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Introdugao Os povos indigenas tiveram participagdo essencial nos processos de conquista e colonizagdo em todas as regides da América. Na condi¢ao de aliados ou inimigos, eles desempe- nharam importantes e variados papéis na construgao das so- ¢ ciedades coloniais e pds-coloniais. Foram diferentes grupos nativos do continente americano de etnias, linguas e culturas diversas que receberam os europeus das formas mais variadas e foram todos, por eles, chamados indios. Eram, em sua gran- de maioria, povos guerreiros, e suas guerras ¢ histérias se en- trelagaram, desde o século XVI, com as guerras e historias dos { colonizadores, contribuindo para delinear seus rumos. Este livro trata da histéria desses indios em contato com as sociedades coloniais e pés-coloniais no Brasil. indios que, até muito recentemente, quase nao mereciam a atengao dos historiadores. Nas ultimas décadas, no entanto, os estudos historicos sobre eles tém se multiplicado e contribuido para desconstruir visées equivocadas e preconceituosas sobre suas relagdes com os colonizadores. De personagens secundarios Digitalizado com CamScanner 10 FGV de Bolso apresentados como vitimas passivas de um processo violento no qual nao havia possibilidades de ago, os povos indigenas em diferentes tempos e espagos comegaram a aparecer como agentes sociais cujas agdes também sao consideradas impor- tantes para explicar os processos histdricos por eles vividos. Essas novas interpretagdes permitem outra compreensio so- bre suas histérias e, de forma mais ampla, sobre a prépria histéria do Brasil. O objetivo deste livro é apresentar uma revisao das leitu- ras tradicionais sobre o tema, a partir de pesquisas recentes que tém revelado o amplo leque de possibilidades de novas interpretagées sobre as trajetdrias de grupos e individuos in- digenas.‘Nessas s pesquisas, os indios aparecem como sujeitos ativos nos procéssos de colonizagao, agindo de formas varia- das e movidos por interesses proprios. A violéncia da con- quista e da colonizagao nao os impediu de agir, mobilizando ossibilidades a seu alcance para atingir seus interesses que se transformavam com as novas situagdes vivenciadas. E importante assinalar que essas novas leituras nao re- sultaram apenas da descoberta de documentos inéditos, mas principalmente de novas interpretagdes fundamentadas em teorias e conceitos reformulados. Em outras palavras, um mesmo documento pode revelar realidades bem diversas, conforme as referéncias tedricas e conceituais que emba- sem as interpretagdes dos investigadores. Essas novas in- terpretagdes tornaram-se possiveis quando historiadores e antropdlogos comegaram a dialogar e a trocar experiéncias a respeito de seus temas e ferramentas de trabalho ~ as teo- rias, os conceitos e os métodos — com os quais analisam seus objetos de estudo, Pesquisas interdisciplinares, que conjugam teorias e mé- todos histéricos e antropolégicos, vao aos poucos descons- Digitalizado com CamScanner Os Indios na histéria do Brasil M1 truindo compreensoes simplistas ¢ interpretagdes equivoca- das sobre os indios e suas relagdes. Da mesma forma, ideias preconceituosas que, por muito tempo, predominaram e in- fluenciaram 0 pensamento dos intelectuais responsaveis pela construgao do saber sobre os indios, também vio sendo ultra- passadas. Por essa razao, para pensar sobre essa revisao histo- riografica, que tem dado um novo lugar aos indios em nossa historia, € importante abordar algumas questées tedricas e conceituais da histéria e da antropologia que nos ajudam a compreender essas diferentes leituras a respeito dos papéis atribuidos aos indios. Digitalizado com CamScanner Capitulo 1 O lugar dos indios na histéria: dos bastidores ao palco No tempo dos bastidores Como os indios tém sido vistos tradicionalmente em nossa historia? Desde a Histéria do Brasil de Francisco Adolfo Var- nhagen (1854) até um momento bastante avangado do século XX,"0s indios, grosso modo, vinham desempenhando papéis muito secundarios, agindo sempre em fungao dos interesses alheios. Pareciam estar no, Brasil 4 disposi¢ao