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Beas afro-bastoie OBSERVAGAO PARTICIPANTE E ESCRITA ETNOGRAFICA tismo e poesia: des gregos 20s surreal legao ¢ traducao de José Paulo Paes. So Paulo: Cor panbia das Letras, 1990. Wagner Gongalves da Silva © trabalho de campo, processo alravés do qual o antzepélogo observa de perto a comunidade pesquisada para interpreté-la, de- sempenha um papel fundamental na definigso da antropologia como cigncia da alteridade ou da critica cultural. Neste artigo proponho analisar alguns aspectos do trabalho de campo, enfocando princi- palmente a relacio observador-observaclo tal como esta se apresen- ta nos depoimentos dos antropdlogos e das pessoas por estes entrevistadas.! Procuro, ainda, analisar alguns impasses na passa ‘gem do trabalho de'campo para. tex\o etnogralico. Ocampo empi- rico de referéncia para a discussao proposta é 0 das comunidades religiosas airo-brasileiras, em particular as de can i@m colocado certas questdes relevantes, como os limites entre observagao e participagao e os mitltiplos significados que as einografias dessa érea vem estabelecendo na legitimagao ou trans- formagao das tradig6es religiosas, em conseqiiéncia do contato e aliangas existentes entre o universo da academia ¢ dos terreiros. Rituais de delicadeza Costumamos pensar na observacéo participante basicamente como uma técnica ou um procedimento realizado pelo antropélogo, para conhecer a comunidace que estuda, Eniretanto, nao € apenas tural do grupo no para tornar aquele que inicialmente era um “estrangeiro” em uma “pessoa de dentro”, isto é, um sujeito socialmente reconhecido. Bras, sro-brasro Este processo de miituo reconhecimento entre antropologo e grupo investigado ocorre em todas as pesquisas nas quais a obser- vagao participante uma exigéncia para a producto do conheci- mento, porém tende a variar de acordo com certas especificidades. No caso das pesquisas em comunidades religiosas afro-brasileiras, ivo para que o antropélogo se torne um membro do grupo, atuanclo nos quadros organizacionais e roligiosos dos terreiros, tem sido freqiiente desde os primeiros trabalhos de campo nessa area. Acredito que uma reflexio sobre a observacao participante neste ja a entender tanto certas caracteristicas destas re- ligiges como da técnica de observacko antropologica. incorporem em si mesmas 0s valores religiosos através da experién- cia empirica nesse tniverso. Para os adeptos, a religido dificilmente se “revela” aos olhos de quem niioa experimenta. Aos olhos do gru- Po religioso, o antropdloge deve, portant religioso para poder Uma das formas comuns ¢ it de aproximagao entre o an-_ tropélogo ¢ o grupo e de experimentacao da sistema oracular, como o jogo-de-biizios, qui jonamento no candomblé do pai-de-santo com o antropélogos estabeleceram os primeiros contatos com os pais-de-santo através deste recurso. © jogo-de-btizios ‘merecimento espiritual” para obter detalhes sobre a religisio. O re- sultado do jogo-de-biizios pode estabelecer, portante, para 0 antro- pOlogo, condigoes propicias ou nao de observagio. Uma antropéloga narrou que os oréculos foram acionados no terreiro em que pesqui- sava para restringir a participagao cle uma outra pesquisadora que io obteve a simpatia e a confianga do grupo (SiLv4,1998). Attavés do jogo-de-biizios o pal-dle-santo também procura des- cobrir o “santo protetor” dlo antropélogo, enquaclrando-o no sistema de compreensio da religiso, em que os modelos dle relacionamentos centre as pessoas sio pautados pelos atributos miticos de suas divin: dades protetoras. E nesse caso, atribuir uma identidade religiosa ao . CObserraco parcpance e serie amogrfes pesquisador é uma forma de tornd-lo uma pessoa “reconhecivel hos termos do grupo. Alem disso, o jogo-de-biizios permite ao pai- canal de familiaridade com 0 antropélogo, conhe- cendo-o melhor e adquirindo um certo dominio sobre as dimensoes dee sua vida ptiblica ou privada Para muitos pesquisadores, a