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Titulo original: LAS CLAVES DEL ARTE EGIPCIO Copyright 1989 by Editorial Plancia © Copyright by Livraria Martins Fontes Editora Lida., para a presente edi¢ao 18 edi¢do brasileira: abril de 1992 Coleco Saber ver a Arte Directo editorial: Juan Capdevila Assessor: Juan Ramén Triadd Diagramacao: Roger Hebrard Traducdo: Ivone Benedetti Reyisdo da tradugdo: José Maria Yaleije Bojart Revisdo tipogrifica: Karla B. Lima ¢ Sandra R. Garcia Producdo grdfiea: Geraldo Alves Composicdo: Alexandre Augusto Nunes Capa — Projeto: Alexandre Martins Fontes Dados Internacionais de Catalogacio na Publicacio (CIP) (CAmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Espafiol, Francesca. Suber ver arte egipcia / Francesca Espaficl ; [tradugé Iyone Benedetti]. — Sao Paulo : Martins Fontes, 1992. — (Saber ver a arte). ISBN 85-236-0069-0 1. Arte egipeia I. Titulo. Il. Série. 92-1031 CDp-709.32 indices para catilogo sistemstico: I, Arte antiga : Egito 709.32 2. Egito : Arte 709.32 Todos os direitos desta edigdo reservados para 0 Brasil & LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA. Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 — Tel.: 239-3677 01325 — Sao Paulo — SP — Brasil a cd Nai at a I A ce ge a a i ee te Pedra de Roseta. 196 a.C. Londres. British Museum. Descoberta em 1799, foi a peda de toque para determinar 0 funcionamento éa excrita hieroglifica. O francés Jean-Francois Champollion aproveitox seus profundos conhecimentos em Knguas orientais, entre as quais c copto, para decifrar 9 texto egipcio éa inscrigao. Tratava-se de um decreto do periodo ptolomaico copiado em caracteres hieroglificos, gregos e demoticos. Pode-se afirmar categoricamente que © trabalho de Champollion determinou © nascimento da egiptologia. a. INTRODUCAO tro & Monsieur Daciey relative & Valphabet des hiérogly. bhes phonétiques employes par les Egyptiens... Esse traba- Tho, que versava sobre o funcionamento da escrita hierogli- fica, sempre foi considerado o ponto de partida da egiptolo- gia. Todavia, 0 passado esplendoroso desse povo havia des- pertado o interesse de gregos e romanos, de homens da Ida- de Média e do Renascimento. Poucas culturas exerceram se- melhante fascinacao em toda a Historia. Quando, com base na pedra de Roseta, o erudito francés conseguiu deslindar os segredos dos hieroglifos, estava inaugurando uma nova E m 1822, Jean-Francois Champollion apresentou sua Let ie O Egito faradnico. Estendia-se do Mediterraneo a Assua. O longo vale era dominado pelo Nilo, via de comunicacdo por exceléncia cujo percurso determina a existéncia de duas zonas: 0 Alto € 0 Baixo Egito, este iiltimo composto pela totalidade do Delta. Inicialmente independentes entre si, unificaram-se por volta do terceiro milénio antes de Cristo sob a autoridade de um monarca tnico, Embora a fronteira sul tenha avancado durante o Medio Império, a grande época da expanséo territorial foi o Novo Império. Nesse periodo, a Nabia foi totalmente conquistada e, na Asia Ocidental, a Palestina © parte da Siria. 1, Necrépole do Antigo Império; 2. Nome de Tehas. etapa nessa secular relacao do Oci de entao foi possivel nao s6 admirar mas também conhecer em maior profundidade a evolucao, os conhecimentos, a cul- tura, a religiao, etc., desse pais milener. E precisamente nesse ponto que iniciamos uma viagem iva através de uma das facetas mais atraentes dessa ilizagao: sua arte. O ato de desentranhar as funcdes es- ficas nela desempenhadas pela arquitetura, escultura, pintura e demais campos artisticos levar-nos-d a tratar, com- plementarmente, de outros aspectos. O primeiro deles, ad- mitindo de antemao nossa pouca originalidade, refere-se ao condicionante geografico por exceléncia: 0 Nilo. E inevitavel partir def ao se falar do Egito. Além de ser adora- do diretamente como divindade agraria, suas caracteristicas especiais — transbordamento periodico de seu leito, a de- corrente inundacao do vale e a volta das aguas ao leito — influenciaram fortemente a concepcao cosmolégica desse po- vo. O proprio Osiris, um dos deuses oficiais mais arraigados na sociedade egipcia desde o Antigo Império, participard des- se dualismo morte-ressurreiggo. Em nivel mais pragmstico, até os meses do ano ordenavam-se em torno da estacao de maior altura das éguas (de 19 de julho a 19 de novembro, aproximadamente). Sao numerosos 03 aspectos que sofre- rao a influencia desse fenomeno natural, conseqtiéncia do grande volume de chuvas equatoriais na zona centro-africana onde nasce 0 Nilo. Poderiamos até aludir as particularida- des da arquitetura, que se adaptou a esses meses durante os quais, para se ter acesso a determinados edificios, era im- prescindivel 0 uso de barcas e, portanto, de embarcadouros. Contudo, sob um ponto de vista mais imediato, os efeitos po- sitivos da inundacao se fizeram sentir na produtividade da Paleta de nadadora. Londres, British Museum, As altas camadas sociais do Egito rodearam de luxo e requinte a vida cotidiana. Os numerosos objetos relacionados com a higiene e @ beleza feminina (espelhos, recipientes varios, pentes...) sa0 bons exemplos dis Svas formas eram planejadas com especial cuidado e os pratinhos para misturar ou warar pomadas, entre as @ destacam as do tipo nadadora, séo muito criativas. Cabeca de substituigao. TV dinastia. Museu do Cairo. Da necrépole civil, sit atras da pirémide de Qui em Gizé, procede um interessante grupo ce cabegas de tamanho natural Devido @ falta de espago interno, a habitual escultura de corpo inteiro do morto precisou ser reduzida reproducdo apenas dessa parte, Seu objetivo magico, contudo, parece terse mantido. Quéfren. IV dinasti Museu do Cairo. Talvez esta seja uma das obras mais paradigméticas do Antigo Império. 0 artista soube refletir perfeitamente o que o rei representava entao. Sua capacidade de organizer © cosmos @ sua autoridade politica estdo nela plasmedas. O monarca, representado, segundo a tradicao, com as insignias de poder entronizado, ostenta atras da cabeca um falcdo cujas asas se confundem com seu toucado. Trata-se da imagem zoomorfizada do deus Horus, com quem o rei é identificado durante 0 periodo mais brilhante do Antigo Império. terra. A torrente arrastava um limo extremamente rico em elementos organicos, que ficava degositado sobre os cam- pos quando as aguas se retiravam, atuando como fertilizan- te natural. Isso explica como esse pais, cujo solo cultivavel no era maior que o da Bélgica, conseguiu construir uma ci- vilizacao tao avancada — a partir do terceira milénio —, uti- lizando a agricultura como base econdmica, Entretanto, nao podemos recorrer unicamente ao deter- minismo para explicar o brilhante desenvolvimento dessa vilizagio. O fato de existirem condigées naturais étimas njo o justifica totalmente. Embora nao sejam claros os caminhos percorridos antes do ano 3000 a.C., deve ter ocorride um pro- cegso muito dinamico, pois nesse momento j4 se constata, em diversas frentes, um nivel avancado de civilizacao. Apa- recem as primeiras manifestacées de escrita e de arquitetu- ra monumental e o vale do Nilo organiza-se politicamente sob a autoridade de um monarca tmico, ao qual se atribuem poderes tanto de ordem terrena quanto divina, Num pais cen- tralizado, com governo autocratico, um dos pilares ba- sicos em que 0 sistema se sustentou foi o eficiente corpo ad- ministrativo. Os funciondrios vigiavam as canalizacdes que permitiam transportar a Agua da inundago para além de seus limites naturais, cobravam impostos ou, 0 que di no mes- mo, a parte da colheita que cabia ao rei, e em nome deste administravam a justica. O Nilo, depois de nercorrer as varias cataratas que se escalonam na zona da Nubia, penetra no vale que o levara ao Mediterraneo. O curso fluvial determina a existéncia de duas zonas diferenciadas: uma que vai de Assua a area an- terior ao Delta e outra compreendida entre esta altima e 0 mar. Os chamados Alto Egito e Baixo Egito, inde- pendentes um do outro antes do terceiro milénio, mantiveram, depois da unificagdo do pais, suas pré- prias idiossincrasias. Nao sO se reconheceu oficialmen- te o rei como ‘‘Senhor das duas terras”’, como também se perpetuou esse dualismo em tudo o que cizia respeito a sim- bologia politica. Houve duas coroas (a branca e a vermelha, do sul e do norte, respectivamente), duas flores (0 l6tus 0 papiro), duas divindades protetoras de cada regiao. O maior acerto da nacao egipcia foi considerar que sua forca residia na unidade do vale do Nilo sob o governo de um monarca unico, sem que isto supusesse, necessariamente, uniformi- dade. A conseqiiéncia mais imediata de tudo isso foia esta- bilidade interna, que abriu caminho para as etapas mais fe- cundas de sua historia. A evolugao do Egito nao é linear. 