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2 CUIDADO E RESPONSABILIDADES ssoas. As formas ¢ a intensidade di necessidade de cuidado pode ser pensada como parte do cotidiano das A ¢ cuidado variam porque somos mais vulnerdveis em alguns momentos da vida, como na infincia ¢ na velhice, ¢ porque somos desigualmente vulnerdveis durante a vida adulta, devido a condiges fisicas especiais, a enfermidades ¢ a fatores sociais. Tanto coletiva quanto individualmente, néo se trata de um tipo de problema passageito: néo é possivel suspender a dependéncia de cuidado. No entanto, 0 cuidado pode ser significado ¢ organizado de formas profundamente diversas. A disponibilidade e os padrées de distribuigéo de recursos materiais ¢ tecnolégicos, por exemplo, incidem no cuidado das criancas e nas formas que a vulnerabilidade ¢ mesmo o softimento podem assumir em condigées de doenga € na velhice. Os recursos disponiveis para atender as necessidades de cuidado so, assim, um dos aspectos que determinam as diferengas nos modos como cettos momentos € certas condigées de vulnerabilidade séo vividos pelas pessoas ¢ nas comunidades de que fazem parte. Além relagées interpessoais, que envolyem afetos ¢ alguma proximidade, na maior parte dos casos, independentemente de as pessoas nelas engajadas manterem ou no lagos anteriores de parentesco, amor ou amizade. Fato cotidiano na vida das pessoas, elemento organizador das suas relagdes, as necessidades ¢ os problemas tratados nesta discussio também tém sido vistos como um eixo de disputas no atual ciclo do capitalismo, em que se isso, estamos falando de estabeleceria uma “crise de cuidado” sistémical!!, Uma perspectiva ética fundada no cuidado ¢ na interdependéncia permitiria, assim, avaliar 0 caréter da democracia, tendo como referéncia o provimento igualitétio ¢ adequado de $ pes cuidado a todas asl, estabelecido como alternativa ético-politica a0 neoliberalismo™), Aqui, o fato de que todos somos vulnerdveis ¢ em alguma medida dependentes de cuidado ¢ abordado como um problema politico de primeira ordem. O cuidado esté, no entanto, longe de ser um tema com alguma centralidade nos estudos teéricos e empiricos sobre a democracia. No Brasil, é uma questéo pouco presente, sobretudo na Ciéncia Politica, embora pesquisadoras das dreas de Sociologia ¢ Antropologia venham se dedicando sistematicamente a compreender as articulagées entre género, cuidado e familia (4). centre género, cuidado e trabalho! © acesso desigual a cuidados necessétios ¢ a posigao de quem cuida compéem dimensées das desigualdades de género, classe ¢ raga que, como aqui argumento, constituem problemas para a democracia por pelo menos dois motivos. As relagées de cuidado demandam tempo e, em sua forma privatizada, dinhciro, Estamos, portanto, falando de recursos que séo também importantes para a participacao politica, 0 que me permite estabelecer uma conexio com os padrées de incluso, no debate ptiblico ¢ na agenda politica, das experiéncias, das necessidades dos interesses de quem cuida e de quem encontra barreiras para ser cuidado. Ha, como na divisdo sexual do trabalho, um paralelo entre as posiges de desvantagem nas relagées de cuidado ¢ a exclusio ou baixa presenga nos ambientes em que leis e politicas sio definidas. Isso nos leva ao segundo motivo para considerar 0 cuidado como problema para a democracia. As relagées de cuidado, apesar de envolverem dimensées profundamente pessoais ¢ afetivas da vida, organizam-se em ambientes institucionais ¢ econdmicos especificos. As alternativas nas relagées cotidianas ¢ 0s padres correntes de sociabilidade e solidariedade sao estruturados, € pesam, neles, os padrdes de responsabilizacdo e as formas de concentragdo de poder correntes. Em sintese, 0 ambiente institucional em que 0 cuidado é provido é resultado de decisées politicas. Alocagéo de recursos ¢ normas regulatérias incidem diretamente sobre 0 modo como cuidamos ou deixamos de cuidar uns dos outros. Se estas estéo sendo definidas por légicas antagénicas as possibilidades de cuidar ¢ de receber cuidado da maior parte da populacio, falar de cuidado é falar das assimettias no exercicio da influéncia politica e na conformagio do mundo, A centralidade do cuidado como problema no cotidiano das pessoas ¢ como problema politico néo tem, conforme mencionei, correspondéncia nas teorias nem nos estudos empiticos da democracia, sobretudo quando tultrapassamos os limites do feminismo. Isso se deve, entendo, ao predominio de concepgées restritas da politica. Ao foco - mfope ~ nas instituig6es politicas € nas disputas entre os atores nos espagos formais de repr ntagio pode corresponder 0 esfumacamento do cotidiano, das relacées de trabalho e da dimensao macroeconémica das decisdes, sobretudo quando se considera seu impacto na vida cotidiana. Com isso, as relagdes de poder ¢ a interdependéncia no cotidiano, de um lado, ¢ a atuagio de agentes econémicos privados na conformacao das instituigées, da agenda ¢ das politicas piiblicas, de outro, podem nao ser tomadas como problemas. Abre-se, assim, uma distancia entre, por um lado, os fendmenos e os espagos considerados para a anilise da democracia ¢, por outro, as experiéncias cotidianas das pessoas; ¢ essa distancia se acentua quando se trata das experiéncias dos grupos que tém menor acesso 4s arenas politicas institucionais, Hi varios nés na construgao do ambiente institucional em que o cuidado se estabelece. A legislagio trabalhista, por exemplo, incide diretamente no cotidiano das pessoas ¢ no tempo de que dispéem para cuidar de alguém. O tempo é, novamente, um dos recursos que conectam a vida cotidiana ¢ as condigées para a participagéo politica, estreitando os caminhos para que as experiéncias de quem cuida ganhem espago no debate ptiblico. Quando 0 cuidado é mercantili ado, classe ¢ renda sao varidveis importantes, néo apenas pela possibilidade de contratagéo de servigos no mercado, mas também porque as condigdes de trabalho de pessoas préximas definem a disponibilidade que terao para cuidar de outras pessoas. Pens ctiangas pequenas, de filhos ou irmaos com necessidades especiais, nos processos de adoecimento em que é necessatio receber cuidado ¢ apoio, na fragilidade trazida pela velhice. A divisio sexual do trabalho permeia os arranjos, articulada a outros fatores que posicionam e abrem ou restringem as alternativas: mulheres cuidam ¢ séo afetadas em suas trajetérias por estarem posicionadas como cuidadoras; cuidam em condigées diversas, dependendo de nas condigées para 0 cuidado das sua posigéo de classe, em relagdes conformadas pelo racismo estrutural ¢ institucional. Certas nogées de autonomia, que constituem o debate liberal sobre ¢ justiga, de que falarei adiante, também podem restringir o olhar para a interdependéncia no cotidiano e seu contexto institucional. A autonomia individual, embora seja um valor de referéncia importante na critica 5) democraci as formas de subordinagao — algo que discuti em livro anterior) -, pode servir para afastar do debate politico o fato de que somos dependentes uns dos outros e de que preciso tomar algumas decisées politicas para que as formas inevitaveis de dependéncia nao causem prejuizo a quem se responsabiliza por elas\®), Esse debate é fundamental porque 0 horizonte normativo que aqui mobilizo nao é o da superago de todas as formas de dependéncia, uma vez que isso seria impossivel e, principalmente, esta muito distante da condicao humana. O horizonte que assumo é 0 da definicéo de possibilidades mais igualitarias de provimento de cuidados, nas quais a dignidade das pessoas prevaleca sobre a légica de mercado. Daf a importancia de levar em consideragéo perspectivas que