consulta ao jogo-de-biizios pode de se guiarem por interferéncias de outra problemas, realizagao de escolhas etc. Como 0 ordculo do jogo-de-biizios freqiientemente prescreve a realizagio de rituais (chamados de trabalhos, despachos, eb6s, etutus, sacuidimentos ou servicos) para a resolucao de problemas, o ant ial do corpo através da oferencia de alimentos e sacrif de animais, além de outras coisas. Em muitos casos, 0 jogo-de-biizios recomend, ainda, a realizagao dos rtos preliminares dainiciagso, como © bori owas obrigasdes feitas para o orixé atribuidlo ao pesquisacor. _A convivéncia no terreiro obriga ainda o antropélogo a se sub- ym, entre outras coisas, estabelecer ou reforgar os © identificam o grupo a partir de uma visao de mundo compartilhada tanto no nivel como pessoal. O an- tropdlogo, ao participar de vérios ritw: ¢, portanto, na obri- gagio de cumprir os preceitos a eles associad yeluem regras como: nao ingerir bebida alcodlica ou nao manter relagbes sexuais num certo perfodo anterior & sua realizagéo. ‘A maioria dos pais-de-santo procura estimular a participagao do antropélogo na vida religiosa do terreito tendo por objetivo a sua iniciagio, j4 que esta € a tinica form. fo © de acesso a dimensdes mais -yés da iniciagio a pessoa rompe com a vida anterior e adquire um novo status perante o grupo, pois se toma membro de uma fami- lia-de-santo com a qual manterd lacos de reciprocidade, Nos apelos de conversao poréna, cettas especificidades, No candomblé, por exemplo, existe ‘uma distingao entre as pessoas que potencialmente entram em transe = devendo ser iniciadas na condigio de iad ~e as que nao tém essa ri, sre-basoro potencialidade - devendo ser iniciadas como ogis (quando homens) on equedes (quando mulheres). Ogas e equeces, devido a sua con dicio especial, muito valorizada no culto, fem adquirem status de chomi (mais ve jeraclos como pais” ou “maes”, ogis e equedes podem ocupar cargos de destagque no grupo, exercendo funcdes essenciais ao culto. Na maicria das ‘vores 6 na categoria de oga e de equede que os antropdlogos e as antropGlogas, respectivamente, so indicados, compatibilizando as- ‘sim 0 prestigio que os terzeiros atribuem a eles dentro ¢ fora do sistema religioso. Além disso, “rodar no santo” (entrar em transe) ‘em muitas comunidades religiosas nao & permiticlo aos home é visto com certas reservas. E 0s religiosos reconhecem que tuais dificilmente poderiam ser iniciados como “rodantes’ culdade que teriam de experimentar 0 transe. (Os terreiros procuram entronizar em seus postos de ogas, além das pessoas provenientes do préprio meio religioso, os intelectual ce representantes das classes mais p possam fornecer protecto, pres za, © convite aos antropélogas para que ocupem estes postos ‘também se faz como uma extensdo desta politica de aliangas. Nao por acaso que uma parcela muito grande de pesquisadores do can Gomblé se tornou ogg. Apenas para citar alguns exemplos: Nina Rodrigues foi feita ogi de Oxalé por mae Pulquéria do te: Gantois (Laa,1984, p.7), onele Manuel Querino também teria ocupa- do cargo de oga. Nos anos 30, ainda neste terreiro, m ‘elndgrafos como Artur Ramos, Hosannah de Oliveira e Esticio de ‘Lima foram iniciados nessa condigio (Ramos, 1940, p. 70; Lan 1967, p. 83). Edison Carneiro foi convidado para ser ogé 1 ‘Ops Afonié de mde Aninha (Lanpss, 1967, p. 42), no Engenho eno terreiro de pai Procépio, embora no se tenha confirmado em rnenhum deles (Lanpes, 1967, p. 162). Nest Pierson foi feito oga (PiExson, 1967, p. 317 e 1987, p. 39). No Axé Op6 ‘Alonjé, com a criagdo em 1937 dos Obas de Xango (postos de hon- ‘stas ¢ pesquisacores vem ingressanco ‘esta comunidade via estes ¢ outros cargos, come Pierre Verger, valdo da Costa Lima, Jorge Amado e Carybé, entre outros. Neste ‘Chserragt parlparte« ert enogrsie terreiro, Alguns pesq adores que accitaram a indicgao para ogi e indicagaio para og& ou equede, sendo vista como uma grande honra para quem a recebe, faz com