dos europeus, que se serviam deles conforme seus interesses. Teriam sido uteis para determinadas atividades e inuiteis para outras, alia- dos ou inimigos, bons ou maus, sempre de acordo com os objetivos dos colonizadores* Além disso, em geral, apareciam na histéria como indios apenas no momento do confronto, isto é, quando pegavam em armas e lutavam contra os ini- migos. Assim, os tamoios, os aimorés, os goitacazes e tantos outros eram vistos como indios guerreiros, que resistiram bravamente 4 conquista de suas terras. Foram, no entanto, derrotados e passaram a fazer parte da ordem colonial, na qual nao havia brecha nenhuma para a ago. Tornavam-se, Digitalizado com CamScanner 14 FGV de Bolso entao, vitimas indefesas dessa ordem\\Na condigao de escra- vos ou submetidos, aculturavam-se, deixavam de ser indios e desapareciam de nossa histéria. | Essas ideias, até muito recentemente, embasavam o de- saparecimento dos indios, em diversas regides do Brasil, ja nos primeiros séculos da colonizagao. Desapareciam, porém, deve-se ressaltar, apenas da histéria escrita. Estudos recentes tém demonstrado que, do século XVI ao XIX, os indios inse- ridos no mundo colonial, em diferentes regides da América portuguesa, continuavam muito presentes nos sert6es, nas vilas, nas cidades e nas aldeias. Inimeros documentos pro- duzidos pelos mais diversos atores sociais evidenciam essa presenga. Como se explica terem desaparecido da histéria do Brasil? Em grande parte, parece-me, devido a ideia acima apontada e predominante, por muito tempo, entre antropélogos e histo- riadores. Trata-se da ideia segundo-a-qual os indios integra- dos a colonizagao iniciavam um processo.de.aculturagao, isto é, de mudangas culturais progressivas que os conduziam 4 assimilagao e consequentemente a perda da identidade étni- ca. Assim, as relagdes de contato com sociedades envolventes e os varios processos de mudanga cultural vivenciados pelos grupos indigenas eram considerados simples relagées de do- minagao impostas aos indios de tal forma que nao lhes restava nenhuma margem de manobra, a nao ser a submissao passiva a um processo de mudangas culturais que os levaria a serem assimilados e confundidos com a massa da populagao. Nessa perspectiva assimilacionista predominante, por lon- go tempo, no pensamento antropolégico, os indios integrados 4 colonizagao tornavam-se individuos aculturados e passivos que, junto com a guerra, perdiam culturas, identidades ét- nicas e todas as possibilidades de resisténcia. Tal concep¢ao Digitalizado com CamScanner Os Indios na histéria do Brasil 15 tedrica, hoje bastante questionada, tinha ampla aceitagdo num tempo em que historiadores e antropdlogos andavam afastados e seus campos de estudo eram nitidamente distin- tos. Culturas, identidades étnicas, relagdes culturais e varios outros temas relacionados ao cotidiano de homens comuns e de povos nao ocidentais eram assunto de antropdélogos e, em geral, estudados num plano sincrénico, isto é, sem levar em conta processos de mudanga. A cultura dos chamados “povos primitivos”, vista como pura e imutavel, era objeto de investigacao dos antropdlogos preocupados em compreendé-la em suas caracteristicas ori- ginais e auténticas. Processos histéricos de mudanga por eles vividos nao eram valorizados por pesquisadores interessados em desvendar a légica e o funcionamento da cultura entendi- da de forma essencialista, isto 6, como fixa, estavel e imutavel. Além disso, os chamados povos primitivos eram considerados isolados e sem historia. Moviam-se com base em suas tradi- des e mitos considerados também a-histéricos. Essas ideias, com excegdes e nuances que nao serao aqui abordadas, pre- dominaram entre as principais correntes do pensamento an- tropolégico, ao longo do século XX, e orientaram importantes e excelentes trabalhos sobre os povos indigenas da América e suas culturas, porém nao numa perspectiva histérica. Embora algumas vozes jd alertassem, em meados do século XX, para a importancia de se considerar a trajetéria histéri- ca dos povos para o melhor entendimento de suas culturas, predominou, entre os antropdlogos, a