contrastam com as abordagens individualistas, buscando um equilibrio entre garantias individuais, solidariedade social ¢ responsabilidades coletivas ¢ do Estado. As teorias feministas da democracia diferenciam-se de outras correntes tedricas por dar atengao as relagées cotidianas de cuidado — embora nem sempre seja considerada a dimensio da economia politica. Na andlise das formas histéricas de exclusto e marginalizacéo das mulheres nas sociedades ocidentais, essas teorias estabeleceram duas perspectivas fundamentais para a abordagem dos limites da democracia: uma delas é a critica 4 dualidade entre as esferas puiblica ¢ privada, uma vez que nela a vida doméstica foi apresentada como natural ¢ pré-politica, posicionada aquém dos requisitos de justica ¢ de critérios demoeraticos para avaliar as relagdes; a segunda, bastante conectada & primeira, € a critica & autonomizacio da politica em relaco as experiéncias concretas das pessoas ¢ as formas cotidianas de dominagio ¢ de opressio. O destaque dado as relagdes de cuidado como problema para a democracia est ancorado nessas duas criticas fundamentais. Ele seria restrito e mesmo artificial, por outro lado, se nao ultrapassasse o bindrio feminino-masculino e néo incorporasse 0 fato de que as experiéncias de cuidado sao diversas e as hierarquias de género séo produzidas conjuntamente pelo patriarcado, pelo capitalismo e pelo racismo, dimensées interligadas das estruturas de privilégios correntes nas sociedades que aqui tomo como referéncia. Para situar 0 problema do cuidado nos debates sobre democraci apresento inicialmente algumas frentes na abordagem teérica_ da responsabilidade. Trato primeiro da diferenca entre 0 foco nas responsabilidades individuais e a andlise da responsabilizagéo como problema politico. Discuto, brevemente, os ¢ justiga, entidos que a nosao de responsabilidade yem assumindo no pensamento liberal, diferenciando o liberalismo de vertente igualitéria das abordagens ultraliberais. Apesar dessa diferenciagéo, argumento que 0 enquadramento liberal do problema da responsabilidade nao permite avangar em direcdo a reflexées capazes de incorporar as injusticas e as vulnerabilidades associadas ao trabalho doméstico ¢ ao cuidado porque cle opera com a dualidade entre ptiblico e privado e, de modo correspondente, entre independéncia e dependéncia. Em seguida, trato da divisio sexual do trabalho, que discuti no primeiro capitulo, aqui analisada como fundamento de formas diferenciadas ¢ desiguais de responsabiliz sociedade, sobretudo das mais pobres. Isso porque me parece adequado entender 0 cuidado como trabalho — sem que tal afirmagio signifique que se trata de um tipo de trabalho qualquer, Desse modo, pode-se ressaltar que: 1) cuidar exige tempo e energia, retirados do exerci assim como do descanso ¢ do lazer; 2) a grade de valorizagéo (simbélica ¢ material) das ocupasées é determinante na precarizagio do trabalho de quem cuida ¢ na vulnerabilidade de quem precisa de cuidado; ¢ 3) os padroes de organizagao (des)regulacio das relagées de trabalho incidem diretamente sobre as relagées de cuidado, podendo favorecer ou dificultar a tarefa de cio, com implicagées para a participagio das mulheres na io de outros tipos de trabalho, cuidarmos uns/umas dos/as outros/as. Por fim, trata-se de alocacao de responsabilidades, como dito, mas isso nao implica limitar 0 foco aos arranjos privados, entre individuos ou entre casais, embora cles denotem elementos importantes nas relagdes de género. O foco que assumo nos leva, sobretudo, ao problema politico de como se estabelecem as fronteiras entre responsabilidade estatal, responsabilidade coletiva, responsabilidade das familias, responsabilidades nas familias ¢ privatizagao. E, claro, a0 problema de saber quais sao as implicagées dos diferentes desenhos, com as formas de alocacao de responsabilidades que estes pressupdem e ativam na vida das pessoas. Finalizo sugerindo que é preciso avangar na andlise critica comparada de trés configuragées. O que as diferencia ¢ prevaléncia de solugées privatistas, de solugdes convencionalistas e de solugées coletivistas. Enfatizo as vantagens das iiltimas quando se tem como referencia uma_perspectiva igualitaria e emancipatéria, que aponte para a ampliacdo de condigées dignas momentos da vida. para as pessoas em diferent Do individuo responsvel a responsabilizagéo como problema ‘A nogéo de autonomia individual € peca-chave das tradigées liberais de pensamento. Remonta a diferentes concepgoes de liberdade ¢ agéncia moral los individuos, assim como da relacao entre Estado e pluralismo de valores, di dividi da rel; tre Estad lurali de val que se estabeleceram em abordagens como as de Immanuel Kant, no século , ¢ John Stuart Mill, no século XIX! Para além de seu interesse para XVIIL ¢ John Stuart Mill lo XIX'), Para além d uma histéria dos conceitos ¢ do pensamento politico, trata-se de nogées que participaram da construgéo do individuo moderno, como tealidade juridica, politica ¢ sociolégica. A pluralidade de crengas ¢ valores, em sociedades que se tornavam mais complexas, ¢ a igual capacidade dos individuos, como agentes racionais, de refletir sobre sua vida e seus objetivos estabeleceram-se como valores de referéncia, codificados em normas ¢ instituigées. Definiriam, ao mesmo tempo, direitos ¢ exclusées, A “igual liberdade” ¢ as garantias de que os individuos pudessem agir livres de coergées tiveram sexo, cor e classe, assim 8 como a concepgao moderna da democracia!®!. © pensamento liberal contemporaneo apresentaria variagdes significativas na definigé io dos sentidos da autonomia ¢ dos requisitos necessdrios para se garantirem as liberdades individuais. O in campo de pensamento limita a incorporacao de nogées substantivas ou radicais, ividualismo que caracteriza esse de igualdade!”!, Porém, entre ultraliberais, como Milton Friedman, Friederich Hayek ¢ Robert Nozick, ¢ liberais de vertente igualitaria, como John Rawls, ha uma enorme distancia. A centralidade do individuo esté presente em todos esses autores, mas a conexdo entre liberdade, escolhas individuais ¢ responsabilidade se organiza de manciras distintas. As implicagées nao sio de pouca importancia. No pensamento ultraliberal, 0 mérito individual é tomado como pressuposto e valor, participando de uma visto individualista concorrencial que justifica as desigualdades ¢ limita radicalmente abordagens sociais — ¢, em algum grau, coletivas — das desvantagens e da pobreza, No liberalismo de vocagio igualitéria, a critica e a desconstrugéo das nogées de mérito ¢ talento abrem a possibilidade de analisar os contextos em que as escolhas individuais sao feitas e as trajetérias tomam forma. Entend cooperative ¢ depende amplamente de circunstancias sociais ¢ familiares ¢, Nesse caso, que o mérito pressupée a existéncia de um sistema favoraveis, pelas quais o individuo nao pode reivindicar crédito!!! A coincidéncia entre talento ¢ riqueza, por sua vez, remete a “determinada estrutura econémica”, a uma estrutura de mercado que valide a relagéo entre riqueza-talento e a produgao de riqueza'!!!, Por isso, reconhece-se que as trajetérias individuais sio permeadas por fatos arbitrérios e contingentes; a posicao das pessoas, com seus atributos, néo é em si justa ou injusta, e nao hd razées para, portanto, aceité-la como tal. O modo como as stituigdes lidam com esses fatos, por outro lado, pode ser justo ou injusto!!?!, Instituigées sensiveis as escolhas individuais seriam capazes de obstar ou amenizar arbitrariedades e contingéncias e, assim, garantir a igual liberdade dos individuos. Rawls ¢ o chamado “liberalismo igualitério”!'9! vertente reformista da critic: podem ser situados