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PRAXIS E VIOLENCIA AVIOLENCIA COMO ATRIBUTO HUMANO Toda praxis é processo de formagéio ou, mais exatamente, de transformagao de uma matéria. O sujeito, por um lado, imprime uma determinada forma a matéria depois de té-la desarticulado ou vio- lentado. No curso desse processo, leva em consideragio a legalidade do objeto de sua ago para poder desarticuli-lo ¢ submeté-lo. Esse timo, por outro lado, s6 é objeto da atividade transformadora do sujeito na medida em que perde sua substantividade para converter- se em outro, Desse modo, é arraneado de sua propria legalidade, da lei que o rege, para sujeitar-se Aquela que 0 sujeito estabelece com sua atividade. O objeto sofre, assim, a invasfio de uma lei exterior, ¢, 1a medida em que aceita a legalidade estranha que Ihe € imposta, transforma-se. & claro que essa legalidade que vem de fora nao pode ser absolutamente exterior, pois de outro modo encontraria uma resis- téncia absoluta, intransponivel no objeto. Certas propricdades desse, ou certo nivel de seu desenvolvimento, hao de oferecer determinadas condigées de possibilidade para sua transformagao, pois, caso contré- tio, a atividade do sujeito seria nula, j4 que a matéria, ao impor um limite insuperavel, tornaria impossfvel sua transformagdo na diregio desejada. Assim, portanto, a interioridade do objeto hé de estar aberta em principio, ’ transformagao que o sujeito inicia do exterior ¢ que, Como transformacao ideal, deixa ainda intacto o objeto. Desse modo, Digitalizada com CamScanner Fixosora ps Praxis a transformagio real, efetiva, exige que 0 objeto seja forgado ou yi tado, pois s6 assim suas possibilidades intrinsecas de transformagag podem realizar-se. Mas essas possibilidades s6 existem como tais Para 0 sujeito da praxis, e se realizam apenas mediante sua atividade real ou objetiva. Assim, a transformagio do objeto exige, por um lado, o reconhe. cimento ou submissao A sua legalidade e, por outro, sua alteragio ou destruigdo. Quando essa alteragao ou destruigao é exereida sobre um objeto real, fisico, podemos qualificé-la de violenta; aos atos realiza. dos para alterar ou destruir sua resisténcia fisica podemos denoming. los violentos. Na medida em que a atividade pritica humana ¢ exereida sobre um objeto fisico, real, ¢ exige a alteragiio ou destruigao fisica de sua legalidade ou de certas propriedades suas, pode-se dizer que a vio- | léncia acompanha a praxis. A violéncia se manifesta onde o natural ou | o humano ~ como matéria ou objeto de sua agiio — resiste a0 homem, | Verifica-se justamente em uma atividade humana que detém, desvia | jolen, e, finalmente, altera uma legalidade natural ou social. Nesse sentido, a violéneia é exclusiva do homem, na medida em que ele 6 0 tinico ser que, para se manter em sua legalidade prépria, necessita violar ou vi lentar constantemente uma legalidade exterior (a da natureza). | Em um mundo estivel ¢ idéntico a si mesmo, nao se conheceria a | violéncia, sempre que essa 6 precisamente alteragao da estabilidade, | imobilidade ou identidade. Se o homem vivesse em plena harmonia | | com a natureza, ou passivamente subordinado a ela, nao recorreria A violéncia, j4 que essa 6, por principio, a expresso de um desajus- te radical. Nesse sentido, podemos dizer que apenas 0 homem pode | ser violento. O animal, inserido em uma ordem estabelecida a qual se submete passivamente sem poder alteré-la, néio conhece a violén- cia. Em compensagao, as relagdes entre o homem e a natureza, como | violagdo constante de uma ordem natural estabelecida, so sempre | regidas pela violéncia. Nao é violentar a natureza transformé-la, isto é, | imprimirlhe uma forma humana mediante a alteragéo de sua propria legalidade? A humanizagao da natureza nao é mais do que um proces | so pelo qual o homem the impée uma lei estranha, uma lei humana, forgando ou violentando sua legalidade natural. A sociedade é violaga0 constante da natureza. | Como destruigao de uma ordem estabelecida, a violéncia é um | atributo humano, mas que nfo se mostra apenas pela presenga da forga. Na natureza hé forcas naturais, mas a violéncia nao é forga em | Si, ou em ato, senao o uso da forga. Na natureza, as forcas atuam, mas nao se usam; s6 0 homem usa a forga, e pode usar a si mesmo como forga. Por isso, dizemos que a forga em si nao é violéncia, ¢ sim apen™s a forga usada pelo homem. Dai o cardter exclusivamente humano da | violéncia, 374 ad Digitalizada com CamScanner Pegs & viontacia AVIOLENCIA NAS PRAXIS PRODUTIVA B ARTiSTICA As consideragoes anteri res permitem que nos aproximemos da questo fundamental deste capitulo: 0 tipo de relagées entre violénci: e praxis. Mas essa questo nao pode ser formulada de um modo ‘eral ¢ abstrato, e sim de acordo com a forma especifica da praxis eae tanto, em conformidade com os termos que se unem ese opto na relagdo pritica. _Yejamos, em primeiro lugar, a praxis produtiva. A‘, 0 homem se opée A natureza. As Propriedades do objeto da atividade sao alterna- das e 0 modo como se articulam suas partes é destruido. A matéria oferece resistencia a