concepgao de que os processos histéricos portadores de mudanga nao eram im- portantes para a compreensio de seus objetos de estudo. Ao contrdrio, eram vistos como propulsores de perdas culturais sucessivas que levavam a extingao dos povos estudados. Afi- nal, se a cultura era vista como algo fixo e estavel, relagdes de Digitalizado com CamScanner 16 FGV de Bolso contato, principalmente com povos de tecnologia superior, s6 poderiam desencadear processos de aculturagao que con- duziriam necessariamente a perdas culturais e 4 extingao ét- nica. As relagdes de contato eram, entdo, grosso modo, vistas como relagdes de dominag4o/submissao, na qual uma cultura se impunha sobre a outra, anulando-a. Nessa perspectiva, os indios integrados a colonizagao, seja como escravos ou como aliados, eram vistos como submissos e aculturados, nao cons- tituindo, pois, categoria social merecedora de maiores inves- tigacdes. A partir dessa perspectiva, as interpretagdes sobre as relagdes de contato eram pensadas com base em dualismos simplistas que estabeleciam rigidas oposigdes entre indio aculturado e indio puro; aculturago e resisténcia cultural (entendida esta ultima como negacao dos novos valores cul- turais impostos); estrutura cultural (fixa, imutavel e orien- tadora do comportamento dos povos primitivos) e processos histéricos (responsdveis por introduzir mudangas e conduzir a extincdo desses mesmos povos). Esses dualismos foram, em grande parte, responsaveis por abordagens redutivistas que conduziram a visdes equivocadas sobre a atuagao dos indios nos processos histéricos. A percepgao de que os indios em contato com sociedades envolventes caminhavam inevitavelmente para a assimilagao predominou até quase os nossos dias, mesmo entre os mais de- dicados defensores das causas e dos direitos indigenas. Entre esses, vale citar Florestan Fernandes. O autor procurou des- mistificar algumas visdes equivocadas da historiografia quanto ao comportamento passivo dos indios face 4 colonizagao. Enfa- tizou a resisténcia indigena, buscando entendé-la a partir das caracteristicas da organizacao social dos tupis, desconstruindo a ideia do baixo nivel civilizatério dos indios. Apresentou-os Digitalizado com CamScanner Os Indios na histéria do Brasil 7 como bravos inimigos dos portugueses que lutaram ardorosa- mente, mas que, uma vez vencidos, tornaram-se aculturados, submissos ¢ escravizados. Ao perderem a cultura “auténtica”, passaram a fazer parte de um outro sistema, no qual eram der- rotados e nao tinham possibilidades de escolha. Foram bravos, mas perderam e “...0 seu heroismo e a sua coragem nao mo- - vimentaram a histéria, perdendo-se irremediavelmente com a ~ destruigao do mundo em que viviam” (Fernandes, 1976:72), como destacou 0 autor. Sem desmerecer o importante trabalho de Fernandes, responsdvel em desvelar, ainda que com limi- tes, a légica de funcionamento da sociedade tupinamba, cabe : reconhecer que sua abordagem reforgava a concepgao de Var- nhagen segundo a qual para os “...povos na infancia nao ha histéria: ha sé etnografia” (Varnhagen, s/d:42, v. 1). Essa frase de Varnhagen evidencia claramente o papel re- servado aos indios também pelos historiadores. Ainda que distantes dos antropdlogos quanto as tematicas analisadas e as formas de aborda-las, comungavam com eles quanto as ideias assimilacionistas a respeito dos indios. Para eles, os indios também eram povos primitivos, espécies de fésseis vivos da — humanidade, portadores de culturas auténticas e puras que “-. deviam ser estudados por etnografos, antes que desapare- cessem.