0 mais adequado é classificd-la como ciclica, visto que nela se alternam perfodos de crise com outros de brilhante desen- volyimento. O perfodos de crise foram conseqiiéncia do en- fraquecimento do poder centrale em seu bojo veio a divisao do pais. O advento dos periodos de desenvolvimento foi re- ? Miquerinos acompanhado por Hator e pela divindade de um nomo egipcio. IV dinastia. Museu do Cairo. O carater divino do faraé € manifestado nesta imagem, ao ser ele situado entre duas deusas sem se lhe seja aplicada negativamente a perspectiva hierarquica, como sucedera durante 0 Novo Impétio. A obra faz parte de um grupo de vito triades — nem todas conservadas — que decoraram 0 mesmo numero de capelas no templo funerdrio do monarca. A figura feminina que representa o nomo muda em cada uma das pegas conhecidas ¢ representa as provineias em que o culto Hator era especialmente importante. Mulher moendo trigo. IV dinastia. Museu do Cairo. Essas escalturas de pequeno tamanho apareceram em fins do Antigo Império, mas aleancaram extraoriindria popnlaridade durante o Médio Império. Executadas em pedra ou madeira, ¢ de 8 sultado da vontade de reinstaurar a unidade territorial e a autoridade do fara6. Etapas histéricas terceiro milénio até 0 ano 2155 ¢ no qual se sucedem as seis primeiras dinastias faranicas, inaugura-se o periodo hist6rico. Durante essa etapa consolida-se, em dife- rentes niveis, tudo aquilo que define, por antonomasia, o mun- do egipcio: sua concepcao peculiar do fato religioso e da gura do monarca, € a dialética que se estabelece entre am- bos... Consolida-se também entao a noco da natureza pere- civel gla vida na terra, diante do cardter eterno do além. A sociedade hierarquiza-se e surgem os diversos grupos que a conformarao: camponeses, artesdos e escribas, entre os quais se contam tanto funcionarios quanto sacerdo- tes, A capital do pafs situa-se em Ménfis. Essa cidade, fun- daca segundo a tratlicao de nova planta por Menés, monar- ca que levou ao auge o primeiro processo de unificacao do vale, encontrava-sc 2o norte, nas proximidades do delta do Nilo. Em suas imediagées surgiram as granc répoles, com stias espléndidas moradas da eternidade. Os tiltimos anos ¢o Antigo Império anunciam a crise que estoura finalmente e da origem ao denominado Primeiro Periodo Intermediario. Diminuiré a autoridade do faraé em face da progressiva independéncia do alto funcionalis- mo € 0 Egito estard as portas eS anar quia. Pe sou-se até em vevslias : fi ¢ om 0 inicio do Antigo Império, que vai desde 0 profunda crise de valores quando comeca a fender-se tudo o que parecia ina- movivel. Em um texto literdrio algo posterior, mas impreg- nado de pessimismo, lemos: A morte estd hoje diante de mim como a cure de wna enfermidade, como um passeio depois do sofrimento... (“Didlogo entre um desesperado e sua alma”). Oadvento do Médio Império (XI e XII dinastias) pos fim ao desgoverno. Uma campanha militar, desenyolvida do sul para 0 norte, reunificou o pais. Ao terminar, a capital transferiu-se para Tebas (Alto Egito), cidade que até entdo, como muitas outras, nao passara de centro de um nomo. Is- so obrigou a adequé-la ao novo papel e data desse periodlo a fundagdo de Carnaque ¢ Luxor, dois dos templos mais im- portantes do Egito, Ambos foram dedicados a Amon, quan: do esse deus de culto local foi erigido 4 categoria oficial por raz6es politicas. Os farads utilizaram-no como divindade di- ndstica na tentativa de recriar a situacao existente durante o Antigo Império ou dela aproximar-se, ou seja, a comunhao entre 0 terreno e 0 supraterreno, encarnada no monarca. qualidade desigual, acabarao por substituir os relevos nos tumulos civis egipcios. Com elas sko compostas as mesmas cenas de carater profano, que anteriormente eram executadas sobre as paredes da mastaba, mantendo exatamente 0 mesmo sentido magico dos relevos que as antecedem. Grupo escultorico familiar. Finais do Antigo Império. Museu do Cairo. Embora inicialmente aplicada aos circulos régios (lembremes a escultura de Miquerinos acompanhaéo pela esposa, no Museu de Boston), esta tigologia conheceu grande idade durante a Ve a VI dinastias entre as familias da administragao egipcia que eram enterracas em conjunto nas mastabas de Sakkarah. Aqui vemos 0s espcsos acompanhacos por um filho. O braco da mulher envolve ombro do marido, nur gesto que se manterd desde entio nesse tipo de obra, como. mostra do afcio que une casal. Durante ¢ Nove Impeério, contudo, 0 abraco serd reciproco. Avenida dos carneiros de Carnaque. Novo Império. Os caminhos de acesso aos templos eram protegidos, desde 0 Antigo Império, por esfinges (Quéfren, em Gizé, por exemplo), imagens do monarea com corpo de animal, cnja forga procurava afugentar os maus espiritos. Durante o Novo Império’sao muito freqtientes, tanto nos templos funerdrios (€ significative 0 grande mimero encontrado em Deir el-Bahati), quanto nos templos dedicados a divindade. Neste tltimo caso, € comum encontrar, no lugar da figura do faras, a do animal sagrado do deus titular do templo. Assim ocorre em Carnaque com 0 carneiro de Amon-Ra, Mat : Hatshepsut. XVII dinastia. Museu de Leiden, A escultura do period do Novo I P proiundo aspecto neoclassico. Isso se deve 20 conhecimento dire! inicial um Antigo Lmpétio, pois Ihes foi encomendada a restanracao dos grandes monumentos da 10 Manteve-se a importancia de Tebas como centro religioso, apesar das razdes de Estado que acenselhavam, durante a XI dinastia, a levar noyamente a capital para o norte. Ao Médio Império sucedeu 0 Segundo Periodo In- termedidrio. Trata-se de um novo momento de crise na historia do Egito, provocada, entao, nao sé pela decadéncia interna, mas também pelo assentamento, naquele territorio, de um grupo heterogéneo de origem asidtica, que acabou por dominar a zona do delta. Referimo-nos aos hicsos, que che- garam a coroar-se reis do pais, contemporaneamente as di- nastias tebanas que, do sul, mantinham a chama nacionalista. Outra vez teve in‘cio, no sul, a campanha militar que con- duziu a reunificacao do pafs e que conseguiu expulsar os hic- sos. Iniciava-se, assim, o Novo Império (XVIII a XX dinas- tias), talvez a etapa mais brilhante da evolucao hist6rica da do Nilo. Os egipcios, que sempre se haviam sentido Seguros no interior de suas fronteiras, sabem-se entao vul- IV, da Ve da VI dinastias, ois da expulséo dos hicsos. Estes, durante sen dominic do Baixo Egito, apropriaram-se dos edificios ¢ neles gravaram inserigées na qual foi seguica como comemorativas que convinka © modelo. a imagem mais destruir. Telvez 2 prodacao paradigmatica de Quéfren, do reinado de Hatshepsut, la em que a ‘igura do especialmente empenhada faledo Hérus esta atrés da nessa politica de cabega do monarea. reconstrucées, sea a que Thor reflete esse retorno a época cléssica egipeia Conserva'se, inclusive, uma escultura que a representa, nerdveis; foram submetidos e, nao bastasse isso, por um gru- po ao qual se acreditavam superiores. Essa experiéncia pouco agradavel levou-os a organizarem um exército eficaz — com o qual até entao nao haviam contado — e a doté-lo dos ar mamentos € dos recursos necessirios. O cavalo, introduzi- do pelos hicsos, foi incorporado a ele, além do carro de guer- ra. Durante a XVIII dinastia, o tradicional desinteresse pe- lo exterior deu lugar a uma politica imperialista. O Egito co- Amenotis IV, XVII dinastia. Museu do Cairo. E diffcil determinar as razbes artista, que, por isso, nao teria procurado imuldtas; que influenciaram 0 nascimente dessa arte, tao insolita, no reinado de Akhenaton. Para explicé-la, recorreuse as deformidades fisicas do monarca e a ura suposta busea de fidelidade por parte do aludiu-se também a busca de uma arte mais espiritual, que transmitisse melhor determinados conceitos intangi e Ultimo caso, tratar-se-ia de uma abstracao voluntaria que nao poderia estar desvinculade da exploragio de novos HI. XVUL dinastia. Museu Egipcio de Tarim. aos deuses suzge;no final do Antigo Império. Contudo, é com 0 Novo Inipério que acquire maior cifusto, visto jue serve eficazmente como ex-yoto nos temploss dedicados a divindades Essa pratica, documentada tanto ao cireulo real cuanto entre 05 altos funcionarios, foi 0 ‘motor dé :tma parte ‘mportante da produgao escultural do Novo [mpério | o templo dedicaddo a Amon- Ra, em Carnaque, foi um dos maiores beneficidrios. caminhos ém campcs diversos, inerente a essa época, Nao parece cue se deva excluir qualquer dos dois argumentos. As mudangas aparecem quando a corte ainda estaya instalada em Tebas. £ entao que Akhenaton erige o templo a Nefertite, XVIII dinastia. Museu do Cairo. Embora a cabeca mais conhecida entre as conservadas dessa rain! esteja no Museu de Berlim, esta do Cairo, inacabada, de uma modernidade surpreendente. Assim como 4 outra, foi descoberta numa ofi do escultor Tutmésis, em Tell el- Amarna. Trata-se de uma peca concebida para ser encaixada em outras, segundo o sistema empregado durante esse periedo, O quartzito devia ser recoberto com uma fina camada de estuque, como sta homénima de Berlim. Ambas correspondem fielmente as formulas desenvolvidas por Tutmésis, opostas ¢ paralelas, porém, aos pressupostos da corrente mais expressionista da arte desse reinado, Amen6tis IV e Nefertite, XVIII dinastia. Paris. Museu do Louvre. Este pequeno grupo esculpido mostra-nos 0 casal real de maos dadas. O fare6 exibe a indumentaria que lhe € propria e ostenta, na cabeca, a coroa azul, que surgin n0 Novo Império derivada do capacete de guerra. Nefertite, por sua ‘vez, yeste uma delicada tiinica de linho que apresenta 0 pregueado caracteristico da moda desse periodo, Ambos foram representados em 12 nheceu importante expansao territorial depois de conquis- tar a totalidade da Nubia, ao sul, e a Palestina e parte da . Sitla, na Asia Ocidental. Os beneficios econdmicos foram ind- meros € sua repercussaq, importante. Nao s6 se percebe um_ refinamento dos hébitos e maior valorizagao do luxo, que se reflete em especial no campo da moda entre as altas cama- das sociais, como também um grande impulso da constru- cao. Tebas, enfim, designada novamente capital, beneficiou- se com este tltimo fator. Luxor e Carnaque remodelavam- termos de igualdade pelo artista, 0 que corresponde fielmente ao importante papel desempenhado entao tanto pela esposa do rei quanto pelas princesas. E exatamente um dos aspectos ignorados até esse momento — 0 caréter humano do monarca, seus sentimentos e afetos — que ganha grande realce, especialmente durante a revolucao religiosa propugnada por Alhenaton; a arte ado deixard de refletir isso. se inintermuptamente: ali se localizavam os sepulcros reais € a nobresa preparave suntuosamente os scus. Em fins da XVIII dinastia, documenta-se um des pe- riodos mais sugestivos da historia do Egito. O faraé Ame- néfis IV, que mudou o nome para Akhenaton, desenca- deou uma revolucao due extrapolou o aspecto meramente religiggo, O novo culto a Aton, considerado deus protetor da dinastia, em detrimento de Amon-R4, foi o motor de tudo e seus efeitos se fizeram sentir em muitos nfveis. Modificou- se a relacio do rei com-seus siiditos e produziram-se mu- daneas radicais no ambito figurativo, etc. No principio, essa divindade apresentava-se como uma a mais dentro do pan- te%0 egiscio, mas os atritos com 0 sacerdécio amoniano, con- seqiiencia do desinteresse do rei em relacaoa este, radicali- zaram a posi¢ao do monarca. Como resultado, foi fechada a maior parte dos templos e, por breve periodo, o monote: mo imperou no pais. A famflia real abandonou Tebas, inti- mamente vinculada a Amon-R4, e transferiu-se para Akhe- taton (Tell el-Amarna), a nova capital do Médio Egito. Em- bora instigada diretamente pelo rei, essa reforma fracassou. Depois do desaparecimento de Akhenaton, a capital voltou para Tebas, os