essas alteragées e destruigées, ¢ 0 sujcito tem de realizar uma série de atos violentos para dominé-la. A resistencia é cega, paca; resisténcia surda da ordem natural a ser quebrada. A pra- xis se opde uma ordem estabelecida que reage como se lutasse — em- pregando a expresso de Espinosa — para perseverar em seu ser. Dessa maneira, a praxis produtiva conhece resisténcias, limites, forgas que deve vencer, mas nao conhece uma antipraxis, isto é, um sistema de atos tendentes a anular a prépria praxis, ou a assegurar a sobreviven- cia de uma determinada realidade.' Nao se pode dizer, por isso, que Avioléncia do sujeito se oponha uma contravioléncia do objeto, ou da matéria. Essa resiste, mas ndo se ope como uma antipraxis a praxis do sujeito. Algo semelhante acontece com a praxis artistica. A matéria resis- te ainda mais do que em relacéo a praxis produtiva, porque a forma que se deseja imprimir-Ihe viola ainda mais sua legalidade prépria. Por ser, em toda sua plenitude, a marca do humano na propria matéria, a violéncia da qual é objeto é ainda maior e, com isso, maior também a resistencia do material. Por mais dura, porém, que seja essa resistén- cia, também tem um cardter cego e opaco, isto é, nao se inscreve no marco ~ exclusivamente humano - de uma antipraxis. Por conseguin- te, também nao se pode dizer que a violéncia exercida, por exemplo, pelo escultor sobre 0 mérmore sofra uma contraviolénci: Disso resulta que tanto na praxis material produtiva como na ar- tistica, a violéncia s6 existe do lado do sujeito, eumprindo, por sua vez, uma dupla funcdo: por um lado, como negagao de uma determinada legalidade (ou seja, destruigao de uma forma, de uma ordem, de uma [= Em sua Oritica da rasdo dialética, significado muito distinto daquele dado por €0 processo surgido de uma infinidade de pr desejado nem previsto destas; isto 6, trat Sem autor, oposta a uma praxis livre (Cf. JP. ‘que, Paris, NRF, 1960, p. 202 ¢ 235-236). Para nt Que tende a destruir uma préxis eriadora ou am Cujos produtos ja perderam vitalid: Sartre utiliza também esse termo, mas com um in6s, No sentido sartreano, a antipriixis xis particulares como resultado nio z propriamente de uma praxis eega, Sartre, Critique de la raison dialecti- 16s, a antipraxis ¢ a atividade pra anter a vigenela de uma pritxis 375 Digitalizada com CamScanner Fiosoris x PRAXIS realidade) e, por outro, como negagiio dessa negagio, negagiio dialer. ca da matéria que resiste a ser vencida para receber, ao fim, uma nova legalidade. A violéncia em si, como simples negagiio, nao é criadora; nao basta destruir uma legalidade para que venha a emergir uma nova realidade. A violéncia tem de estar sujeita, do mesmo modo, ao fim ou a forma ideal que se queira plasmar. Quando falamos ~ como neste caso ~ de uma praxis violenta, queremos dizer que determinada vig. Iéncia esta a servigo da prépria praxis. Nem na praxis produtiva nem na artistica a violéncia que se exerce sobre a matéria ou o material pode ter outro estatuto que o do meio a servigo de um fim. Mediante a violéncia, torna-se possivel a transigéo do meramente natural ao hu- mano, materializado ou objetivado no produto do trabalho ou na obra de arte. A praxis nao se reduz aqui a violéncia, mas essa — como meio - € um elemento indispensdvel da praxis. AYVIOLBNCIA NA PRAXIS SOCIAL Desse modo, qual é o papel da violéncia na praxis social, isto 6, quando o homem nao é apenas sujeito mas também objeto da agao? Trata-se aqui da praxis como agéo de seres humanos sobre outros, ou como produgao de um mundo humano depois da subversio da rea- lidade social estabelecida. A praxis social assume, assim, a forma da atividade pratica revoluciondria que implica a destruigdo de uma de- terminada ordem social para instaurar ou criar uma nova estrutura social. Abre-se dessa maneira ~ ¢ abriu-se historicamente — um amplo campo para a violéncia. A matéria da ago humana resiste em ser transformada e a agéo do homem adota uma forma violenta porque 86 essa forma permite remover os obstdculos para que se tenha uma criagao. Praxis e violéncia se acompanham tao intimamente que, as vezes, parece descaracterizar-se a condigdo de meio da segunda. A vio- Iencia esta tao vinculada a toda produgéo ou criagao histéricas, que no faltou quem visse nela a pr6pria forga motriz do desenvolvimento hist6rico.? Temos, portanto, que tentar delimitar as verdadeiras rela- g0es entre praxis e violéncia para poder determinar até que ponto ¢ ou nao um elemento indispensdvel da praxis social e, em particular, de uma préxis criadora. Lembremos, em primeiro lugar, 0 que afirmavamos anteriormente a respeito da praxis que tem por objeto nao o homem como tal, mas uma matéria nao humana: nao se reduz a violéncia, mas — como meio ~€um elemento indispensével dela, Vimos, igualmente, que é exigida nessas formas de praxis pela resisténcia ou limite que a matéria ofe- rece, resisténcia que é, por sua vez, a de uma ordem nao humana que 2 Diihring, Gumplowiez e, €m geral, os que buscaram justificar teoricamente 0 racis- mo € 0 fascismo, 376 Digitalizada com CamScanner Prgats & vionsven reage