You are on page 1of 22
PETER BURKE Uma histéria global VESTIGI@® Copyright © 2022 Pe ter Burke Publicado originalmente pla a Yale University Pros Copyright desta edigao © 7 avelne” 023 Faltora Vestigion THtulo original: anorance: A Global History Todos 08 dliteitos reserva os reservados pola Fditora Vestigio, Nenhutna parte desta publi Set Feproduizida, seja por meios mec d peels autorizacao prévia da Lditora, A080 pees AniCOs, eletOniCas, se via Copia rerageAtien, caer a DiReAO EDITORAL cam Amaud Vin Diogo Droschi conon sesonsave (sobre imagem de csaimages.corn) Ea luardo Soares PESQUISA ICONOGRARCA asosrtnne toromat Maria Edvarda Oliveira Alex Gruba Dincramacho a Guilherme Fagundes Eduardo Soares Revisko Aline Sobreira Dados internacionais de Catalogacao na Publicacao (CIP) ‘Cémara Brasileira do Livro, SP, Brasil Burke, Peter Ignorancia : uma historia global / Peter Burke ; traducdo Rodrigo Seabra. ~ 1. ed. ; 1. reimp. -- $0 Paulo : Vestigio, 2023. Titulo original: Ignorance : a global history ISBN 978-65-6002-000-9 1. Ciencias sociais 2. Ignorancia (Teoria do conhecimento) 3. Sociedade 4. Sociedade - Hist6ria |. Seabra, Rodrigo. Il. Titulo. 23-146757 CDD-300.09 Indices para catélogo sistemético: 1. Ciéncias sociais : Histéria da Sociedade 300.09 Henrique Ribeiro Soares - BibliotecSrio - CRB-8/9314 {A VESTIGIO € UMA EDITORA DO GRUPO AUTENTICA @ Sao Paulo Belo Horizonte ‘Ay. Paulista, 2.073 . Conjunto Nacional Rua Carlos Turner, 420 Horsa |. Sala 309 . Bela Vista Silveira . 31140-520 01311-940 Sao Paulo . SP Belo Horizonte . MG Tel: (55 11) 3034 4468 Tel.: (55 31) 3465 4500 www editoravestigio.com.br SAC: atendimentoleitor@grupoautentica.com.br Glossario ; A lista a seguir se concentra em termos que se repetem neste livro e nao tem qualquer inteng’o de ser completa. ° agnoiologia agnotologia analfabetismo conhecidos desconhecidos desconhecidos conhecidos desconhecidos desconhecidos docta ignorantia; ignorancia douta ignorancia aprendida ignorancia assimétrica ignorancia ativa ignorancia branca ignorancia censuravel 0 estudo da ignorancia o estudo da produgio da ignorancia uma espécie de ignorancia imputada por especialisas a uma parte dos leigos conhecimento que se mantém subconsciente aquilo que alguém esta ciente de que nao sabe aguilo que alguém desconhece ¢ no esté ciente de desconhecer ignorancia adquirida por via de estudo ‘ou meditac4o cf, docta ignorantia ocorre quando um grupo A sabe menos sobre um grupo B do que 0 inverse nfo queret saber ignorincia ou falsas crengas a respeito de pessoas neBras cf, ignorancia culpdvel 309 ignordincia consciente ignordncia criativa ignorancia culpdvel ignordncia de grupo ignordncia deliberada ignorancia especifica ignordncia estratégica ignorancia genuina ignorancia imputada ignorancia inadvertida ignorancia inconsciente ignordncia inescrutavel ignorancia inesperada ignordncia inevitdvel ignordncia intencional ignorancia interessada ignorancia invencivel ignordncia irrepreensivel ignorncia local saber que nie se sabe uma ignorincla acerca do passade que fomenta a inovagio cf. ignorincia censurdvel cf. ignorancia organizacional cf. ignorancia voluntéria ou intencional ignorar aquilo que € considerado irrelevante manter 0s outros ignorantes deliberadamente auséncia de conhecimento; cf. ignorancia pura a ignorancia que se imputa aos outros cf. ignorancia inconsciente nem mesmo estar ciente de que nao se sabe cf. desconhecidos desconhecidos, ou seja, aqueles sobre os quais nao se est ciente surpresa cf. ignorancia irrepreensivel ou invencivel cf. ignorancia deliberada ou voluntétia uma forma de nao querer saber cf. ignorancia irrepreensivel ou involuntéria cf. ignorancia invencivel ou inevitével © oposto complementar do conhecimento local 310 ignorancia moral ignorancia