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1. CREN(A VERDADEIRA E JUSTIFICADA 4 A PARTIR DO pequeno artigo de Edmund Gettier “Is Justifed True Belief Knowledge?” (A crenga verdadeira e justificada é conhe- cimento?) (1963), tornou-se lugar-comum entre os epistemélogos a iia de que a concepgao tradicional do conhecimento, sustentada desde o Teeteio de Plato (século IV a.C), até os dias de hoje, éa de que © conhecimento humano € “crenga verdadeira e justificada”. O p16- pro Gettier cita, além de Plato, Alfred Ayer ¢ Roderick Chisholm, | autores contemporaneos cujas obras analisam detalhadamente a mes- | ma concepcio. Gettier nao cita Bertrand Russell; mas este, em s2u Esto Os problmas da filesofia (1912), no Capitulo 13, antecipa pratica- mente a mesma argumentacao de Gettier, ~ Neste capitulo, vamos tratar da concepeao tradicional de co- ahecimento como crenga verdadeita e justificada e discutir as arga- mentagdes de ambos, Russell ¢ Gettier, procurando comparé-las € \ i J Sa acrescentar outros comentirios.Nosso objetivo nio € 0 de dar uma | solucio para o problema de Gettier, mas apresentat as discuss6: de Russell ¢ de Gettier para podermos compreender melhor a pro- Psa concepcio tradicional. O trabalho de Gettier tornou-se o mais conhecido pot levantar 0 problema, e é também aquele que faz uma apresenta¢ao mais sintética, embora um tanto esquemitica, indo ci- retamente ao ponto. Por isso, vamos comegar por ele. ~ ee ES O ja mencionado artigo de Gettier (que em sua publicacio original tinha apenas trés paginas) langa um desafio frontal —e, apa- rentemente, devastador — a epistemologia tradicional. Ele foi assim. recebido. Gettier afirma que, em determinados casos de crenga verda- deira e justificada — casos nos quais preenchemos todos os requisitos da concepgio tradicional —, nao diriamos que estamos diante de casos de conhecimento, em vez de mera crenga ou opiniio. Assim, a epistemologia tradicional teria falhado em especificar as condicoes para termos conhecimento, e deveria ent&o recomecar seu trabalho, partindo do zero. Para entendetmos bem o argumento de Gettiet, devemos analisar os exemplos que ele apresenta em seu artigo. Mas, antes disso, vamos comentat brevemente as condigSes que, segundo a epistemologia tradicional, devem ser cumpridas pata haver conhe- cimento, em vez de mera opiniiio ou crenga. E assim que o prdprio texto de Gettier se inicia. i AS CONDICOES DO CONHECIMENTO | | Segundo Gettier, ha trés requisitos que a epistemologia tradi- | cional impde como condigées gerais para haver conhecimento. Ele os apresenta ein Wes verses, € xeproduzitemos aqui a primeira (que ele atribui 4 tradicao epistemoldgica, mencionando 0 dialogo Teete- to, de Platao).' Suponhamos determinada proposi¢io P, que relata uma crenga ou opinido que determinado sujeito humano possui. Segundo Gettier, podemos dizer que tal sujeito S sabe que P se, € somente se: N ~ 1 ‘As duas outras formulagdes sio tiradas de Chisholm (1957, p.16) ¢ de Ayer (1956, p.34). Gettier também cita o didlogo Mevon, de Platio. a? “RENGA VERDADEIRA E JUSTIFICADA, \ ) .'Pé verdadcira, \ Sacredita que P,e iii, J esta justificado em acteditar que P. Como veremos a seguit, a andlise de Gettier consiste em iden- tificar casos em que acreditamos em uma Ptoposicio verdadeita e temos justificagao para isso, mas, mesmo assim, niio dirfamos que temos conhecimento ou que “sabemos” aquilo que a proposicio ex- pressa. Antes de examinar os exemplos fornecidos por ele, notemos algumas caracteristicas basicas da concep¢ao que ele Ptetende criticar. Em primeiro lugar, aquilo que é considerado “conhecimento”, | segundo essa concepao tradicional, é uma parte de nossas opinides ou crengas. Mais exatamente, trata-se daquelas opiniGes ou crengas | que, sendo verdadeiras, também recebem alguma justificagin Beto descartadas, logo de saida, as opinides que temos e que sao falsas, obviamente, assim como aquelas que, mesmo sendo verdadeiras, nao recebem qualquer justificaco. Além disso, as proposicées verdadei- Tas, que, no entanto, exptessam opinides ou crencas que determinado sujeito no possui, essas também njio podem ser candidatas a ser conhecimento. Portanto, segundo essa concepeao, o conhecimento é algo que depende, em primeito lugar, do sujeito cognoscente — pois € cle que susteuta ou mo determinada proposicao e ¢ ele que esta ou nfo justificado em ter essa crenga. ei! Em segundo lugar, o conhecimento depende também de um fa- | tor inteiramente objetivo, o fato de ser verdadeira a proposicao susten- tada pelo sujeito. Isso nao decorre de suas crencas, mas de um acotdo entre a proposi¢io e determinados estados de coisas. Veremos adiante como Russell, a0 contrario de Gettier (que nfio entra nesses detalhes), analisa em seu livro (1912) 0 conceito de verdade que esta envolvido nessa concep¢ao do conhecimento; ¢ vamos comentar esse ponto também, Trata-se da concep¢io da verdade como correspondéncia. Oe Em resumo, podemos representar graficamente os comentarios anteriores, como tem sido usual, por meio do seguinte diagrama: OPINIOES VERDADEIRAS OPINIOES DO SWJEITO OPINIOES: JUSTIFICADAS, Figura 1.1 O conhecimento enconira-se na area mais central do diagra- ma (marcada com os dizeres “opinides justificadas”), pois essa a contém aquelas opiniGes do sujcito que sao prendadeitas e Gabe justificadas. Notemos que ha opinides do sujeito que sao wendadet; tas, mas que nfo sao justificadas — aquelas que ae fora da fines mais central do diagrama e ainda dentro da intersec¢aio com a dren das opinides verdadeiras. Ha também opinioes que 2 sujeito a e que nao sio verdadeiras — aquelas na area maior esquerda, ont da intersecgio com a érea das opinides verdadeiras, Por fim, ha opi- nides verdadeiras que o sujeito niio possui —aquelas na Gas salon dircita, fora da intersecgao com a Area das opinides do sujeito. a uuma ver, sffo confiecinicuty apenas as opinides do sujeito que sto verdadeiras e também justificadas, isto é, aquelas localizadas na Area central e menor do diagrama. OS EXEMPLOS DE GETTIER Gettier apresenta dois excmplos para mostrar que, as vezes, podemos preencher todas as condigdes apontadas anteriormente €, mesmo assim, hesitar em dizer que temos conhecimento. A primeira 20 ENGA VERDADEIRA E JUSTIFICADA, vista, os dois exemplos parecem um tanto artificiais, mas isso decorte do fato de que nao prestamos atencio aos Ptessupostos assumidos Por Gettier em suas andlises. Ele presume, em