cegamente em face da agao humana orientada no senti terd-la ou destrui-la. A agdo tropega em um limite, a sentido de al de sinal contrario destinada a anulé-la. Diante aieares outra ago de Shuma antipraxis, O limite € um limite fisico ements fa em que 0 objeto resiste a que determinada camer eae fisiea, seja alterada ou destruida, A violeneta ¢ af o yd Caro ieee para destruir ow abalar uma resisténeia fisica. Ay eee abjeto ttil pressupde uma série de atos fisicos que 0 pete a sie mas tomando essa frase em seu sentido direto: a parteira nao faz ver a lua, mas apenas ajuda a vé-la, Em nenhuma das revolugdes antes citadas se inventou a viol@neia. Os revolucionsirios de todos os tempos recorriam a cla porque s6 assim podiam criar novas relagdes socia Ayioléneia surgia, em primeiro lugar, para destruir ou quebrar uma ordem social, encarnada por homens coneretos de carne e osso que exerciam, por sua vez, determinado tipo de violéncia. Ao recorrer A violéncia, em cada uma dessas situagées histéricas, os revolucionarios haviam chegado, mais ou menos claramente, A conclusio de que a nao violéncia nao pode anular a violéncia estabelecida ¢ que, portan- to, para transformar determinadas relagdes humanas e criar novas relagbes, era preciso destruir violentamente a realidade social que se assentava, por sua vez, sobre uma violéncia real. ransfor- ir da vio- ic6es inglesa, do século 17, A propria violencia, limita a 4 violéncia estabelecida, mas, » @ violencia exterior deixa de en. ae oe Sua extensao. Como go 2 ‘0 de ser limite para ui - propria violéncia Possivel -, 0 outro-oda wiolencia ane ca : pode ampliar-se ilimitadamente. Ao renunciar Por prinefpio a violén- cia, quando esta impera, corre-se 0 risco de ser, objetivamente, seu ciimplice. Nao se trata, entretanto, de uma escolha pessoal, ou seja de escolher subjetivamente entre a violéncia © a nio violéncia, jd que, até agora, o homem viveu em um mundo que, em eseala hisrGrlos, universal, nao oferece semelhante alternativa, ACONSCIENCIA DA NAO VIOLENCIA Se a nao violéncia no conseguiu realmente afirmar-se na histéria do pensamento, podemos encontrar, em compensagio, em diferentes perfodos, a expressao de uma consciéncia da ndo violéncia, Em sua forma religiosa, aparece na socicdade escravista antiga com 0 cristia- nismo; em sua forma filos6fica, encontramo-la na derrocada do mun- do greco-romano no estoicismo e, nos tempos modernos, no idealismo alemao; em sua forma politico-social, a consciéncia da nao violéncia tem sua expresso em certas doutrinas socialistas e comunistas ut6- picas do século 19, assim como nas teorias politicas reformistas que rejeitam ou subestimam, por prinefpio, a violéncia revoluciondria na luta pela transformagio socialista da sociedade. A conseiéneia da nao violéncia expressa quase sempre uma im- Poténcia real: a impossibilidade de transformar efetivamente 0 mun- do pelo caminho indispensavel para isso. Sem passar pela violéncia, oferece-se ao homem, entéo, uma libertagio celestial, como a que oferece o cristianismo, uma libertagéo dos bens externos na propria autossuficiéncia, como o estoicismo, ou uma libertacdo espiritual pela Utonomia e soberania do sujeito como a que promete o idealismo alemao, O reformismo oferece, por sua vez, a esperanga de uma ee ‘alo, dentro do proprio sistema, deixando que a hist6ria trabalhe Por si mesma, mediante uma acumulagio gradual de reformas, ¢ sem "ecorrer a violénoia, sem tratar de acelerar a propria hist6ria, Faxendo 385 Digitalizada com CamScanner Frvosoria pa PRAXIS da necessidade virtude, em todos os casos, a violencia ¢ apresentag, vino como indice de poder, mas, sim, de debilidade. A verdadcira fa” estaria no espirito ou, de acordo com 0 cconomicismo reformista, m marcha espontinea das coisas. na Diante dessa consciéncia da nao violéncia, a experiéncia histérieg demonstra que a libertagao do homem passou necessariamente pol, violéncia, isto é, a praxis social em seus momentos decisivos nao pide prescindir dela. Ao enfatizar seu papel na hist6ria ¢ sua presenga nag transformagées radicais da sociedade, deve-se evitar a clevagio da vio, Iéncia ao plano do absoluto. A APOLOGIA DA VIOLENCIA Essa absolutizagdo ou apologia da violéncia com relagao a toda praxis social humana, real ou possivel, ficaria evidente ao afirmar-se; a) que a historia é violéncia, ou que essa é, definitivamente, o sub- solo, a entranha ow a forga motriz da historia (a histéria como histéria da violéncia humana); b) que a praxis social, ao estar regida pela violéncia, nao poderia nunca ser considerada como uma praxis social nao violenta (a violén- cia em toda praxis, presente ou futura, como seu elemento indispen- savel); € ) que uma violéncia sucederé historicamente a outra (impossibi lidade de uma nova sociedade sem Estado ou mecanismo coercitivos). Essas trés afirmagGes repousam em uma concep¢ao metafisica da violéncia, isolada do contexto histérico-social em que se desenvolve a praxis social a cujo servigo esté como seu meio. Esquece-se que existe violéncia nao s6 porque se rejeita uma ordem social dada que se deseja transformar para