opaca ignorincia organizacional ignorncia petspicaz ignorancia pratica ignorancia primdria ignorancia profunda ignorancia pura ignorancia racional ignorancia relativa ignorancia resoluta ignorancia sancionada ignorancia seletiva ignorancia simétrica ignorancia simples ignorancia util ignorancia vencivel julgamentos incorretos a res 8 a res; certo ¢ errade pada gue dlesconheei conhecidos desconhecido, ou aqueles sobre os quais nio se et an 40 se est ciente © efeito da diet, « cleito da disttibuigéo desigual do c , onhecimento dentro de uma organizagao ter consciéncia de uma lacuna no conhecimento nao saber como fazer alguma coisa ignordncia da ignordncia; cf. metaignorancia diz respeito a uma questao para a qual no se tem respostas plausiveis auséncia de conhecimento; cf. ignorancia genuina ou simples abster-se de aprender quando 0 custo € maior do que o beneficio a ignorancia que é selativa a rivais ow inimigos querer néo saber a desconsideragao coletiva de alguma informagao, tachando-a de desimportante escolher ignorat qualmente quando dois grupos 8° ignorantes nae séncia de conhecimento; cf. ignorincia au pura ou genuina a fungdo positivas pivel ou censurdvel ignordncia v irtuosa ignorincia voluntéria ignorar incerteza incognoscibilidade macroignorancia manufatura da ignorancia metaignorancia nesciéncia, desconhecimento produsao de ignorancia a ipgnorincia que é dtil ncia deliberada ou in cf. ignoi Cional uma forma consciente ou inconsciente de resisténcia ao conhecimento; cf, ignorancia voluntaria ou deliberada uma hesita¢do entre o conhecimento ea ignorancia a impossibilidade de se saber algo ignorancia coletiva manter os outros ignorantes; cf. producéo da ignorancia nao saber que nao se sabe conceitos ambiguos referentes ao que ainda nao é conhecido ou & total auséncia de conhecimento manter os outros ignorantes; cf. manufatura da ignorancia i O que éa ignorancia? A ignorancia é uma criagado social, tal como 0 conhecimento. Michael Smithson O projeto de escrever uma histéria da ignorancia soa quase tao estranho quanto o desejo de Flaubert de escrever um livro sobre o nada, un livre sur rien, “um livro que nao dependesse de nada externo [...] um livro que no tivesse quase nenhum assunto, ou pelo menos no qual © assunto fosse quase invisivel”; em outras palavras, uma tentativa de alcangar uma forma pura.' Parece apropriado que Flaubert nao tenha escrito nada sobre o nada. Por outro lado, muito foi escrito sobre a ignorancia, principalmente de maneira negativa. Existe uma longa tradig4o de denunciar a ignorancia, por diferentes motivos e razées. DENUNCIANDO A IGNORANCIA Os falantes de 4rabe falam do perfodo pré-islimico como a “Era da Ignorancia” (al-Jahiliyya). Durante a Renascenga, os humanistas enxergaram 0 que eles foram os primeiros a chamar de “Idade Média” como uma era de escuridao. No século XVII, Lorde Clarendon, o historiador da Guerra Civil inglesa, descreveu os Pais da Igreja como “grandes luzes que surgiram em tempos muito escuros [...] tempos de tanta barbarie e ignorancia”.? Durante o Iuminismo, a ignorincia foi apresentada como um suporte ao “despotismo”, ao “fanatismo” © 4 “superstigao”, todos os quais seriam varridos em uma era de co- nhecimento e raz4o. George Washington, por exemplo, declarou que 23 “a fundagao de nosso império Jos Estados Unidos da América] nao foi langada na era sombria da ignordncia ¢ da superstigi” > Visdes como essas continuaran a ser atiais Muito tempo depois, Por exemplo,o terme “al Juhiliyya” foi aplicado a periodos mais re on tes por muculmanos tadieais, como o intelectual epipcio Sayyid Qutb, visando particularmente aos Estados Unidos.