que o pesqui- sador a aceite mesmo que nao pretenda se iniciar, lirar dela um pro- veito imediato para a pesquisa ou jé tenha sido indicado em outras casas, pois recusé-la seria considerado uma ofensa muito grande, uma incompreensao das regras da etiqueta ritual altamente valori- zadas no candomblé. Tornar-se nativo J) Para compreender melhor por que um grande m tropélogos que estuidam diversas modalidades de no grupo. Neste sentido, as experiéncias de insergao de autores ti- dos como clissicos no estudlo do candomblé, como Roger Bastide & Pierre Verger, sao modelares, Nas pesquisas anteriores aos anos 40), a iniciagio do antropélo- ‘go era justificada principalmente em termos das necessidades “téc- nicas” da pesquisa de campo, ficando 0 autor 7 preservado de refletir sobre os significados de sua conver ipagao no culto.* A partir dos trabalhos de Roger Bastide, s80 do pesquisador passou a ser enfatizacla de modo. explicit, indo, inclusive, um valor heuristico importat a produgio do conhecimento sobre as religides afro-brasileiras. Roger Bastide, embora nao tena realizado intensas e prolongadas pesquisas de campo,’ desde sua viagem a Bahia, descrita em Iniagens do nordeste mistico em branco e prefo (1945), mostrou-se profunda- mente seduzido pelo mundo dos terreicos. lusao levou-o a de- 1a metodologia de trabalho de campo na qual o pesquisador deveria nao se colocar do lado de fora da experiéncia social de seus, a, Eno contexto dessa expe- Se tll esl, ao ‘A observasio participante defendida por Roger Bastide, secom- parada com a de Malinowski, previa uma empatia muito maior do pesquisador com o mundo do seu pesquisado, quase que uma trans- feréncia psicanalitica, através do questionamento da prépria perso- nalidade do pesquisador e de seus fundamentos culturais, ‘Tkajetéria semelhante & de Roger Bastide trilhou Pierre Verget, que chegou ao Brasil em 1946 e, sob a indicagio de Bastide, entrou em contato com os terreiros mais famosos da Bahia. Sua identifica- Go com esse universo foi tdo intensa que ele fixou residéncia em Salvador, onde morou até sua morte, em 1996, Verger iniciou sua carzeira como fotdgralo e por ter grande inclinagéo para as via~ gens tomou-se colaborador do Museu de Etnografia de Trocadero (atual Museu do Homem), onde fez contato com alguns importan- tes antropélogos, como Marcel Griaule, Michel Leiris e Allzed Mé- traux. Seu interesse pelo candomblé, em especial de origem ioruba, fez com que reunisse um farto material etnogratico, principalmen- te fotografico, resultado de suas constantes idas e vindas & Alica cou Diex d’Afrique ¢ trés anos depois 0 Notes sur Je ifique na Franca e defendeu na Sorbonne ‘uma tese sobre o trafico de eseravos do Golfo de Benin para a Bahia, obtendo o titulo de doutor em estudos africanos. Em 1981 publicou Orixis, seu livro mais conhecido, no qual divulgouem portugués 0s principais resultados de suas observagdes etnogréficas sobre a reli- ido dos orixas na Bahia e na Africa ‘que demonstrava ao didlogo com os intelectuais. Sem a preocupa- Gao em travar um didlogo teGrico-académico, Pierre Verger tornou- ansavel pesquisador de campo em busca de detalhes cada para compor suas minuciosas etnografias. Nessa bus- jacio foi importante para garantit o convivio tanto n terveiros da Bahia como nos eghés (sociedades de culto aos orixé africanos. Além de ter sido entronizado no cargo de “oju oba” ( olho do.tei”) no Opo Afonjé e ter sido: na Casa gen (adivinho) na Africa, recebendo o nome de “Fatumbi”, com que muitas vezes assinava seus livros. Pierre Verger, sempre que perguntado sobre os mativos que levaram cao na religido dos orixés, procurou desvincula-la ‘embora admitisse que sem este tipo de insergi0 {e teria tido accsso ac conhecimento reveladoem. suas etnogratias. ‘A maneira como Verger observou e participou desta religiao fez com que, no seu caso, 0 proprio te parecesse "téenico” demais e pouco cond {ao que ele defenia para se fazer um trabalho de campo