criar outra nova (praxis), mas também porque essa tentativa de transformagdo tropega na resisténcia consciente e orga- nizada daqueles que se empenham em manter a existente (antipraxis). Ha violéncia, em suma, porque ha contradigdes antagénicas, irrecon- cilidveis entre os homens, entre classes sociais. Nesse sentido, Marx € Engels falam, no Manifesto do Partido Comunista, da historia huma- na como histéria da luta de classes. A medida que as classes sociais se enfrentam com interesses e fins irreconcilidveis, tal contradigao antag6nica deve se resolver violentamente. A violéncia 6 0 caminho para conquistar o poder ou manter 0 que foi conquistado. Mas ne nhuma classe social prefere a violéncia quando pode alcangar seus objetivos por meios nao violentos, da mesma maneira que nenhuma classe social vacilaré em recorrer a ela, como razéo suprema, quando estdo em perigo seus interesses vitais, Isso explica o fato dle que, el quanto a sociedade esteve dividida em classes antagénicas, violéncia esteve presente em seus momentos hist6ricos decisivos. No entanto, por mais que a hist6ria esteja repleta de violéneia, 6 necessiirio mio 8° 386 Digitalizada com CamScanner Pads vows deter apenas nessa, mas também nos interes dlasses sociais que, ao entrar em conflito, ims $ ¢ fins humanos das impclem para a violbneia. FATORES OBJETIVOS DA VIOLENCIA A persisténcia da violéncia ao longo da hist6ria, ¢ inclusive Jongamento de algumas de suas formas depois da socialimery sg meios de produgio, poderia justificar aparentem - socializagio dos srhist6riea. O homem nio poderia deixar de falar alinguagem de tin tenoid: A-esda.conclusao,chegavam, tradiolonalimeate te ene, een laa Rees a as concepgies religiosas para as quais a violéncia era a expresso de uma natureza humana corrompida pelo pecado, ow a viva presenga do mal; hoje pre- tende-se, por vezes, dar uma explicagio objetiva da violencia no marco de uma concepgao naturalista ou biologista do homem, de acordo com a qual teriam um caréter instintivo que nao desapareceria no plano social. Sartre, por sua vez, expde uma concepgao da violéncia no mar- co de sua antropologia existencialista, segundo a qual a violéncia seria uma estrutura que acompanha a agfio humana enquanto 0 homem yiver no reino da necessidade, ou, mais precisamente, da “escassez”? A ideia sartreana da violéncia repousa, portanto, sobre 0 conceito de escassez, j4 que essa é para ele o proprio fundamento da divisio e oposigio entre os homens. Hé relagdes violentas porque a escasse7 faz com que se veja 0 outro como um perigo. No campo social, a atitude que mantenho em relagéo ao outro é determinada pela consciéneia de sua periculosidade, uma vez considerada a escassez. Os homens se enfrentam nao como pensa 0 marxismo, isto é, em virtude de que objetivamente estéo em situagdes opostas no que diz respeito 4 pro- priedade sobre os meios de produgdo. Para um marxista ~ ¢ deve-se observar que Sartre se apresenta em sua Critica da razao dialética com a pretensio de completar e enriquecer 0 marxismo a partir de sua aceitagao das teses fundamentais do materialismo histérico® — 0 que opde os homens, que formam objetivamente uma classe, ¢ os leva A violéncia, nao 6 a tomada de consciéncia de uma situagio como a escassez, mas, sim, sua situagao objetiva ndo em relagdo aos produ tos, mas fundamentalmente em relagdo aos seus meios de produgio. 6 a apropriagdo ou “despossessio” desses meios de produgio - ¢ nao dos bens ou produtos em geral — que 0s divide opoe entre si, Bsses meios de produgéo na sociedade capitalista nfo so “escassos” para 0s proletrios; simplesmente, nao existem para cles; carecem desses meios ¢ essa caréncia determina objetivamente sua atitude e atividade violenta - em determinadas cireunstdncias ~ em relagiio ao capital J-P. Sartre, Critique de la raison dialectique, oP. cits P. Cl. Critique de la raison dialectique, op. cit P. 1O¥-111- 209. 387 Digitalizada com CamScanner Fuiosorta pa Praxis (greves, manifestagées, diversos protestos © inclusive a insurreigg mada). A tomada de conseiéneia dessa situagio iré dar ~ como vine nos capitulos anteriores — um cardter mais consciente © organizags As suas agdes, mas, em iiltima instncta, sua violéneia é determing, econdmica e socialmente, isto é, objetivamente. ada | No entanto, a vinculagao da violéneia A escassez nao pode explig, | © agugamento dos conffitos de classe ~ nem a extensio e aprofun, | damento da violéncia que sio consequéneia desse agugamento ~ nq | sociedade capitalista justamente quando 0 sucessivo incremento dag forcas aumenta consideravelmente as riquezas. Se 6 certo que a pas. | sagem A fase superior do comunismo requer a superagao da escasser, | no que diz respeito a uma série de bens ou produtos fundamentaiy ~ como superagiio de uma contradigao conereta entre a produgio e 9 consumo, contradigéio, no entanto, que nunca pode ser superada de um modo total e definitivo, em virtude de que a riqueza de necessida- des humanas ndo pode ter fim -, a escassez transitéria ¢ relativa que se dé na fase anterior da sociedade socialista nao engendra forgosa- mente a