templos foram reabertos e Amon-Ra recu- perou seu posto de honra. Depois do Novo Império o Egito viveu um longo pro- cesso de decadéncia em que se sucederam as invasdes ex- ternas, Contudo, no final de sua historia, teve um novo mo- mento de esplendor. Apés a morte de Alexandre Magno, 0 Império Mecedénio desagregow-se e, no Egito, seu gover- nador foi coroado faraé, dando origem 4 dinastia ptolo- maica, Apesar d procedéncia grega, esses monarcas sentiram a fascinacao do pais de adocao e converteram-se nos tltimos grandes promotores da arte oficial, sendo prova disso os numerosos templos que edificaram (Denderah, Es- na, Edfu, Kom Ombo...). ligigo e as crencas caracteristicas desse povo no que respeita ao além-timulo. Deve-se supor que também tenha ocortido o desenvolvimento de uma producao de ca- réter dulico, mas nem 0 palécio nem os objetos suntudrios que deviam envolver a vida da realeza chegaram até nos, especialmente estes tltimos, Em contrapartida, podemos ava- liar a importancia dos templos, assim como das denomina- das moradas da eternidade e de tudo o que nelas foi aco- medado. Entre 0S numerosos deuses egipcios distil guem-se duas categorias: os de culto local ¢ os ofi- 0 s motores da arte egipcia foram, principalmente, a re- 13 Papiro de Any. XIX dinastia. Londres, British Museum. O chamado Livro dos Mortos 6 0 texto que, a partir de Novo Império, era colocado dentro do sarc6fago nas sepulturas civis. Quando eram ilustrados. Tal € 0 caso do Papiro de Any. Sua funcio, nos sepultamen civis, ere a mesma desempenhada pelos complexns programes iconogeéticos desenvolvidos nas paredes dos hipogeus reais, Ambos deveriam ajudar o morto 4 concluir com éxito sua viagem para 0 alem. Canopos. Museu Egipcio de Turim. Os egipcios acreditavam que os quatro Filhos de Horus velavam pela satide dos pulmdes, do estémago, do iigado intestinos, Se assim era em vida, nao havia ae mudar no além. Por 30, depois de extraidas do compo do morto durente a ificagao, as visceras eram também submetidas a erminada manipulacdo ‘a serem conservadas. steriormente, eram dispostas separadamente em quatro recipientes, sendo prética habitual que a tat de caca canopa ostentasse 2 ca do Filho de Hérus relacionade com as visceras nele conti¢as. Foram os gregos que deram es: yas03 0 nome Ge canopo eram talhados em pedras de varies qualidades, embora o alabastro permitisse a consecucae de form requintadas. 4 ais ciais. Estes ultimos serao objeto de grandes projetos arqui- tetonicos. Durante o Antigo Império, temos corhecimen- to da existéncia de diversos santuérios importantes, entre os quais sobressaem o de Osiris, em Abido, e, especialmen- te, o de Ra, em Heliopolis. Neste dltimo, do qual nada te- mos, articulou-se a chamada teologia menfita, que devia ter grande importancia. Explicava a criacao do mun- doe 0 papel desempenhado nesse processo pela Enéada, gru- po de nove deuses de carter césmico, entre os quais se en- contram Geb (terra), Nut (céu), 0 préprio Osiris € sua espo- sa Isis, etc. No Médio Império, Amon-Ra surge no panora- ma oficial; é um deus de origem tebana, que até entao nao fora adorado além desse nomo do Alto Egito. Contudo, sua importancia, por suas conotacoes politicas, foi extraordind- rie, Os faraés consideravam-se ciretamente amparados por ele e essa circunstancia converteu Carnaque e Luxor, seus dois grandes templos, nos edificios mais notaveis desse tipo de construgao no Egito. No que respeita 4 segunda vida, os egipcios enten- diam-na como algo muito material, ligado a necessi- dades especificas, tais como a da alimentacao. Par isso, pre- pararam conyenientemente as moradas eternas que deviam acolher o cadaver, erigindo-as em pedra para garantir sua persistencia; isso também justificava o enxoval funerario, que devia proporcionar 0 conforto necessério no além, ¢ as ofe- rendas periddicas de pao e cerveja que garantiam 0 susten- to do defunto. Recipiente para o enxoval funerdrio de Djoser. 11 dinastia. Museu do Cairo. Preparar adequadamente a vica elerna implicava reunir um enxoval completo para 0 reanimado, que lhe permitisse desfrutar confortavelmente dessa iaténcia. Por isso, nio eram excluidos os objetos de uso cotidiano, embora, quando 0 destinatario fosse 0 monarca, sempre se tratasse de obras muito bem cuidadas, Nas ca suberranees da pirdnide calonada foram descobertas cerca de 40.000 pecas que integravam uma baixela soberba. Vasos ¢ recipientes de todos 08 tipos eram talhados em pedras de varias qualidaces, desde a ametista até a ardésia, passando pelo alabastro. ras Sarcofago do futuro Ramsés I. XIX dinastia. Museu do Cairo. Antes de ser rei, 0 fundador a XIX dinastia foi vizir €o Bgito. esse periode data o sarcéfago aqui comentaco. Foi lavrado em dois monélitos de granito cinzento € tem feigoes fica, Embora no do tempo converteram-se em base para inscrigoes de carater magico, relacionadas com 0 caminho para o além, como ocorte com os Textos dos Sarcéfages, do Médio Império. Neste caso, as laterais sao decoradas com figuras dos quatro Filhos de Horus, protetores das visceras do morto, e com divetsos textos. Cotre do enxoval funerdrio de Tutancimon. XVIII dinastia. Museu do Cairo. Sobre hase de madeira estucada foi feita ur riquissima decoracéo pictérica. No enquadramento das cenas principais, de tipo militar, imitase 0 trabalho de marcheteria. O farad, ent seu carro de guerra e seguido ito, ataca os inimigos — sirios e nibios —, que sio vencidos. Estamos diaate de um dos primeiros e magnificos exemplares da miniatura egipcia, 16 Essa concepsao original fundava-se na crenca de que 0 homem vivo era composto por uma série de elementos ma- teriais e outros espirituais. Entre estes tiltimos estavam Ba ¢ Ka que, em vista de seu carater imortal, depois de aban- donarem o cadéver, ao ocorrer a morte, estavam destinados a vayar para sempre. Enquanto Ba parece correspon- der ao nosso conceito de alma, o Ka é mais dificil de definir: pode, contudo, ser entendido como forga vi- tal. Se trazido de volta ao corpo, comunicar-lhe-ia novamente a vida; era, em summa, seu elemento animador. Para que a segunda existéncia fosse possivel, era preciso assegurar a manutenedo eterna do corpo. Dai decorre a mumi- ficacdo, processo que, em seu tiltimo estagio, coincidia com a ceriménia da abertura da boca, Os sacerdotes, mediante sacrificios de carater propiciatorio e de conjuros, atrafam para © local 0 Ka do defunto e, finalmente, com um instrumente metdlico, tocavam a boca do cadaver e a forca vital penetra- ya novamente nele. Reproduzia-se nos homens aquilo que alenda de Osiris contava sobre o deus. Sabemos que sua rea- nimacdo se produziu pela intervencao direta do deus Ant- bis, que recompés o cadaver esquartejado. Por esse motivo, og embalsamadores egfpcios usavam mascaras de terracota com os tracos dessa divindade enquante realizavam o traba- Camara funeraria de Tutancamon. XVII1 dinastia. Vale dos Reis, Tebas Ocidental. ouro, que continnam a mtimia © hipogeu dese monacca, real. Neste aposento, que um dos menores escavacias os textos denominam no Vale dos Reis, sala de ouro, foi conservava, a despeito disso, realizada, segundo a 0 erxoval funezario intacto. crenca egipcia, a Ainda se mantém iv si reanimagdo definitiva do dentro do sarcéfago monarea, sua monolitico, uma das caixas antropomérficas de madeira, recoberta com laminas ce Iho. Foi pratica comum realizar o ritual da abertura também sobre esculturas do defunto, que eram dispostas no “‘serdab” do sepulcro, ber no lugar do culto do mesmo. Pela forca da me elas poderiam ser o suporte do Ka e viver a se- gunda vida com todas as suas implicacoes, caso o cadaver se destruisse. “Ushepti” do enxoval Liv funerério de Tutancimon. XVIII dinastia. Museu do Cairo. No hipogeu de Tutancamon no Vale dos Reis, deviam executé-las em seu apareceram 113 usheptis, lagar. Os usheptis comecaram feitos ce ferro, madeira a ser depositados a estucaca e dourada, etc. A tariulos, tanto re imagem do fara6 € repetida civis, durante 0 Mé em cada ar Império. Nessa época um sé estatuetas que ostentam uma arecia suficiente, mas no na regiao frontal. tempo de Tutancamon a-se do capitulo VI do mimero se multiplicara 0s Morios, segundo qual 0 morto era obrigado a realizar uma série de atividades no além. Essas pequenas esculturas do rei incorporacdo ao mundo dos deuses. A cena que domina o ambiente alude exatamente a esse episédio. Um sacerdote, vestide com a pele caracteristica, toca a boca do morto com um instrumento metdlico Assistimos, dessa maneira, & cerimonia de abertura da hoca. Akhenaton com sua familia. XVII dinastia. Museu do Cairo. O relevo mostra o monarca, acompanhado por Nefertite, realizando uma oferenda floral (Iétus) 20 disco solar, simboto de Aton, Bste domina a cena e com seus raios benfazejos ampara 4 familia real. A obra evidencia dcis fatos important um lado, 2 transform: sofrida pela arte egipcia durante esse periodo, que implica mudangas principalmente na representacdo da figura humana, chegando-se as raias do caricaturesco ao se intensificar seu expressionismo; por outro, a cena remete-nos a uma novidede que diz respeito a monarquia egipcia: a revolucdo religiosa propugnada por Alhenaton supés a modificagac do conceito tradicional do faras. O ser até entao distante € apartade, que nao exterioriza seus sentimentos diante dos stiditos, dé lugar a um nove rei, que compartilia 0s atos oficiais com sua familia e que € representado acariciando as filhas. ARTE E ARQUITETURA EGIPCIAS: INTRODUCAO milénios, foi descoberta, em 1924, a escultura de Djo- er (Museu do Cairo) dentro de sua “serdab’’, no recinto funerdrio do faraé, em Sakkarah. Seu artifice a lavrara ex- professo para que fosse encerrada naquele lugar, como mui- tos outros fariam depois. Abordar 2 andlise dessa obra a partir das tipologias, do sistema de representacio, de seu maior ou menor naturalismo, de seu canon, etc., nao ¢ o mais ade- quado, se considerarmos que se trata de uma peca que ndo estava destinada a ser contemplada pelo ptblico. Na reali- dade, avaliaremos seu verdadeiro significado esta- belecendo a fungao a que estava reservada. Este, ¢ nao outro, deve ser o ponto de partida para o estudo de toda D epois de permanecer isolada do exterior por quase cinco a arte egipcia, se pretendermos ser objetivos € situd-la no lugar exato. Isso é valido tanto para a arquitetura quanto para a ourivesaria porquanty, em eral, a produgao que hoje ca- talogamos como artfstica estava muito distante disso para os egipcios que viveram trés mil anos antes de Cristo. Ti- nha um caréter eminentemente utilitério. Construi- ram+se templos para a divindade e moradas eternas que de- Soco de uma escultura palécio, nobre por heranca, de Djoser. I dinastia. ssunto sacerdote de Heiiépolis, Museu do Cairo. constraior, escultor, fabricate Encontrado no conjunto de vasos de pedra. A peca funerdtio do monarca, sua constitui um documento de inscri¢ao € dedicada ao excepcional valor na arte ‘arquiteto Imhotep, acvqdil sé ~~ egipoia em virtude de sua refere nos seguintes termos: antigiidade e pelo total Pmbaitador Real do Baixo anonimato geral que 0 Exito, administrador de _ caracteriza. 