primeiro lugar, que ha formas inferenciais preservadoras da verdade, como é usual dizer na filosofia e na légica, e que o conhecimento obtido por inferéncia é 0 legitimo quanto aquele que pode ser obtido por outros meios, por exemplo, diretamente, ao examinarmos pelos sentidos determinado objeto. Em segundo lugar, conta como justificacio o testemunho tanto de nossos sentidos quanto aquele fornecido por outros indi- viduos. Esses dois pontos, mais uma vez, nio so explicitados por Gettier em seu texto, mas, como veremos adiante, sao explicados detalhadamente por Russell (1912). O primeiro exemplo proposto por Gettier é aquele de um | individuo chamado Swith que, junto com outro, chamado Janes, se ‘presenta para concorrer a um emprego. Swith tem fortes evidéncias para sustentar a seguinte proposicio conjuntiva,’ diz Gettier: (1) Jones é quem vai conseguir o emprego e Jones tem dez moe- das no bolso. Gettier diz que a justificacao para tal proposi¢io conjuntiva advém, pos exeiuplo, do fato de ter dito 0 Presidente da companhia a Smith que Jones é quem vai conseguir o emprego (o testemunho de outra pessoa) ¢ do fato de Sith mesmo ter contado as moedas no 2 Uma proposicao conjuntiva (ou conjungit) segundo a logica cissica é aquela que retine duas outras proposi¢Ges por meio do conectivo verifuncionel “e”, como em“ e B”, sendo que as letcas “A” ¢ “B” representam tais outras proposi¢des Uma conjuncio ser4 verdadeira se ambas as proposigdes unidas forem verdadei- no, ¢ seri falsa se umadches fur filses finalmente, se uma conjuncio é verdadeira, qualquer uma das proposigées nela unidas é verdadcira, Para esse e outros temas da ligica que aparecerio neste capitulo e a0 longo deste livro, cf. Mortari (2001). 2a INTRODUGAO A EPISTEMOLOGIA F aise; de Jones (seu conhecimento perceptivo, direto). Entao, a partir da proposigio (1), Smith infere a seguinte outra proposicao: (2) Quem vai conseguir 0 emprego tem dez moedas no bolso* Gettier conclui seu primeito exemplo nos convidando entao a imaginar © seguinte: em virtude de outras circuses quem acaba conseguindo o emprego é 0 prdprio Simith € nao Jones. Além, disso, sem saber, Smith também tem dez moedas no bole: ae forma, a proposi¢io (2) continua sendo verdadcica (ela é verdadeira a respeito de Sith, assim como eta vetdadeita a teqpetta de Jones) © a justificagao que (2) recebia continua valendo para Smith, uma ve que as cvidéncias que ele tinha nao mudaram. atetantS, diz, Gettier, Smith nfo possni “conhecimento” a respeito do que esta Se proposicio (2), pois nao é em virtude de ele mnesin0 ter dez moedas no bolso que cle afirma a proposicao (2), mas em virtude de Jones ter as dez moedas no bolso. Antes de fazermos comentitios a respeito desse caso e das consequéncias que dele Gettier tira, vejamos 0 segundo exemple, Nele, Gettier nos convida a supot que o mesmo Smith possui forte evidéncia em favor de outra proposicao: 3) Jones possui um carro Ford. Tal evidéncia vem do fato de Swith ter visto Jones diversas vezes ditigindo um Ford (suas percepgées, portanto). Além disso, igo (2) ni ico disjuntiva 3 E preciso salientar que esta proposigao (2) no decorre da proposicao disju ‘i (1) dedutivamente por meio de uma inferéncia imediata. Mesmo assinu, twunada ia a dia, a inferéncia é de forma puramente intelectual, como fazemos no dia a dia, a inferénc considetada correta. CRENCA VERDADEIRA F JUSTIFICADA diz Gettier, vamos supor que Sith tenha um amigo chamado Brown, Cujo paradeito Swzith desconhece. Assim, Smith escolhe ao acaso trés opgdes de localizagao de Brown, apresentando cada possibilidade em uma proposicao disjuntiva,* como a seguir: (4) Jones possui um Ford ou Brown esta em Boston; (5) Jones possui um Ford ou Brown esta em Barcelona; (©) Jones possui um Fotd ou Brown csté em Brest-Litovsk. As trés proposigdes acima — (4), (5) ¢ (6) — decorrem todas da proposi¢ao (3), o que permite a Syzith aceitar cada uma delas, ja que cle aceitou a proposi¢ao (3). Em seguida, Gettier nos convida a imaginar o seguinte: de fato, Jones nao tem um carto Fotd, mas estava dirigindo um Ford alugado, e, por coincidéncia, acontece de Brown estar em Barcelona, como diz a proposi¢io (5), embora Simith nao saiba isso. Nesse caso, a proposi¢o (5) continua sendo verdadeira ¢ justificada. Ela é verdadeira Porque a segunda proposicio disjunta ‘| De forma similar as proposigGes conjuntivas, comentadas anteriormente, as Proposicdes disjuntivas sio formadas por meio do conectivo “ou”, também verifuncional, wtilizado em dlijunydesincusinas. Uma proposigio disjuntiva inchusina sera verdadeira se pelo menos uma das proposigdes nela unidas for verdadeira, podeudo ser ambas verdadeiras; sera talsa se ambas as Proposicocs unidas forem falsas. Além disso, se uma proposi¢lo qualquer for verdadeiza, uni-la a outra Proposicio qualquer (mesmo falsa) resultaré cin uma proposicio disjuntiva Yerdadeira, pois, para que uma disjungio inclusiva seja vetdadeira, basta que uma das proposigdes unidas nela seja verdadeira. Em seu artigo, Gettier utiliza aexpressio “either... or...”, que setia traduzida em portugués por “ou....00 Essa expresso, contudo, pode ser interpretada como indicativa do que os | gicos denominam digimgzo extdusiva, cujo comportamento veritativo é diferente daquele da disjungao inclasiva, Uma disjuncao exclusiva sera verdadeira se apenas vma das proposigées ncla unidas for verdadeira; seri falsa se ambas forem falsas ou se ambas torem verdadeiras. Como fica claro no argumento de Gettier que le se refere it disjuncao inclusiva, modificamos 0 exemplo, utilizando apenas um conectivo “ou” para uni as duas proposigdes disjuntas. ENTRODUGAO A EPISTEMOLUGIA | (“Brown esta em Barcelona”) é verdadeira, mesmo que a primeira | disjunta nio seja verdadeira, E a justificaciio de Smith permanece, j4 que a proposic’o (5), formalmente, decorre da proposi¢ao (3), para | a qual ele tinha justificacio. Entretanto, Smith nao sabe que a pro- | posigao (5) é verdadeira — cle nao tem conhecimento disso, pois ele acha que a proposi¢io (5) é verdadeira em virtude de ser verdadeira ¢ justificada sua primeira disjunta (“Jones possui um Ford”), e nao a | segunda (“Brown esta em Barcelona”). | ANALISANDO O ARGUMENTO DE GETTIER Os dois exemplos de Gettier que acabamos de ver ilustram a WHI mesma argumentacao do autor{Nos dois casos, 0 que ocorte é que, | em virtude das inferéncias feitas e das circunstincias e coincidéncias | nao conhecidas pelo sujeito (Sith), uma proposicao na qual ele cré — proposicio que é verdadeira e para a qual ele possui justifica- cho — nfio pode ser considerada um caso de conhecimento. Embora os dois casos discutidos preencham os trés requisitos da concepgao \ tradicional do conhecimento como crenga verdadeira e justificada, em nenhum deles podemos dizer que estamos diante de um caso de conhecimento. Os exemplos de Gettier so desconcertantes, assim como sua i argumenta¢io em geral [Por um lado, sentimo-nos compelidos por eu argumento e lhe damos razfo, mas, por outro, sentimos certo desconforto nisso, mesmo que nos parega que ele tem razio. O | desconforto decorre do fato de que Gettier muda de perspectiva 20 longo de sua andlise dos dois casos. E percebemos tal mudanga de | perspectiva 20 considerarmos o seguinte: suponhamos que nao Szith, mas outra pessoa avalic independentemente dele a vetdade das pro- posigdes em questo nos dois exemplos e a justificagao que ele teria “RENCA VERDADEIRA E JUSTIFICADA _ para clas, A questio entio é: essa pessoa, sem saber das mudangas de circunstincias das quais 0 proprio Smith tomou conhecimento, ainda diria que, nos dois casos, “niio” estamos diante de casos de conhecimento genuino, mesmo sendo eles casos de ctenca verdadeira ¢ justificada? Acreditamos que nio, isto é, acreditamos que tal pessoa consideraria os dois casos como casos de conhecimento, /Vejamos como seria isso. 7 No primeiro exemplo, do emprego que Swmith conseguiu em | lugar de Jones, se a pessoa (que avaliar a situacio independentemente das informagdes complementares que Szzith obteve 20 longo do de- senrolar do exemplo) apenas constatat que Swith tem dez mocdas no holso, ela ainda vai considerar verdadeira ¢ justificada a proposigio | = “Quem vai conseguir o emprego tem dez moedas no bolso”. | assim porque essa pessoa niio saber4 que o propria Smith nio | sabia que cle também tinha dez moedas no bolso. Apenas Siith sabe | que ele tinha pensado nas moedas no bolso de Jones ¢ niio naquelas | ¢m seu proprio bolso. Desse modo, o observadot independente que estamos imaginando nao teria como descredenciat 0 caso do primeiro exemplo, a nao ser que Smith interferisse e dissesse no que exatamente estava pensando. ae O mesmo valetia para 0 caso do segundo exemplo, pois seria preciso que Simith dissesse Aquela pessoa que ele, Sith, estava pensan- dlo que é verdadeira a primeira parte da proposicio disjuntiva (5) —“Jo- nes possui um Ford” —e nfo a segunda — “Brow esta em Barcelona”. Mas, nfio dizendo isso, aquele observador independente continuaria 1 ‘achat que esse também seria um caso de conhecimento, isto é, de crenga verdadeira e justificada, como formalmente continua a set. Ota, 0 que isso quer dizer é que Gettier nos faz oscilar entre 4 perspectivas de um observador independente e de Swith, ou seja, do sujeito. Esse sujeito tem acesso a informagdes que o observador independente nfo tem — aquelas nas quais ele pensa sem dizer, E é 5 en ere ee dessa mudanga de perspectiva que provém nosso desconforto quanto aos exemplos de Gettier. Pois, se pensarmos do ponto de vista da pessoa que examina os casos independentemente das informag6es ptivadas de Sith, esses casos continuam a parecer casos de conhe- cimento. E apenas quando mudamos para a perspectiva privada de Smith que passamos a desconsiderar os dois casos como casos de conhecimento. ~~ Isso nao quer dizer que a argumentacio de Gettier esteja equivocada. Quer dizer apenas que(h4 outro pressuposto ainda no ( tevelado de sua argumentagio. Tal pressuposto é também algo sem- i pre presumido pela epistemologia tradicional e que recebe 0 nome |_técnico de “solipsismo metodoldgico” |Vamos comentar esse ponto adiante, mas, por ora, podemos dizer o seguinte:[o solipsismo me- { todolégico consiste em supor que o conhecimento é algo privado do sujeito e que é 0 sujeito quem decide a seu respeito. Claro que se fompermos com esse ponto de vista, e considerarmos 0 conhe- cimento um evento publico, entao os argumentos de Gettier nao valetio mais. Mas eles n‘io valerio porque os exemplos utilizados em tais argumentos foram elaborados pata desafiar uma concepgao do conhecimento como evento privado do sujeito, e nao como evento publico, caso em que as diversas opinides, dos diversos sujeitos, de- vei sex Cousideradas. Quanto a esse aspecto, Gettier tem 1azao, pois a epistemologia ttadicional de fato presume o solipsismo. Como vetemos com os autores modernos, de Descartes a Kant, a epistemologia tradicional nao analisa casos de conhecimento publico para o qual contribuem. diversos sujeitos. O mesmo solipsismo é presumido por Russell em . suas discussdes sobre o conhecimento humano} Como veremos a “seguir, Russell € explicito quanto aos pressupostos necessatios para podermos formular o problema e extrair dele consequéncias tele- vantes do ponto de vista da epistemologia tradicional. 26 SIRENGA VERDADEIRA E JUSTIFICADA O ARGUMENTO DE RUSSELL / Russell inicia o Capitulo 13 de seu livto Os problemas da filasofia (1997 e 2001) com exemplos que lembram aqueles de Getties.[Diz Russell: se uma pessoa pensa que a primeira letra do sobrenome do ex-primeito-ministro da Inglaterra é “B”, ela est certa, pois ele se chamava Henry Bannerman. Mas se, pot acaso, aquela pessoa achat que a primeira letra do sobrenome do ex-primeiro-ministro é “B” porque pensa, erroneamente, que o senhor Balfour é 0 ex-primeiro- -ministro em questio, entio essa pessoa nio possui conhecimento, embora, formalmente, seja verdade que a primeira letra do sobreno- me do ex-primeiro-ministro da Inglaterra é “B”. 