divisdo entre os homens nem a violéncia. Admitir isso signi- ficaria apagar o que separa qualitativamente uma sociedade bascada na apropriagio privada dos meios de produgio e a sociedade em que a socializagao desses elimina 0 fundamento real, objetivo, da divisio em classes antagénicas e da violéncia que a acompanha. Se a violéncia sobrevive ainda depois da socializagéo dos meios de produgdo, nao 6 contra os inimigos de classe como também contra os membros da sociedade socialista, isto, em primeiro lugar, deve nos fazer duvidar de seu carter socialista e, em segundo, obriga-nos a buscar as razbes dessa violéncia em um plano muito distinto ao da escassez. A violéncia existe objetivamente na medida em que os homens ju. tam entre si em virtude de seus interesses de classe e isso, inclusive, sem ter consciéncia da situagdo objetiva que, por meio desse choque de interesses, os impele a violéncia. Uma vez esquecida a raiz objetiva, econdmico-social, de classe, da violéncia, fica aberto o caminho para que a atengao se centre na pré- pria violéncia, ¢ nao no sistema que a engendra necessariamente. Dai uma tomada de consciéncia da propria violéncia sem chegar até suas raizes sociais. Bssa tomada de consciéncia se evidencia principalmen- te em relagio as formas diretas e imediatas da violéncia (a opressio colonial, a violéncia politica, o terror, a intervengéo armada ou a guer’ ra), isto 6, em relagdo As formas de violéncia que, por seu carter dire- to e imediato, podem ser vividas e compreendidas diretamente como tais. Perde-se de vista que essa violéncia, que aparece claramente na superficie dos fatos e é vivida diretamente, 6 a expressfio de uma vio- Iéncia mais profunda: a exploragao do homem pelo homem, a violencia econémica a servigo da qual aquela est. No caso da opressio colonial 388 Digitalizada com CamScanner _jolénela pura, “no estado de naturcza’, como diz just ‘anott ~ € preeisamente a exploragio econdmica da nen ee rant atta fonte das relagdes hum ica da populagio colo- apo todo imperialismo ou colonialismo 6 ore Fanon: “Durante séculos, os capitalistas se co: Mipdesenvolvido como verdadeiros eriminosos goes, as matangas, 0 trabalho forgado, pais meios utilizados pelo capitalismo para aumentar suas re fm ouro e em diamantes, suas riquezas, e para estabelecer 9 poder as o imperialismo inglés s6 pode exeroor essa violenein enn como capitalismo, isto é, depois de constituirse como tal (ech gm uma violencia econdmica terrivelmente desumana que Marx desere. eu objetiva ¢ vividamente ao apresentarnos a acumulagéo primitiva do capital." E se hoje o imperialismo nio bate com a mesma vara nos trabalhadores da metrépole ¢ da populagio de um pais colonial ou de- pendente; se busca integrar os primeiros em um “sistema de direitos humanos” do qual exclui a violéncia direta ¢ imediata, enquanto fora de suas fronteiras $6 aplica a lei da selva, a violéncia desearada (agressdes armadas, repressao massiva, desaparigées, tortura ete,), a razio disso deve ser buscada em fatores objetivos que determinam, por sua vez, 0 tipo de relagdo tanto em um caso como no outro, e que implicam, de acordo com eles ¢ com o grau de consciéncia revoluciondria, 0 tipo de resposta das correspondentes classes sociais. Essa resposta pode oscilar entre a luta relativamente pacffica, quando nao se apresenta uma situagdo revoluciondria, ¢ a luta armada, quando estao fechados 0s caminhos legais e pacfficos de transformagio de uma determinada sociedade, O esquecimento dos fatores objetivos da violéncia faz com que a atengdo se concentre, principalmente, nas situagdes opressivas extremas, nas quais a violéncia aparece de forma direta e imediata, relegando a um segundo plano aquelas em que esta tiltima toma for- mas mais sutis e indiretas. Mas 0 fundamento de uma e de outra—e da violéncia extrema e direta em um pais colonial ou dependente, ¢ 0 da violéncia calada, oculta e surda que se exerce sobre a classe operdria de um pais capitalista desenvolvido — 6 0 mesmo. ‘A violéncia imperialista e colonial nada mais é do que o prolongamento — prolongamento que implica sem divida em formas mais extremas, diretas ¢ imediatas de violencia - da violencia que o imperialismo exerce em seus proprios pat imperialismo inglés — dor dessas palavras de mportaram no mundo de guerra. As deporta- @ escravidao, foram os princi- "\ ®.Fanon, Los condenados de la tierra, México-Buenos Aires, FCE, 1963, p. 54 1, bid. pp. 92.93. CLK. Marx, El capital, op. cit.,t. I, vol. 3, p. 891-954. 