19 Ostracon. XIX dinastia. Museu Egipcio de Turim. Esta peya procede de Deir el- Medina, vila dos artesaos na rea de Tebas. Trata-se de um exemplar incontestavel de liberdade com que os artistas egipcios podiam agir quando nao estavam sujeitos acs limites impostos pela arte oficial, Junto a essa peca apareccram muitas outras, que confirmam 0 que dissemos. Destacam-se as cenas de carater burlesco, que tém como protagonistas civersos animais humanizados, 20 viam abrigar o defunto depois de sua reanimagao. Suas pa- redes foram cobertas com relevos e pinturas, mas nao com finalidade exclusivamente ornamental. A intencionalidade magica est4 bem presente nas cenas que decoram os timu- los particulares do final do Antigo Império. Através da se- meadura e da colheita dos graos, do preparo do pao, seria possivel sobreviver no além. Os rebanhos que percorrem toda aextensao dos registros sobrepostos também colaborariam para isso. Nao faliam representagdes de jogos e entreteni- mentos. No que diz respeito a escultura real e particular, encontramo-la tanto nos templos quanto nos recintos fune- ratios. Em ambos os contextos funciona como imagem vi- va, depois de ter sido animada pelas palavras rituais. Considerando-se tudo 0 que foi dito, 6 ébvio, porém, que aarte egipcia utilizou um sistema préprio de repre- sentagao, assim como solugées especificas no campo ar- quitetdnico. Precisamente neste reside boa parte da origi- nalidade e, conseqitentemente, da atracdo que suas produ- gdes exercem sobre 0 observador do século XX, Nada tem aver com 0 correspondente de grande parte da arte aciden- tal, desde a época grega e, por isso, é mais atraente. Para entender sens fundamentos, é imprescindivel contar com o papel magico desempenhado pelas obras. Nao € verdade que os artistas egipcios foram incapazes de reproduzir a rea- lidade ¢ a prova disso est4 no conjunto de “éstracon” en- contrado em Deir el-Medina, povoacdo de artes4os do Nove Império, préxima a Tebas. A imagem da dancarina do Mu- seu de Turim ¢ paradigmatica. A este exemplo devem ser acrescentadas as excelentes reproducdes da paisagem nil6- tica que presidem algumas composigdes piciéricas da XVIII dinastia (cacada de Nebamun no rio, Museu Britanico). En- tretanto, a arte oficial afastou-se voluntariamente do naturalismo, uma vez que as imagens, para serem ins- trumentos magicos eficazes, nao deviam reproduzir a aparéncia transitoria das coisas, mas sua esséncia, 0 que nelas havia de perene. Daj a peculiar representago do cor- po humano sob perspectiva planiforme, que adquire essa apa- réncia como resultado de um processo intelectual que res- salta aquilo que o integra, em detrimento do que percebe- mos com 0 olhar. Uma cabeca de perfil permite reproduzir convenientemente 0 nariz, que passard despercebido se a ima- gem for frontal. Mas os clhos, ao contraric, perdem assim sua forma completa e, por esse motivo, o tinico olho repre- sentado aparece de frente. Outro tanto acontece com og om- bros. O homem possui dois e por isso, nesse ponto, abandona- se o perfil que imperava na regido da cabeca, para ater-se a visao infegral do individuo. Escriba. Y dinastia. Paris. Museu do Louvre. Embora as diversas tipologias esculturais criadas no Egito tenham surgido em fungao das necessidades do fara, com apropriacao posterior por parte dos nobres, isso nao ocorre com a do escriba, que aparece nos fins do Antigo Império e que deve ser considerada uma arte patrocinada diretamente por esse grupo social, que desempenhou, entdo, papel de importancia inaudita. 0 poder econémico dos funcionarios reais converté-los em clientes dos artistas, podendo, por isso, WW intluenciar esse campo. 21 Ka-aper, 0 Alcaide Provincial. V dinastia. Museu do Cairo. Embora saibamos que a escultura em madeira foi habitual no Egito, poucos exemplares chegaram até nds, Esta é uma das obras mais representativas, apesar de ter perdido a camada de estuque gue a recobria inteiramente. Seu evidente naturalismo remete-nos a uma das correntes prprias das dinastias finais do Antigo Tmpéric. A nova clientela artistica que surge entéo entre os grandes funcionarios vai ser representada segundo essa premissa, diferentemente da idealizacdo aplicada ao rei. Essa intelectualizagao da imagem por razées de operatividade magica acarretaré muitas outras particu- laridades. A perspectiva hierarquica (favoravel) e 0 hie- ratismo das personagens de classe elevada sao con- seqiiéncia disso, como 0 € a idealizacao de que € objeto, salvo excecdes muito precisas (Sesdstris IIT, Amendfis IV/Ak- henaton), a figura do monarea. O artista egipcic nao pro- curava plasmar os tracos fisicos reais do farad, sua aparén- cia, em suma. O retrato, entendido em. termos tradicionais, no existe no Egito, salvo na esfera nobiliéria, em que, no final do Antigo Império, documenta-se uma série de obras que podemos classificar como naturalistas (0 denominado Al- caide Provincial, do Museu do Cairo, por exemplo). A ima- gem se transformava em imagem viva de uma personagem, depois das palavras rituais, sempre que se tivesse, previa- mente, incorporado o nome da pessoa a peca. Isso explica arazao de, em determinadas circunstancias (época de Ram- sés II, entre outras), os monarcas se apropriarem das escul- turas de seus entecessores. Depois de destruir 0 protocolo anterior e gravar o novo, elas passavam a pertencer-lhes ple- namente, com todo o significado que isso tem no Egito. Tex- to e imagem nao estéo em total conexao somente na escultura plena: também as composi¢oes realizadas em re- evo ou pintura incorporam inscrigbes em caracteres hiero- glificos. Nas diversas cenas, ordenadas em registros super- postos, as personagens dialogam. Neste aspecto, parece-nos algo parecido com as legendas das atuais historias em qua- drinhos. Se tém o poder de animar-se, de ganhar vida, a pa- lavra nao deve ser excluida. Esse original sistema de representagao aparece totalmen- te consolidado por volta do ano 3000 a.C. e ja é utilizado na Placa de Narmer (Museu do Cairo), da I dinastia. A arte egio- cia, profundamente conservadora e ainda mais estratificada depois de elaborar uma solucdo adequada para suas neces- sidades, mantém-se sem variagdes substanciais, ainda que se detectem, eventualmente, algumas licencas isoladas. Com a esie ultimo aspecto, merecem ser cestacadas, além tracon” j4 mencionados, a figura representada em trés quartos no tamulo de Rekhmire (necrépole de Gurna, em Tebas), ou a cabega de inimigo vista de frente, no pilono erigido por Tutmés TIT, em Carnaque Aarte egipcia é, em sua maior parte, andnima. S6 os arquitetos parecem ter gozado de reconheci- mento social desde 0 Antigo Império. A Imhotep (II di- nastia) se deve 0 conjunto de Djoser, em Sakkarah; a He- miunu (IV dinastia), 0 de Quéops, em Gizé; e Amendfis (XVIII dinastia) parece estar por tras de todos os grandes projetos empreendidos na época de Amendfis III, como Lu- xor ou 0 desaparecido templo funerdrio do monarca. Todos eles desfrutaram de grande reputacao em vida e algum de- les chegou inclusive a ser divinizado postumamente, Em oposi¢ao a essa situag’o privilegiada, o restante dos arte- saos egipcios desenvolveu sua atividade em silencio, ads- tritos alguns 4s oficinas reais, outros aos templos. De qual- quer modo, existiu uma diferenca abissal entre estes e os estabelecidos em comunidades rurais, que viviam mal e fo- ram ridicularizados na ‘‘Satira dos Oficios”’, wn dos textes mais conhecidos da literatura egipcia. Por caminhos diferen- tes, chegaram-nos alguns nomes. Em detezminados casos, oartista assinou 0 trabalho. Eo queacontece com Meiamon, da XIX dinastia, autor do relevo dedicado a batalha de Ka- desh, em Abu Simbel. Em outros, o nome apareceu fortui- tamente durante trabalhos arqueoldgicos. Gracas a esta cir- cunstancia, sébemos da existéncia do escultor Tutmésis, de Tell el-Amarna, ativo durante o reinado de Amenéfis IV/Ak- henaton, Apesar de tudo, o rol de artistas documentados é pequeno demais para trés mil anos de atividade nesse campo. restrito ao interior do templo levow a realcar ao maximo a fachada monumental e tudo o qué nela se achava. Parece que, em conseqliéncia disso, os colessos, representando 0 monarca que dera impulso a sua construgao ou que neles recebia culto funerdrio, foram alvo ce veneracao especial Colossos de Amenoiis IIT, “Colossos de Mémnon”, XVII dinastia. Tebas Ocidental. Estas esculturas flanqueavam a entrada do desaparecido templo funerdrio do monarca. Nao s6 surpreendem 0 visitante etual como também impressionaram 0 grego Deodoro Siculo; da descrigao que este nos legou origina-se por parte do povo, o que o curioso apelido delo qual parece comprovada neste sao conhecidas. O acesso caso. O escudeiro Tay. XVIII dinastia. Museu do Cairo. Poucas vezes foi possivel , Ma arte egipela, uma relacio estilistica direza entre obras diferentes, como ocorre neste caso. Essa escultura, com pouco mais de meio metro de altura, talhada em madcira ¢ de fina execucao, € atribuida ao extraordindrio escultor que decorou 0 ttimulo rupestre de Ramese, em Gurna, Uma andlise apurada permite essa afirmacdo; basta comparar 0 preciosismo com que a cabeleira e 0 rosto de personagem foram trabalhados e seu delicado acabamento com 0 dos relevos da necrépole de Gurna. Outro argumento a favor dessa aproximacao esta na cronologia, dada a contemporaneidade de ambas as obras (reinado de Amendfis IID), 23 Fragmentos do templo dedicado