numa A concentragéo de recursos ¢ ao poder no capitalismo, na segunda metade do século XX. As criticas ao Estado de bem- estar social, explicitadas nos cursos que ofereceu nos anos 1980, talver sirvam, décadas depois, menos como um atestado da diferenciacéo entre suas posigdes € os principios do Welfare State do que para evidenciar a dis abordagens reformistas orientadas por valores igualitatios ¢ o neoliberalismo, que se tornaria crescentemente hegeménico. Para Rawls, o Estado de bem-estar social € um regime que permite o “quase monopélio dos meios de [14] ancia entre produgao”!'4), Isso o tornaria incompativel com os princfpios liberais de justica, por ser incapaz de garantir a igual liberdade dos individuos. Ele adere, na discussio, a um regime que manteria a propriedade privada ¢, a0 mesmo tempo, impediria que “uma pequena parte da sociedade controlasse a economia ¢, indiretamente, também a vida politica’. O problema que Rawls apontava no Estado de bem-estar social se tornaria mais agudo. A concentracio de renda e de poder politico tem-se ampliado!'), inviabilizando a democracia e tornando mais precétia a vida da maioria das pessoas. A “crise do cuidado” pode ser pensada dessa perspectiva, como resultado da implementacéo da agenda neoliberal de retracéo do Estado, tanto quanto da conformacao das subjetividades num ambiente em que a concorréncia se estabelece como valor, 4 medida que os principios coletivos ¢ solidérios vio sendo minados. Os pressupostos presentes nas abordagens dos ultraliberais sio, ainda hoje, pontas de langa no projeto neoliberal!'®) e tém. sido atualizados em disputas politicas no Brasil e em diversas partes do mundo. Atuam para restringir a dimensio coletiva da politica ¢, constituindo as subjetividades de acordo com uma exacerbagio da légica concorrencial individualista, limitam as alternativas ao “autoinvestimento” individual ¢ aos niicleos familiares “funcionais”!'7), © que esté em questéo é como e até que ponto o Estado pode regular as relagdes ¢ em que medida a regulacio compromete ou promove a liberdade de escolha, Mas as respostas sao bastante distintas. E entre os ultraliberais que a nogao de autonomia ganha o sentido de “ser capaz de dar conta de si mesmo” € os individuos sio reduzidos 4 condigao de agentes econémicos racionais, responsabilizados por suas escolhas ¢, como tal, submetidos aos resultados dos passos equivocados e “irresponsaveis” que eventualmente deem. Embora exista uma dimenso moral no pensamento ultraliberal, 0 que 0 define é uma perspectiva econémico-politica que recusa pactos coletivos solidarios. Se, na pratica, estamos falando da baixa porosidade do Estado a necessidades interesses populares, a dimensio ideolégica que justifica essa conformag4o tem na nogao de responsabilidade individual um elemento-chave. Definem-se, assim, dinamicas ¢ instituig6es politicas crescentemente imunes a projetos coletivos e avessas & soberania popular'!*!, orientadas por uma légica “econémica” que se apresenta como algo desvinculado das decisées politic das vantagens que implicam. Com a ideia de que 0 Estado é neutro em relagao a individuos e grupos que concorrem entre si e, para tanto, lancam mao de suas melhores capacidades, constitui-se um ambiente institucional que aloca recursos — direta ¢ indiretamente, isto é, por meio de subsidios ¢ de politicas fiscais que garantem os “investimentos” — de um modo que amplia privilégios. se As respostas do liberalismo de vertente igualitéria s4o insuficientes para fazer frente a concentraao de recursos ¢ de poder, assim como a disseminagao da ideologia da concorréncia e do mérito. O que me parece merecer atengao © fato de que a propriedade privada permanece intocada ¢ de que pouco é dito sobre as assimetrias no exercicio da influéncia nas democracias capitalistas''”!, ‘A permanéncia da nogio de responsabilidade pessoal como chave, apesar da critica ao mérito, é relevante. As respostas dessas abordagens ao ultraliberalismo ¢ a0 conservadorismo moral (cada vez mais associados nas disputas politicas) oscilaram do contraste moralista entre responsdveis e irresponsveis, ou (20) independentes ¢ dependentes, a visio paternalista dos “desafortunados”! No debate sobre responsabilizagao ¢ cuidado, a critica & dualidade entre esfera publica e privada também é fundamental. Quando essa dualidade nio & problematizada, as trajetérias dos individuos podem ser apresentadas como distintas ¢ independentes das relagdes na vida privada ¢ das formas cotidianas de interdependéncia. O “sucesso” ou o “fracasso” individual, assim como a configuracéo da vida familia, podem ser apresentados como se fossem resultado de escolhas voluntétias, em vez de desdobramentos de uma série de injungées ¢ do conjunto das alternativas disponiveis de fato. Em modelos tedricos nos quais as esferas puiblica ¢ privada séo autonomizadas, as relagées na vida doméstica cotidiana e a influéncia desmedida dos agentes econdémicos (que produz decisées orientadas pela légica do lucto) podem nao. ser computadas na compreensio do modo como os individuos se tornaram quem séo. O “privado”, romado como campo dissociado do mundo piiblico politico, pode corresponder conceitualmente ao ambito da vida doméstica ¢ familiar, mas também ao das relagées econdmicas de mercado. Hé uma série de problemas na definicao das esferas como se fossem distintas, considerando as questées discutidas neste capitulo e no anterior. O trabalho doméstico remunerado, realizado em unidades domésticas privadas, € uma questio do Ambito privado doméstico? E, por outro lado, uma questéo econémica (e privada, nesse sentido), em vez de doméstico-familiar? E possivel que essa problematica fique contida no ambito “privado”, em qualquer um desses sentidos, se ela configura relagdes de subordinasao e reproduz desigualdades que demonstram os limites da cidadania universal? Entre os ultraliberais, a visio de que 0 mercado regula as relagoes de forma justa quando garante aos individuos a liberdade de escolher — ainda que em condigées bastante desiguais — desconsidera o problema das estruturas de autoridade ¢ de sua conexéo com a dindmica social de actimulo de privilégios. O funcionamento do mercado nao é neutro, premia quem ja tem recursos para exercer influéncia sobre sua regulaco e sobre os termos em que se organiza. Como define Martha McCluskey, o que esté em questéo € “quais habilidades das pi para outras deveriam contar como ganho societario e quais deveriam contar como ganho privado a custa de outras pessoas”!!! .oas para conseguir mais daquilo que clas buscam ao deslocar os custos . Essa dinamica permite que os privilegiados se apresentem como pessoas que construiram sua posi¢éo por mérito proprio, obliterando o fato de que essa posi¢ao se ancora na exploracao do trabalho de outras pessoas ¢ na mobilizacéo de normas ¢ recursos ptblicos em seu favor. O mérito também s6 se define como tal devido & valorizagio social de certas habilidades — © que se d& em processos histéricos ¢ ganha formas institucionais. As abordagens ultraliberais operam no sentido de justificar esas desigualdades ¢ a concentragéo de poder, criando uma dissociagéo entre o problema da liberdade e¢ os circuitos das desigualdades. Entre as abordagens liberais igualitérias, em contrapartida, a conjungéo da dualidade entre o publico e © privado com a nogio de responsabilidade individual estreita 0 Ambito da critica as formas de reprodugio das desigualdades de recursos ¢ de poder. Esse foi ¢ continua sendo um eixo central na critica feminista, internamente ao liberalismo!””