7 , O outro exemplo de Russell é 0 de um jornal que, pot enga- | ho, anuncia o resultado de uma batalha antes que a noticia chegue | A redagio do jornal, levando os leitores a ter tal crenca. Entretanto, \ depois, a batalha tem o mesmo desfecho anunciado pelo jornal. Nesse caso, 0s leitores possniriam uma crenga verdadeira e justificada, mas | ho tetiam “conhecimento” do desfecho da batalha. O jornal publi- | cou uma informaciio “errada” antes, mas, por acaso, ela se tornou “correta”’ depois. a ~~ Em suas amvilises desses exemplos|Russell comenta que o pro- | blema é que as crengas em questio foram obtidas por um processo | “falacioso”, isto é, por um processo nfo confidvel pelo qual os in- dividuos adquiriram as crengas que sustentam. O mesmo vale para | aqueles exemplos analisados por Gettier. Mas esse autor nao deixa | isso tio claro quanto Russell em seu livro. O mais interessante da andlise de Russell, contudo, é que ele enta uma espécie de “solugio proviséria” para o problema, propondo a distingao de trés categorias: “conhecimento”, “erro” e Apres “opiniao provavel”. Ele a apresenta na seguinte passagem: a7 Aquilo em que acreditamos firmemente, se for verdadeiro, sera cha- mado de conbecimento, desde que seja um conhecimento intuitive ou um conhecimento inferido (égica e psicologicamente) de um conhecimento intuitivo do qual se siga logicamente. Aquilo em que acreditamos fit- memente, se niio for verdadeiro, ser chamado de era, Aquilo em que acreditamos firmemente, se nfo for nem conhecimento, nem erro, € também aquilo em que acreditamos com hesitacao, porque é algo que nav pussui v unais al grau de evidéncia pessoal, ou é derivado de algo assim, poder ser chamado de opiniao provével. Assim, na maior parte das vezes, aquilo que em geral seria considerado conhecimento é opiniio \ms ou menos, provavel. (Russell, 1997, p.139-40) Em primeiro lugar, vemos que, nas defini¢ées propostas pot Russell nessa passagem, a justificago para que aquilo em que acredi- tamos seja conhecimento, desde que também seja verdadeiro, é que tal crenga seja obtida diretamente (a partir de nossas percepgdes — 0 que Russell denomina “conhecimento intuitivo”), ou seja, obtida a partir desse tipo de conhecimento por meio de um processo confiavel. Em outras palavras, a crenca derivada tem de se seguir logicamente daquele conhecimento intuitivo e, tanto “légica”” quanto “psicologi- camente”, tal derivacio deve ser feita a partir daquele conhecimento intuitivo. Isso quer dizer, como esclarece Russell, que tal ptoccsso infe- rencial tem de corresponder a um argumento valido’ Esse é 0 aspecto “légico” da derivagao. Mas, mesmo com um atgumento vilido, a derivacio poderia nao ter sido feita, do ponto de vista “psicolégico”, da maneira aproptiada. B isso 0 que ocorre nos exemplos dados tanto Do ponto de vista da légica clissica, um argumento ¢ dedutivo valido se possuir ‘uma forma légica tal que, cendo verdadeiras todas ae suas premicoas, a conclusio € necessariamente verdadeira, ou, dito de outro modo, a conclusio nao pode ser falsa. CRENGA VERDADEIRA E JUSTIFICADA por Russell quanto por Getter, nos quais 0 sujeito vem a sustentar lina proposigao que, formalmente falando, se segue de outras, mas Cujo processo psicoldgico niio foi apropriado, pois tem origem em uma crenga falsa. B 0 caso, por exemplo, de alguém que diz correta- Mente que o sobrenome do ex-primeiro-ministro comega com “B” porque pensa no Sr. Balfour, e nao em J’ Henry Bannerman, ou, Naquele exemplo de Gettier, de alguém que diz corretamente que quem ganhara 0 emprego tem dez moedas no bolso porque pensa em Jones e nao em Smith. Oetro € possibilidade mais simples daquelas apontadas pot Russell, obviamente. Isso porque, nao sendo verdadeira, uma crenca nao pode ser conhecimento, mesmo que © sujeito a possua — 0 que decorre da concepgao tradicional, como vimos., Por fim, a solucio ptoviséria dada por Russell est na terceira categoria, que ele denomina “opiniao provavel”. A opiniao provavel pode ocorrer de duas maneiras, diz ele. A segunda, e mais simples, ‘quela em que acreditamos em algo com hesitacio. Ou seja, 0 prd- prio sujeito nao confere a sua crenca, diz Russell, o mais alto grau de evidéncia pessoal. A primeira maneira de obter opiniao provavel é aquela em que acreditamos fitmemente em algo, mas isso nio é nem erro, nem conhecimento. Esse é 0 caso mais interessante. Vejamos. Se nfo se trata de erto é porque a crenca em questao é verda- deira (6 que podemos nio saber e, na verdade, nio sabemos muitas Além disso, se nao se trata de conhecimento, é porque ou nio acreditamos firmemente naquilo, ou entio porque a crenga em qucstao nao foi obtida por um processo apropriado (dos pontos de Vista: ou légico, ou psicolégico). Assim, ha duas formas pelas quais podemos deixar de ter conhecimento, segundo Russell: ou nao temos uma justificacio para nossa crenca (e por isso nao acreditamos “Eir- memente”), ou temos a justificac3o pessoal, mas estamos enganados quanto A sua validade objetiva. 29 ae ae Além de antecipar o proprio problema de Gettier, essa andlise de Russell antecipa também uma das solugées aventadas atualmente, aquela ligada ao confiabilismo, que sera discutida no ultimo capitulo, cuja ideia central € que os processos de produgao de crengas devem set confidveis, como sustenta 0 fildsofo norte-americano Alvin Gold- man. Russell também relaciona a justificacio com o grau de convicgao que uma pessoa tem de suas crengas, ¢ esse é um aspecto importante da concep¢io tradicional do conhecimento como crenga verdadeira e justificada, e que vamos discutir adiante. Essa concepgio contém aspectos subjetivos (aquilo que depende do sujeito cognoscente), como a justificagao, mas contém ainda aspectos objetivos (que in- dependem do sujeito), como a verdade de suas opinides. \ SUBJETIVO E OBJETIVO Quando apresentamos a concepgiio tradicional de conheci- mento como crenga verdadeira e justificada, colocamos em telacao trés elementos, dois dos quais dependem do sujeito, a saber, a cren¢a (que ele possui, ou opiniio que sustenta) ¢ a justificagio que ¢ su- ficiente para ele. O terceiro elemento da concep¢io é que, para ser coubecituento, una crenga tem de ser verdadcira. E esc é um aspecto puramente objetivo, pois, segundo a epistemologia tradicional, o que é verdadeiro ¢ o que corresponde A tealidade, isto é, 0 que € 0 caso. A ctenga de um sujeito, via de regra, é concebida pela episte- mologia tradicional como um estado mental do sujeito, como deter- minadas representac6es internas que ele possui das coisas fora dele. Assim, além de solipsista, a epistemologia tradicional seria também mentalista, isto é, conceberia o conhecimento como uma colegio de entidades ou de eventos mentais dos sujeitos humanos. Mas essa petspectiva mentalista nao ¢ inevitavel, pois podemos também falar 30 A pe i ee ee (le opinides verdadeiras e justificadas — e o termo “opiniao” talvez hilo se preste a uma interpretagao mentalista da mesma forma que © lermo “crenga”. De qualquer maneira, seja ao falarmos de cren- Gils clo sujeito, seja ao falarmos de suas opinides, podemos tomar tuis coisas simplesmente como predisposigdes que tal sujeito tem pin agit de determinadas manciras. Por exemplo, se alguém tem a | opinitio de que umn amigo seu é uma pessoa confidvel, entao possui ‘| precisposi¢ao para acreditar naquilo que tal amigo lhe diz. Se, por outro lado, ele diz que confia em seu amigo, mas manifesta Continuamente desconfiangas sobre o que seu amigo lhe diz, entio Nossa conclusao é a de que cle, afinal, nao considera seu amigo uma pensoa confidvel. Além disso, esse aspecto da definigao tradicional ile conhecimento continua a ser subjetivo, pois é 0 sujeito que pos- hui ou crengas, ou opinides, ou entio predisposicées para agit de (leterminadas formas. ~~ Igualmente subjetiva é a justificacio das crengas do sujeito, pols © que € justificagao suficiente para uns nao é para outros. Por xemplo, para o pai que surpreende sua filha chegando & casa de Ianha, porque ela passou a noite em uma festa que estava muito iyjruclivel, mencionat isso pode nao ser uma boa justificacio, enquan- {o, para a mie da menina, que sabe que ela estava com o namorado, \\ justificngio parece suficicnte. Ou scja, a justificagav depende das Oulras Opinides ou crengas que o sujeito possui, e por isso ela é for- gosamente também subjetiva. Por fim, a verdade € aquele elemento inteisamente objetivo que eit presente na concepgao tradicional, Muitas de nossas opinides who verdadeiras, outras sao falsas. Delas todas, algumas sabemos set verdadeiras, outras nfo. B quer saibamos da verdade de nossas opi- Hides, quer nao, clas serio verdadeiras ou nao independentemente do que sabemos sobre elas. A concepgio tradicional de conhecimento Presume que o que é verdadeito é verdadeiro em virtude de um 31 | acordo entre a creng¢a ou opiniao e uma instincia externa.|/Russell discute esse ponto em seu livro Os problemas da filosofia, no Capitulo 12, ¢ defende uma teoria da verdade como correspondéncia entre nossas crengas ¢ fatos. A idcia basica por tras da teoria da corres- pondéncia ¢ de outras teorias da verdade é a nogio de acordo, que € tio bem expressa por Aristoteles da seguinte maneita: “Dizer do qc € que cle niiv ¢, ou do que nao é que ele 6, é falso, ao passo que dizer do que é que ele é, e do que nfo é que ele no é, é verdadeiro” (Metafisica, livto P, 7, 27). Todas as teorias da verdade que se pretendem objetivas — ¢ esse € 0 caso das teorias da verdade como correspondéncia — que- rem especificar aquilo que é a nogio central contida nessa maxima de Aristételes, isto 6, a nogio de acordo entre duas instancias. Tal acordo pode existir independentemente de 0 sujeito cognoscente se dar conta de que tal acordo existe. i assim, de qualquer forma, que a epistemologia tradicional entende esse ponto,|O problema | mais relevante para a epistemologia é 0 de como podemos saber se | nossas opinides sao verdadeiras ou nfo. Mas esse problema torna-se mais dificil de resolver se a verdade for concebida como um acor- do entre nossas opinides ¢ uma instancia externa € independente dels justificagio. Como dissemos antes, embora a justificagdo seja um aspec- /Vamos tratar desse aspecto no capitulo sobre as formas de to subjetivo da concepgio tradicional de conhecimento, as teorias do conhecimento que pressupdem a nogio de verdade como cor- respondéncia sustentam também que uma justificacio completa ou inquestionavel, mesmo para o préprio sujeito, deve levar em conta o aspecto objetivo, isto é, a verdade. Vimos isso nas anilises de Rus- sell e de Gettier. Mas, para levarmos em conta a verdade de nossas opinides, precisamos de um critério para descobrit quais delas sio verdadeiras. 32 CRENCA VERDADEIRA B JUSTIFICADA A FORMULAGAO LINGUISTICA DA CONCEPCAO TRADICIONAL ' Para terminarmos este capitulo, vamos comentar uma segunda formulagio da mesma concepcao tradicional de conhecimento que discutimos até aqui.|Em lugar de dizer que, para a concepgio tradi- \ clonal, 0 conhecimento é “crenca” verdadeira e justificada, podemos (lizer que 0 conhecimento é “proposi¢ao” verdadeira e justificada, tal como preferem em geral os epistemdlogos no século XX. O termo “ptoposigao” € as vezes substituido Por outros termos linguisticos, como “enunciado” ou “sentenga”. oe A vantagem que, aparentemente, haveria em apresentar a mes- | IN concepcao de conhecimento por meio dessa forunulayio linguist ti residitia no fato de que, 4 primeira vista, seria mais facil comparar proposigdes com estados de coisas do que cten¢as com estados de coisas. Mas essa aparente facilidade é um tanto enganadora, pois ela tlepende do significado atribuido aos termos “proposicio”, “sen- tenga” e “enunciado”, Normalmente, filésofos, légicos e linguistas aceitam que um | “cnunciado” € um evento de comunicagio, quando um falante de (leterminada lingua utiliza uma senten¢a ou ora¢ao dessa lingua para comunicar algo a outros individuos. A “sentenca” (ou oracio) que o falante utiliza é, em geral, compreendida como uma sequéncia bem formada de simbolos, sequéncia considerada bem formada porque citi de acordo com as tegras gramaticais da lingua a que pettence. Mas 6 verdade que o falante pode dizer o mesmo utilizando sentengas diferentes (da mesma lingua ou de linguas diferentes), e 0 que essas fenton: S possuiriam em comum seria o que os fildsofos entcadem Por “proposigio”, ou seja, o significado comum das sentengas con- sindnimas. wider De qualquer forma, ainda que algumas teorias da verdade como correspondéncia — tal como a de Russell — falem da correspondéncia entre proposicGes ¢ estados de coisas,’ 0 que parece ser algo dificil de constatas, a formulacio linguistica ainda sugere certa vantagem meto- dolégica, pois podemos comparar enunciados com enunciados, como o enunciado que comunica a crenga ou opiniao do sujcito com o enuncia- do ‘que descreve o conliccimento direto que ele tem (suas percepcoes, por exemplo). Essa comparacao parece possivel em termos meramente logicos, e parece realizavel por meio das ferramentas que a légica mo- derna nos fornece. Essa ideia foi assumida por Carnap e¢ outros positi- vistas logicos, os quais argumentavam exatamente em favor da chamada “virada linguistic”, que implicava concebet o conhecimento humano (em termos linguisticos, ¢ nio em termos mentalistas]A posicio de Catnap sera discutida no capitulo sobre 0 positivismo légico. De qualquer forma, seja na formulacao inicial mentalista, seja nessa formulacio linguistica, trata-se da mesma concepgio de conhe- cimento, que é aquela enfocada pela epistemologia tradicional. Os problemas levantados pot essa concepgio, alguns dos quais vimos anteriormente com as andlises de Gettier e Russell, serio discutidos detalhadamente nos proximos