“ A ignordincia foi una dos “cinco gigantes” que o politico liberal William Beveridge prometg matar (junto a pobreza, 4 doenga, A miséria eA ociosidade). O relatérig de Beveridge serviu como fundamento do Estado de bem-estar soci britanico pelo governo trabalhista de 1945.3 Mais recentemente, nos Estados Unidos, Charles Simic escreveu que “a ignorancia generalizada, beirando a idiotice, é nosso novo objetivo nacional”, enquanto Robert Proctor, historiador da ciéncia, declarou nosso Prdprio tempo como sendo uma “era de ouro da ignorancia”.6 Embora estejamos bem cientes de que sabemos muita coisa que as gerac6es anteriores nao sabiam, estamos muito menos cientes das coisas que eles jé sabiam e que hoje nés nao sabemos. Os exemplos dessa perda de conhecimento—a serem discutidos mais adiante—vao desde a familiaridade com os clissicos 8F Esse j4 nao é 0 caso hoje, a fartura em ver da escassez. Muitas variedades novas usando uma gama de adjetivos que deste livro lista mais pero da alimenticia pleto). De fato, ha foram rotuladas, € uma elaborada taxonomia foi criada, vio de “ativa’ a “voluntéria’ (0 glossario no final yariedades de ignorancia do que os 57 tipos de tem| Heinz, mas nao tem nenhuma pretensio de ser com 30 consideravelmente mais adjctivos do que as variedades de ignoranci especializayio académica, ja que os individuos de uma disei shina mui . yeres ignoram as descobertas feitas em outta, pisos Algumas distingoes sao titeis ¢ serio empregadas no que se segue. Um exemplo dbvio contrasta a ignordncia da existéncia de algo on ; ignorincia de sua explicag: mnhectd " 40. Epidemias ¢ terremotos s40 conhecidos ha muito tempo, mas ninguém sabia o que os causava até relativarnente pouco tempo atrds. A ignorancia “sancionada”, uma expressao da lavra da filésofa critica Gayatri Chakravorty Spivak, refere-se a uma situagao na qual um grupo, como os intelectuais ocidentais, sente-se no direito de permanecer na ignorancia de outras culturas, enquanto espera que individuos de outras culturas saibam sobre ele. A ignorancia (como 0 conhecimento) as vezes ¢ fingida, um tema desenvolvido no capitulo oito. Governos podem negar um genocidio ao mesmo tempo que sabem muito bem sobre os massacres que ordenaram ou permitiram. Durante muito tempo, os sicilianos comuns fingiram nao saber nada sobre a méfia, Na Inglaterra vitoriana, as senhoritas exibiam sua ingenuidade alegando ignorincia das praticas sexuais, assim como os senhores poderiam fingir ignorancia do mundo do comércio. ‘A modéstia feminina também as vezes exigia falsas alegagées da falta de outros tipos de conhecimento, como do latim, por exemplo, ou da politica ou das ciéncias naturais (a nao ser da botanica). E por isso que o narrador de A abadia de Northanger, de Jane Austen, comenta que uma mulher, “se tiver a infelicidade de saber qualquer coisa, deveria esconder isso téo bem quanto puder”.® Outra distincao tril € aquela entre ignorancia consciente ¢ in- consciente, na qual o termo “inconsciente” € usado para significar “nao estar ciente”, em vez do sentido freudiano discutido anteriormente. dd’ jé foi empregado para se rferi files de estes existam, incluindo a auséncia assim.” O termo ignorancia “profun consciéncia de que determinadas 4 0 dos conceitos necessarios para até mesmo formular questdes O historiador francés Lucien Febvre fez uma observagio semelhante quase res, apontando para algumas “palavras ausentes NO rancés falta inibia o desenvolvimento da er ate.” oitenta anos an! do século XVI. Segundo Febvre, essa i tes filosofia naquela époc © portanto, tornava impossivel s 31 Outro exemplo de ignordncia profunda é a comum falta de cons. ciéncia de que existem modos de pensar diferentes daqueles Proptios da pessoa. A circularidade ¢ central aqui, Um modo de pensamento Persiste porque é tido ¢ considerado como certo, como natural, seja no nivel micro do que Thomas Kuhn chamou de “paradigma