!, e de perspectivas socialistas e antirracistas”). As estruturas de autoridade nas relagdes de trabalho ¢ na vida doméstica tém impacto na participagao dos individuos em outros campos. As escolhas deles, por outro lado, nao se definem na esfera privada ow na publica. O papel assumido por eles em uma ¢ outra modula seu acesso a recursos importantes, como tempo e dinheiro, reconhecimento social de suas competéncias e possibilidades de participacgo mais equanimes no debate e nas decisées politicas. Embora discutida sistematicamente hé décadas no feminismo, essa questdo nao foi de fato incorporada em grande parte do debate tedrico sobre justiga. O mesmo ocorre quando se pensa nas conexées entre autonomia, cidadania e democracia. relagées de poder na vida privada ¢ doméstica permite a anélise de estruturas de autoridade que sio ao mesmo tempo dis complementares. Um dos efeitos da configuragio dual dessas esferas € que a universalidade dos dircitos (na esfera piiblica) se acomoda a distinges, divisoes ¢ hierarquias (na esfera privada), sem que isso se configure como um problema para a democracia, Enquanto a cidadania ¢ definida como independéncia, “a dependéncia da sociedade como um todo, da economia ¢ do sistema politico tas € relativamente & familia e ao trabalho das mulheres na familia é ignorada”*), O trabalho que as mulheres realizam na vida cotidiana doméstica, a forma que ele assume ¢ o tempo que the é dedicado estao longe de constituir escolhas voluntérias, apesar de nao existirem impedimentos legais para a busca de outros caminhos e de esse trabalho nao ser resultado de coergées identificdveis como tais. A responsabilizagdo, problema politico, como venho procurando mostrar, implica desvantagens. Quando deixam de ser reconhecidos os aspectos estruturais que constituem posigées ¢ alternativas, as escolhas podem parecer “rracionais” e mesmo “irresponséveis”. A recusa de um emprego, por parte de uma mulher, por nao haver creche para deixar os filhos, ou as faltas seguidas ao trabalho quando os filhos pequenos adoecem — 0 que pode acarretar a perda do emprego ou limitar a ascenséo profissional — sé poderao ser tratadas como “escolhas” se for desconsiderado 0 contexto em que estas se realizam ou se fizer de conta que nao existem criangas pequenas que precisam de cuidado. Como compreender a posicéo desigual das mulheres na esfera doméstica e na publica sem levar em consideragio que elas sio orientadas a assumir determinadas responsabilidades ¢ a desempenhar um conjunto de fungées no cotidiano? Ao mesmo tempo, como explicar os obstdculos a participagéo equanime na vida publica quando se lanca mao de uma moldura tedrica que nao permite compreender adequadamente as conexées entre a posiggo dos individuos na vida doméstica — com as responsabilidades diferenciadas que nela assumem — ¢ os filtros que organizam sua posicio em outras esferas da vida? Os posicionamentos de que trato aqui nao podem ser definidos como escolhas voluntarias individuais nem podem ser entendidos como resultado de coergao. E nesse contexto de restrigio as escolhas, constitufdo pelos padroes estruturais da diviséo sexual do trabalho, que se definem formas desiguais de inclusao na esfera publica. Nao se trata de exclusio, propriamente, porque nao estamos falando do bloqueio a participagao das mulheres por leis nem pelo exercicio da autoridade masculina que impeca ou restrinja a circulacao delas. O que em outros tempos foi cumprido pela franca dominacao dos homens no ambito familiar é hoje realizado pelas ages casadas do capitalismo neoliberal - que restringe a responsabilidade publica por tarefas que sao alocadas para as mulheres -, dos padrées correntes das relacées de trabalho — que implicam menor rendimento para clas © exigéncias incompativeis. com as responsabilidades que Ihes so atribuidas no cotidiano doméstico — e, por fim (mas néo menos importante), do “familismo”, ideologia que transforma nitcleos privados em sujeitos de responsabilidade, reforcando a diviséo convencional das tatefas, 0 exercicio da autoridade paterna e as desigualdades entre as familias. A alocacio das responsabi especificamente, pelo cuidado ¢ institucionalizada, permeia as relagoes cotidianas domésticas, mas néo depende do exercicio aberto da autoridade por parte do pai nem do marido ou do companheiro. idades pelo trabalho ¢, Divisdo sexual do trabalho, responsabilizagao diferenciada e desigualdades No capitulo anterior, discuti a divis4o sexual do trabalho de forma mais detida. Retomo, brevemente, alguns aspectos, antes de me demorar no debate mais especifico sobre o cuidado. Apesar das transformagées na posigao relativa das mulheres no exercicio de trabalho remunerado fora da casa, elas continuam a dedicar muito mais tempo que os homens as tarefas domésticas ¢, pot outro lado, a ter rendimentos bem menores que os deles na esfera ptiblica. Ha conexées entre um ¢ outro desses problemas: a dedicagao as tarefas domésticas se faz ao longo da vida, desde a infaincia. O tempo a elas dedicado se reverte em competéncias necessétias & reproducao da vida, mas pouco valorizadas na dinamica de mercado. {As familias ndo se organizam hoje como s nem mesmo no que diz respeito a participagao das mulheres na renda familiar, Os valores ¢ os sentidos attibuidos ao feminino ¢ ao masculino também nao permaneceram os mesmos. Mas meninas e mulheres continuam a ser as organizavam ha poucas décadas, principais responsiveis pelo trabalho doméstico!”*!, A gratuidade do trabalho desempenhado pelas mulheres no Ambito doméstico foi definida como cerne do patriarcado, exploragio matriz, que torna possiveis outras formas de exploragio. Dai a compreensio de que “na familia, na nossa sociedade, as mulheres séo dominadas para que seu trabalho possa ser explorado ¢ porque seu trabalho é explorado”!?°], Mesmo que se entenda, diferentemente, que a exploracéo das mulheres decorre da estrutura patriarcal do Estado e do mercado de trabalho, constituindo 0 que foi denominado “patriarcado ptiblico”|?’], as posigées distintas de mulheres ¢ homens na vida doméstica continuam sendo uma questdo central por pelo menos duas razées. Primeiro, o trabalho doméstico © 0 de provimento de cuidado, desempenhados gratuitamente pelas mulheres, constituem os circuitos de vulnerabilidade que as mantém em desvantagem nas diferentes dimensdes da vida, tornando-as mais vulnerdveis & violéncia doméstica ¢ impondo obstaculos & participagio no trabalho remunerado ¢ na politica. Em segundo lugar, a causalidade que assim se estabelece nao vai apenas da vida doméstica para outras esferas, uma vez que, como yenho argumentando, a alocacio de institucionalizada e decorre de decisées politicas. Além do trabalho exercido gratuitamente, interessa a esta discussao 0 fato de que o trabalho remunerado no espago doméstico é mal valorizado e, em muitos casos, insuficientemente regulamentado por ser percebido como extenséo do papel “natural” das mulheres na familia*!, Ao mesmo tempo, pode ser porosa a fronteira entre servigos gratuitos prestados por mulheres da familia ¢ servicos remunerados prestados por outras mulheres, porque, no segundo caso, também podem estar presentes lagos familiares e de vizinhanga, sobrecudo nas comunidades de baixa renda*!, Essas relagées de trabalho podem ter um grau maior ou menor de verticalizagéo em termos de clas ce raga, Isto é podem ser marcadas por hierarquias ¢ formas de exploragéo entre grupos bastante desiguais no acesso a recursos materiais e ocupagées — por exemplo, quando mulheres negras e/ou imigrantes sio contratadas por um casal de profissionais brancos ¢ bem remunerados para limpar a casa, lavar roupa, cozinhar, cuidar das criangas — ou entre grupos que ocupam posi¢ao social semelhante ¢ compartilham dificuldades no acesso a trabalho ¢ a cuidado — por exemplo, no