“O Instituto Histérico e Geografico Brasileiro (IHGB), <~: fundado em 1838 com a intengao de criar uma histéria do Brasil que unificasse a populagao do novo estado em torno de uma memoria histérica comum e heroica, iria reservar aos in- dios um lugar muito especial: o passado, Nessa historia, os in. dios apareciam na hora do confronto, como inimigos a serem~—~ combatidos ou como herdis que auxiliavam os portugueses. Os indios vivos ¢ presentes no territério nacional, no século XIX, ndo eram incluidos. Para eles, dirigiam-se as politicas de assimilagao que, desde meados do século XVIII, tinham o ob- ‘ A t Laer ey sS ; MSA A a Digitalizado com CamScanner 18 FGV de Bolso jetivo de integr4-los acabando com as disting6es entre eles ¢ os nao indios, prinieiro na condigao de stiditos do Rei, depois como cidadaos do Império. Essas formas de compreensio sobre os indios iriam se manter até muito avancado o século XX e eram respaldadas e incentivadas pelas politicas indigenistas. A politica assimila- cionista para os indios, iniciada com as reformas pombalinas em meados do século XVIII, teve continuidade no Império brasileiro e também na Reptblica. Ainda que diferentes le- gislagdes garantissem as terras coletivas e alguns outros cui- dados especiais para os indios enquanto eles nao fossem con- siderados civilizados, a proposta de promover a integracao e extingui-los como grupos diferenciados iria se manter até a Constituigao de 1988. Essa foi a primeira lei do Brasil que garantiu aos indios 0 direito a diferenga, marcando uma vira- da significativa na legislagao brasileira. A nova lei, em gran- de parte influenciada pelos movimentos sociais e indigenas do século XX, veio, na verdade, a sancionar uma situagdo de fato: os indios, nos anos 1980, contrariando as previsdes aca- démicas, davam sinais claros de que nao iriam desaparecer. Até os anos 1970 do século XX, no entanto, a perspecti- va pessimista do inevitavel desaparecimento dos indios pre- dominava entre os intelectuais brasileiros, incluindo os mais dedicados defensores de seus direitos. Ainda que denuncian- do violéncias e lutando por legislagdes favoraveis aos indios, intelectuais, indigenistas e missiondrios buscavam, grosso modo, apenas retardar um processo visto por eles como irre- versivel. Os indios, nao resta duvida, iriam desaparecer. Conquistando um lugar no palco... Surpreendentemente, as previsdes nao se cumpriram, Os povos indigenas nao desapareceram, Ao invés disso, crescem Digitalizado com CamScanner Os indios na histdria do Brasil 19 e multiplicam-se, como demonstram os ultimos censos. Tor- nam-se cada vez mais presentes na arena politica brasileira, ao mesmo tempo em que despertam o interesse dos historia- dores e lentamente comecgam a ocupar lugar mais destacado no palco da histéria. A que se deve esse movimento? O cha- mado processo de acultura¢ao continua em curso e, deve-se convir, cada vez mais intenso nesses tempos de globaliza¢ao. Porém ao invés de levar 4 extingao das diferengas étnicas, parece que tem contribuido para reforga-las. O recente episédio envolvendo os conflitos e o julgamento sobre as terras da Reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, é significativo a este respeito. Em dezembro de 2008, cinco povos indigenas (macuxi, wapixana, ingaricé, patamona e taurepang), ha 30 anos em disputa pela demarcacao de suas terras nessa reserva, tiveram seus direitos defendidos pela advogada indigena Joénia Batista de Carvalho. india wapi- xana, Joénia foi a primeira indigena a defender uma causa no Supremo Tribunal Federal. Acontecimento histérico, nas palavras da propria Joénia, que nos convida a refletir sobre a histéria dos indios em nosso pais. Sem entrar no mérito da questao, cabe assinalar a atuagao de Joénia que, formada em direito, atuou como defensora de seu proprio grupo. Partici- pou do ritual do julgamento com a toga que a fungao exige e com 0 rosto pintado conforme as tradi¢Ges de seu povo. Com coragem e determinagao, defendeu os direitos dos indios, que acabaram ganhando a causa. Alguém duvida que ela seja india? Com certeza, sim. En- tre os argumentos contrdrios 4 demarca¢ao continua daquelas terras, inclui-se o argumento de que muitos dos grupos ali envolvidos ha muito deixaramde-ser indios. Percebe-se, pois, que as disputas politicas por esses direitos envolvem disputas sobre suas classificagdes étnicas. Ser ou nao ser indio implica Digitalizado com CamScanner 20 FGV de Bolso ganhar ou perder direitos e isso nao acontece apenas em nos- sos dias. Desde meados do século XVIII, disputas politicas em torno de classificagdes étnicas para assegurar ou nao direitos indigenas concedidos pela legislagao