a Aton, em Carnaque. XVIII dinastia. Museu de Luxor. Muito antes de abandonar Tebas para transferir-se para Tell el-Amarna, Amendfis TV/Alchenaton erigiu um templo a Aton, deus de sua especial veneracio. Construiu-o dentro do recinto de Amon-Ra, em Carnaque, € dele procedem as espetaculares esculturas 24 colossais do monarca, espalhadas por vérios museus. Depois da destruicao do edificio, suas pedras silfares foram utilizadas _de uma vasta composicao em que se incluem desde atividades cotidianas nas oficinas dos tamplos até cenas relativas ao culto ali realizado: oferendas ao deus como recheio do nono pilono, de onde foram recentemente recuperadas pela equipe arqueolégica franco-egiocia, com atividade em Camaque. Embora falie muito para restituir todos os fragmentos descodertos, isso jé foi feito em algumas éreas. Trata-se por parle do monarca, as vezes junto esposa Nefertite, etc. Os relevos apresentam ja todas as novidades introduzidas durante o periodo no sistema de representacao. No que se refere & organizacao e 4 execucao do traba- Tho, contamos com noticias esparsas que oferecem um pa- norama geral do assunto, embora nem todos os pontos fi- quem totalmente esclarecidos. Existem dificuldades, por exemplo, para determinar 0 grau de especializagao dos ar- tistas. Enquanto o trabalho em oficinas Ge ourivesaria pare- ce ter sido muito especializado (Papiro Hood), pois os arte- sdos se ocupavam com tarefas caracteristicas e diferencia- das, em outras atividades as coisas nao sao tao claras. Tal € 0 caso, por exemplo, dos arquitetos, que em vafias oca- siGes associam sua atividade a outras. Imhotep, também men- cionado como esculior e fabricante de pedres, pode Ser exem- plo disso. Contudo, é evidente que estamos diant de traba- thos afins. Em contrapartida, o pintor situa-se na esfera dos escribas e distingue-se do desenhista, embora as vezes pos- sa exercer ambas as funcdes. Encontramo-lo realizando pin- turas murais, decorando méveis ou ilustrando textos escri- tos sobre paptro, mas também lhe competia dar acabamen- to aos relevos ou esculturas, ja que eram totalmente poli- cromades. Os artesios egipcios, embora relativamente especia- lizados; colaboravam estreitamente entre si, princi- palmente quando se tratava de projetos ambicicsos e demo- rados. Deve-se lembrar que existiram até cidades, como Ka- hun ou Deir el-Medina, destinadas a abrigé-los enquanto de- senvolviam trabalhos:desse tipo. Para a realizacdo de um relevo mural, por exemple, era necessdria, em primeiro lugar, a preparacdo da superficie, depois do que cs desenhistas tragavam em vermelho todos os contornos da composicao. Imediatamente apés, os escul- tores iniciavam 0 trabalho, que, uma vez conclufdo, era po- Nefertéri acompanhada por Isis. XIX dinastia. Vale das Rainhas, Teha: Ocidental. * O hipogeu da “Grande Esposa Real” de Ramsés II contou com um dos melhores conjuntos pictéricos do Novo Império, que, infelizmente, esta sendo destruido de modo inreversivel pela umidade. Como base da decoracao, foram utilizadas os textes escatolégicos usuais do periodo, em que se descreve © caminho a ser seguido para chegar-se a converséo em Osiris, Nao 66 foram copiadas as formulas mégicas, como também, neste caso, € a propria Nefertéri quem vai avancando e topando com as dificuldades que se opdem ao seu caminho. Nao obstante, é amparada por determinadas divindades nessa viagem. caso de Isis, que jd contribuin para devolver a vida a Osiris, seu esposo assassinado, que aparece aqui como introdatora e conselheira da rainha. Estao de mos dadas; ¢ artista, portanto, representa-as em termos de igualdade. Esse fato pressupée, na realidade, um antincic da salvacdo de Nefertari, pois, ao ser equiparada a Isis, j4 € tratada como deusa. Osiris acompankado por Isis, XIX dinastia. Templo de Setos I. Abidos. Os relevas desse edifcio, do infcio da XIX dinastia, sao os tiltimos de qualidade do Novo Impéric. Decoravam totalmente o interior desse templo € conserva excepcionalmente sua policromia original. Neste caso, trata-se de um Getalhe da capela decicada a Osiris, no santuario. O devs aparece entronizado, acompanhaco pela esposa fsis, Observe-se a cor verde de seu resto. Segundo os egipcios, as divincades pessuiam cores proprias; a de Osiris era verde: a mesma mestrada pelos campos, quando a natureza renascia depois de morrer, em seu ciclo aaual. Nao era por aceso que sé tratava de um deus agrdrio que, segundo a lenda, participara da morte e da Tessurreicdo, como a terra. 26 Ramsés II, XIX dinastia. gravar-se o de Ramsés II, Museu Egipcio de Turim. __pcis o ritme dos arteséos nao Talves esta seja a cscultura -_acompanhava a marcha dos mais representativa do longo _trabalhos de construcio. Isso reinado do ronarea. A torna a estatuéria desse grande quantidade de periodo extremamente projetos arquiteténicos eclética ¢ desigual. Este empreendides entao levou a exemplar, no entanto, € de recorrer-se execucdo magistral e em seu indiscriminadamente as rosto podemos perceber um eseulturas de outros faras, esbogo de sorriso proprio do das quais era suprimido 0 “retrato idealizado” daquele protocolo origina] para momento. licromado pelos pintores. A todo esse processo deve-se acres: centar outra interven¢ao: a do autor do projeto. Os progra- mas iconograficos egipcios nzo eram complexos somente em relacdo a organizacao tematica; também incluiam didlogos, como semos, e dificeis férmulas de cardter magico que deviam ser selecionadas e corretamente copiadas. Esse ca- pitulo, segundo dados conhecidos, estava a cargo dos sacer- dotes. O mural que trata da batalha de Kadesh, em Abu Sim- bel, a que jd nos referimos, contém, além do nome do escul- tor, ode Huy, um sacerdote que, pelos termos da inscricao, deve ter realizado o projeto preliminar. Os trabalhos dos artistas egipcios cram feitos sob encomenda, ¢ o rei ¢ as divindades polarizaram a maior parte da demanda, muito embora os altos funciond- rios também tenham sido parcela importante da clientela ar- tistica, em determinadas époces. Paralelamente a essa par: te majoritaria da produgao existe, porém, outro capitulo me- nos conhecido, mas de extraordinario interesse: os ‘“‘éstra- con”, pedras de forma irregular sobre as quais eram experi- mentados novos desenhos e modelos. Podem ter servido, in- clusive, para difundir as composigées safdas das oficinas reais. 0 mais completo dos conjuntos conhecidos foi achado em Deir el-Medina. Neles percebe-se a grande esponianei- dade € a ironia livre dos artesaos egipcios, quando abando- nayam os rigidos esquemas representativos oficiais. ‘A demanda continua que parece ter existido na Egito, nessa area, salvo nos perfodos de crise, garantiu 0 bem-estar dos artistas, Seu salario, em espécie (alimentos, vestudrio, etc.), devia chegar com regularidade. Contudo, um fato que ocorreu durante o reinado de Ramsés III (XX dinastia) informa-nos das graves conseqtiéncias que os problemas eco- némicos puderam acarretar para esse grupo social. Um do- cumento conhecido (Papiro da Greve) conta cm que termos se deu aquela que deve ser considerada a primeira greve da histéria, iniciada pelos artes4os que construiam o templo fu- nerario do monarca depois de ficarem sem receber salario durante dezoito dias. Grande hipostilo do templo de Amon-Ré. XIX dinastia. Carnaque, Tebas, Esta drea dos teraplos 6 caracteriza-se pela ie recolhimento, Beate Habitualmente, sao ilumtinadas através de claraboias situadas no teto é, indiretamente, pela luz que chega do patio precedente. Durante a XIX dinastia, chegou-se a uma nova solucao que encontramos tanta na sala de le Carnaque (erigi¢a poca de Setos I) quanto na do templo funerdrio de Ramsés Il: a zona central é mais elevaca e no desnivel existente entre esta € as laterais sao postas gelosias Piramide de Quéops. IV dinastia. Gizé. Esta é a maior piramide construida no Egito. Atinge 146 metros de altura ¢ foi erguida totalmente em u interior, trés camaras funerarias nos dao sobre o plana de As duas c&mai va situa-se no proprio nicleo piramidal. Ali foi calocadlo 0 sarcifago monolitica antes de se fechar 0 teto, ARQUITETURA consultarmos as antigas descrigdes do Egito, feitas. S or viajantes estrangeiros (Herddoto, Deodoro, Siculo, Estrabao...), descobriremos que entre as coisas que mais os impressionaram nessa civilizacio milenar est4 a arquite tura. Hae tanto pela complexidade do espace interno ou pe- 6 ruturais avancadas, mas por sua monumen- parece ser a qualidade mais notavel das pi- ramides ou dos grandes templos erigidos desde 0 Novo Im- que ainda surpreendem o visitante. Hoje, como en- s soberbos vestfgios que se espalham desde 0 Me- diterraneo até a antiga Nubia continuam sendo o melhor ex: poente daquela civilizacao, E exatamente, entre outros in- dicios mento dos primeiros exemplares de arquite- ture monumental, por volta do terceiro milénio a.C., que mar- ca, para os egiptdlogos, a passagem da pré-histéri historia. A partir desse momento até a época romana, o pais foi coberto de tiimulos e templos, ao mesmo tempo determinadas cidades viviam perfodos de inte construtiva. Fortaleza de Buhen, sul de Assua. XII dinastia. A arquitetura militar egipeia € conhecida, sobretudo, a partir da linha éetensiva que os monarcas do Médio Império construiram na fronteira sul que limitava com a Nubia. Esta era um dos exemplares que mais se destacavam, Erguida totalmente em adobe, suas duas muralhas garantiam a invulnerabilidade. Desapareceu quando da construgdo da grande represa de Assua, em 1960. 