cientifico”, seja no s. Quando tentamos criticar as normas, os limites da autocritica se tornam aparentes.” nivel maior de todo um sistema de creng nossas propt Os historiadores muitas vezes ja trataram individuos € grupos como sendo “crédulos”, no sentido de que so incapazes de criticar suas crengas. Ao fazé-lo, eles ignoram a falta de acesso desses individuos ¢ grupos a sistemas de crengas alternativos. Em um sistema fechado, real- mente é dificil manter uma mente aberta.” E dificil, se nao impossivel, desafiar esse sistema se nao se tiver consciéncia de alternativas, o que geralmente acontece como resultado de encontros entre individuos de culturas diferentes, ampliando 0 horizonte de expectativas de ambos os lados.*° O avestruz com a cabeca na areia é um famoso simbolo do “nao querer saber” ou do “querer nao saber”, também descrito como ignorin- cia voluntéria, deliberada ou resoluta.“! Essa nogao pode ser estendida para incluir omissdes deliberadas ou siléncios. Por exemplo, o histo- riador haitiano Michel-Rolph Trouillot distinguiu quatro momentos na produgao do conhecimento do passado em que os individuos esco- Iheram entre comunicar informagées particulares e manter o siléncio sobre elas. Esses quatro momentos sao: o de produzir documentos, 0 de armazend-los em arquivos, 0 de recuperar a informagao € 0 de fazer uso dela em uma histéria escrita.” Para um exemplo da caracteristica oposta, a da ignorancia in- voluntaria, podemos recorrer & teologia catélica. Tedlogos medievais, como Sao Tomés de Aquino, usaram a frase “ignorancia invencivel’ para se referir aos pagaos (Aristoteles, por exemplo), que desconheciam aexisténcia do cristianismo e que, portanto, nao podiam ser culpados por nfo o aceitarem. Por outro lado, se estivessem cientes, seriam Tes- ponsdveis por ignorancia “culpavel”. A ignorincia culpivel pode ser indivi a. ¢ pads com esta tiltima. da pelo fildsof dual ou coletiva. Os histo- com riadores sociais sto particularmente preocu " a “ignorancia branca”, por exemplo, uma frase cunhai 32 jamaicano Charles i a fori jamaic artes W. Mills para se tefetir aos preconceitos subjacentes ao racismo. A ignorancia coletiva da s suporte k dominagio de " E cum gu sobre outro, encorajando ambos a accitar s ea i “ia dos domi sua situagao como natural. A ignorincia dos cominantes os impede de questionar seus privilégios, enquanto a ignorincia dos dominados os tem impedido muitas : VOUS, de se rebelar. Daf os esforgos dos que esto no poder, como Diderot observou, “para manter 0 povo num estado de ignorancia ¢ estupide O que ¢ hoje conhecido como “ignordncia seletiva” foi observado ha um século pelo bidgrafo Lytton Strachey em sua habitual forma de provocac4o, afirmando que “a ignorancia é 0 primeiro requisito do historiador, uma ignorancia que simplifica e esclarece, que seleciona e omite”.* Essa seletividade pode ser inconsciente, uma forma de desa- tengo, como mostra uma experiéncia informal. Se assistirmos a um filme com 0 som desligado, notaremos gestos e expressdes faciais dos atores que normalmente ignoramos. De maneira semelhante, diferentes tipos de viajante notam carac- terfsticas diferentes do mesmo lugar, porque seus olhares diferem de acordo com seu género ou sua profissao. A confiabilidade das observa- ges dos viajantes, seu conhecimento ou sua ignorincia dos lugares que visitaram, é um problema antigo, mas que s6 recentemente foi visto do angulo do género, sugerindo que as viajantes femininas percebem coisas diferentes de suas contrapartes masculinas.® A proeminéncia de ambientes domésticos nos didrios ¢ relatos de viagem femininos jé foi descrita como um modo diferente de “constituir conhecimento”.