ja ocorriam. Por ora, para o argumento em questao, importa reconhe- cer que os movimentos indigenas da atualidade evidenciam que falar portugués, participar de discussdes politicas, rei- vindicar direitos através do sistema judiciario, enfim, parti- cipar intensamente da sociedade dos brancos e aprender seus mecanismos de funcionamento nAo significa deixar de ser in- dio e sim a possibilidade de agir, sobreviver e defender seus direitos. Sao os préprios indios de hoje que nao nos permitem mais pensar em distingées rigidas entre indios aculturados e indios puros. Cabe aqui retomar a questao sobre as mudangas nos ins- trumentos de andlise dos antropdlogos e historiadores e reco- nhecer que, em grande parte, essas mudangas foram e con- tinuam sendo influenciadas pelos movimentos indigenas da atualidade. Afinal, se os indios deveriam desaparecer, con- forme as teorias do século XIX e de boa parte do XX, mas, ao invés disso, crescem e multiplicam-se, é hora de repensar os instrumentos de andlise. E o que tem sido feito, nas ultimas décadas, por historiadores e antropélogos que cada vez mais se aproximam e reformulam alguns conceitos € teorias funda- mentais para pensar sobre as relagdes entre os povos. Nessa aproximagao, os antropdlogos passam a interessar- se pelos processos de mudanga social, percebendo que seus objetos de estudo nao sio imutaveis e estaticos, e os histo- riadores passam a valorizar comportamentos, crengas e coti- dianos dos homens comuns, tradicionalmente considerados irrelevantes, bem como a interessar-se por estudos de povos nao ocidentais que tiveram importancia fundamental em nos- sa historia, tais como os indios e os negros. Digitalizado com CamScanner Os Indios na histéria do Brasil a A nogio de cultura no sentido antropolégico, incluindo todos os produtos materiais, espirituais e comportamentais da vida humana, bem como as dimensées simbdlicas da vida social tem sido amplamente adotadas pelos historiadores. Em suas andlises, valorizam os diferentes significados das agdes humanas para entender os processos histdricos. Os antrop6logos, por sua vez, valorizam os processos histéricos de mudanga como elementos explicativos e transformadores das culturas dos povos por eles estudados, na medida em que abandonam a antiga ideia de cultura fixa e imutavel. Reconhecem que as trajetérias historicas vividas pelos po- vos séo importantes para uma compreensao mais ampla de suas culturas. Cabe destacar a contribuicgao fundamental do historiador E. P. Thompsom que enfatizou a importancia de se considerar a historicidade da cultura. De acordo com ele, a cultura é um produto histérico, dinamico e flexivel que deve ser apreendi- do como um processo no qual homens e mulheres vivem suas experiéncias. O antropdlogo Sidney Mintz, comungando tais percepgées, destacou a importancia de se perceber que um sistema cultural apresenta variabilidade no que se refere as intengdes, consequéncias e significados dos atos escolhidos pelos individuos. Pessoas situadas em posigées socialmente diferentes podem até agir da mesma forma, mas essas a¢Ges muito provavelmente nao terao para elas 0 mesmo sentido, nem tampouco as mesmas consequéncias. Os homens agem e se relacionam, conforme seus lugares sociais e seus objetivos. Daj a importancia de se estabelecer 0 entrosamento dindmico entre sociedade e cultura. As estruturas culturais orientam 0 comportamento dos homens, mas nado podem ser vistas como malhas de ferro que nao lhes possibilitem agir fora delas. Digitalizado com CamScanner 22 FGV de Bolso Dessa forma, processos histéricos e estruturas culturais in- fluenciam-se mutuamente e ambos sao importantes para uma compreensdo mais ampla sobre os homens, suas culturas, his- torias e sociedades. A partir dessas novas concepgées tedricas, antropélogos e historiadores tém analisado situag6es de contato, repensando e ampliando alguns conceitos basicos sobre o tema. A compre- ensdo da cultura como produto histérico, dinamico e flexivel, formado pela articulag4o continua entre tradigGes e novas ex- periéncias dos homens que a vivenciam, permite perceber a mudanga cultural