nessa étea, Como disse Bastide no preficio do livre Diewx d’Afraque: rerges & mais que um cbservacios parti va “observador” exboca, de qualquer Depois de Roger Bastide e Pierre Verger, as fronte observagao e “comunhao” revelaram-se muito tenes © nativo” virou uma palavra de ordem para a varias antropélogos que pesquisaram 0 candomblé ¢ as 1s em geral, a partir dos anos 70, quando i A ao social mult Com a publicagao de Osx apresentado como tese de doutarado em etnolog la primeira vez, numa etnogeatia académica, dk articipante (Gaxtos, 1 “A importancia que oassumiui neste contexto pode ser medida pela forma como éla, por si sé, fomeceu um critério de Tegitimagtio dos re- ssultacios da pesquisa realizada. Em os Os nage a morte, por exemplo, a iniciagao do autor torna-se um meio de aferigao da confiabilidade ‘dos dados apresentades em sua etnografia (Saxros, 1977, p. 25), Bras, afe-baioro Qual a natureza deste envolvimento dos antropislogos com a O que fé quer dizer? iagdo dos antropSlogos nas religides afro-brasileiras 6 recurso freqiiente de aproximagao aos valores do grupo, a for- como os préprios antropslogos se posicionam, em seus discur- » frente a5 crencas que compartilham com os membros dos i103, revela os limites € 2 complexidade desse jogo de aproxi- 1G90 e distanciamento existente entre eles. Para alguns antropélogos, a inserg4o na religiao possibilitou mentar subjetivamente alguns significados presentes nos dis- dos religiosos, is e na interferéncia destes nos des{gnios humanos. Nesses ca- ‘antropélogo entende sua presenga na religiéo também em ter- nos de uma “conversao intima”. aexperimentar no traba~ campo uma situagao de conilito entre éticas religiosas diver- Ws (como teria ocorrido com Roces Basmibe, segundo Quiroz, 1983), aceltagao dos valores da religito sem uma adesio subjetiva x sempre que indagado, colecava-se como um. igioso que pesquisou : 1991, p. 10), ‘outro lado, a posigao ambigua do antropdlogo em relagao de stia crenga e a sua presenga na er entendidas pelo fato de, nas sigirem provas de uma conversio internalizada ou mesmo uma. idacle de opgio religiosa, Principalmenie nas categorias de” jueie, ue nao prescrever a necessidade do transe, © para ern dos acon Observacto parelpane @ sera etrogrficn do universe religioso, Muitos pesquisadores que, freqiientemente, se filiam aos terveiros, aclerem muito mais a um estilo de vida e a um grupo de referéncia afetiva do que & religiao propriamente dita. Pode-se dizer, nestes casos, que 0 pesquisadar se filia ao “sagraco. (n)as religiCes afro-brasileiras de mel- las maneiras, e "acreditar” nem sempre é tinico verbo que os adeptos pedem a nds, antropdlogos, para conjugar quando 0s fa- lam e nos convidam a penetrar nos espagos mais sagrados e intimos do culto. Outros verbos como gostar, querer, desejar © aprovar po- dem ainda compar a semantica deste didlogo e desta participagac, Antropélogos na encruzilhada Para 0s religiosos cujos terreiros jé foram pesquisados, a ini- ciagio do antropélogo é vista como uma estratégia de aliangas ¢ re- ciprocidades a principio benéficas para pesquisadores ¢ pescuisados. Se por um lado a iniciagio do antropélogo ou a atribuigie de uum cargo hierarquico podem ajudar na observacio participante do terreiro, por outro podem fazer com que o antropélogo, em muitos smomentos, tenha de sair de sua condigao de observador para parti- cipar efetivamente dos rituais. Nesses momentos sua interlocugao ‘gras de efiqueta religiosa para estabelecer uma relacao mais ade quacia aos objetivos da pesquisa, Conversar com os mais “velhos de santo” sobre aspectos da religiao ou sobre suas experiéncias, por »,exige tum maior jogo de cintura, pois nesse caso © que se diz e 0 que se deixa aprender pode ser mensurado pela posicao religiosa e cargo do antropélogo no terreiro e nao pela sua condigio de pesquisador apenas. B perguntar aos “mais novos de santo” ow Aqueles que estao abaixo da posigio do pesquisador na estrutura ligiosa