389 Digitalizada com CamScanner Fivosoria na PRASIS aove dagen que existe conte os pases a lutim pela sua berg, ses. date ae denolnda em Fanon ~ de dissoeiar 2 violnta elon, ‘Atendéncia — f de suas raizes objetivas, de classe, desemboen em, uma sub s 2 ¢ revolucionaria, trabalhadora como ol a - Pm suma, ao centrarse a atengdio nas formas extremas da violén, cia — como violéncia politica J eaquece-se de que essa pode dar lugay a outras formas menos diret as ¢ imediatas — como Fanon reconhece — depois da libertagao nacional em alguns paises coloniais; dai A neces, sidade de desvendar as raizes econdmicas, de classe, da violéncia, pois Sida de dere o fundamento citimo de todas as formas que ela pode asstimir na sociedade dividida em lasses antagonicas. Do ponty de vista marxista, essa vinculagao entre a violéncia ¢ os fatores econ. micos e sociais que ‘imagio da adeterminam é esseneial, porque em seu reconhe- Cimento est” também a chave para a criagao de uma sociedade em que sejam abolidas as relagGes violentas entre os homens. OS HOMENS E OS INSTRUMENTOS DA VIOLENCIA “ Jé Engels, em o Anti-Diihring, se opunha a tendéncia de fazer da violéneia o fator decisivo ou a forca motriz do desenvolvimento hist6- rico e mostrava sua subordinagdo aos fatores econdmicos. Diante de Diihring, para o qual “a violéncia é 0 fator hist6rico fundamental’, Engels afirma que “a violéncia nada mais é do que o meio e que, por sua vez, 0 fim reside no proveito econdmico.”» E, em outra passagem da mesma obra, sustenta que “a violencia est condicionada pela situ- agdo econémica, situagao esta que tem de dotar a violéncia dos meios necessdrios para cquiparse com instrumentos e conservé-los.”" En- gels tem razdo. Com efeito, o grau de violéncia que se pode exercer em uma determinada sociedade - sobretudo, quando se trata da violéncia militar, que é a que Engels tem presente na passagem citada — é de- terminado pelo nivel de desenvolvimento das forgas produtivas e da tecnologia. Mas, evidentemente, 0 condicionamento da violéncia nfo Fanon traga um quadro magistral do que a violencia significa no mundo colonial como violéncia politica, opressora, ao mesmo tempo em que evidencia seu poder iluminador e libertador. Mas, como Sartre, ndo desvenda as raizes econdmicas, de classe, da violencia. Por isso, nao pode destacar as verdadeiras causas do fato de {que a violencia colonial suceda a nova forma de violéncia politica que corresponde ao neocolonialismo, Isso explica, também, suas solugdes ut6picas para que os pa 5 Hbertados do jugo colonial possam acclerar seu desenvolvimento econdmie®- B juno annals, ho entanto, que Fanon entreviu a necessidade de uma revolugie pta ao sustentar a necessidade de promover a emaneipagio nacional até darlhe cn i 2. argng um conte social, proeesso que 86 se pode realizar deixand-se de ado Anti-Dithring, Montevideo, EPU, 1960, p. 19 4 [bid., p. 203. eran 390 Digitalizada com CamScanner Pris & vo qe redut 2 1850. HA outros fatores condiio em particular quando Se trata da violé: om ento eeondmico ou tecnolégien de wastrumentos da viol€neta (desde a ora até a bomba atémiea jogada em gas forgas produtivas, da ciéneia e d, mental de um género de violéncia, mneos de destruico ¢ de aniquilamento que poor s gnum dado momento, Mas o que determina b carnam, é justamente o tipo de relagdes de social e de Estado, assim como a correlagéo entre as classes em luts isto é, a violéncia nao é uma entidade metafisiea ¢ suprehmcorig condicionada hist6rica e socialmente, e, dofinitivamente, sis neve eoneretos 08 que determinam seu uso e seu alonnee i Cionantes mais importantes, neia social. O nivel de desenvol- termina, em um d pedra langada pel Hiroshima). © desenvolvimento fa inddistria, 6 af condi ado momento, la funda primi- er empregados Scu uso, e a forga que en- Produgao, de organizagio APRAXIS SOCIAL NAO VIOLENTA, Mas do fato de que na sociedade dividida em classes antagénicas impere a violéncia como raziio ultima da classe dominante, nao se deduz que a violéncia possa imperar de um modo absoluto, Em pri- meiro lugar, porque todo Estado, ainda que sendo essencialmente um instrumento de dominio sobre outras classes, aspira obter o consenso ativo dos governados, como justamente Gramsci faz notar,® ou seja, deixa certa margem para a ndo violéncia. E, em segundo lugar, porque inclusive nos regimes mais violentos um determinado grupo ou setor social escapa aos efeitos da violéncia: justamente o setor que a institui e que, portanto, nao poderia aplicé-la a si mesmo. Entretanto, ainda que a hist6ria tenha progredido como processo de autoprodugao do homem por meio da violéncia, e daf seu inegavel papel de “parteira da histéria”, nao se pode descartar em nossa época ~se bem que, certamente, como um caminho um tanto excepcional — uma praxis social nao violenta. Se, definitivamente, a violéncia de uma classe 6 a resposta a violéncia de outra, nao se pode excluir uma situa- ¢ao na qual a classe dominante se veja forgada, por assim dizer, levan- do em conta a correlagao de forgas existentes, a nao recorrer - em virtude de sua debilidade nessa correlagéo - a violéncia. Marx admitiu ® Os homens ~ ¢ néo as armas ~ determinam o tipo de violéncia, pois, como diz Hegel, “as armas ndo so outra coisa além da esséncia dos préprios combatentes” Citagio de G. Lukées, Geschichte und Klassenbewusstsein, p. 254; edigao espa- athola, p. 259), “Bstado ~ diz, Gramsci - é todo 0 complexo de atividades praticas ¢ teGricas com 4s quais a classe dirigente nao s6 justifica e mantém seu domfnio, como também consegue obter 0 consenso ativo dos governados..” (Notas sobre Maquiavelo, so- bre politiea y sobre el Estaclo moderno, Buenos Aires, Lautaro, 1962, p. 108-109.) 