capitulos. O conhecimento que est4 em questio, seja apontado como crenga ou opiniao, seja como enunciado, senteaga ou proposi¢io, é sempre o tipo de conhecimento chamado pelos epistemdlogos de “conhecimento proposicional”, isto 6, aquele conhecimento que podemos colocar em palavras. O conhecimento intuitivo ou direto, como aquele que esta presente nos dados dos sentidos do sujeito, é Russell apresenta sua mesma teoria da verdade como cortespondéncia de ma- nciras diferentes. No livro Osproblemas da filosofta (2001, Capitulo 12), ele fala da cortespondéncia entre crengas ¢ fatos, Mas, em The Philosophy uf Layial Atunism (1996), fala da correspondéncia entre proposi¢des e estados de coisas, tal como 0 faz Wittgenstein no Tractatus Lagico-Philosophicus (2001). CRENCA VERDADEIRA F JUSTIEICADA [iportinte para as teorias do conhecimento na medida em que pode Hwy de base para o conhecimento Pproposicional, cuja validade ou Hbjellvidade desejamos discutit. Esses Pontos também serio tratados Hliulhidamente nos préximos capitulos. RESUMO Dissemos no inicio deste capitulo que o argumento de Gettier liligi um clesafio aparentemente atrasador para a epistemologia tradi- tional, Scu argumento tem sido assim entendido pelos epistemdlogos ‘ils, alguns dos quais tm Procutado complementar a concepgiio (taicional com outras clausulas, petmitindo resolver o problema. A esse ponto, como ja dissemos, vamos voltat no capitulo sobre a (pistcmologia naturalizada, Por ora, é mais importante apenas com- }eender os elementos da concep¢io tradicional de conhecimento fomo crenca verdadeira e justificada. As andlises de Gettier e de Russell, independentemente dos problemas que levantam para a concepcao tradicional, poem em destaque tais elementos, em especial, as possiveis formas pelas quais 0 bujcito pode obter justificacao para as opiniées que possui. F.assim tjuc, cm grande medida, a teoria tradicional do conhecimento busca critétios de justificago. As maneiras mais conhecidas serio discutidas No capitulo sobre as formas de justificacao. Outro aspecto que as andlises de Russell e de Gettier poem em eviclencia ao discutir a concepgao tradicional do conhecimento huma- No € 0 fato de que, ao conhecermos determinadas coisas, podemos conhecer outras. Em outras palavras, uma forma de ampliar nosso conhecimento consiste em inferic determinadas opinioes ou crengas 4 partir de outras ja dadas. As formas de fazet isso justificadamente ‘to discutidas detalhadamente no ptdximo capitulo. LEITURAS RECOMENDADAS Os dois textos de Gettier ¢ Russell mencionados neste capitulo sao leituras que podem ajudar a aprofundar os temas aqui tratados. O pequeno artigo de Gettier possui diversas tradugSes que podem ser “encontradas na internet. O livro de Russell tem tradugao pata o por- tugués: Os problemas da filosofia (2001). Duas leituras complementares seriam as dos textos de Alfted Ayer (1956) e, de Roderick Chisholm, por exemplo, seu livro Teoria do conhecimento (1974).’ Todos esses titu- los encontram-se nas Referéncias bibliograficas, no final deste livro. ATIVIDADES Para consolidar o entendimento dos temas tratados neste ca- pitulo, responder por escrito as questées a seguir pode ajudat, assim como escrever de uma a duas piginas sobre cada um dos tépicos indicados. 1. Explique cada uma das trés condicdes do conhecimento apon- tadas por Gettier. Resuma a argumentacio de Gettier contida em seus exemplos. Elabore outro exemplo que também ilustre a mesma argu- mentagio de Gettier. Explique as trés categorias apresentadas por Russell. A teadugig brasilciva € da princina edivaiv (de 1966), que nilo analisa detalha- damente o problema de Getties. A terceira edigio do livto (de 1989) analisa 0 problema de Geitier, mas nao esta traduzida para o portugués. ee een Por que podemos dizer que Russell nao apenas antecipou o problema de Gettier, mas também lhe conferiu uma solugao? Por que podemos dizer que a solucao de Russell € “proviséria”? Por que a justificagaio é um aspecto subjetivo da concepcao tradicional de conhecimento? Por que a verdade é um aspecto objetivo dessa mesma con- cepgdo? Qual seria a vantagem da formulacio linguistica da concepgio tradicional? Por que essa formulacao ainda sustenta a mesma concep¢io de conhecimento? ‘Tépico 1: Como distinguir o conhecimento do erro. 'Tépico 2: A verdade nfo depende de nossas convicgées. Veja bem que nfo se trata de duas perguntas, mas de duas \ilirmagdes que podem ser feitas do ponto de vista da epistemologia Hiiclicional, e que podem ser sustentadas e explicadas detalhadamente, (ue é 0 que deve ser feito nesta atividade. PREFACIO “EPISTEMOLOGIA” E O termo que mais frequentemente em- ‘ ptegamos hoje para nos referirmos 4 “teoria do conhecimento” — a disciplina tradicional dos curriculos dos cursos de filosofia. Em ma- nuais mais antigos, podemos também encontrar 0 termo “gnosiolo- gia’, atualmente em desuso. Os dicionatios de filosofia e mesmo os dicionarios comuns das linguas trazem definigdes do termo “episte- mologia” e seus correlatos nas linguas modetnas.' Como ocorte, con- tudo, com todas as disciplinas académicas, tais definic6es informam, muito pouco sobre a atividade em questao e, via de regra, o fazem de mancira distorcida. A melhor maneira de saber 0 que € a episte- mologia consiste em examinar 0 que aqueles estudiosos dedicados a essa disciplina fizeram e fazem. E esse é 0 objetivo geral deste livro. O periodo que compreende os trabalhos dos racionalistas con- tinentais europeus, de René Descartes a Immanuel Kant, e também da tradigio empitista britinica, de Locke, Berkeley e Hume, constitui 1 Como “spistemalegy”, cm inglés, ¢ “epistimohgie”, co francés. No caso do fiancés, o termo era empregaclo com mais frequéncia pata se referir A filosofia da ciéncia, mas, hoje, com a influéncia da literatura filos6fica de ingua inglesa, a tendéncia 6, como em portugués, que o termo se refira 4 teoria do conhecimento. O termo “qpisiemolgy”, em ingles, foi introduzido no século XIX pelo filésofo escocés James F. Fessies, ae} © 2010 Luiz Henrique de Araijo Dutra Direitos de publicagio reservados a Fundagio Editora da UNESP (FEU) Praga da Sé, 108 01001-900 ~ Sao Paulo ~ SP Tel: Osxl 1) 3242-7171 Fas: (Oxxt 1) 3242-7172 wwweditoraunesp.com.br wwwlivrariaunesp.com.br feu@editors.unesp.br CIP-BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE, SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ DIS Dutra, Laiz, Henrique de A. (Luiz Henrique de Aradjo) Introdugio 4 epistemologia/Luiz Henrique de Araijo Dutra. ~ Sao Paulo: Fditora UNESP, 2010. 