nao apenas enquanto perda ou esvaziamento de uma cultura dita auténtica, mas em termos do seu dinamis- mo, mesmo em situacdes de contato extremamente violentas como foi 0 caso dos indios e dos colonizadores. Nesse sentido, o conceito de aculturacao também se altera eao invés de se opor a resisténcia passa a caminhar junto com ela. Desde os anos 1970, esse conceito vem sendo problema- tizado e visto como processo de mao dupla, no qual todos se transformam. Em nossos dias, as ideias de apropria¢ao e res- significagao cultural tém sido mais utilizadas e realmente sao mais adequadas ao estudo de situagdes nas quais se leva em conta os interesses e motivacées dos préprios indios nos pro- cessos de mudanga. Ao invés de vitimas passivas de imposi- ges culturais que sé lhes trazem prejuizos, os indios passam a ser vistos como agentes ativos desses processos. Incorporam elementos da cultura ocidental, dando a eles significados pr6- prios e utilizando-os para a obtengao de possiveis ganhos nas novas situagdes em que vivem. O conceito de tradigao também tem sido repensado, pre- valecendo, hoje, 0 pressuposto de que ela sempre se modifica ao ser transmitida. Tudo que se transmite é recebido con- forme a maneira do recebedor, 0 que implica em valorizat Digitalizado com CamScanner Os Indios na histéria do Brasil 23 mais a apropriagdo do que a transmissao. No caso da histéria indigena, trata-se de deslocar 0 foco da analise dos coloniza- dores para os indios, procurando identificar suas formas de compreensao e seus proprios objetivos nas varias situagées de contato por eles vividas. Essa tem sido a tendéncia dos trabalhos das ultimas déca- das, através dos quais podemos perceber que as atitudes dos indios em relag3o aos colonizadores nao se reduziram, abso- lutamente, a resisténcia armada, a fuga e a submissao passiva. Houve diversas formas do que Steve Stern chamou de resis- téncia adaptativa, através das quais os indios encontravam formas de sobreviver e garantir melhores condigées de vida na nova situagdo em que se encontravam. Colaboraram com os europeus, integraram-se a colonizagao, aprenderam novas praticas culturais e politicas e souberam utiliza-las para a ob- tengao das possiveis vantagens que a nova condi¢ao permitia. Perderam muito, nao resta duvida, mas nem por isso deixa- ram de agir. A ideia de que os grupos indigenas e suas culturas, longe de estarem congelados, transformam-se através da dinami- ca de suas relagdes sociais, em processos historicos que nao necessariamente os conduzem ao desaparecimento, permite repensar a trajetéria histérica de intimeros povos que, por muito tempo foram considerados misturados e extintos. Nao €0 caso de desconsiderar a violéncia do processo de conquis- ta e colonizacao. A mortalidade foi altissima, inimeras etnias foram extintas e os grupos e individuos que se integraram a colénia ocuparam os estratos sociais mais inferiores, sofrendo preconceitos, discriminagées e prejuizos incalculaveis. Ape- sar disso, no entanto, encontraram possibilidades de sobrevi- véncia e souberam aproveité-las. Como lembrou Jonathan Hill, os grupos sociais huma- nos, mesmo reduzidos a escravidao e as piores condigées, Digitalizado com CamScanner 24 FGV de Bolso sio capazes de reconstituir significados, culturas, histérias e identidades. Os indios integrados misturaram-se muito, nao resta duvida, entre si, e com outros grupos étnicos e sociais. Porém, muitos chegaram ao século XIX ainda afirmando a identidade indigena e reivindicando direitos que a legisla- cao Ihes concedia. Sobre isso, cabe ainda uma breve reflexao sobre 0 concei- to de identidade étnica, também repensado a partir dessas novas perspectivas histérico-antropologicas. Tal como a cul- tura, a identidade ja nao é vista como fixa, tinica e imutavel. Ao contrario, é entendida também como construgio histérica de cardter plural, dinamico e flexivel. Com base nos trabalhos de Max Weber e, mais recentemente, de Frederick Barth, os estudos atuais sobre etnicidade j4 nao consideram a cultu- ra como elemento definidor de grupo étnico. Ao invés dis- so, priorizam suas dimensées politicas e