pode significar uma inverséo do sentido em que 0 conheci- mento oti o direito & palavra trafega nestas religides: sempre dos as “portas ibém pode fechar-Ihe outras em ou E dopendendo do tema da pesquisa (principalmente quando 0 se trata de um estudo de caso), esta poderd se tornar inviavel. © meio académico, por seu lado, tende a ver com reservas a dciagao do aniropélogo e a questionar principalmente suia necessi- para a realizagio do trabalho de campo. Esses questionamen- § aumentam quando na iniciacao ha a experiéncia do transe de 1e5840, pois af se teria também um embate entre o complexa re- onamento da racionalidade do conhecimento cientifico versus a Para muitos pesquisadores, 0 envolvimento religioso do an- opdlogo deve ser visto, portanto, com cuidado, Um dos p jantropélogos a criticar a insergio do pesquisador ou pelo menos ftribuir 0 sucesso de seu trabalho de campo i Aierarquia religiosa dos terreiros foi Re fa condigao de médico psiquiatra de um importante érgio con- les dos terreiros, 0 Servigo de ero melas privilegiados de insergaio no campo para realizar sua etnografia numa época em que a repressao 108 cultos afro-brasileiros foi particularmente intensa com a natureza das afirmagées cientificas provenientes ca apli- 40 de uma metodologia de introspegdo dos valores religiosos do _ fupo. Segundo cle, essaintrosposio poaerialevar 0 anttopsogo a “Rettas argumentagdes que ulttapassam as fronteitas exisientes entre "iia investigacao racional e uma fé experimeniada (Zntcas, 1972, p. 74) fi as dlécadas, a critica do envolvimento religioso do _pesquiisador tem tomado outras direcées. Principalmente porque as “woligibes aito-brasileiras, cada vez mais, tém se legitimado com 296 A clissica dicotomia entre crenga e ciéncia, ainda que existente, jé nic, ‘exige do pesquisador posicionamentos tio excludentes entre si, prin- cipalmente apos a crise dos grandes paracigmas materialistas ¢ racio- ‘nalistas que predominavam sobretudo nas abordagens em ciéncias “humanas de infl rxista dos anos 60. Além disso, com ¥ ‘abertura cada vez maior para.a pritica de uma antropologia experi- ‘mental (a qual a subjetiviciade do antropélogo também € valoriza- da_como parte do_didlogo que ele_estal interlocutores), a participacao religiosa do pesqu ticas, alargamento Xamidnicos, enfim, estas e tantas outras formes de “e yservada vém conquistando uma maior legitimidade “como parle do trabalho de campo dos antropdloges nos tiltimos, “tempos. Os limites na condugao destas experiéncias sao, portanto, ‘assuntos polémicos ¢ objeto de debates ainda em andamento, pois seria preciso avaliar a que resultados se chega a partir de experiénci- as de envolvimento dessa natureza. Entretanto, mesmo para os an tropélogos que se permitem experiéncias subjetivas mais intensas com 0 universo pesquisado, as conseqtiéncias dese envalvimento Rio s2o relatadas de forma sistemética ou incorporadas também como um objeto de reflexio nas emografias que elaboram. Desde 0 “campo” até o texto ‘ces de significados ocozridas entre ant 6, enfim, toda a série de problemas e situagées impondersiveis qué sugem durante a realizacdo do trabalho de campo, para a forma final, textual, da etmografia, sem perder de vista aspectos relevantes do conhecimento antropolégico comoo proprio modo pelo qual este 6 produrido? O texto einogréfico em geral é uma redugao brutal das iniime- as possibilidades de interpretagio da experiencia de campo e do di- ficil exercicio de alteridade realizado entre o antropélogo e seus interlocutores, Primeiro porque o texto etnogréfico, como qualquer forma escrita de representagio, j4 ¢ em si mesmo uma adequagio ou transformagao da realidade que pretende inscrever, descrevet in terpretar, compreender, explicar ete. Segundo porque, devido a 297 em termos de izantes, tal como prescrevia Marcel Mau ‘Na passagem do trabalho de campo para a elaboragao do, iento do cliscurso cientffico ~marcado pela busca dade e universalidade (que o