391 Digitalizada com CamScanner Fuosoria pa Pris a possibilidade de semelhante situagao, no deeénio de 1870, para Inglaterra ¢ os Estados Unidos, considerando que naquela época og. rociam de um aparelho burocratico ¢ militar altamente desenvolyido, mas, ao mesmo tempo, mostrou que esse caminho pacifico poderia facilmente converter-se em violéncia.” Lenin previu a possibilidade de transformagao radical pacifica no periodo anterior a Revolugao de Outubro, mas ele descartou essa possibilidade quando 08 aconte, mentos tomaram um novo rumo.* . Essa possibilidade, que continua sendo quase téo excepcional como nos tempos de Marx e de Lenin,” 6, no obstante, uma possib lidade que deve ser aproveitada — isto 6, deve-se lutar para realizé-la ~ na medida em que surja, No entanto, essa possibilidade nao pode levar A subestimagao do papel da violéncia nem a colocar no mesmo plano os métodos violentos ¢ nao violentos, a contrapor abstratamente esses tiltimos aos primeiros e, menos ainda, colocar exclusivamente as esperangas de transformagéo na via pacifica do socialismo. Agir assim 1 Sobre as possibilidades de conquistar pacificamente 0 poder ¢, sobretudo, de exer. cé-lo, Marx e Engels esereveram na década de 1870. No que diz respeito a Franca e a Alemanha, Estados com uma burocracia militar ¢ civil altamente desenvolvidas, ‘Marx e Engels mostram que, ainda que um partido socialista pudesse conquis- tar legalmente o poder, essa vit6ria eleitoral marearia 0 comego da guerra civil Quanto a Inglaterra e aos Estados Unidos, que careciam entio de um forte aparato estatal militar-burocrdtico, Marx opinava, a época, de forma diferente. Com efeito, comentando em 1878 o debate do Reischstag sobre um projeto de lei para prosere- ver o Partido Social-democrata, Marx escrevia: “Se, por exemplo, na Inglaterra ou nos Estados Unidos, a classe trabalhadora conseguisse a maioria no Parlamento ‘ou Congresso, poderia legalmente por fim as leis e instituigdes que se opdem a ela no caminho de seu desenvolvimento ... No entanto, o movimento ‘pacifico’ poderi tornar-se ‘violento’ pela rebelido daqueles cujos interesses estivessem ligados a velha ordem ... [mas entdo] seriam como rebeldes opostos ao ‘poder legal”. 1» Em suas famosas Teses de abril, expostas meses antes da insurreigdo de outubro de 1917, admitiu a possibilidade de que, nas condigées histéricas peculiares que ento se davam na Russia, o poder passasse por via pacifica as maos do proletariado. Isso era possivel justamente porque 0 governo provis6rio nao recorria ainda A violencia contra a classe operdria. O golpe contrarrevoluciondrio de julho do mesmo ano truncou 0 curso pacifico da revolugao e determinou seu caminho violento. Ao se referir Lenin a insisténcia de Kautsky em citar Marx, “quem entre 1870 ¢ 1880, admitiu a possibilidade da transigao pacifica ao socialismo na Inglaterra ¢ na América do Norte”, diz: “Em primeiro lugar, também naquele momento Marx considerava excepcional essa possibilidade; em segundo lugar, nao existia na época © capitalismo monopolista, isto 6, o imperlalismo; finalmente, ali, na Inglaterra € na América do Norte, nao existiam (agora sim) camarilhas militares como aparato fundamental na maquina do Estado burgués” (V. I. Lenin, La revolucién proletaria yel renegado Kautsky, em Obras completas, op. cit., t. 28, p. 100). f claro que, part abordar objetivamente essa questéo em nossos dias, deverfamos levar em conta 0S fatores positivos ¢ negativos que hoje existem e que nio existiam, decerto, nem nos tempos de Marx nem de Lenin, 392 Digitalizada com CamScanner Prais & vioutscan signifiearia cair de novo no reformismo, Portanto vali : a transigéo pacifica Ses “i apresenta como uma via possivel, mas aes aan i a ‘i . , Mas excepcional, Nesse sentido, devemos nos ater & experiéncia histérien, ¢ no nos ferrarmos unilateralmente ao que 6, e1 ri sosiblidade. Quando se trata de anid aiigds ine cry Prat Ffoléneia continua sendo a regra geral, mas nao por iso deve-se des cartar as possiveis excegdes.” A praxis eriadora e a revolugao, que 6, como vimos, uma de suas formas, nfo admitem nunea ata rf sa determinagio do possivel © menos ainda sua transformagio em von lidade. a : a0 5 AVIOLENCIA QUE SE NEGA A SI MESMA Ahist6ria nos mostra até agora que a violencia é a razio iiltima—c néo a primeira e dnica ~ das classes dominantes, Jd mostramos ante- riormente que nem sequer o Estado mais despético 6 a esfera da pura violéneia pura, ou da constante violéncia em ato, No entanto, o pre- dominio da violencia sobre a nio violéneia é patente tanto na praxis como na antipraxis social. Diante do uso da forga no passado, nao po- demos nos situar com um critério abstrato, moralizante, ’ margem da historia e de seu contetido conereto, de classe. A praxis social passou necessariamente pela violéncia. Mas isso nfo pode nos fazer esquecer o que ela significa, aplicada nao j4 a um objeto fisico, mas ao homem, como ser consciente ¢ social, no que tem de ser corpéreo ¢ fisico. Se 0 progresso na autoprodugio do homem é um progress em sua hu- manizagio, isto é, em sua elevagio como ser