historicas. Nos anos 1920, Weber ja alertava para o papel da agao politica comum como elemento de formacao e manutengJo do sentimento de comunhio étnica. Barth, no final dos anos 1960, bastante in- fluenciado pelas ideias do primeiro, enfatizava que as distin- ges étnicas nado dependem da auséncia de interacao social, nem tampouco sao destruidas por processos de mudanga e aculturagao. O autor valorizava também a agio politica, o carater organizacional e o sentimento subjetivo de pertenci- mento ao grupo como fatores essenciais nos processos de sua formagio, Entendem-se, hoje, as identidades como constru- g6es fluidas e cambiaveis que se constroem por meio de com- plexos processos de apropriagées e ressignificagdes culturais nas experiéncias entre grupos e individuos que interagem. Assim, se os povos indigenas foram capazes de reelaborar, em situagdes de contato, suas culturas, fizeram o mesmo com | Digitalizado com CamScanner Os Indios na histéria do Brasil 25 suas identidades. Os intimeros e diferenciados grupos étnicos que habitavam a América tornaram-se todos indios na classi- ficago dos europeus. Identidade genérica e imposta, porém em muitos casos assumida pelos indios como condigaéo que lhes garantia alguns direitos juridicos. Estudos realizados em diferentes regides tém revelado as inumeras possibilidades de reconstrucao identitaria por parte dos indios. Do exposto, percebe-se que os movimentos indigenas da atualidade somados aos novos pressupostos tedricos da his- téria e da antropologia conduzem ao abandono de antigas concepgoes que contribuiram para excluir os indios de nos- sa historia. Os dualismos entre indio aculturado/indio puro, tradigao/aculturagao, estruturas culturais/processos histéri- cos vao sendo superados, o que permite um outro olhar so- bre populagées indigenas inseridas nas sociedades coloniais e pés-coloniais. E (quem diria?) a agao dos indios também move a historia... A partir dessas novas abordagens interdisciplinares, alguns pontos pacificos da historia do Brasil tém sido des- montados e dado lugar a interpretagdes nas quais os indios surgem como agentes dos processos de mudanga por eles vividos. Fontes histéricas, algumas ja bastante trabalhadas, quando lidas de outra forma revelam realidades distintas das tradicionalmente apresentadas. De inicio, convém ressaltar que as relagdes de contato estabelecidas na América entre europeus e grupos indige- nas nao devem ser vistas simplesmente como relagdes entre brancos e indios. Essa abordagem generaliza e simplifica uma quest’o que é extremamente complexa. Afinal, os grupos in- digenas no Brasil eram muitos e com culturas e organizagdes sociais diversas, que os levavam a comportar-se de diferentes Digitalizado com CamScanner 26 FGV de Bolso formas em relagao aos estrangeiros. Os indios nao estavam na América a disposi¢ao dos europeus, e se muitos os receberam de forma extremamente aberta e cordial, oferecendo-lhes ali- mentos, presentes e, inclusive, mulheres, nao o fizeram por ingenuidade ou tolice. A abertura ao contato como outro é uma caracteristica cultural de muitos grupos indigenas ame- ricanos.e. especialmente dos tupi: Outros grupos, no entanto, tinham caracteristicas culturais distintas e alguns foram bas- tante arredios e hostis aos estrangeiros, como os aimorés, os muras, os guaicurus e muitos outros. Por outro lado, os europeus também nao devem ser vistos como um bloco homogéneo. Colonos, missionarios, bandei- rantes, autoridades metropolitanas e coloniais tinham inte- resses diversos na colénia e nao se relacionavam com os in- dios da mesma forma. Cabe ainda lembrar que a colénia era um mundo em construgao, no qual todos se influenciavam mutuamente e se transformavam. Nos primérdios da colo- nizagao, ocorridos em épocas variadas conforme as regides, os portugueses eram extremamente dependentes dos indios, que souberam perceber e usar isso a seu favor, como tém re- velado varios estudos. Além disso, nao se pode esquecer a continua transforma- ao da experiéncia do contato. Os interesses e objetivos dos varios atores sociais que interagiam na colénia, incluindo os