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‘ORGANIZACAO ESTEVAO MARTINS PALITOT NA MATA DO SABIA CONTRIBUICGES SOBRE A PRESENCA INDIGENA NO CEARA 2EDIGRO FORTALEZA - CEARA 2009 Copyright © 2009 by Estévo Martins Palitot Governo do Estado do Ceara Governador Cid Ferreira Gomes Secretaria da Cultura do Estado do Ceara Secretario: Francisco Auto Filho Museu do Ceara Diretora: Cristina Rodrigues Holanda Instituto da Meméria do Povo Cearense (IMOPEC) Coordenadora: Célia Guabiraba Coordenagio da Edicdo Alexandre Olivera Gomes e Joo Paulo Vieira Neto Projeto Grafico: Museu do Ceara! Valdianio Araujo Macedo Capa: Jodo Paulo Vieira Neto (Foto: Joceny de Deus Pinheiro) Revisdo da Edido: Ana Amiélia Rodrigues de Olvera e Alexandre Olvera Gomes CCATALOGAGAO NA FONTE N41 Na mata do sabia: contribuigdes sobre a presenca indigena no Gearé/Estévao Martins Palitot (organizador}. ~ Fortaleza: Secult/ Museu do Ceara’ IMOPEC, 2008. 461p. ISBN: 978-85-7563-379-3, 1. Indios-etnologia. 2. Indios- Cearé- Memorial. | Palitt, Estévao Martins. Titulo cop: 980 ALDEAMENTOS INDiGENAS NO CEARA DO SECULO XIX: REVENDO ARGUMENTOS HISTORICOS SOBRE DESAPARECIMENTO ETNICO! Carlos Guilherme Octaviano do Valle Nesse trabalho, pretendo discutir 0 que se convencionou chamar de “extingao” dos aldeamentos indigenas no Ceara em meados do século XIX. Meu interesse pelos aldeamentos indigenas do Ceara imperial responde a inquietagoes de di- versas ordens, que sao tanto intelectuais, conforme as possi- bilidades de producao antropolégica estimuladas pelas atuais aces e praticas indigenas, também técnico-politicas a partir de solicitacao de laudos periciais como ainda preocupacoes sociais, cuja dimenséo extravasa esse artigo, pois referem-se 5 posigdes socialmente variadas a respeito da presenca ou do, em tempos contempordneos, de indios no Ceara. Em certos momentos ¢ situagdes mais (in)tensas, a afirmacao ea contestacao dessa presenca por parte dos mais diversos agen- tes (se 0s préprios indios, missiondrios, advogados, proprieté- rios de terra, pesquisadores, etc.) envolveu, muitas vezes de modo naturalizado, mas politicamente definido, a historici- dade dos grupos indigenas, envolvendo, assim, uma discus- sao sobre a autenticidade das demandas culturais e politicas atuais. Esse ponto é sensivel para Silva (2005), autora cujo tra- balho académico dialoga diretamente com esse artigo. Nesse sentido, faco interpretaao posicionada dentro desse debate sobre continuidade e descontinuidade étnica, tentando mos- trar outro entendimento possivel das mesmas questées, fatos € figuras historicas muitas vezes referidas sobre a “extingio dos aldeamentos” do Ceara. O principal objetivo ser, por- tanto, entender 0 quadro social e politico que envolveu os NAMATA.DO SABIA: Contnnuctts ses a rresena nin Cand — 107 povos e comunidades indigenas nos contextos especificos do Ceara do século XIX. Para andlise, tomei tanto os relatorios dos presidentes da provincia do Cearé como as séries documentais de carater burocrético entre os ministérios do governo central e as es- feras administrativas provinciais, sobretudo de 1830 a 1889, © periodo monarquico brasileiro. Gostaria de considerar as discrepancias que surgem através dos documentos para tal- vez reconhecer certas presencas indigenas quando ja se afir- mava frequentemente que elas nao estariam mais presentes. Através dessa documentacdo, gostaria de investigar, assim, se alguma “extingao” ocorreu e se, ao insistir demais nessa idéia, estariamos minimizando processos sociais importantes fem que houve participacao indigena direta, talvez uma das, principais questées a elucidar através desse estudo, Antes de tratar do periodo privilegiado, € preciso dar algumas breves informagées sobre a situacéo da terra e da questao indigena no periodo colonial. Transposto do con- texto portugués para o colonial brasileiro, o regime de ses- marias foi 0 primeiro ordenamento juridico da terra, vigo- rando até 1822 (SILVA, 1996; ABREU, 1997). Em 1758, uma ordem