social, consciente, livre ce criador, a violéncia — mesmo sendo positiva historieamente — revela- se, de certo modo, anti-humana, isto ¢, oposta a essa natureza livre e criadora que o homem busca alcangar. Relagdes verdadeiramente humanas, como as que se deseja forjar sob 0 comunismo, nas quais 0 homem seja tratado efetivamente como fim e no como meio, como sujeito ¢ nao como objeto, como homem ¢ nfo como coisa, nao podem admitir a violéncia. A violéncia que historicamente acompanhou as sociedades divididas em classes também sera abolida com a aboligao das classes e do Estado como instrumento de dominio ¢ coergio. A exclusio por meios violentos para resolver os conflitos e contradigées sociais sera um dos indices mais patentes de uma sociedade superior, na qual a personalidade de cada um se desenvolva livremente no seio de uma uniao livre e consciente dos individuos, na qual os érgaos ® Podo-se considerar uma excegio a regra a revolugio hingara de 1919, que levou a classe operdria ao poder. Lembremos, do mesmo modo, que a intervengio das po- tncias imperialistas pés fim, poucos meses depois, a essa revolugio sovialista que havia se intetado e devenvolvido de forma relativamente pacifiea (sem insurrcigio tem guerra civil). 393 Digitalizada com CamScanner Fiosorts na Praxis coercitivos ¢ administrativos do Estado sejam substituidos pelos 6p. gios de autogestio social. Por essa exclusfo da violéncia das. relagies, humanas, a violéneia revolucionéria que hoje contribui para criar esse estado futuro de coisas, na verdade, é potencialmente a negagio de gj mesma e, nesse sentido, 6, como sua prépria negagao, a Gnica violen. cia legitima. ‘Trata-se, portanto, de uma violéncia historicamente determinada que caminha, com sua propria contribuigao, ao seu desapareciment futuro. RUMO A BXCLUSAO DA VIOLENCIA Os fildsofos da nao violéneia foram incapazes de ver essa fungi hist6rica da violéncia revolucionaria. B certo que Hegel, por exemplo, situou historicamente a violéncia, mas justamente para enfatizar sua negatividade. Nas paginas que Hegel dedica ao terror em a Fenomeno- logia do espirito, essa forma de violéncia extrema € examinada com relagdo A experiéncia hist6rica da Revolugao Francesa. A revolugio é a tentativa de realizar a razio na terra, ou de por em obra a liberda- de absoluta. Mas, essa tentativa de realizagao da liberdade absoluta desemboca no terror, na negagao do que queria ser. “A essa liberdade s6 Ihe resta 0 agir negativo; é apenas a furia do desaparecer.”"' Da liberdade absoluta e do terror que a nega, é preciso elevar-se a um novo reino, o reino do “espirito certo de si mesmo”; é preciso passar da revolugao a “concepgao moral do mundo”. Hegel rejeita, assim, a violéncia revoluciondria. O terror, como sua forma extrema, é apenas 0 negativo. A criagao, a praxis, esté em outro reino, em outra esfera na qual 0 espirito encontra-se a si mesmo. Pas- sa-se, assim, a uma nova terra da qual a violéncia esta excluida: a terra do espirito. Hegel vé justamente, ainda que de forma idealista, que 0 plano de uma hist6ria verdadeiramente humana ~ espiritual para ele - deve negar a violéncia. Mas nao vé a agdo positiva da propria violéncia ao fazer possivel, com sua agdo, seu proprio desaparecimento. Em Marx, a violéncia revolucionaria aparece como uma necessida- de histérica que desaparecer, com 0 concurso dela mesma, ao desa- parecerem as condigées hist6rico-sociais que a engendram. Nao tem um contetido tinico, universal e abstrato; é violéncia ¢ contravioléncia; serve a uns ¢ a outros interesses; é elemento de uma praxis ¢ de uma antiprdxis. Nao é, por isso, pura positividade, nem mera negatividade. ¥ ambivalente, Nas condigdes da sociedade dividida em classes, ¢ PO sitiva na medida em que serve a uma praxis social revoluciondria. Mas em um mundo verdadeiramente humano, onde os homens se unant Gf, G. W, Hegel, Fenomenologta del esptritu, op. eit., p. 346. 394 Digitalizada com CamScanner Priva & vious ee conscientemente, a violéncia te; y Tresim, no qual a liberdade de cad; lo ‘olénci fi i demais, @ viol€ncia € a coergio exterior dario lugar a ume elevada nsciéncia moral e social que a tor co! ‘nem desnecessaria. A praxis social ff nao teré que apelar necessariamente a violencia, Assim, se € certo que a violéncia ~ como “parteira da hist6ria” — acompanhou a pra social humana em suas infle: ‘Ges decisivas, toda violencia de sinal Positivo, trabalha, em dltima instncia, contra si mesma, isto é, contra a violéncia de amanha. Por isso, ao tornar pos- sivel uma verdadeira praxis humana ~ nao violenta ~, a violéncia revo- Juciondria, ¢ espe ‘almente a do proletariado, nao s6 se dirige contra uma violéncia particular, de classe, da qual surge transitoriamente uma nova violéncia, como também se dirige contra toda violéncia em eral, ao tornar possivel a passagem efetiva a um estado nao violento. $6 entiio, a praxis social, ao deixar de ser violenta, terd uma dimens yerdadciramente humana, 'm de ser excluida. Em um mun- 4 um pressupée a liberdade dos liv 395 Digitalizada com CamScanner

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