indios, modificavam-se com a dinamica da colonizagao e das relac6es entre eles, Assim, do século XVI ao XIX, os compor- tamentos e agdes dos atores sociais eram impulsionados por motivagdes que se alteravam e podiam ter significagées di- versas, conforme tempos ¢ regides, Deduz-se dai que é pra- ticamente impossivel falar de uma historia indigena geral do Brasil. Nas ultimas décadas, estudos especificos tém se desen- volvido e revelado a amplitude de situagdes que caracteriza- | Digitalizado com CamScanner Os indios na histéria do Brasil a7 ram as trajetérias histdricas e as relagdes dos diversos grupos e individuos indigenas em diferentes regides e temporalida- des. A partir desses estudos regionais, no entanto, algumas generalizagées sao possiveis e até necessarias, principalmente num livro de sintese como este. Outras contribuiges teéricas importantes para o estudo sobre os indios e suas relagdes partem das revisées historio- graficas no ambito da historia politica e da historia econdmica da América e do Brasil. Desde a década de 1970, as interpre- tages histéricas que partiam das metrépoles para explicar a formagao e o desenvolvimento das colénias vém sendo ques- tionadas. As pesquisas atuais priorizam os aspectos internos das sociedades americanas para a compreensio de suas histé- rias. Enfatizam a importancia de se levar em conta os agen- tes, as instituigdes e as dindmicas locais sem desconsiderar as necessirias articulagdes com as metropoles. Nesse sentido, estudos regionais de carter politico e econémico tém se mul- tiplicado e evidenciado as intimeras e necessarias adaptagdes de normas, leis e projetos metropolitanos nas colénias, con- forme as peculiaridades locais. Entre essas peculiaridades, incluem-se, cada vez mais, as agdes dos povos indigenas que deram limites e possibili- dades aos projetos coloniais desenvolvidos na América. Um excelente exemplo a respeito disso sao as capitanias heredi- tarias do Brasil. Criadas em 1534, a maioria delas fracassou, em grande parte, pelos ataques de grupos indigenas. As duas capitanias que mais prosperaram, Sao Vicente e Pernambuco, foram aquelas cujos donatarios puderam contar com 0 apoio inestimavel de liderangas indigenas com as quais estabele- ceram estreitos lagos de alianga. O projeto de catequese da Companhia de Jesus constitui outro exemplo interessante, na medida em que passou por intimeros ajustes na Provincia do Digitalizado com CamScanner 28 FGV de Bolso Brasil para fazer frente as dificuldades locais, como ressaltou Charlotte de Castelnau-L'Estoile. Essas dificuldades foram, em grande parte, impostas pelos proprios indios. Do ponto de vista da histéria politica, cabe ainda destacar as atuais tendéncias tedricas que visam a questionar a ideia de oposicao rigida entre dominadores e dominados. A percep- g4o segundo a qual os primeiros exerceriam um controle total sobre os tltimos anulando suas possibilidades de agao ja nao se sustenta. No caso dos indios submetidos a ordem colonial, os documentos tém revelado que eles tiveram possibilidades de agir e fizeram isso. Sua agéo fundamentava-se, em grande parte, na prépria lei. Isso nos remete a outra questao importan- te que tem sido valorizada na historiografia contempordnea. Trata-se de repensar o papel das legislagées, vistas como resul- tantes de acordos, negociacgées e confrontos entre os agentes interessados e suas respectivas capacidades de fazer valer seus interesses. As leis nao foram inventadas maquiavelicamente apenas para dominar e oprimir, pois ainda que legitimassem as relagdes desiguais, elas sempre permitiram mediagées. Em outras palavras, as leis sempre deixaram brechas para as rei- vindicagdes dos menos favorecidos, e foi nessas brechas que 0s indios incorporados a colénia agiram, do século XVI ao XIX. Os documentos analisados com base nessas novas abor- dagens apresentam indios que mesmo “aculturados” e “do- minados”, nao deixaram de agir, nao deixaram de ser indios ¢, embora por longo tempo ausentes da historiografia, nao sairam da nossa histéria. Digitalizado com CamScanner

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