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Acervo on line BURCKHARDT E 0 ESTADO. Publicado na Folha de S.Paulo, terca-feira, 28 de marco de 1978 © Estado moderno © centralizado formou-se pouco a pouco, divinizado e tiranico, regendo soberanamente a cultura e condicionando-a. € reinos como a Franca e a Espanha tinham, além disso, sobre a cultura de sua época, a imensa superioridade de deter 0 comando do maior partido religioso. E mais: eram sustentados pela nobreza e pelo clero, que, em nossos dias, perderam seu poder politico, embora conservem ainda uma forca social real. Quando, depois da Revoluco (1789), 0 poder politico deixou de chamar-se Luis, para chamar-se Republica, e tudo se transformou, houve uma coisa, todavia, que ndo mudou: -a nocdo de Estado. A grande crise da cultura moderna comeca no século XVIII, e se acentua e precipita a partir de 1815. No século das luzes, quando o Estado parecia no haver ainda mudado, era ja perturbado por pessoas que néo discutiam os acontecimentos do dia, mas, na verdade, dominavam o mundo na qualidade de fildsofos, como Voltaire, Rousseau e outros. O "Contrato Social" é talvez um acontecimento mais importante do que a Guerra dos Sete Anos. O raciocinio e a abstracao filoséfica comecam entéo a dominar o Estado, surge no horizonte a idéia de soberania popular. E 0 comeco da era do comércio e da indistria, que se toram fatores cada vez mais dominantes. Segundo Ranke, nenhuma outra idéia exerceu, no transcurso dos Ultimos séculos, uma influéncia semelhante & noc&o da soberania popular. Repelida as vezes, € influindo apenas sobre as opiniées, acabou por afirmar-se, Abertamente reconhecida, mas no realizada de todo, intervinha sempre nos acontecimentos, tornando-se o fermento ativo do mundo moderno. & verdade que, em 1648, depois do “prides purge” (a purgaco do orgulho, nome que se deu ao exterminio da nobreza por Crowell - N.T.), 0 Parlamento burlou-se da realidade, conciliando a afirmagao teérica da soberania popular com o exercicio de um poder puramente militar 0 absolutismo j4 havia tentado, antes, um sistema mercantil. Velo depois dele uma economia politica, dividida em varias escolas e seltas, que preconizava até o livre cambismo. Mas ndo é sendo a partir de 1815 que desaba o aparelho que tratava de diversas atividades (por exemplo, as corporagées, ou a lotac&o obrigatéria das pessoas em determinados oficios). As fazendas passaram a ser transferidas e colocadas @ disposico da indistria. A Inglaterra, com seu tréfico mundial, converteu-se em modelo para todos os demais Estados. Inaugurou 0 emprego em massa da hulha e do ferro e criou a grande industria, estendendo o uso da méquina, que aplicou em seguida a locomocao do navio a vapor e do trem de ferro. Revolucionou os procedimentos industriais por meio da fisica e da quimica e logrou gracas ao seu algodao, dominar 0 mercado mundial. A extensdo infinita do crédito, a exploracéo da India, a expansao colonial da Polinésia, etc., viram acentuar ainda mais esse desenvolvimento econémico, enquanto os Estados Unidos se apoderavam de quase toda a América do Norte e a Asi Oriental se abria ao intercdmbio. Partindo desses fatos, parece que o Estado estd reduzido a servi dai por diante, de policia e agente protetor dessas multiples atividades. A indistria, que antes solicitava ao Estado todo tipo de ajuda, j4 nao Ihe pede sendo a supressao de barreiras. Tem, além disso, interesse em que o Estado estabeleca um amplo leque alfandegério e seja o rmais forte possivel, Ao mesmo tempo, fazia-se sentir, no dominio politico e social, a influ€ncia das idéias da Revolucéo Francesa. Programas constitucionais, radicais € socials, que derivam da igualdade dos direitos, so amplamente difundidos no meio do pubblico pela imprensa, As ciéncias politicas se tormam patrimdnio de todos, e a estatistica e a economia politica s8o 0 arsenal em que cada qual vai buscar 2 arma que Ihe convém. Todo movimento & ecuménico. A Igreja, porém, parece ser um elemento “iracional": O Estado quer ser religioso, mas ndo quer ficar dentro dela. Por outra parte, o Estado pretende aumentar, na medida de suas forcas, 0 poder que herdou, cuja independéncia afirma a todo momento. Sempre que pode, faz parecer iluséria a justificacéo das forgas populares. Existiram e continuam a existir dinastias, burocracias e governos militares que estao firmemente decididos a tracar eles mesmos os seus programas e a no permitir que 0 povo os imponha, Estas sdo as causas, da grande crise que sofre em nossos dias 2 nocao de Estado, O povo nao Ihe reconhece um direito préprio. O Estado deve, pois, realizar 0 programa dos diferentes partidos, e ser, por outro lado, apenas 0 invélucro visivel da vida burguesa. Até porque ndo dispée de poder sendo para isso: atender ao vivo desejo de todo mundo de participar, desta ou daquela forma, do exercicio do poder, Jacob Burckhardt - (1818-1897) nasceu em Basiléia, mas fez sua vida cultural na Alerranha, onde estudou e viveu nos tempos de Kant, Schelling, Hegel e Schopenhauer. Vinculou-se, porém, ao niicleo de Winckelmann, que fundava Seu pensamento filoséfico e sua interpretaco do ser e do mundo através do belo. Sua visio do mundo, marcada por um pessimismo dionisiaco, alterou alguns dos conceitos classicos da historiografia, Militou algum tempo na politica, que abandonou em 1846, para publicar, em 1852, seu primeiro livro, "spoca de Constantino, o Grande", Um de seus livros mais importantes & "A Cultura do Renascimento na Italia", Fascinado pela Grécia. Niestzche foi um dos seus discipulos diletos. Dizia que era preciso levantar-se e deitar-se com seu "cicerone", a bela obra sobre a Italia renascentista. O texto que hoje publicamos é de "Reflexdes Sobre a Histéria do Mundo”. © Copyright Empresa Folha da Manhé Ltda. Todos os direitos reservados. & proibida a repraduséo do canteldo dest pagina em qualquer mala de comunicagSo, cletrénica ou impresso, sem autorizagia escrta da Empresa Folna da ManhS tea.

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