, a sociedade primitiva ndo pode subsistir sem a guerra. Quanto mais houver guerra, menos haverd unificagio, e 0 melhor inimigo do Estado é a guerra. A sociedade primitiva ¢ sociedade contra o Estado na medida em que é sociedade-para-a-guerra, ' Tal é caso, absolutamente exemplar, dos Tupi-Guarani da América do Sul, cuja sociedade era perturbada, no momento do descobrtneats do Nowe Mundo, por ois cepa, por won Figen de unico, 186 Eis-nos aqui novamente de volta ao pensamento de Hobbes. Com uma lucidez desaparecida depois dele, 0 pensador inglés soube reconhecer 0 vineulo profundo, a relagdo de vizinhanga préxima que mantém entre si a guerra e o Estado. Ele soube ver que a guerra ¢ o Estado sio termos contraditérios, que nao podem existir juntos, que cada um deles implica a negac&o do outro: a guerra impede o Estado, o Estado impede a guerra, O erro, enorme porém quase fatal num homem de seu tempo, foi ter acreditado que a sociedade que persiste na guerra de todos contra todos ndo é justamente uma sociedade; que o mundo dos selvagens ndo é um mundo social; que, portanto, a instituigdo da sociedade passa pelo fim da guerra, pelo aparecimento do Estado, maquina anti-guerreira por exceléncia, Incapaz de pensar © mundo primitivo como um mundo nfo natural, Hobbes foi no entanto primeiro a ver que ndo se pode pensar a guerra sem 0 Estado, que os dois devem ser pensados numa relagio de exclusdo. Para ele, o vinculo social institui-se entre os homens gracas a esse “poder comum que mantém a todos em respeito": o Estado é contra a guerra. Que nos diz, em contraponto, a sociedade primitiva como espago sociolégico da guerra permanente? Ela repete, invertendo-o, 0 discurso de Hobbes, ela proclama que a maquina de dispersdo funciona contra a méquina de unificagdo, cla nos diz que a guerra é contra o Estado." “ Ao cabo desta tentative de arqucologia da violencia, colocum-sediversos prublemas ctnoligicos, esteem particular: Qual seré.o destino das sociedadesprimitivas que se deixam leva pela miquina guerers? Ao permitraautonomia do grupo dos guerzciros em relagdo& comunidad, a dinimice da guerra tata em si isco da divisio socal Interopagesessenciis, pois pores elas delnca-se a questo Wanscendentl: Em quais condies pode a divisio social uparecer na sociedad indivi? ‘Acssas oulrasquesteslenlaremos responder por uma série de estudos que o presente texto inaugura 187

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