real instituiu 0 Diretério dos Indios no Brasil, 0 que interrompeu com a aco missionéria dos jesuitas, privilegian- do a secularizacdo dos indigenas, sem descartar a sua cristia- nizacéo. Os “direitos” dos indios as suas terras continuaram a ser garantidos, inclusive no caso dos antigos aldeamentos religiosos e das miss6es jesulticas. Contudo, as misses foram transformadas em “vilas de indios”, prosseguindo as acoes € politica de tertitorializacao indigena e a consolidacao de nicleos coloniais de dimenséo multi-étnica (OLIVEIRA FILHO, 1999b). Administradas de modo secular por diretores e outros agentes (ouvidores, juizes ordindrios, vereadores, etc) que compunham cémaras, as vilas eram espacos de atualizacso da politica de miscigenagao e integracao social dos indige- nas ao regime colonial portugués. Além disso, as idéias de “civilidade” e a meta de “civilizar” seriam basilares, através da énfase no ensino da lingua portuguesa, para entender a dimensao politico-ideolégica do Diretério sob orientacao do lluminismo portugues. 108~Can.os Gutseme Oto oo Vac Em 1759, as primeiras vilas de indios foram criadas. O Ce- ard passou a ter um numero expressivo de vilas e de “povoa- Ges de indios”. Dentre as mais conhecidas, temos Vila Vico sa Real (antiga aldeia da Ibiapaba), Soure (antiga Caucaia); Arronches (antiga Parangaba); Mecejana (antiga Paupina); Monte-mér Novo (Paiacd, Baturité) e as povoaces de indios de Almofala (antiga Missdo do Aracati-mirim); Monte-mor Velho e $80 Pedro Ibiapina (SILVA, ibid, p. 87). Em 1777, Crato ¢ Ameirés configuravam também freguesias indigenas (POR- TO ALEGRE, 1994, p.17). Se hd confirmacao definitiva sobre a existéncia das “vilas” citadas, julgo ser necessario considerar a presenca indigena em outros contextos que nao se enqua- dram bem ao modelo formal de “vila de indio”. Pode-se citar a povoacao de Sao Benedito, muito aludida no século XIX. ‘Com a criacdo das “vilas de indios”, estabelecia-se formal- mente seu patriménio territorial, 0 que implicava a medicao € delimitacao da terra. Através dos documentos existentes, Isabelle Silva descreve com mindcia 0 processo de fundacao da vila de Monte-mér, © Novo, em 1764 (ibid, p. 106-120). Esse proceso envolvia a identificacao das pessoas que ocu- pavam terras dentro do perimetro que consistia o patriménio da vila. Eram registradas, assim, escrituras de aforamento, que formalizavam a exigéncia de pagamento anual de foro. ‘A formalizacao do aforamento iria subsistir por todo o Dire- tério e ainda regrar a ocupacéo eventual de outras pessoas “extranaturais”, quais sejam, nao indigenas. A principio, os indios teriam acesso as terras que perfaziam as vilas, afinal © cultivo agricola arrolava-se como um dos propésitos para sua “civilizagao", mas deve-se supor que esse uso seria, de fato, relativo, condicionado pelas dinamicas societarias locais a envolver diferencas de poder entre os diversos agentes pre- sentes em cada vila de indios. Deve-se salientar que o Dire- t6rio dos Indios nao teve sua execucdo de modo plenamente consistente, afinal seriam comuns as contradig6es e obstécu- los em sua efetividade, tal como se vé na indefinicao formal do Diretério sobre 0 caso dos sesmeiros cujas terras estariam (SILVA, ibid, p. 133). 0 Diretério iniciava, entdo, um regime secular de contro- les formais e dispositivos de poder sobre os indios que, sem NAMATA.DO SABIA: Contmnuctts ses a Presena nin Cand ~ 109 rejeitar a aco religiosa, necessaria para os trabalhos de cris- tianizacdo, nao se apoiava no missionarismo jesuita. Em sua dimensao laica, os diretores passaram a ter centralidade no projeto de civilizacdo dos indios com intuito de guia-Ios e pro- tegé-los nos espacos sociais, territorializados das vilas. Além dos diretores de indios, outros agentes realizavam mediago entre os indios e outros niveis e instancias sociais. Era 0 caso dos Juizes de Orféos que atuavam em seara importante para © Diretério, a de garantir 0 trabalho dos indios. Os ouvidores das comarcas geriram os