30 Nem tudo o que foi construido conservou-se por igual. Se por um lado foi mantide boa parte das estruturas dos templos 4s divindades ou daquela que se chamou inde: vidamente arquitetura funerdria, por outro, pouco sabe- mos Sobre outro tipo de edificios, como corre com 0 pa- lacio real ou 0 préprio urbanismo. As cidades antigas esto enterradas sob as atuais ou entao, depois de abando- nadas, foram recuperadas como encraves para uso agricola, Nesse sentido, é preciso lembrar a escessez de terras culti- vaveis, existente no Egito, cujo vele fértil nao ultrapassava vinte quilémetros na faixa mais larga. Por isso conhecemos bem apenas determinadas urbes, por razoes muito concre- tas. Em ceterminados casos, foram fundadas a distancia do vale: Kahun ou Deir el-Medina; em outros, desenvolveram- se e foram destrufdas e os camponeses reutilizaram apenas parcialmente sua superficie, como em Tell el-Amarna. Como nos demais campos artisticos, também os ele- mentos que definem a arquitetura egipcia se fixam durante o Antigo Império, Embora, depois desse perio- do, sejam experimentadas novas tipologias, no que se refe- re a formulas nao sao detectadas modificagées substanciais Na Il dinastia situa-se a inovacao mais notavel, ao se incorporar a pedra como material construtivo, ainda que isso nao tenha significado o abandono do adobe, antes utilizado de modo generalizado. E fato que a maior parte dos edificios conhecidos foram erigidos em pedra € apresentam tetos planos, conseqiiéncia do sisterna de lintéis aplicado, mas os de carater mais utilitdrio (pense-se nos vastos armazéns do templo funerdrio de Ramsés II, em Tebas) foram cons- trufdos em adobe e ostentam abdbadas. Ocorre, porém, que a maior parte destes desapareceu. Moradas eternas porcoes colossais € sao as piramides, no Anti- go Império, o melhor reflexo dessa caracteristica. S40 consideradas um paradigma dos edificios egipcios de cara- ter fumerdrio, mas isso nao corresponde rigorosamente a rea- lidade, Esse nao foi o unico sistema de sepultamento ao longo dos séculos, nem é apropriado considerar, sem matizacdes prévias, que no Egito tenha existido uma arquitetura fune- aria. Era com a expressdo “‘moradas eternas’’ que os egip- cios designavam os lugares que, durante trés milénios, abrigaram caddveres de monarcas, da nobreza ou de arte- sas. Como ocorre em outros campos artisticos, também uma parte substancial da arquitetura deriva da visao peculiar que esse povo teve do além. Em oposicao a natureza pere- civel da vida na terra, a existéncia posterior tinha cardter eterno e, conseqiientemente, era preciso prepa- rar adequadamente 0 espaco, que lhes serviria de ambiente. Conyém lembrar que, até 2 V dinastia do Antigo Império, as moradas eternas s0 eram acessiveis ao monarca, a seus familiares e acs colaboradores que gozavam especialmente de tal privilégio. A partir de entao foram progressivamente democratizadas, abrindo-se primeiro para a alta aristocra- cia e, j4 durante o Médio Império, para todos aqueles que pudessem assumir as obrigacdes econdmicas que implicavam. Contudo, continuaram sendo restritas, se ponderarmos 0 as- sunto: Herédoto relata que, em sua época, todo egipcio cui- dava com carinho da sua eternidade, mas, dos trés tipos de mumificaczo entao existentes, 0 acessivel ao grosso da po- pulacio nao garantia a conservacao do cadaver. Ademais, A arquitetura egipcia destaca-se por suas pro- Conjunto tunerario de Djoser. Ill dinastia. Sakkarah. A piramide escalonada, primeira erguida no Egito, surgiu depois de um processo de experimentagio arquiteténica. Inicialmente, um tiirmulo macico de cerca ce oito metros de altura assinalava 0 local exato do sepulero real, A sucessiva superposicao desses corpos (seis.ao todo) deu lugar a piramide, Seus sessenta metros fazem dela um inquestionavel ponto de referéncia paisagistico. Necrépole de Sakkarah. Setor norte. Este cer ‘io é um dos mais importaates da histéria do Egito. Fundado durante a I dinastia, continuava sendo usado nos fins do periodo historico. Neste setor acham- se exemplares notdveis dos primeiros sepuleros reais em adobe, embora o de maior destaque seja o conjunto funerario de Djoser, da III dinastia. Algumas mastabas do final do Antigo Império (V ¢ VI dinastias), como as de Ti e Ptahhotep, ostentam vastos programas iconogréficos nas paredes internas Conjunto funerdrio de Doser, Reconstituigao. Uff dinastia. Sakkarah. Trata-se do projeto mais relevante empreendido no Egito durante o Antigo Império, além das grandes piramides, Nele, utilizou-se pela primeira vez a pedra 32 aceita a concepcao dessa segunda vida, a cova que esperava o morto no deserto, sem enxoval nem alimentos que garan- tissem a sobreyivéncia do “‘reanimado”, nao pressagiava uma estada agradavel. Por tudo isso, embora se verificasse uma. verdadeira democratizagio do além a partir de alguns usos gerais por toda a populacdo, sé uns poucos tinham realmen- te acesso a “eternidade” ortodoxa, que supunha a construgao de uma morada e a preparacio de to- dos os utensilios que deviam tornd4-la confortavel para o destinatario, Apencs o fara6, seus familiares ¢ a alta aristocracia puderam fazer frente aos gastos extraordi- ios decorrentes de sua organizagao correta. Esse carter de ‘‘vida imorredoura” que, para os egip- face norte da piramide, acha- se o templo funerdrio (4) e, ocupando todo o setor oriental, o Patio do Festival de Zed (5), rodeado por capelas simuladas. O extremo norte dessa drea é dominado pelas capelas do Alto € do Baixo Egito (6). como tinico material de constmicdo. A entrada para o recintp (1) situase a leste. Em seu interior, além da pirdmide (3), que indica 0 lugar da sepultura do monarea, foi posto 0 cenotéfio (2), ou timulo comemerativo. Adossado A Cios, tinha aquilo que existia depois da morte, explica a cla- ra semelhanga das primeiras mastabas com os palacios que lhes eram contemporaneos. Destes tl: timos nd ficaram vestfgios, mas suas fachadas foram repro- duzidas em algumas estelas da primeira dinastia. A do Rei-Serpente, guardada no Louvre, mostra uma delas. Suas caracteristicas repetent-se nos timulos monumentais do se- tor norte da necrépole de Sakkarah. Trata-se de construcées de planta retangular, cujo muro externo apresenta reentran- cias € saliéncias. 0 uso do adobe, material que gera acaba- mentos, tanto tecténicos quanto cromaticos, muito uniformes, presumivelmente motivou as franjas verticais. Estas perfu- ram a parede externa, proporcionando-Ihe maior plasticida- de, gracas aos jogos de luz e sombra. Um acabamento policromo, que reproduz motives geométricos préprios da cestaria, contribui para enriquecer esses exteriores. Dentro do edificio encontram-se diversos aposentos destinados a0 armazenamento e, escavada no subsolo, a camara funerdria. Ao redor de algumas dessas mastabas apareceu uma série de construcées mais simples, destinadas aos servidores do monarca. Embora os sacrificios humanos realizados apés 0 falecimento do soberano tenham sido abandonados pouco de- pois da primeira dinastia, 8 época estavam em plena vigéncia. Outro elemento habitual nessas primeiras mo- tadas eternas era a barca, que permitiria ao mor- to viajar depois da morte. Embora a mais espetacular Jd descoberta seja de madeira (referimo-nos a depositada nas imediagdes da grande pirdémide de Quéops), inicialmente eram de adobe. Durante a III dinastia, Ménfis passou a ser capital do fais. Desde entao e até o final do Antigo Império, a faixa Muralha do conjunto funerdrio de Djoser. Ml dinastia, Sakkarah. Este tipo dé solugao — muralha com reentraacias e saliéncias, as frat verticais que apresenta — era prépria da arquitetura em adobe do periodo precedente (I ¢ II dinastias). 0 arquiteto Imhotep utilizow-a com um novo material (a pedra), mas © peso do modelo seguide se faz sentir até no tamanho reduzido dos silhares. 33 Capelas do Patio do Festival de Zed. Recinto de Djoser. III dinastia. Sakkarah. No Egito, uma importante celebracdo de cardter real ocorria aos trinta anos de governo do fara6. Pode ser considerada uma reentronizacao, mas era mais que isso. O seu objetivo era que 0 monarca recuperasse sua capacidade de organizer © cosmos, supostamente enfraquecida com o passar do tempo. Para isso, havia necessidade de uma série de dependéncias, que, no caso deste coniunto funerério, foram dispostas meticulosamente pelo arguiteto, para facilitar a comemoracao desse jubilew no além. desértica situada além do vale fértil, na margem ocidental do Nilo, encheu-se de necrépoles, Essa era a regiio atrds da qual o sol desaparecia durante 0 creptisculo e por isso acreditava-se que correspondesse ao mundo do além-timulo. De Abu Roash, ao norte, a Meidum, ao sul, sucedem-se zé, Abussir, Dashur, etc., os diversos encraves dessa arqui- tetura eterna, Djoser, monarca da III dinastia, instalou em Sakkarah seu local de sepultamento, convertendo-se no pa- trocinador de um dos projetos capitais nesse campo. Imho- tep foi seu artifice. A histéria conservou com fidelidade a memoria deste tiltimo e chegou-se a atribuir-lhe a invencao da pedra silhar com total fundamento, pois foi 0 primeiro a empregé-la como material de construcao. Embora tivesse sido utilizada antes como revestimento interno de alguma camara funerdria, no conjunto de Djoser foi a base de todos os edificios. Essa obra colossal constitui um marco na evo- lugao da arquitetura egipcia, néo sé pelo que acabamos de apontar, mas também porque nela surgem numerosas novi- dades, algumas das quais tiveram continuidade, cutras nao, mas que, em linhas gerais, traduzem um esforco de tal mag- nitude que dificilmente obras posteriores podem superar. O lugar destinado & morada eterna do monarca encontra- se em pleno deserto, no setor norte de Sakkarah, mas um pouco mais ao sul e mais distante do vale que as mastabas da primeira dinastia. Uma muralha de dois quilémetros de comprimento demarcou uma ampla superficie retangular em que se retine tudo o que € necessdrio para garantir a viabili- dade da segunda vida. Essa muralha, constru‘da segundo a tradicdo do periodo precedente, com reentrancias e salién- cias, chega a ter dez metros de altura, coma entrada a orien- te. Em seu interior coincidem 0 lugar do verdadeiro sepulcro, cuja superestrutura apresenta, pela primeira vez, forma pi- ramidal, e o do timulo comemorativo. Antes da III dinas- tia, alguns scberanos possufram cenotéfios em Abidos, cidade do Alto Egito do culto a Ostris. Djoser, diferentemente de seus antecessores, nao precisa manter vinculos com a regiao sul do pais depois da morte, pois pertence a uma familia oriunda do norte. Por isso, seu timulo simbélico estd, pela primeira vez, junto 2quele que contém realmente o cadaver Mas mesmo assim a forca da tradicdo se faz sentir: o ediff- cio aparece adossado ao lado sul do muro externo do recin- to, Tem planta retangular e apresenta varias c4maras subterraneas as quais se tem acesso por meio de um pogo. Nelas, como nas situadas sob a piramide, reproduz-se a fa- chada do paldcio, com suas falsas portas ¢ janelas. A parede foi decorada com elementos