192p. Inchui bibliografia ISBN 978-85-395-0054-9 1. Teoria do conhecimento. 2. Ciéncia — Filosofia, 3. Anilise (Filosofia). 1. Titulo, 10-3006. DD: 121 CDU: 165 Editora afiliada: aneac ibe pec Gencs> Sc comme rant SUMARIO Prefacio........ iy Ra eS Seale aire 1, Crenca verdadeira e justificada .......... As condigdes do conhecimento...... . Os exemplos de Gettier............ ‘i Analisando o argumento de Gettier. . . . O argumento de Russell Subjetivo ¢ objetivo ........ A formulagio linguistica da concepgao tradicional. . . . Resumo....... ft eeaiecerr neers ene Leituras recomendadas........ eunatnance Atividades ....... tisteys Uisziese ie bain & Como chegar a outros objetos de conhecimento ..... Conhecimento direto inditetu.... 0.2.02. 2 2202 Real.é GHG os sxe sine SSeS Siena tem cme un en Resumo....... umincacasecquaserece enninrngarnimrezacetscgray ore Sere Atividades ........ 17 18 20 24 27 30 33 35 36 36 39 40 50 54 56 57 57 INTRODUGAO A EIS MOLOGIA, aqucle em que surgiu e se consolidou a epistemologia como disciplina isto é, de meados do século XVII até o final do século | XVIIL Examinando as obras desse periodo e ainda os desenvolvi- mentos posteriores da epistemologia ao longo dos séculos XTX e XX, vemos que os estudiosos dessa area se dedicam a elaborat dois tipos principais de teorias sobre 0 conhecimento humano: teorias “do conhecimento” propriamente e teorias “da investigacao”. Hoje, sobretudo na epistemologia de lingua inglesa, é comum encontrarmos teorias “da justificaga0”. : A tendéncia tradicional é a de identificar a cpistemologia ape- nas com 0 trabalho de elaborar teorias do conhecimento (e da jus- tificagio), e de tomar as teorias da investigacio como assunto ou da filosofia da ciéncia, ou da metodologia cientifica, disciplinas que seriam apenas campos de aplicacao da epistemologia e nao dominios proprios de uma “teoria geral” do conhecimento, ou epistemolo- gia geral. Mas essa atribuicao de competéncia do epistemdlogo nao depende apenas de uma demarcacio entre a epistemologia geral ¢ as epistemologias aplicadas aos casos especificos do conhecimento humano que encontramos, por exemplo, nas ciéncias profissionais. [3ssa prépria demarcacao também é motivada por determinada con- | cepcfio do conhecimento humano. As teorias do conhecimento, em geral, versam sobre aquilo que os epistemdlogos denominam “conhecimento proposicional”, _ isto é, sobre nossas crengas ou opinides que podem ser expressas em palavras, por meio de sentengas declarativas, ou sentengas que | descrevem estados de coisas. Os exemplos mais dbvios de estados | de coisas sio fatos empiticos — os fatos da experiéncia comum, assim como os fatos que interessam as ciéncias. E entio a sustentabilidade de tai entengas declarativas que est4 em questo para a epistemolo- gia, Ne » caso, tomamos “o conhecimento pronto”, e procuramos | encontrar uma forma de justificé-lo. Nem todas as nossas opinides ou 10 PREFACIO afirmacdes sao claramente verdadeiras e, logo, aceitiveis. Para mostrar | que clas sio aceitaveis, na maior parte das vezes, precisamos oferecer | | uma justificagdo para elas. Essa seria a tarefa de uma teoria do conhe- | j cimento no sentido mais especifico de uma teoria “da justificagao”. A forma pela qual chegamos a nussas upinides ou crengas, que | sao expressas por sentencas declarativas, em geral, nao é do interesse do epistemdlogo. A forma usual encontrada na literatura pata deli- mitar sua competéncia é aquela da distingio entre os contextos de | “descoberta” (ou invengio) ¢ de “justificagio” (ou prova). Aqueles que sustentam esse ponto de vista afirmam que a epistemologia deve se ocupar apenas do contexto de justificagao.? Com recursos pura- mente légicos e analiticos, tais fildsofos pretendem entiéo mostrar como determinadas sentencas declarativas podem set aceitas des- de que aceitemos algumas outras — essas, de preferéncia, sentencas claramente verdadeiras ¢ diretamente cognosciveis. Ou, em outras palavras, uma teoria do conhecimento deve explicar de que maneira 0 conhecimento proposicional pode ser justificado, ou como nossas opinides ¢ afirmagées podem ser sustentadas de forma nao apenas convincente, mas imune a criticas razodveis. Entctanto, pata a epistemologia tradicional, nio interessa a, forma como de fato chegamos a ter essas opinides ou crengas, aquilo | que pertence ao contexto de descoberta, ou criagio, ou elaboragao das opinides ou crengas que possuimos. Tudo isso é deixado pelo epistemologo para as disciplinas que se ocupam dos processos cogni- tivos reais, como a psicologia. Assim, a epistemologia tem sido vista como uma espécie de “légica da cognicio”, e nao como “psicologia | da cognigao”, isto é, no como uma teoria do conhecimento enquan- to ptocesso no mundo. a 2 A distingio tornou-se lugar-comum na epistemologia do século XX, mas o fans dlassieus de sva formnulagio € a obra de Hans Reichenbach (1938). iW IN TRODUCAO A EPISTEMOLOGIA Entretanto, os autores mais interessados nos processos cog- nitivos esto muitas vezes procurando descobrir exatamente uma cspécie de “logica” desses processos, isto é, uma “légica da investi- gaciio”. Dois dos principais filésofos que adotaram essa perspectiva — John Stuart Mill e John Dewey — insistem no uso do termo “légi- ca” nesse sentido, ¢ empregam o termo nos prdprios titulos de suas principais obras sobre 0 tema. Esses € outros autores — como Karl Popper ¢, muito antes, Francis Bacon, todos eles formuladores de “teorias da investigacio” — siio considerados filésofos da ciéncia, e nio proptiamente praticantes de uma teoria geral do conhecimento. Ff; é verdade que, em grande medida, suas discusses levam 0 co- nhecimento cientifico em consideragio. Mas eles estiv interessados _ em encontrar “padres gerais” de investigacao, padrGes esses que nao estao presentes apenas no conhecimento cientifico, mas no co- nhecimento humano em geral. Para eles, é porque tais padrdes de investigagio sio gerais que eles est4o presentes também nas cién- cias, obviamente. Comparadas com as teorias do conhecimento tradicionais e mesmo com as discuss6es mais analiticas que encontramos desde o inicio do século XX até hoje, as teorias da investigagao seriam entao “tgorias do conhecimento como processo”, 20 passo que aquelas teorias epistemolégicas tradicionais seriam “teorias do conhecimento