distingue, inclusive, de 8 modlalidades de discurse) — pouco se tem refletido sobre a entre tealidade representada e as proprias condigdes de vio clas representagbes e sua natureza. Como lembrou Do- Jue Maingueneau (1989, p. 58): Soria difternta co socilogas das cincis avascemem conta a , pois etnografia, como um projeto produao de cor (os sobre grupos socials e suas culturas, smbiém sua propria forma de conhecer. Ou seja, especular ‘os conhecimentos cle q de campo tendem a perder algumas de suas caracteristicas basicas mo a historicidade e eventualidade com as quais as pessoas ap! as tenha gerdo, seja do trabalho de campo ou do texto ebiografica Mesmno nas etnogratias provenientes de um intenso trabalho de po, raramente se vé uma convergéncia entre esta dimensio e a izacao do discurso etnografico. Como mostrou James Clifford, Teferinis ao trabalho de campo nas etnografias, em get fcam introdugdes metodoldpices ou notas de rodape, nas quais 298 se quantifica o tempo de convivéncia do antropdlogo com 0 grupo ido, forma como este profissional chegou ao campo e como "que pretendem mos- trar claramente 20 leitor a grande “proximidade” atingida pelo an- tropéloga em relagdo 20 grupo que descreve (CuirroxD, 1988) dacios da experiéncia do antropélogo, principalmente aqueles cor ibjetivos” (ou os “timbres e entoagies” das vozes guard ‘expostos, aparecem com cauitela na es- para 0 primeiro plano dos relatos etnogrsficos, geralmente o fazer de artigs separados de suas “obras etnogréficas académi- i40, de livros de caréter memorialista ou autobiogréficas, nos quais se cria um diapasao entre o género de “cronica” adotado e ‘oconhecimento emografico, que praticamente se evade destas obras. Outro problema enfrentado pelo antropélogo na escrita etno- geifca ee distingdo entre o nivel descritivo e o interpretati- vo, sia distincao esta na base de classificagdes que von aa etnologia e a antropologia segundo a éniase ros aspectos descritivas ou nas teorizagies com as quais se repre intretanto, 0 texto etnografico como jurais observados € uma construgae do etnégraia a partir das representagdes que 0s scus interlocutores fazem do mundo cultural em que vivem (Srexsre,1992, p. 26). Na realizagio do empreendimento etnografico hs, por doxo que se manifesta quando se pede ao antropélogo ‘es recursos disponiveis de sua sensibilidade para ‘mesmo os significados da cultura que investiga e, por ou! ‘académica, pede-se que esla experiéncia seja colocada sob padres. “que em geral deixam de lado importantes dimensoes destes signific ‘eados, Acompanha esse paradoxo 0 equivoco de se postular para a ‘Tepresentacio etografica niveis auténomes de apreensio da rea- Iidade. Mesmo que os antropélogos estejam conscientes de que os fatos nao falam por si mesmos, conforme defendeu Malinowski, as ctnografias pretendem que os documentos apresentados, as descti= ‘es, possam ser referidos como “fatos brutos”, nao contaminados 299 icos promovidos pelo Iistado e Grgiios de repressa0.e muitas veres divulgados né os etnograficos de Nina Rodrigues escritos no isado, ao descrever os cultos afro-br 1m as bases de um discurso sobre estes cultos muito proxisa ‘aguicla que viria a ser adotada pela academia como padrao legiti- _ mo de etnografia sob a influéncia de Malinowski. Fssa concepgio de etnografia como um documento que com- a interpretagao, mas nao se confiunde com ela, tem petmitido leas etnografias sejam lidas ou relidas ao longo de varias geracies anicopSiogos, dissociando-se os fatos empiricos das interpreta- goes. Artur Ramos, 20 teeditar os textos cle Nina Roclrigues na déca- da de 1930, enfatizou o valor documental da obra de seu mestre, ‘apesar dos conccitos errOneos rela existentes. Para Ramos, se noe traballies de Nina Rodsigues, substituirmes os fermos 1aga por cultura,e mesticamento poraculturagio, porexemplo, a8 suas coneepqbes adquirem completa eperfita atualidade. (Rus apud Roceucuts, 1999, p, 12) ‘Da mesma forma, Roger Bastide, ao ler