bens das vilas de indios até a década de 1830. Em 1833, os Juizes de Orfaos, passam a ter também. responsabilidade direta sobre a gestao do patriménio dos indios, 0 que especialmente se refere as suas terras. Contu- do, deve-se salientar que 0s indios nao deixaram de ocupar fungdes ou posicdes especificas com 0 Diret6rio, mostrando © alcance préprio de suas praticas. Nao precisamos estender mais a discussdo sobre 0 Diretorio, que nao € objeto desse artigo, mas deve-se destacar a pratica de concessao de afo- ramentos nas terras das vilas de indios, autorizados por suas Camaras e seus diretores. Essa pratica foi recorrente e se cor firma através da documentaco consultada. Na criagdo da de Monte-mor, © Novo, foram registradas doze escrituras de aforamento (SILVA, ibid, p.117). Posteriormente, outras fo- ram registradas. De 1804 a 1822, por exemplo, aforamentos de "terras incultas" foram registrados em Monte-mér,? con- tinuando praticas que ja estavam estabelecidas no period de duracao do Diretério. Algumas das terras ditas “incultas” pertenceram antes a indios. Supde-se, entdo, a existéncia de interesses concretos de ocupacao progressiva das terras das vilas, questdo que iria se tornar mais grave no avancar do século XIX. ‘Afirma-se que o Diretorio propunha uma agenda assimi- lacionista dos indios, mas pode-se concordar com Almeida (2003, p.175) que essa agenda teve efeitos limitados, inclusive ao se observar as diferenciades étnicas e sociais que conti- nuaram a existir. Em 1798, 0 Diretério dos Indios foi abolido, mas suas leis continuaram como referéncia para as decisoes politico-administrativas sobre os indios até a promulgaco da Constituic&o de 1824 (PORTO ALEGRE, 1994, p.35). Para Silva 10—Can.os Gutseme Osteo Vac (ibid, p.84), as diretrizes do Diretério iriam ser mantidas até meados do século XIX com a criacdo do Regulamento acerca das Miss6es de catequese e civilizacdo dos indios em 1845. De fato, a denominacao de “vila de indio” continuou a ser em- pregada mesmo apés o fim do Diretério, o que certamente surtiria efeitos na consolidacao de identidades diferenciadas. Diretores de indios foram empossados e vilas foram tanto ex- tintas como recriadas. No transcorrer do século XIX, passou- se a redimensionar, porém, a preocupaco sobre as regras, e leis especificas para as populagées indigenas e suas vilas, apontando para incertezas de ordem politica sobre a forma correta de proceder, especialmente quando uma idéia passou a ganhar forca, a de que os indios estavam se “misturando & massa da populacao”, O IMPERIO DO BRASIL E A PROVINCIA DO CEARA No caso do Ceara do periodo imperial, alguns trabalhos podem ser referidos (PORTO ALEGRE, 1992a, 1994; NETO, 2005). De modo geral, o periodo imperial é tratado por es- ses autores como muito negativo para os povos indigenas, especialmente por sua “politica indigenista” (CUNHA, 1987, 1992; MOREIRA NETO, 1971; MATTOS, 2004). O fechamento de muitos aldeamentos é citado como exemplo de seus efei- tos nefastos. Gostaria de tomar esta questo por outro angu- lo, buscando perceber elementos significativos que ajudem a compreender a histéria mais recente que envolve os povos indigenas, tendo como foco, em especial, o Ceara. Além dis- s0, gostaria de tratar em mais detalhe o problema da terra, do dito “patriménio" fundiario dos aldeamentos. ‘A primeira Constituicao brasileira, por exemplo, nao tra- tava dos indios. De fato, a documentagao burocratico-admi- nistrativa mostra como as acdes concretas das autoridades provinciais e imperiais esbarravam na falta de clareza nor- mativa a envolver a questao indigena. Assim, boa parte das antigas vilas e povoagdes de indios sofreu diversas mudan- cas de ordem administrativa ao longo da primeira metade do século XIX. Em 1826, um debate no Conselho do Governo NAMATA.DO SABIA: Coxrnaugtes see a resem wen no Ceamd— 111 da Provincia do Ceara propés a dispersio dos indios de seus aldeamentos e, assim, seu patriménio, como as terras onde viviam, deveria ser repassado ao