“° O que as mulheres enxergaram ¢ optaram por registrar nos diz algo importante sobre 0 que 0s homens escolheram ignorar ou sim- plesmente nao puderam ver. Um exemplo famoso do século XVII é a descricio de um balnedtio para mulheres em Edirne (antiga Adria- népolis) pela viajante inglesa Lady Mary Wortley Montagu, a aves como ela observou, “seria nada menos que morte para um homem im”. iplicidade de olhares - 0 ser encontrado em um lugar assim 47 & multiplicidade de perial, o etnos 0, o médico cant iss 0 € ass a o mercantil, o missionario re grafic por diante — e yemo' ir as de “ensinar 0 olho falar nao apenas di 0 « sugere que deve ee “ensi ana aver”, mas também de seu Opost?» ‘ensinar o olho a .gueira estao enn im. aizadas nos fazeres de determi- 0 insight quanto a Ce nadas profissoes. 33 Em uma pesquisa, a busca por uma coisa leva & desatencs (Um exemplolreoente vem lor micas que éstavam sechaeenec na detecedio da covid-19 6, por isso, mio perceberam eee docngas perigosas." ignorincia scletivainelui a que o mar Ae ones ameticano Robert K, Merton chamou d an ques um tépico para se concentrar em outro escolher levantar certas qu aS questées, ote. ignorincia “especificad,’ wl 5 ° ada’ ¢ gnifica um afastamento conscicnte do conhecimento sob , » sobre 4 adotar cettos métodos ou operar sob certos paradigmas.” Em cada cay uma escolha positiva tem alguns efeitos negativos, excluindo assim cern tipos de conhecimente, seja deliberadamente, seja como ee nao intencional. No caso dos historiadores do século XX, por xem. plo, sua mudanga de interesse da historia politica para a econémica cociale culeural envolveu tanto exclusbes quanto inclusbes e mudangs geracionais no que era conhecido ou desconhecido sobre o passado. A ignorancia também pode ser descrita como ativa ou passiva. A ignorncia passiva se refere A auséncia de conhecimento, incluindo © fracasso em colocé-lo em pratica para fins de agéo. Ja a expressio “ignorancia ativa”, no sentido de resisténcia a novos conhecimentos ou ideias, foi cunhada pelo fildsofo austrfaco Karl Popper ¢ empregada para descrever a oposicéo de alguns fisicos as visbes perturbadoras de ‘Albert Einstein.°° O conceito pode ser estendido ao habito de ignorar aquilo que nao queremos saber, muitas vezes com sérias consequéncias. Pense, por exemplo, na histéria dos colonos britanicos na ‘América do Norte, na Australia e na Nova Zelandia, que tentaram ignorar 4 existéncia dos povos que jé viviam naquelas regides, ov pelo menos pos poderiam ignorar a reivindicasao de propriedade que aqueles gru e ter sobre seu territério. Os colonos trataram a terra como se estivesse vazia ou nao fosse de propriedade de ninguém (vide abaixo ¢ 0 capitulo ito). De maneira semelhante, 2 Declaracao Balfour, de 1917, que fez da Palestina o “lar nacional” do povo judeu, ignorou os arabes ae estayam Id, criando assim problemas due permanecem 2 aoe mais de um século depois. A pergunt® de Lorde Caron, “Oa do povo daquele pais?”, permancce sem POS ao qu A expresséo “jgnorancia ativa’ também poe ie nor Como costumava dizer Will Roger ma mreside 8 ensamos saber. er Will 4 Mark Twain, “a ignor americano na tradigéo de 34 ee coisas quic voce nao sabe, mas nas coisas que voce sabe que nao sio bem im” (uma observagsio que é também atribuida ao proprio wain).22 Expresses como “prodgio de ignorineia” ou “fabricagie de igno- rancia” sao particularmente aplicdveis aqui, juntamente a “ignorane ia estratégica”. Devo admitir que nao fico muito satisfeito com referéncias auma “produgio” da ignorancia nos casos em que nenhum conheci- mento a precedeu. Prefiro usar o antigo termo “ofus. amento”, ou falar de produzir “confusao” ou “diivida”, ou de manter a ignorancia, ou de criar obstdculos ao conhecimento (0 equivalente aos obstaculos fisicos discutidos no capitulo cinco). Sob pena de se sacrificarem expresses mais chamativas, ganha-se mais