as etnografias de Nina Rodrigues e Artur Ramos, separou o nivel descritivo do interpre- talivo, desconsiderando as inter-relagdes existentes entre estes nf- eis (Basre, 1978, p. 8-9) A hegemonia conquistada por este modelo discursive etno- igrifico também pode ser medida pela reagio com que foram rece~ hides as raras etnografias em que o trabalho de campo assumiu o primeiro plano da descricgo, fornecendo um fio narrativo para a apresentacio dos dados de pesquisa ¢ das interpretacées, como no 300 iderado “romanceado”, pouco objetivo ou ciet tho foi visto como uma obra “menor”, pois apresentou os dados ‘etnograficos nao totalmente separados da forma coma foram reco- Thidos durante o trabalho de campo realizado por sua autora. Considerando, partanto, que toda descrigao ja € em si mesma uma interpretagio circunstanciada pelas condigées de sua observa- #0, descrigso ¢ interpretacio nao devem.sex visas.como antagoni- cas, fanto na construgio de um texto etnografico. como.em sua leitura, ‘Na construgio do texto etnogréfico, a natureza singular do tra~ batho de campo revela-se, porianto, em toda a sua complexidade, pois o antropélogo, ao observar e selecionar 0 que considera “os fatos etnograficos” relevantes, faz.com que sejam produzidos simul taneamente os “documentos” e suas “interpretagoes’ Ovivido e o narrado: 0 quea escrita fixa? © esforco dos antropélogos em fixar a narrativa einogréfica rnuma forma impessoal e genérica impede, muitas vezes, que autor ¢leitor a vejam, também, como decorrente de experiéncias pessoais contextuais particulares de interlocugao entre 0 antrapélogo ¢ 0s ‘membros des grupos pesquisades. Os problemas edlficuldades vivides no campo ¢freqtientemente ausentes Ta passagem das experiéncias empiticas para o texto ek. ‘nogréfico poderiam, & cconstituir um legado util para.as ‘Varias geracoes de antropologas, que em geral se véem diante de desafios muito parecidos na produgao de suas etnografias, ‘O modo mais freqitente com que transpamos para 0 texto tno agréfico as experiéncias vitais que vivemos, testemunhamos ou pat- ticipamos com os noss0s interlocutores duranteo trabalho de campo, 60 de cevaziamento dos aspectos subjetivos presentes nestas ¢xpe- riéncias ou de depuragio desies aspectos numa linguagem condi-, ‘gente com as exigencias da racionalidade cientifica. No caso das pesquisas com religices afto-brasileixas, este aspec: to tem conseqiiéncias muito importantes, pois o “conhecimento ob- jetivo” da religito nao deveria se deslindar da percepsao sensivel dos rituais como performances que contribuem em grande parte para a sua eficacia simbélica. Ou seja, 0 repertirio de experiéncias que se 301 dar conta de elementos importantissimos a avaliagio do “que a8 pessoas mobilizam subjetivamente na construgdo do sew ser através da roligido. Podemos, por exemplo, descrever 0 o6, um dos de iniciagdo no candomblé, identificanco o animal oferiado, as 1, 08 elementos littirgicos etc., mas certas dimensdes do ritual, © momento em que o sangue quente das animais sactificados é mado sobre corpo do iniciado, imprimem aos patticipantes 'meméria do rito que mobiliza percepgbes as quais uma etnogra- do sensivel poderia tentar sublinhar. Na verdade, mais sensiveis da experiéncia parecem permitir que u “Glassificacio da ordem natural ou social do mundo seja simulian« -mente um sistema de cognigio e uma educacao cultural dos ‘Mesmo pata os pesquisadores que durante s ae envolvimento profundo com a r - Inlclagéo, essa experiencia de insercao raramente foi incorporada & hatrativa etnografica Roger Bastide, no seu primeiro livro escrito a partir do conta- ‘to com o candomblé, tentou captar a atmosfera religiosa por meio ide uma narrativa permeavel a experiéncia emotiva que viveu. Em Imagens to novdeste :0 em branco e preto (1945), produziu um ‘registro encantado de sua viagem pela Bahia e Recife, durante a qual descobriu um mundo novo aos seus ofhos, constitufdo por ‘Volhas igrejas barracas, misticos