como produto”. Ainda que, de fato, essa altima perspectiva sejaa mais comum, patece-nos importante mencionar aqui as teorias da investigacio, exatamente porque elas trazem consigo também uma concepgio alternativa do conhecimento humano. O mesmo vale para ayucles autorcs — cm geral apontados como “naturalistas” ou adeptos da “epistemologia naturalizada” —, que afirmam no serem rigidas as fronteizas entre a epistemologia como analise do conhecimento, com 0 objetivo de justifica-lo, ¢ as disciplinas mais empiricas, como a psicologia € a linguistica, que 12 PREFACIO tratam de processos cognitivos. Ao defenderem o naturalismo, esses autores — no século XX, liderados por W. v. O. Quine— esposam tam- bém uma concepgio alternativa do conhecimento humano, que em muitos aspectos importantes contrasta com a concepgio tradicional. ‘Além disso, eles procuram redefinit a propria tarefa da cpistcmologia, ou seja, procuram fazer com que as reflexoes dos epistemdlogos | sobre o conhecimento humano em geral ¢ sobre as ciéncias em par- \ ticular incluam o prdptio tipo de conhecimento que pretendemos produzir na epistemologia como disciplina. Assim, temos também _ um dominio que hoje é denominado “metaepistemologia”, do qual | trataremos no tltimo capitulo deste livro. TX No ultimo capitulo, além da filosofia de Quine, comenta- temos outra teoria do conhecimento de fundo naturalista, 0 con- fiabilismo de Alvin Goldman, em virtude de tal doutrina propor soluges interessantes para algumas questoes a respeito do natu- ralismo, questdes que o proprio Quine deixou sem uma solugao mais convincente, como o problema da normatividade. Goldman também enfoca alguns problemas cruciais da epistemologia con- temporinea, como o problema de Gettier, que ser discutido j4 no primeiro capitulo. Embora este livro se concentre no dominio especifico das “teorias do conhecimento”, as discussdes dos naturalistas envolvem em parte os problemas telativos as “teorias da investigacio”. O fato de o naturalismo por em xeque a propria distingao entre os contex- tos de descoberta e de justificagio é relevante para termos em conta também, em parte, a problematica mais propria das discussdes do conhecimento enquanto processo. Isso seria tema, obviamente, pata outro livro. Mas incluimos comentarios sobre as teorias de Quine € Goldman porque esses autores se preocupam também com a rela- cio entre a epistemologia tradicional, como “teoria da justificagao” exclusivamente, e a epistemologia naturalizada. 13 INTRODUCAO A EPS :MOLOGIA { Entretanto, os autores mais interessados nos processos cog- nitivos estio muitas vezes procurando descobrir exatamente uma | espécie de “légica” desses processos, isto é, uma “ldgica da investi- | gacio”. Dois dos principais fildsofos que adotaram essa perspectiva — John Stuart Mill e John Dewey — insistem no uso do termo “légi- ca? entido, e empregam o termo nos préprios titulos de suas principais obras sobre o tema. Esses e outros autores — como Karl Popper e, muito antes, Francis Bacon, todos eles formuladores de | “teorias da investigagio” — so considerados filésofos da ciéncia, € nao propriamente praticantes de uma teoria geral do conhecimento. F. é verdade que, em grande medida, snas discnss6es levam 0 co- nhecimento cientifico em consideracio. Mas eles estao interessados em encontrar “padrées gerais” de investigacao, padrdes esses que mio esto presentes apenas no conhecimento cientifico, mas no co- nhecimento humano em geral. Para eles, € porque tais padres de investigagao sao gerais que eles estao presentes também nas cién- cias, obviamente. Comparadas com as teorias do conhecimento tradicionais e mesmo com as discussdes mais analiticas que encontramos desde o inicio do século XX até hoje, as teorias da investigagao seriam entao “teorias do conhecimento como processo”, ao passo que aquelas teorias epistemolégicas tradicionais seriam “teorias do conhecimento como produto”. Ainda que, de fato, essa ultima perspectiva seja a mais comum, parece-nos importante mencionar aqui as teorias da investigacio, exatamente porque elas trazem consigo também uma concepcio alternativa do conhecimento humano. O mesmo vale para aqueles autores — em geral apontados como “naturalistas” ou adeptos da “epistemologia naturalizada” —, que afirmam nfo serem rigidas as fronteiras entre a epistemologia no analise do conhecimento, com 0 objetivo de justifica-lo, e as sciplinas mais empiricas, como a psicologia ¢ a linguistica, que PRRFACIO tratam de processos cognitivos. Ao defenderem o naturalismo, esses autores — no século XX, liderados por W. v. O. Quine — esposam tam- bém uma concepgio alternativa do conhecimento humano, que em muitos aspectos importautes contrasta com a concepeao tradicional. Além disso, eles procuram redefinir a propria tarefa da epistemologia, ou seja, procuram fazer com que as reflexdes dos epistemdlogos sobre o conhecimento humano em geral e sobre as ciéncias em par- ticular incluam o préprio tipo de conhecimento que pretendemos produzir na epistemologia como disciplina. Assim, temos também um dominio que hoje ¢ denominado “metaepistemologia”, do qual trataremos no tiltimo capitulo deste livro, 7 No iltimo capitulo, além da filosofia de Quine, comenta- remos outra teoria do conhecimento de fundo naturalista, 0 con- fiabilismo de Alvin Goldman, em virtude de tal doutrina propor solugdes interessantes pata algumas questées a respeito do natu- ralismo, questées que o préprio Quine deixou sem uma solugio mais convincente, como o problema da normatividade. Goldman também enfoca alguns problemas cruciais da epistemologia con- \cinporainea, como o problema de Gettier, que sera discutido j4 a0 primeiro capitulo. Embora este livro se concentre no dominio especifico das “teorias do conhecimento”, as discussdcs dos naturalistas envolvem em parte os problemas relativos 4s “teorias da investigagao”. O fato de o naturalismo por em xeque a propria distincao entre os contex- tos de descoberta e de justificagao é relevante para termos em conta também, em parte, a problematica mais propria das discuss6es do conhecimento enquanto processo. Isso seria tema, obviamente, para outro livro. Mas incluimos comentarios sobre as teorias de Quine € Goldman porque esses autores se preocupam também com a rela- cio entre a epistemologia tradicional, como “teoria da justificagao” exclusivamente, e a epistemologia naturalizada. 13

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