ceramicos de grande beleza cro- méatica, que simulam canicadas. Trata-se da transposicao, para materiais perenes, das solugdes proprias da arquitetu- ra tradicional do Alto Egito que, diferentemente da do nor- te, foi desmontével ¢ empregou cana em profusao. Até mesmo a cor azul-esverdeada do vidrado colabora para a “textura” vegetal que se pretende imitar. Em um dos apo- sentos da cripta encontrou-se um sarcéfago que, pelas di- menses, pode ter abrigado os canopos do farad. Embora os cenotéfios de Abidos nao parecam ter contido parte alguma do cadaver, neste caso a reuniao dos dois sepulcros num mes- mo lugar explicaria essa incoeréncia. Como ja dissemos, poucas obras posteriores apresenta- ram a complexidade desta de que tratamos. Nao ohstante, alguns dos elementos que nela aparecem pela primeira vez tiveram continuidade. Tal ocorre, obviamente, com a pira- mide. Para explicar as sucessivas transformacoes da mastaba, que deram origem a essa obra sober- ba, lancou-se mao de diversos argumentos, que vao da teologia ao pragmatismo. Por um lado, alude-se 4 idéia de uma grande escada que poderia permitir aascensdo do morto ao céu para reunir-se aos deu- Necrépole de Gizé. Plano geral. IV dinastia. Aqui se retinem 0s trés grandes conjuntos de Quéops (3), Quéfren (2) e Miquerinos (1). Todos eles seguem tipologia idéntica: templo baixo ou do vale, rampa ascendente, templo alto e piramide. Destaca:se, atrés da morada eterna Ge Quéops, uma necrépole civil, As mastabas, dispostas ordenadamente, foram erigidas por liberalidade do faraé para seus colaboradores. 85 Necrépole de Gizé. IV dinastia. A arquitetura egipcia de cardler eterno foi erigida em pleno deserto. 0 vale do Nilo, que em sua faixa mais larga nao excedia 20) quildmetros, interrompe-se bruscamente, tanto a lest quanto a oeste, para dar lugar a areia. Aqui se serva claramente a linha ria. Nela estdo localizados os chamados templos baixos ou do vale, aos quais era preciso chegar de barco durante a inundacio anual. 36 Ses; por outro, 4 altura inicial do timulo — uns oito metros —, que impediria localizar, do exterior, sua posicao exata. Lembremos que 0 muro circundante chegava a ter dez me- tros de altura. Em um ou outro caso, 0 certo é que a primei- ra piramide foi fruto de um processo de experimentacao arquiteténica. A mastaba original, depois de sucessivos es- forcos construtivos, atingiu sessenta metros, uma vez con- cluidos os seis degraus sobrepostos de que é formada, Sob esse corpo, foram escavadas as cAmaras mortudrias do fa- ra e de outros membros de sua familia, aonde se chegava por meio de poces verticais, A frente da face norte da pirdmide foi erguido o templo funerdrio. Embora estivesse mal conservado, a missao fran- cesa encarregada dos trabalhos arqueolégicos encontrou, jun- toaele, o “serdab” do monarca e, em seu interior, a escultura em tamanho natural de Djoser (Museu do Cairo). O setor leste do recinto foi ocupado por um grupo de capelas simuladas, JA que n&o possuem espago interno, dispostas ao redor de um patio retangular. Outras duas, de caracteristicas seme- Thantes, mais ao norte, complementam esse singular conjun- to, Trata-se de um grande cendrio montado por Imhotep com vistas 4 comemoracdo do Festival de Zed, na segunda vida do monarca. Essa celebracao da realeza, uma das mais im- portantes, tinha como objetivo recuperar o poder que, como cosmocrata, 0 soberano tinha, poder esse suscetivel de en- fraquecimento com 0 passar do tempo, segundo os egipcios. Na realidade, tratava-se de uma reentronizacdo que ocorria aos trinta anos de governo, mas que foi adiantada e repeti- gamers, zc ages: da, segundo as conveniéncias dos interesses do momento. Em Sakkarah, tratava-se de preparar o cendrio arquiteténi- co adequado, que facilitaria a realizacdo desse jubileu no além, sempre que as faculdades do rei minguassem. Curio- sameate, esse simulacro arquiteténico é 0 que mais infor- mac6es nos da sobre as necessidades do Heb-Zed, pois os recintos preparados como cenério dessa festa, ao longo da hist6ria do Egito, perderam-se. Se a piramide, progressivamente aperfeicoada até che- gar a ter superficies lisas, ganhou grande fama na posteri- dade, € se o templo funerdrio, mais desenvolvido e de ocorréncia mais freqiiente a oeste, converteu-se em elemento imprescindivel nas futuras moradas eternas, o mesmo nao sucedeu com outros elernentos presentes nesse conjunto. Tal é especialmente 0 caso de toda a arquitetura relacionada com o Festival de Zed, Embora achemos noves alusées a ela, ja nao se trata de falsos edificios. Esse papel magico-simbolico passou a ser desempenhado pelo relevos que-decoram de- terminadas zonas das moradas eternas, como sucede, por exemplo, no caso de Sahure (V dinastia), De Djoser a Esnofru, pai de Quéops e fundador.da IV dinastia, sucederam-se as tentativas de conseguir a forma piramidal candnica. Finalmente isso foi conseguido, mas a contribuicdo mais notdvel desse periodo reside na tipifi- cacdo do sepultamento real. Na piramide inacabada de Meidum, encontramos tal solueao pela primeira vez. Com- preende um templo chamado do Vale, por situar-se no limi- te entre este e o deserto, uma tampa que o unia a um segundo templo e, por tiltimo, a piramide. Pretendeu-se explicar a existéncia desses dois lugares de culto, separados por um longo ‘‘dromos’’, partindo de informagées relativas ao em- balsamamento, que os textos parecem situar no proprio re- cinto funerdrio. O edificio erigido na 4rea baixa, ao qual, em €pocas de inundacdo, era preciso chegar por barco, pode ter- se destinado 4 mumificacao do cadaver, sendo também um local reservado 4 chamada “abertura da boca’. Depois des- ta cerim6nia, que objetivaya a reanimagao do cadaver, 0 cor- tejo, integrado por sacerdotes e familiares, transferia 0 corpo Mastabas civis da necrépole de Gizé. TY dinastia. Atrés da piramide de Quéops foi instalado um vasto cemitério civil. Os timulos incluiam uma superestratura macica, com seus muros externos em talude (0 que se costuma chamar de mastaba). ‘Um pogo vertical (1). concuzia 2s pequenas cAmaras escavadas no subsolo. Uma delas (3) destinava-se ao sarc6fago; outra, de dimensdes muito reduzidas (2), abrigava 0 que se conhece como “cabecas de substitui¢ao”. Trata-se de ‘uma representacdo parcial do morto (inicamente 2 cabeca), que devia ser utilizada como seu duplo. A falta de espaco. interior justificaria 0 surgimento dessa modalidade de escultura. 37 Templo baixo ou do vale, do conjunto de Quéiren. IV dinastia. Gizé, Este edificio pode ter servido para realizar a mumificagao do cadéver do faras, j4 que os textos parecem localizar essa’ pratica nas proprias necrépoles. Seu hipostilo, que aqui vemos, constitui um paradigma da arquitetura da época, que se destaca pela pureza de formas e pela busca de austeridade. O clima interno desse espaco nao € produzido tanto pelo recurso a elementos decorativos — os capitéis de tipo vegetal aparecem mais tarde (V dinastia) — quanto pela escolha dos materiais: granito ‘nos suportes, alabastro branco no pavimento. Mastaba da necrépole de Sakkarah. Finais do Antigo Império. Os sepuleros civis proliferaram necse periodo, devido ao enriquecimento progressivo de determinadas families. Estas, por estarem vinculadas a administragao cefpcia, residiam na capital (Ménfis) e por isso foram levadas a erigir suas moradas eternas nos cemitérios préximos, As mastabas apresentam uma superestrutura bastante ampla, na qual encontramos a capela funeraria, 0 serdab, diversos aposentos destinados a armazéns, ete. No subsolo, com a entrada dissimulada e vedada Gepois da realizacdo da inumagdo, encontra-se a camara destinada ao sarcéfago. 38 para a pirémide, depositando-o em seu sarcéfago, no inte- tior da cémara funerdria. 0 templo alto estaria destinado ao culto do morto, cuja duracao se pretendia perpétua. Essa ti- pologia arquitetonica esteve em uso durante todo o Antigo Império. Os conhecidos conjuntos de Quéops, Quéfren e Mi- querines, erigidos durante a IV dinastia, em Gizé, seguem essa tipologia. O mesmo ocorre com outros da V e da VI di- nastias, situados em Abussir (Sahuré, Niusserre) e Sakka- tah (Onos, Fiope II suas trés rainhas). Durante o Médio Império, essa tipologia foi recuperada eos monarcas da XII dinastia foram sepultados segundo es- se sistema. Todavia, as piramides hoje nao passam de monticulos de terra devido ao uso excessive de adobe em sua construgao. Neste perfodo destaca-se 0 conjunto de Mentuhotep (faraé da XJ dinastia), erigido em Deir elBahari, em Tebas, Conhecemoo gragas aos traba- Thos arqueolgicos, pois quase nada resta dele, mas tratava- se de edificio extremamente interessante. Apesar de seguir, em linhas gerais, 0 sistema tradicional, o templo alto é mui- to mais desenvolvido ¢ nao se tem certeza de que incorpo- rasge a tradicional piramide. Possivelmente, por trés da originalidade desse monumento, cuja qualidade mais nota- yel foi a busca de uma perfeita integracdo na paisagem, es- teja a vontade de exaltar a figura do monarca a quem foi dedicado. Trata-se de um dos primeiros governantes do Egito depois da reunificacao que marca o fim da crise do Primeiro Periodo Intermedidrio. Por isso, nao se pode descartar cer- ta intencionalidade politica. 0 advento do Novo Império introduz uma mu- danca radical na arquitetura destinada ao Além. De- Conjunto funerdrio de Mentuhotep, XI dinastia do Médio Império ¢ Templo de Hatshepsut, XVIII dinastia do Novo Império, Deir el-Bahari. Este lugar, situedo na margem ocidental do Nilo, perto de Tebas, abrigou dois dos edificios mais espetaculares da arquitetura egipcia, O primeira data do periado em que essa cidade passou a ser capital do pais, depois da reunificagio do Egito que sucedeu ao Primeiro Periodo Intermedidrio, Trata-se de uma obra propagandistica e, por isso, extraordinariamente original e cheia de novicades. Esse ediffcio foi usado como modelo na construcao do segundo. Ambos apresentam, como maior virtude, a perfeita conexdo com a paisagem. 1, Terraco, superior; 2. Pértico de Pont; 4. Pértico do Nascimento; 4. Terraco intermediério; 5. Terraco inferior. 