controle efetivo das cima- ras locais, caso contrério, os indios deveriam ser aldeados em apenas trés vilas.? Em 1837, contudo, reclamava-se que nao havia regulamento que orientasse as praticas governamen- tais. Os problemas de interpretacao juridica decorriam de tais, incertezas, 0 que sugere ainda que essas interpretacdes eram motivadas mais claramente através de interesses s6cio-econd- micos particulares, sobretudo os locais. Saber se o Diretério dos Indios tinha acabado ou nao ou se 0 Ato Adicional de 1834 declarava sobre os indios, tudo isso envolvia indefini- «Go a principio, mas na forca da inevitabilidade das praticas concretas, as decis6es balancavam a favor dos interesses do- minantes de proprietarios e agricultores cearenses, cuja aten- Bo dirigia-se evidentemente a terra disponivel dos antigos aldeamentos. No século XIX, pode-se afirmar que dois temas tornaram-se socialmente sensiveis, abertos a discussao e ins- trumentalizacao politica: o destino das terras das vilas de in- dios e da mao de obra indigena, Para Cunha (1992, p.133), a “questao indigena deixou de ser essencialmente uma questao de mao de obra para se tor- nar uma questo de terras” no século XIX. Acho questionavel essa interpretacao, afinal tratar da terra implicava também. lidar com 0 uso de mao de obra disponivel. Seria mais conve- niente pensar em uma mudanca de compreensao da mao de obra, que seria descaracterizada de seus atributos étnicos, en- quanto indigena, para ser generalizada como “tlivre" e iden- tificada como cearense e passivel de ser aproveitada em ter- mos econémicos. Desde a década de 1830, a falta de mao de obra era vista como problema para as autoridades cearenses. ‘Alegando haver pouca presenca escrava africana, cogitou-se até um projeto de imigracao de colonos estrangeiros, que pu- dessem servir como trabalhadores para os fazendeiros locais e ainda povoar as ‘terras devolutas’. De fato, foco maior de preocupacdo e interesse era ainda a mao de obra indigena que, segundo o presidente de provincia Manoel Felisardo de Souza e Mello, tinha em parte se dispersado em razdo da interpretacéo equivocada no Cearé de que o Diretério dos 112 —Caa.as Gutseme Osta oo Vie indios nao existia mais. Mal remunerados, os indios serviam antes de trabalhadores para os agricultores cearense: Senhores, @ primeira tentativa que fizemos, para em nossa Provincia introduzirmos bragos colons, fi plena~ mente mallograda: nao temos escravos suficientes; ndo pode progredira industria, deve acanhar-sea agricultu- ra, onde falta 0 auxilio do homem. Cumpre olhar para 05 Indios com vistas desse interesse: 0 aldeiamento, e alguma providencia mais, que a seo respeito decretar- des, podem ser muito proficuos incentivos para o fim a que me refiro. Os Indios s30 geralmente doceis, hu: mildes, obedientes, religiosos, e alguns mesmo amantes do trabalho, para que se offerecem, como a pouco vos refer, e como succede em Mecejana, a cujo Parocho se offereceréo para aunliarem as obras da Matriz Durante e até depois do Diretério setecentista, 0s indios trabalharam diretamente para as autoridades cearenses, abrindo e cuidando das estradas locais, melhorando o esta- do dos acudes, até limpando espacos pulblicos nas cidades e povoacies cearenses. Presente desde 0 periodo colonial, a visao do indigena como trabalhador barato, facilmente dis- ponivel, iria continuar como um vetor de classificacao étnica diante da populacao cearense de modo geral: “Os indios do- mesticados, que aqui so muito numerosos, podiam suprir esta falta [de mao de obra], como no outro tempo, em que 05 Diretores das Povoacdes dos Indios os davam e repartiam. pelos lavradores”.* Na primeira metade do século XIX, 0 interesse pela mao de obra indigena retinha elementos proximos aos que carac- terizaram as idéias e praticas do Diretério de Indios pombali- no. Coerente com a agenda de construcéo da nacionalidade no Império, a tarefa de “catequizar e civilizar” os indios con-

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