caso em que a prima desempregada é contratada para cuidar das criangas, suptindo a falta de creches ou resolvendo a diferenga entre hordrio da creche ¢ a jornada da mae, que trabalha como balconista. ‘A alocagao das tarefas tem o género como um cixo. Ancora-se na naturalizagéo de habilidades ¢ pertencimentos, definidos de acordo com uma visio bindria, néo apenas simplificada, mas também iluséria, da conexio entre sexo biolgico e comportamentos. A associacéo entre mulher ¢ domesticidade constrdi-se nessa chave. Os atranjos tém-se modificado historicamente ¢ nunca foram, de fato, homogéneos, se consideradas as relagées raciais ¢ de classe e as desigualdades entre as familias. Hoje, prevalece um modelo em que “a tendéncia predominante € a maioria dos homens investir seu tempo prioritariamente no mercado de trabalho enquanto a maioria das mulheres se divide entre o trabalho remunerado e os cuidados da familia’), Lembro que as formas de regulacao do trabalho interferem no tempo dedicado ao trabalho remunerado, para além dos investimentos voluntétios das pessoas. Quanto maiores ou mais “flexiveis” as jornadas (“flexibilidade” tem sido um eufemismo para a menor protecao social as trabalhadoras ¢ aos trabalhadores), quanto mais actimulo de ocupagées for necessétio para que a renda seja suficiente, menores poderdo ser as garantias ¢ a gestao auténoma do tempo. Mas a conexdo entre o feminino e a domesticidade tem desdobramentos muito distintos entre as mulheres, como ja foi dito. Entre as que tém filhos pequenos, de até 6 anos de idade, a participagio no mercado de trabalho ampliou-se do inicio dos anos 1990 aos anos 2000, mas de forma concentrada: nos domicilios pertencentes ao estrato dos 40% mais ricos, aumentou cerca de vinte pontos percentuais entre 1993 ¢ 2009, crescendo menos ¢ até diminuindo entre os estratos mais pobres da populagao. E foi também entre as mulheres pertencentes aos estratos mais ricos que a jornada semanal de trabalho mais se ampliow3!!, H4 duas perspectivas para a interpretacao desses dados. Numa delas, é chave considerar os recursos de que as mulheres com maior renda disp6em para o cuidado dos filhos e da casa. Em outra, tem maior peso o trabalho doméstico realizado pelas mais pobres e os problemas que estas enfrentam para atender aos cuidados de sua propria casa e de seus filhos. Existe uma correlagéo entre o nivel de ocupacéo®) das mulheres ¢ a frequéncia dos filhos pequenos a creches: esse nivel é de 65,4% para mulheres com filhos de 0 a3 anos que frequentam creche; de 40,3% se apenas algum filho frequenta a creche; ¢ de 41,2% para aquelas cujos filhos nao frequentam creche!*3), stabelece-se um circuito de precatizagao ¢ empobrecimento quando faltam equipamentos piiblicos de cuidado'*!, Além disso, é preciso acrescentar a essa dificil equagdo a diminuigdo das taxas de natalidade — ponto a que retornarei no préximo capitulo —, conjugada 4 maior longevidade ¢ as necessidades de cuidado por parte das pessoas idosas. Nos domicilios mais ricos no Brasil, mas também na Europa e em outros paises da América, a divisio sexual do trabalho esta presente, porém as mulheres tém 0 apoio do trabalho de cuidadoras ¢ empregadas domésticas, trabalho mal remunerado e caracterizado por relagdes de exploracao ainda mais acentuadas do que as vigentes nas atividades vistas como produtivas ¢ tipicamente desempenhadas pelos homens dos mesmos estratos sociais, fora de casal®°l, Essa divisio do trabalho doméstico ¢ de cuidado entre as mulheres esta na base de perspectivas distintas sobre 0 universo da familia, do cuidado e do trabalho doméstico, assim como sobre as alternativas de fato existentes para as mulheres fora de casa. Atuando no seio das familias de classe média, mas como outsiders, trabalhadoras negras ¢ imigrantes tm avaliado as formas de exploragéo do trabalho das mulheres ¢ pensado os lacos estabelecidos no provimento de cuidado, numa realidade em que a pobreza dos seus espagos de origem, as desigualdades regionais ¢ o racismo desempenham papel fundamental), Cuidando dos filhos de outras mulheres, permitiram que estas se “emancipassem” e tivessem maior autonomia e reconhecimento profissional. Enguanto isso, para elas, a rotina de trabalho pode ter dificultado 0 cultivo de laos amorosos e, quando mies, enfrentaram o dilema da criagio dos prdprios filhos em conjunto com o exercicio do trabalho remunerado, em condigées de precariedade. As atividades realizadas em prol de outras pessoas assumem padroes condicionados pelas hierarquias de raca e de classe. E importante, também, pensarmos na variedade dessas atividades. Embora existam diferengas importantes entre as que sio exercidas no cotidiano da vida doméstica — como cozinhar, lavar roupa, limpar a casa, dar banho nas criangas, em pessoas com deficigncias ou idosos, auxiliar em atividades que essas mesmas pessoas ndo poderiam executar de maneira segura sem acompanhamento, como passcios em Areas ptiblicas, ou desempenhar 0 que algumas autoras definem como trabalho emocional'*’! —, nao se pode deixar de considerar que todas elas implicam envolvimento, tempo ¢ energia de quem as realiza. Em todos os casos, alguma atividade esté sendo realizada em prol de outra pessoa e para sua vantagem, e, ainda que isso tenha significados muito distintos, a depender de a vantagem ser de um homem que usufrua desse trabalho sem nunca o realizar (alimenta-se, tem as roupas lavadas casa limpa) ou de criangas, idosos ou pessoas com deficiéncia que se beneficiem de tarefas que nao seriam capazes de realizar, o fato é que alguém despende tempo e energia para dispensar um cuidado — no mais das vezes, uma mulher, de acordo com os dados mencionados. As mulheres nao esto igualmente distribuidas entre quem estd na posigao de provedor de cuidado, trabalhando em beneficio de outros, e quem esté na posicao de beneficidrio do cuidado provido por outras pessoas!*), As mulheres negras, em especial, estéo concentradas em atividades vistas como extenséo das atividades domésticas ‘o remuneradas e, como tais, desvalorizadas e menos formalizadas. Em 2013, no Brasil, 18,6% das mulheres negras ¢ 10,6% das mulheres brancas ocupavam postos de trabalho doméstico remunerado; no mesmo periodo, 1% dos homens negros € 0,7% dos brancos estavam nessa posigao'??!, Desde 2009, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia ¢ Estatistica (IBGE) mostrava uma queda lenta, mas ininterrupta, do ntimero de mulheres empregadas no trabalho doméstico remunerado, algo que se reverteu em 2015, quando ultrapassou novamente o de 6 milhées de mulheres. A redugéo no niimero de trabalhadoras domésticas pode ser interpretada como expresso de mudancas relacionadas & queda do desemprego, 4 maior escolarizagéo ¢ a redugéo da pobreza na década de 2000 no Brasill!, aproximando o pais das circunsténcias nas quais 0 trabalho doméstico remunerado diminuiu na Europa e nos Estados Unidos ao longo do século XX. Hoje, no entanto, a reverséo dessa tendéncia, caso se confirme, estaria em sintonia com 0 que ocorre nas 0 remunerado vem es mais ricas do globo, nas quais o trabalho domés aumentando em decorréncia da situagio de precariedade ¢ baixa remuneragio de imigrantes néo europeus ¢ provenientes das regides da Europa mais afetadas pelo desemprego!