39 Hipogeu de Setos I, XIX dinastia. Namero 17 do Yale dos Reis. Seu tracado € longitudinal, diferentemente dos hipogeus do principio da XVIII dinastia, que tendem @ planta semicircular on em angulo reto, Varios corredores, alternados com ‘lances de escada descendentes, levam as diversas cameras que abrigariam o enxoval funerario do morte € seu sarcéfago, 40 vide aos saques de que eram objeto anteriormente, os sepulcros reais, cuja finalidade era a obtencao do enxoval que acompanhava o farad em sua segunda vida, era aconse- Ihavel separar os lugares de culto e sepultamento. Nem mes- mo assim podiam ser evitadas as pilhagens, como atesta um minucioso processo dos fins da XX dinastia (Papiro Leopol- do IL e de Amherst). Contudo, Tebas, cidade que se tornara capital do pais, parecia oferecer étima safda para o proble- ma. Na margem ocidental do Nilo, depois das encostas da Meseta Lfbia, encontrava-se uma série de vales de clima ri- goroso e faceis de vigiar. Em dois deles foram situados os sepuleros reais. O hoje denominado Vale dos Reis, conheci- do entao como Lugar da Verdade, foi destinado aos monar- cas; o das Rainhas, antigamente chamado Lugar da Beleza, a suas esposas e filhos. Até aquele momento os faraés des- frutavam da segunda vida em lugar visivel. As piramides sao extraordindrios pontos de referéncia paisagis- tica. A partir de entao, seus corpos mumificados, juntamente com 0 rico enxoval que os acompanha, passam a alojar-se no interior de vastas covas artificiais, de diffcil acesso. O hi- pogeu com fins funerdrios é usado, no Egito, desde a IV di- nastia do Antigo Império. Do reinado de Miquerinos datam os mais antigos que se conhecem, e numerosos monarcas re- correram a esse sistema durante 0 Médio Império, como ye- remos adiante. Na Tebas das XVIII, XIX e XX dinestias, € surpreeadente o tamanho de algumas dessas tumbas reais. Quando descobertas, ao longo do século XIX e inicio do XX, todas, exceto uma, haviam sido saqueadas. Contudo, con- servavam, mais ou menos intactas, a estrutura e a decora- 0 pictorica. Seu plano sofreu variacées ao longo do tempo. Enquanto as do comeco da XVIII dinastia tendem ao angu- lo reto, as do fim desse mesmo perfodo e as da XIX dinastia apresentam desenvolvimento longitudinal. Existe, habitual- mente, um notavel desnivel entre a entrada e a cémara fu- neréria, situada no ponto mais recOndito, que vai sendo vencido através de sucessivos lances de escadas alternados com corredores. Diversos pocos verticais, escavados ao lon- go de-todo o trajeto, deviam impedir 0 acesso dos ladroes e, por sua vez, acumular a 4gua que pudesse iniiltrar-se. Considerando-se que a mimia era o mais importante de tu- do o que ali se guardava e que estava depositada na zona mais baixa, langou-se mao dos meios necessdrics para protegé-la. Além da “sala de ouro’’, termo com que se de- signava o compartimento do sarc6fago, existiam outros apo- sentos, Na maioria, tratava-se de depésitos onde eram acomodados os objetos que integravam o enxoval., Tem-se acerteza de que um deles era reservado ao carro de guerra, peca de significado especial se considerarmos o carater mi- litar assumido pela monarquia egipcia durante o Novo Im- pério. — Se o lugar do sepultamento foi ocultado duran- te esse perfodo, o mesmo nao ocorreu com os am- bientes destinados ao culto funerdrio. Dos ‘‘templos de milhoes de anos’, erigidos praticamente por todos os mo- narcas estabelecidos na margem ocidental do Nilo, além do vale fértil, com suas fachadas orientadas para o rio e para acidade de Tebas, situada na margem oposta, sd se conser: varam os de Hatshepsut (XVIII dinastia), erguido mais ao norte, em Deir el-Bahari, 0 de Ramsés II (XIX dinastia) e ode Ramsés III (XX dinastia}, O de Amenéfis III 6 conser- va as duas magnificas esculturas colossais do rei que esta- yam adossadas ao pilono monumental do ediffcio. S40 os “colossos de Mémnon’’, assim batizados pelo viajante gre- go Deodoro Siculo, no século I a.C. Essas construcdes sao o mais claro expoente do que a grande arquitetura do Novo Império representou. Embora os beneficidrios do culto ali realizado fossem os monarcas a quem eram dedicados, seu titular era Amon-R4, deus oficial por exceléncia desse pe- rfodo historico. Uma vez por ano eram visitadas pela ima- gem da divindade, que ficava habitualmente em Carnaque. Durante a Festa do Vale, dia em que vivos e ressuscitados se reencontravam, os tebanos atrayessavam 0 rio para irem as necr6poles e ali se reunirem com seus familiares. Amon- Ra, junto com sua esposa Mut e 0 filho de ambos, safa de Carnaque e percorria os diversos templos funerdrios ergui- dos'na margem oposta. Todos os edificios erigidos em Tebas, exceto o de Hats- hepsut, que seguiu de perto.o modelo do de Mentuhotep II, Templo funerdrio de Hatshepsut. XVI dinastia. Deir el-Bahari. Uma espléndida escarpa rochosa serve de pano de fundo para o templo da rainha. Senenmut, seu arquiteto, utilizou como modelo 0 conjunto funerdrio de Mentuhotep, erigido durante 0 Médio Império, mas desenvolveu muito mais o que ali fora coneretizado. O edificio est4 assentado sobre trés terracos superpostos, no fundo des quais situam-se pérticos com o fim de encobrir 0 muro liso que os separa uns dos outros, Os suportes, de seccao quadrada, nos quais foi evitado qualquer elemento ornamental, marcam 0 ritmo ascensional dos diversos patios e servem de elo entre a arquitetura € a paisagem circundante. 41 Templo funerério de Ramsés III. XX dinastia. Medinet Habu, Tebas Ocidental. Talver esta seja a tltima grande construgao empreendida pelo Novo Império. Foi concluida apesar das dificuldades politicas, tanto de ordem interna como externa, traduzidas, entre outros fetos, pela primeira greve documentada, cujos protagonistas foram os artesdos que erguiam esse edificio, Sua estrutura, caracterfstica dos templos desse tipo durante as XIX e XX dinastias, est razoayelmente conservada, mas essa construcéo destaca: se, em especial, pelos numerosos relevos que decoram suas paredes internas e extemas que, em muitos cascs, mantém a policromia original 42 do Médio Império, epresentam caracteristicas semelhantes. Correspondem, com ligeiras variagées, & tipologia utilizada idos a divindades de culto secreto. Como podem ser mencionados desde a capela dos antepassados reais (Hatshepsut, Ramsés II) até os dois patios localizados aos pés do edificio (Ramsés II, Ramsés II), passando pelo Palacio Real. Este tltimo, cuja presenca den- tro dotemplo funerario parece estar relacionada com o Fes- tival.de Zed, inclufa a denominada “janela de aparicao”’. ‘Trata-se de um elemento préprio arquitetura palatina egip cia, incorporada na época de Akhenaton; através dela o mo- narca se mostrava aos stiditos. Embora Setos I (XIX dinastia) possufsse um templo em Tebas hoje desaparecido — mandou-se construir um segun- do em Abidos, centro do culto a Osiris. E um dos edificios mais interessantes entre os conservados desse tipo. Sua ar- quitetura subordinou-se a idéia do faraé divinizado e contri- bui eficazmente para mostrar 0 rei confundido com Osiris. A presenca do cenotdfio atras do templo, com a peculiar or- ganizacéo do seu espago interno, é’0 aspecto mais relevan- te. O-timulo comemorativo do monarca, elemento claramente arcaizante que nao pode ser desvinculado do espirito invo- lucionista que domina a XIX dinastia, simula uma ilha. Uma Dea central, isolada por um canal que era enchido de igua, rememoraya a ilha onde Osiris foi enterrado, depois a rales recuperou.os fragmentos de seu corpo esquarteja- do. No centro dela, estavam os dois receptaculos para o sar- c6fago e os canopos comemorativos do faraé. A recriacio do lugar em que 0 soberano do além-tumulo foi depositado, para a inumacao simbilica de Setos I, permitia a assimila- cdo deste com o primeiro. No que diz respeito as “moradas eternas” da no- breza egipcia, seu uso generalizou-se a partir da V dinastia do Antigo Império. Até entéo, embora sejam conhecidos casos isolados nao isentos de interesse (Hesire e Imhotep, durante a II] dinastia, em Sakkarah; numerosos funciondrios apés a grande piramide de Quéops, em Gizé, da IV dinastia), tratava-se de pessoas especiais. Deveram- se a generosidade do soberano, que assumiu as obrigagdes econdmicas decorrentes da correta preparacao da segunda vida, arcando com os custos da mumificacao do cadaver, da construgao € da decoragao do timulo, além de garantir as oferendas em alimentos periodicamente recehidas pelo mor- to. A partir da V dinastia, o progressivo enriquecimento dos altos funciondrios, paralelamente ao enfraquecimento da au- toridade do fara, proporcionou liberdade de iniciativa aos primeiros. A necrépole de Saktkarah, de caréter eminente- mente real, encheu-se, na ultima etapa do Antigo Império, de mastabas civis. Embora, com o tempo, sua superficie te- nha sido notavelmente aumentada, suas caracteristicas ba- sicas se mantiveram. Apresentam uma superestrutura de planta qua- drada ou retangular. Na entrada ou préximo a ela, pode se achar um patio aberto ao ar livre com portico ao redor. Depois dele, situam-se diversas cdmaras, entre as quais se destacam a capela e 0 “serdab’’. Na primeira, local do culto funerdrio, descobrimos a porta falsa. Trata-se do elemento diante do qual os vivos depositam as oferendas para o re- nascido (pao e cerveja). Os egipcios acreditavam que 0 ser que participava da vida eterna era capaz de atravessar esse vao cego € consumir os alimentos que contribuiriam para a sua subsisténcia. 0 “‘serdab”, pequena camara fechada € completamente isolada do exterior, exceto por pequenas frin- chas, achava-se atras da capela. Ali era disposta a escultura de tamanho natural do defunto, que também fora animada através da ceriménia da abertura da hoca e que receheria, em seu nome, as oferendas de perfume. Além dos aposentos citados existiam outros em numero variavel, destinados a depdsito. Como na arquitetura real, essas mastabas civis assemelhavam-se as residéncias da ter- ra. Por isso, quando existe mais de um destinatdrio, cada um deles desfrutade um apartamento préprio. E 0 que acon- tece em algumas erigidas em Sakkkarah, durante a VI dinas- tia. No que respeita a camara funeréria que aloja 0 sarc6tago, era escavada no subsolo. Sua entrada, uma vez depositado ocadaver, ficava fechada. Enquanto as paredes da superes- trutura eram totalmente recobertas com relevos e pinturas, a cripta ndo possuia ornamentacao. 43

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