clareza quando nos aproximamos mais da linguagem comum sempre que possivel, descrevendo, por exemplo, as tentativas de enganar o ptiblico por razées politicas ou econédmicas como simples mentiras (e nao qualquer outro termo elaborado). No entanto, concordo sinceramente que tem sido e continua a ser uma pratica muito comum encobrir muito do que o publico deveria saber. Essa pratica também € descrita como “desinformagao”, ou, de maneira eufemistica, como “medidas ativas” (especialmente pelos servicos de inteligéncia soviéticos ¢ russos), enquanto © estudo dessas politicas de produgao da ignorancia foi batizado de “agnotologia”.® A ignorancia por parte das outras pessoas é uma fonte de poder para aqueles que estao “por dentro” em dominios como a politica, os negécios ou o crime. Um estudo feito em Marselha sobre a Revolugao Francesa argumentou que “ controle da definicao de ignorancia” pelas elites teve grandes implicagoes politicas, significando 0 que 0 autor chamou de “a capacidade de estigmatizar os outros como ignorantes € assim desqualificar suas vozes no tratamento dos assuntos da cidade”. A alegacao de que os homens mantém as mulheres ignorantes a fim de dominé-las sera discutida no préximo capitulo. AIGNORANCIA E SEUS VIZINHOS Até agora, a discussdo se concentrou em trés grandes tdpicos: nao saber algo, nao querer saber algo ¢ nao querer que outras pessoas saibam algo. Entretanto, com toda certeza é impossivel escrever uma histéria desses topicos sem introduzir conceitos que esto ligados a 35 eles. O erro, por exemplo, é 0 resultado da ignorancia, mas també traz suas proprias consequéncias, As vezes tragicas, como mown capitulos sobre guerra e negiicios. ae Para resolver o problema de representar a ignordncia na alguns pintores a assinlaram } cegueita ou loucura, No sé« ulo x9 © pintor Andrea Mantegna, por exemplo, mostrou a ignorincia come uma mulher nua sem olhos. No século XVI, em seu diciondrio de imagens, Cesare Ripa sugeriu representar a ignorancia ¢€ seus perigos como uma mulher vendada ¢ andando em um campo de espinhes ou, de maneira alternativa, como um menino, também de olhos ven. dados, montado em um asno. No século XVIII, 0 artista veneziano Sebastiano Ricci personificava a ignorancia como um homem com orelhas de burro, ilustrando mais uma vez a assimilacgao comum da ignorancia & estupidez.* Hoje, a ideia de ignorancia é frequentemente empregada como um “guarda-chuya” intelectual que cobre diversas ideias vizinhas, como aincerteza, a negac4o e até mesmo a confusao. Dadas as dimensées do assunto, que por si s6 ja é suficientemente grande, optei por uma defi- nicdo relativamente restrita de ignorancia como auséncia. No entanto, essa escolha nao significa uma recusa em olhar além dessa definigéo. Como os historiadores alemaes que estudam 0 que eles chamam de “histria conceitual” (Begriffigeschichte), tentarei reconstruir uma rede de ideias interconectadas, centrada na ignorancia, mas também incluin- do obstaculos, esquecimento, sigilo, nega¢ao, incerteza, preconceito, incompreensio € credulidade.°* Mostrar conex6es entre essa teia de conceitos ¢ os fendmenos aos quais eles se referem é um dos principals objetivos deste estudo. ; Os obstaculos ao conhecimento podem ser até mesmo fisicos- incluindo a inacessibilidade do objeto de conhecimento (discutido i europeus na Africa). Mas podem ser também i is go sao question” ue as ideias antigas que nao sie question rencia 2 capitulo cinco no caso de mentais, no sentido de q! das impedem a aceitacao de ideias novas. Os casos de r ideias de Galileu ¢ Darwin (entre outros) serao discutidos no ¢ quatro. Modelos ou paradigmas intelectuais langam luz m5 Ty, simplificam, também tém um lado obscuro, atrapalhando tu Sem set quele modelo.” Obstaculos também po apieulo