candomblés e liddicos catnavais ‘de rua. Consciente que o estilo imprimido nesta obra distanciava- “se dos padraes cientificos justificou: Talvez 0 defeito principal desta obra soja justamente uma hesita- lo entre a cidncia ea poesia. Mas essa hesitagae traduz exata- mente 0 estado de espirifo em que me enconirava na ocasiso, pois a0 mesmo tempo que sentia um certo fervor, desejava fazer pesquisas cbjetivas. (Baste 1945, p. 9) em suas teses académicas, O candomblé da Bahia © As Ioligides africenas no Brasil, as pegadas de seu envolvimento pessoal com a religiso se reduziram bastanie na organizagao do texto, Ba- "#6 referéncias majores ao trabalho de campo realizado nao pare- ci sive, uma necessidade cle sua construgao etnografica, A fio dos periodos e dos lugares onde foram realizadas as 32 ‘observages de campo ¢ feita em nota de rodapé de pagina, mostran- do nessa posigao marginal do texto a importancia menor que a revela- 20 destes dados poderia ter, segundo o aulor, em relacao ao contetido dos entunciados do texto principal. A narrativa parece querer des- prender-se dos limites impostos pelas condicies concretas de realiza- $fo da pesquisa ou pelo fluxo dos comentarios deste ou daquele teligioso; pois se o social éa imagem da arganizacao religiosa bascada banimento da experiéncia (fontes de seu fervor ou a religiao) em prol da ciéncia nao foi, en- tretanto, realizada totalmente, As fronteiras entre as interpretagées objetivas e as percepc6es da subjetividade muitas vezes se confun- dem. B reveladora, por exemplo, a descrigao que Bastide faz. do cul- to aos eguns (espititos dos mortos) em O candowtblé da Bahia: Ia tudo foi preparado...o bakasala, ito 6 aguele quechamae Quando o pesquisador constréi uma deserigio pedindo ao leitor que “creia” nele, solicita uma cumplicidade do Teitor em relagao a realidace mitica que ele proprio experimentou ao conviver com pes soas quie acreditam na ingeréncia dos deuses om suas vidas. Tsto nao. seria, porém, um problema epistemolégico se a narrativa etnogréfica tivesse por objetivo também explorar stias préprias condigoes de pro- dugio e refletic as complexas percepgbes da experiéncia social e religi- (sa clos investigadores e dos investigados. Mas a obrigacao imposta So eenivG de prealicy caplet cokes SNe tia, ea transparéncia da realidade fixada pela narrativa etnogréfica (a narrativa) ¢ 0 trabalho de campo que o sustenta é enfrentada todo etnégraio durante a lapidacio dos pa 303 linguagem especfca aberia x millipls reflexos num jogo “sombra e luz, talvez seja um dos mais dlffceis exercicios a desafi ‘textos etnograficos, ao jogarem luz sobre a cultura do outro, re “necessarlamente a sombra de quem os escreve. Isto posto, resta faz com que reflitam também a sombra das intimeras maos de quem of escreve mas participa em varios niveis na sua construgio. felagces que estabelecem entre si. Sem dvida, estes questionamentos (Pann, 1995). C que se deve ter em mente, entretantn, & gue uma “wav rodada de 304 senagdeserogrticaseboradan. BisuiocRARia AMARAL, Rita de Céssia. Pvo-ao-santo, pow do festa, O estilo de vida dos adeptos I pasta. Sho Paulo. FELCH/USP, 1952. \co.epret, Empresa Grifica BASTIDE, Roger. O amaomblé le Buin rita ‘CARNEIRO, Buison, Candis da Bahia. Rio de Sap Paulo, Nacional, 1978, iiizagao Brasileira, 1978 saber acadlémico ¢ experiancia, 1 UnB, 1992. 1d University Press, 1988. (CLIFFORD, James & MARCUS, George. Writing culture ~ th of ethnography. Berkeley, University of California, 1986, CORREA, Mariza. "A anhopologianoB * Histidine ne Bros v2, Sao Pale, Smart PAPESE ees and polities desencontros da tradigfo em A cides das theres: raga © lemios Pag, Campinas, No- 96, In: Revista de Anbopologie. E ‘leo de Estudos do Genero /UNICAMP, (67 "In GOLDE, Peggy. ity of California Pres; ino, Civilizagao Brasileira, nihirpologic! experience, Unive LANDES, Ruth, A cds das mahers. Rio ds LEVESTRAUSS, Claude. 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