*"), A marginalizacio e a inferiorizagio das ocupagées tipicamente “femininas” tém, assim, raca e classe ¢ se inserem na geopolitica global. © trabalho doméstico remunerado, cujos padrées decorrem das desigualdades conjugadas de género, classe e raga, pode ser definido como um problema em si para a democracia: 0 tipo de relagio que assim se estabelece rompe com a igualdade necesséria 4 democracia, uma vez que cria subordinados, mas também patrées (masters). Marca quem 0 exerce, ao mesmo tempo que reforga a identidade ¢ 0 status social diferenciado de quem empregal?], Nas condigées em que € realizado, 0 trabalho doméstico remunerado corresponde a uma radicalizagéo das hierarquias e das formas de opress4o presentes de maneira mais ampla no mundo do trabalho. Por outro lado, nesta quadra inicial do século XXI em que s6 no Brasil hé cerca de 6 milhées de mulheres nos servigos domésticos remunerados, 0 valor desse trabalho ¢ as garantias para as trabalhadoras podem ser reduzidos pelo fato de essa atividade ser percebida como uma espécie de resquicio da servilidade. A visibilidade do trabalho doméstico € necesséria tanto pela importancia que tem quanto porque dela depende o reconhecimento de direitos e garantias do contingente de mulheres que o realizam, aqui e em outras partes do mundo!“), No Brasil, os resultados das lutas das trabalhadoras domésticas por direitos‘! imprimiram novas nuances nessas relagdes, que permanecem, no entanto, marcadas pelos padrées histéricos das desigualdades raciais ¢ regionais no pais. Da perspectiva de quem contrata uma trabalhadora doméstica ou uma cuidadora — algo que nao ocorre apenas nos domicilios de alta renda —, esse trabalho também tem enorme importincia, ainda que seja buscado para resolver necessidades que poderiam ser atendidas de outras formas, em modelos menos privatizados ¢ em situacées nas quais as jornadas de trabalho fossem reguladas de tal modo que se tornassem mais compativeis com as necessidades concretas da vida cotidiana. A centralidade do trabalho doméstico remunerado e do cuidado profissional esté, ao menos parcialmente, relacionada ao fato de que a oferta de servigos ptiblicos é insuficiente (creches e escolas em perfodo integral, por exemplo) e ao fato de que as alternativas coleti mercantilizagéo dessas atividades sio_ praticamente inexistentes (cozinhas coletivas ¢ rodizio no cuidado com as criangas € outros individuos que necessitem de atendimento cotidiano, por exemplo). Assim, enquanto “o acesso de mulheres de classe média alta ao servigo realizado pelas trabalhadoras domésticas é, provavelmente, um dos fatores determinantes do crescente afluxo ¢ da permanéncia de mulheres de classe média e alta em empregos com carreira, melhor remuneragao ¢ prestigio social”, a delegagio do trabalho doméstico ¢ de cuidado “vem promovendo a polarizagio do emprego feminino, cuja base é ocupada pelas trabalhadoras domésticas”!*9), © acesso desigual das mulheres a ocupacées, renda e aposentadoria é caracteristico desse quadro € nos peri © pensar que a vulnerabilidade, quando predominam modelos privatizados de cuidado, apresenta-se na convergéncia de género, classe ¢ raga. Em 2013, as mulheres brasileiras receberam em média 65% do saldtio dos homens no mercado informal, enquanto no mercado (461 Essa é uma das raz6es pelas quais as formal essa diferenca foi de 25% mulheres sio, nas regras correntes até 2017, maioria entre as pessoas que se aposentam por idade (em vez de por tempo de contribuigao) ¢ seu tempo total de contribuigéo é menor do que o dos homens. Neste ponto, é importante ressaltar que a fronteira entre trabalho formal ¢ informal tem caréter racial no Brasil. Quase metade da populagéo negra exercia trabalho informal em 2013, contra 34,7% da populagao branca, As mulheres negras so 0 segmento da populagao com menor acesso ao trabalho formal. Sio também a faixa da populagéo com menor renda média. As familias sob sua chefia séo aquelas que tém menor renda média, se comparadas a familias chefiadas por homens brancos, mulheres brancas ou homens negros. Os domicilios chefiados por mulheres brancas tém renda domiciliar per capita 47,3% maior que os chefiados por mulheres negras ¢ 40% maior que os chefiados por homens negros!“7!, As mulheres negras so, assim, também as que tém menores chances de contratar servigos privados para compensar as demandas da vida doméstica, 0 que torna suas jornadas de trabalho nao apenas menos protegidas e menos remuneradas, mas também mais longas. A posisao de maior vulnerabilidade das mulheres no casamento, que nao se esgota nos aspectos socioeconémicos, mas guarda relacéo estreita com estes, também pode ser associada a0 quadro mais amplo dessas desigualdades. A decisio de sair de um casamento pouco satisfatdrio tem custos diferenciados para mulheres ¢ homens. E algo que se agudiza nos casos de violéncia doméstica — 0 que colabora para explicar por que muitas vezes as mulheres voltam para casa e para os relacionamentos, mesmo apés terem sido agredidas ¢ violentadas. Dados os arranjos correntes, as chances de alcancarem algum tipo de independéncia financeira sao reduzidas por sua posigéo de responsaveis pelo trabalho doméstico e pelos cuidados cotidianos dispendidos com quem esta na posigao de dependence incontorndvel, como criancas, pessoas com necessidades especiais ¢ idosos. Dessa perspectiva, acumulam-se desvantagens no cotidiano de um desvalorizado. um quadro que se torna mais complexo quando se levam em consideragéo a dependéncia das criangas em relagéo aos adultos ¢ os valores associados & maternidade, de que falarei no préximo capitulo. Apesar de todos esses aspectos, 0 papel reservado as mulheres na divisio convencional do trabalho nao é visto apenas negativamente pelo feminismo. O debate sobre “ética do cuidado” apoia-se no entendimento de que a necessidade de cuidado é inescapavel ¢ de que as relagdes assim estabelecidas envolvem valores e emogées que poderiam set apreendidos de outras éticas, ainda que seja necessdtio compreender os efeitos negatives dos arranjos sociais correntes para as pessoas que assumem a responsabilidade de cuidar de outras. sistema que pune quem assume um trabalho necessdtio, mas Cuidado e dependéncia © debate feminista sobre cuidado questiona a despolitizacao das relagées na esfera privada. E algo que estd presente na ideia de que “o que é pessoal é politico”. Mas essa ideia tem sintetizado, sobretudo, a critica as relagées de poder e de autoridade no ambito doméstico familiar, seu cardter institucionalizado, a violéncia a explorag4o que fazem parte do cotidiano ¢ seus desdobramentos para as mulheres em outras esferas. As abordagens do cuidado, entretanto, nao se restringem a uma critica a alocagao desigual das responsabilidades e do poder ¢ as desvantagens de estar na posigéo de quem cuida em sociedades nas quais os vinculos sao desvalorizados e predomina a légica econémica concorrencial. Elas se voltam também para a dimensio éti politica das relagées de cuidado e para seu potencial impacto na esfera piiblica ¢ na democracia, Por 70, o debate sobre a “ética do cuidado” se estabelece a partir do questionamento de nocées abstratas de justiga’'*®! e da ideia de que o universo das relages cotidianas e do cuidado corresponderia a “meras pes , Define-se, assim, uma critica & despolitizagio das relagdes de cuidado ¢ dos afetos que estas engendram e, sobretudo, & sua consequéncia: a excluséo, no debate publico, de valores, linguagens e preocupagées que se estabelecem a partir das posicdes das mulheres nas relagées de cuidado. Historicamente, a institucionalizacéo do poder masculino correspondeu a fronteiras na definigdo dos cédigos publics “comuns”, reduzindo o cardter social dos ambitos nos quais 0 poder informal das mulheres foi exercido: 0 doméstico e o sagrado. Trata-se, portanto, de um processo de privatizacéo do mundo doméstico, néo da incorporacdo de fronteiras preexistentes. O poder masculine — © as concepgées de justica que se definem na sua institucionalizacao — corresponderiam, assim, a um tipo de “progresso” no qual as mulheres representam “o polo negativo, juntamente com a natureza, a expressées de valores pessoais e preocupacées de caréter moral” emogio ¢ a paixio”>0l, algo que ganhou configuragées especificas na América Latina, considerando os lagos sociais tradicionais, a diversidade étnica ¢ 0 impacto do colonialismo!!!, O pensamento ¢ as instituigdes modernas, nas formas que assumem nesse complexo heterogéneo da realidade capitalista colonial patriarcal, simulariam um mundo no qual “os individuos sio adultos antes de terem nascido; os garotos séo homens antes de terem sido criangas; um mundo no qual nem 17152] mde, nem irma, nem esposa existem”!?!, Nessa dinamica, o apagamento da “voz especifica” das mulheres teria condicionado seu acesso A cidadania, E também nesse conformado pelo “discurso. simbélico dominante”™ processo que o “mundo das coisas” prevaleceu sobre o “mundo dos vinculos”!