que nao se encaixe na 36 sociais — pense na antiga exclusao das mulheres ¢ da classe trabalhadora do ensino superior ~ ou politicos, como no & ‘aso dea por parte dos governs. Cobereamentus O conceito de esquecimento, ou seja, a passagern do conheci- ; ; » a apy DCF ci mento de volta d ignorincia, inclui seu sentido metaférice, Os termos ri “ “amnésia social”, “amnésia es : \ ao rutural” ou “amnésia corporativa” se referem 2 reconstituigao consciente ou inconsciente do passado 4 luz do presente, bem como a perda de informagio em uma organizagao.” Os académicos também precisam estar cientes de uma tendéncia que Robert Merton descreveu como “amnésia de citagao”, uma falha em se referir aos seus predecessores em seu campo de estudo.” Adotando uma veia cinica, jé pensei 4s vezes que mesmo os académicos mais conscientes, ainda que reconhegam alegremente pequenas dividas a um ou a outro estudioso, As vezes se esquecem de citar o predecessor a quem mais devem. O segredo também € obviamente relevante dentro do tema da ignorancia, pois um segredo envolve nao apenas um pequeno grupo que esta “por dentro do conhecimento”, mas também um grupo maior que é mantido na ignorancia, ou seja, “fora do circuito”. Atividades clandestinas, como contrabando, tréfico de drogas ¢ lavagem de dinheiro ficam cobertas sob esse outro termo guarda-chuva € serao discutidas no capitulo dez. A negagao faz parte de um arsenal de métodos para manter 0 ptiblico na ignorancia de fatos ou eventos embaragosos. Sua histéria, especialmente a recente, é bastante familiar: a negag4o do Holocausto e de outras tentativas de genocidio, a negacao da relagao entre o fumo eo cancer de pulmao, a negas4o da mudanga climatica.® O que torna a negagao tao eficiente, assim como outras formas de pode ser definida como ignorancia técnicas de critica, especialmente fake news transmitidas em uma propaganda, é a credulidade, que tanto da importancia quanto das do senso critico quando aplicado as as ; variedade de meios de comunicagao — boatos, jornais, televisio e mais recentemente, Facebook e Twitter. Accredulidade floresce em situagdes incerteza €0 destino de todos os tomadores de des isOes, j4 que todos nés ignoramos 0 futuro. Entretanto, medidas podem set ale, gragas 4 andlise de risco adotadas de os prepararmos pat forma a nos 4 ‘ ° ¢ outras formas de previsao, discutidas no capitulo quatorze- Quant de incerteza. Ea 37 ao preconceito, ele pode ser definido como um julgamento feito d tro da ignordncia, WM CASE chissico de nem se saber que nao se i Fremplos sero accortentes ao ong este livto. , Os mal-entendidos dependem da ignorincia ¢, assim come ef, sam desompentando tm papel grande insuficentemente recon iy na historia humana." Eles se tornam particularmente visiveis — membros de uma cultura encontram membros de outra pela primeing vez. Um exemplo conhecido desse tipo de situagao é 0 primeiro en. contro do capitao Cook e sua tripulag4o com os havaianos, em 1779 um acontecimento analisado em um trabalho de um importante an. tropdlogo norte-americano, Marshall Sahlins. Os havaianos nunca haviam visto europeus antes vice-versa. Entao, cada lado ali descobria © outro ¢ tentava interpretar suas ages. Sahlins sugere, por exemplo, jque, como Cook tinha chegado na época do festival do deus hava no Lono, os nativos o consideraram como uma encarnacao daquela divindade. Quando os britanicos retornaram inesperadamente e sem querer destruiram essa interpretacao, Cook foi morto.* Como este capitulo sugeriu, a ignorancia é um concelto mals complexo do que poderia parecer & primeira vista. Nao é de se admi- rar, entio, que filésofos em diferentes partes do mundo tenham tido muito a dizer a seu respeito. As visbes de alguns deles sto o tems do capitulo seguinte. 38

You might also like