*4l, esgarcando os lagos ¢ tornando mais precdria a vida das pessoas ¢ meio em que estao situadas. Na obra de Carol Gilligan, essa perspectiva focada nas relagdes € nas responsabilidades para com outras pessoas seria definida como “a linguagem do discurso moral das mulheres”°!, Dois universos morais distintos sio analisados em seus fundamentos ético: 6 do cuidado ¢ 0 da justica. Na moralidade centrada no cuidado, as subjetividades seriam conformadas em processos nos quais os relacionamentos ¢ a responsabilidade pelas outras pessoas desempenhariam papel central, enquanto na moralidade pautada pela justica, o desenvolvimento moral corresponderia a prevaléncia de regras impessoais sobre reivindicagées de validade identificadas como parciais, em situagoes concretas ¢ conflitivas. Foi essa distingdo entre “ética da justica e dos direitos ¢ éica do cuidado ¢ da responsabilidade” que levou a “novas abordagens do desenvolvimento moral e das competéncias cognitivas das mulheres”41 , rompendo com o entendimento de que tais competéncias seriam falhas ou insuficientes ¢ pondo em xeque as referencias “universais” que levavam a essa avaliagao!>”!, A partir do didlogo com os estudos da socidloga ¢ psicanalista Nancy Chodorow*!, ganharam importancia nesse debate os padrées de socializacio das criangas. Para a autora, em familias nucleares e em artanjos heteronormativos, os sentidos do feminino ¢ do masculino se deveriam A proximidade das mulheres como cuidadoras ¢, por outro lado, 4 maior distancia dos homens no processo de criagio dos filhos. Relagdes, empatia, preocupagio com as outras pessoas ¢ afetos manifestos nas relages maternais ¢ de cuidado foram, assim, contrapostos, a distancia, separacdo ¢ abstracao. se novo eixo de dualidades, que inverteria os sinais na valorizagéo de universos comportamentos masculinos ¢ femininos, esta na base do chamado “pensamento maternal”, associado a autoras como Jean Betkhe Elshtain, ja citada, Sarah Ruddick, Virginia Held ¢, injustamente segundo meu entendimento, & prépria Carol Gilligan. O “maternalismo” continua ativo na producéo das identidades politicas, como esteredtipo ¢ como recurso das proprias mulheres, ¢ permeia nao s6 0 conservadorismo moral, mas também algumas vertentes do pensamento progressista nas quais 0 retorno a uma suposta “natureza” passa pela revalorizagao do “maternal” nas mulheres'™! que serd discutido mais atentamente no préximo capitulo, Nao no entanto, com o debate mais amplo sobre “ética do cuidado” na contemporaneidade © est distante, como tenho mostrado, das posigdes assumidas neste livro. , algo ¢ confunde, Embora Gilligan seja clara na definicdo da sua posi¢ao, esclarecendo que a “yor diferenciada” das mulheres nao emerge da condicéo feminina, mas de experiéncias decorrentes de sua posigéo social, essa abordagem tem permitido aproximagées entre cuidado ¢ feminilidade. Joan Tronto, de cuja posigio me aproximo, estabelece um didlogo critico com a anélise feita por Gilligan amplia a discusséo ao situar 0 cuidado como questao priori democracia. Reconhecendo a contribuicio de Gilligan para a anélise da excluséo das vozes ¢ das experiéncias das mulheres, assinala que cla teria favorecido o entendimento de que existe uma correspondéncia entre diferengas de género ¢ diferentes perspectivas morais — ¢, assim, entre 0 cuidado ¢ a ria para a feminilidade!®!, Os riscos, tais como enunciados por Tronto, estariam na marcagio negativa do cuidado, numa sociedade em que o masculino corresponde & normalidade, e 0 feminino carrega o sentido da inferioridade. Estariam, ainda, numa armadilha, qual seja, a de que a defesa da centralidade do cuidado, ou de uma “ética do cuidado”, implicaria a ideia de que existe uma moralidade feminina, O argumento de Tronto nos leva de volta & ambivaléncia antes mencionada: a valorizago do cuidado nao pode suspender a critica ao fato de que nas sociedades modernas sua definicéo como ética diferenciada deriva das condigées de subordinagao das mulheres"), As diferencas remetem ao papel desempenhado, nao a algum clemento essencial nas identidades!®?. Quem assume a responsabilidade de cuidar, com todos os prazeres ¢ os fardos que isso implica, tera uma perspectiva diferente do que séo as relacées cotidianas e do que importa. Para os argumentos que sustento aqui, o mais importante é que a responsabilizagao diferenciada produz custos diferentes para mulheres e homens ¢, sobretudo, para as mulheres negras situadas nas camadas mais pobres da populacdo, constituindo circuitos de vulnerabilidade ¢ alimentando as desigualdades existentes. Entre o artigo antes mencionado, publicado em 1987, e seu livro publicado mais recentemente, em 2013, Joan Tronto avanga na construgdo de uma tcoria democrética do cuidado a0 contestar mais diretamente as assimetrias ¢ as desigualdades sociais que a configuracéo (de género, classe ¢ raga) das relagdes de cuidado assume nas sociedades contemporaneas ¢ os limites que a mercantilizago impée. Uma vez que as relagées de cuidado ganham centralidade, torna-se dificil operar com a dualidade dependéncia/independéncia, como se ela expressasse 0 resultado de escolhas menos ou mais responsaveis ou, ainda, como uma espécie de menoridade (bioldgica ou moral) que precisa ser superada. Dependéncia incontornavel e dependéncia socialmente produzida estéo, em muitos aspectos, entrelagadas nas sociedades em que € reduzida a responsabilidade coletiva pelo cuidado. O problema politico de que procuro tratar aqui define-se nas conexdes entre a “dependéncia desenvolvimental” — que se apresenta na infancia, nos processos de adoecimento, entre as pessoas que tém necessidades especiais ¢ na velhice — ¢ a “dependéncia derivativa” — que afeta as pessoas que estio na posicdo de cuidadoras numa sociedade em que o cuidado com os dependentes é desvalorizadol®), E 0 que ocorre com as pessoas — mulheres, mas também dade pelo cuidado dos inevitavelmente dependentes. Nesse caso, o trabalho necessario, desempenhado de forma gratuita ¢ porque assumem responsabilidades para com pessoas préximas, tem como desdobramento a vulnerabilidade social, por acarretar dificuldades para o exercicio do trabalho remunerado. Ao mesmo tempo, num universo largamente privatizado, a contratagéo de cuidadoras € cuidadores est4 disponivel para quem tem recursos ¢, portanto, poderd manter homens ~ quando assumem, ou sao levadas a assumir, a responsabil sua posigéo de trabalhadora ou trabalhador “funcional” justamente por ter condigées de atribuir a outras pessoas o trabalho de cuidar. Entre as mulheres cuja vida é marcada pela dedicagio ao cuidado de filhos pequenos e de filhos ou parentes com necessidades especiais, por exemplo, pode haver bem mais do que “escolhas” em jogo. Trata-se de decisées nas quais aspectos materiais simbélicos, alocagéo de responsabilidades ¢ recursos no Ambito estatal, assim como cédigos morais de género, se entrelacam produzindo as trajetérias. ‘A presungio de que “as pessoas que sio dependentes derivativas (cuidadoras ou maes) assumiram voluntariamente essa posigao”, isto é, de que “consentiram” em priorizar 0 cuidado, precisaria ser complementada pela explicagio das razées pelas quais “na nossa sociedade se espera apenas de algumas pessoas que assumam os sacrificios que cuidar dos outros implica”), Os resultados da privatizaggo do cuidado ultrapassam a vida individual dos dependentes ¢ dos que assumiram a responsabilidade de cuidar deles, sendo parte importante dos mecanismos de reprodugio da pobreza e das desigualdades nas sociedades contemporaneas. Para superar essa situagdo, seria necessitio redefinir a propria nogéo de responsabilidade, expondo os niveis individual ¢ coletivo das obrigagées sociais!°!, A reprodugo social depende do cuidado com os vulneraveis. Dependéncia bioldgica e vulnerabilidade séo fatos inelutdveis da condigio humana, 0 que leva a defini-los como objeto de Pteocupagio € obrigac’o coletiva e sociall®‘l, “A justiga demanda que a sociedade reconhega que o trabalho de cuidar de outros reverte em beneficios para a sociedade em sentido mais amplo”, assim como a defesa da igualdade demanda a valorizacio desse trabalho, que precisa ser “compensado ¢ acomodado pela sociedade ¢ por suas instituigdes”!°7!, A nogao de “ética do cuidado” define-se, assim, na contraméo de um cas mundo fundado na abstracao de individuos racionais € isolados. As crit claboradas nesse_universo tedrico, filoséfico ¢ politico convergem para a valorizagao das experiéncias das mulheres, engendradas por sua posicéo nas telagdes de cuidado. Mas as andlises nado incluem, necessariamente, uma orientagao sobre como seriam superados os obstaculos estruturais relacionados ao papel das mulheres na vida doméstica, de que venho falando. Ainda que a importancia do cuidado com as criangas seja inquestiondvel, a experiéncia das mulheres como mées implica desvantagens e pode ser significada, por elas mesmas, nas malhas de ideais maternalistas e de domesticidade. Ao mesmo tempo, o horizonte feminista liberal de libertagao das mulheres do trabalho doméstico, sem que ocorram transformagées profundas nas relacées sociais de trabalho e cuidado, é uma idealizagao baseada na vivéncia das poucas mulheres que podem ter acesso a carreiras profissionais com grau relativamente ampliado de autonomia e remuneracao!®*l, enquanto outras mulheres continuam desempenhando esse trabalho em condigi O esforgo para realizar, simultaneamente, a critica a opressio das mulheres es precdrias. na esfera doméstica e a critica & desvalorizagao do trabalho doméstico cotidiano das mulheres, que seria “ao menos téo fundamentalmente construtor do mundo ¢ produtor de sentido!®! quanto 0 trabalho tipicamente masculino”!”°l , esbarra numa série de problemas. No mundo em que vivemos, a cidadania e 0 reconhecimento social permanecem, em muitos sentidos, associados ao trabalho remunerado, que é também um dos canais para a construcéo das redes que dao acesso a alternativas ¢ & politica. Outro problema € que existe, em abordagens voltadas para a experiéncia das mulheres na vida doméstica familiar, 0 risco de reduzi-la a vida possivel para algumas mulheres. A posigéo das mulheres que nao séo macs é afinal, ainda menos considerada no debate piiblico quando se investe na ideia de que é “como maes” que as mulheres trariam_ perspectivas alternativas as hegeménicas — masculinas, capitalistas, concorrenciais. Por fim — mas sem, é claro, esgotar os problemas que se apresentam —, os desafios enfrentados pelas mulheres negras, quando macs, podem ser completamente distintos dos que se apresentam as mulheres brancas. Patricia Hill Collins destaca a transmissio de valores na relagio entre macs ¢ filhas, 0 que pode estabelecer correntes de compartilhamento de (71) . Mostra, ao mesmo experigncias e de resisténcia em sociedades racistas tempo, que as condigdes para o cuidado se estabelecem em redes comunit distintas daquelas que operam nas familias nucleares biparentais e sio atravessadas por esteredtipos diferentes daqueles que codificam a maternidade entre as mulheres brancas. rias Por isso, opto por focalizar 0 problema da privatizagio do cuidado ¢ da vida familiar numa critica que nao resgata ideais comunitarios nem atribui superioridade ética 4 posigao de mulheres, como mies, nas relagdes de cuidado. A posicao hierérquica da dona de casa ¢ 0 trabalho doméstico desvalorizado sio faces de uma tinica moeda, mesmo quando as mulheres trabalham dentro ¢ fora de casa. Entre as camadas mais pobres da populacéo, a permanéncia da mulher na posicéo de “dona de casa” pode ser um efeito casado das convengées de género ¢ do desemprego!””!, nao uma escolha que individualiza e dé sentido avida. A abordagem do trabalho desempenhado pelas mulheres também precisaria ser deslocada de pressupostos acerca do funcionamento das familias, para que no encampe visdes excludentes. No debate politico, o cuidado pode ganhar sentido numa gramética “familista”, conservadora, diferente daquela que se estabelece no campo feminista, em que a preocupagio com as pessoas que necessitam de cuidado nao reduz o horizonte de uma sociedade mais igualitaria = numa perspectiva de género, mas também de classe ¢ de raga e, portanto, intra ¢ interfamiliar. Desenha-se, nesse sentido, uma “linha ténue, mas muito importante, entre a demanda feminista de que os homens se responsabilizem pelos filhos ¢ a demanda antifeminista de que os homens tenham a obrigacéo de ser os provedores da familia’”*!, que viria associada ao entendimento de que a pobreza e a vulnerabilidade de mulheres e criangas derivariam das separaces de casais e das mudangas nas relacées familiares, indicando como remédio, portanto, a afirmacio da familia nuclear convencional!”“), Uma teoria democrética que seja capaz de lidar com essas desigualdades, em vez de simplesmente deixé-las de lado nas andlises da democracia ¢ da justiga, precisaré dar conta das ambivaléncias no reconhecimento do valor do trabalho realizado pelas mulheres no cotidiano da vida doméstica, da diversidade de arranjos familiares ¢ das desigualdades entre as mulheres. Como as necessidades de cuidado sio atendidas, quem se responsabiliza pelo cuidado € que formas ele assume séo questées fundamentais. Dependendo da resposta, poderemos nos afastar ou nos aproximar de um ideal democritico no qual a igualdade seja uma referencia ¢ as diferengas nao sejam mobilizadas para justificar a opressao contra determinados grupos. Parte do trabalho realizado no cotidiano da vida doméstica, que tem ficado em larga medida sob a responsabilidade das mulheres (sendo ele remunerado ‘ou nao), consiste em atividades de atendimento a necessidades incontornaveis de cuidado. E 0 que ocorre sobretudo quando se pensa no cuidado dispensado a criangas, idosos, portadores de deficigncias ¢ doengas crénicas, assim como as mais diversas pessoas quando adoecem. Nao se trata, assim, de algo que possa set superado. Por isso, negat 0 cuidado como parte da vida nao configura apenas uma ilusio, é algo que tem efeitos perniciosos porque reduz nossa capacidade de encontrar solugées para a realidade miiltipla e diferenciada das pessoas que precisam de cuidado ¢ para a situagéo especifica de quem trabalha para atender a essas necessidades. O desafio se amplia porque respostas pontuais & realidade de quem precisa de cuidado, como as dadas pela sua mercantilizagéo, poderio excluir um grande contingente de pessoas e, por ° outro lado, nao seréo, necessariamente, capazes de garantir que quem exer trabalho de cuidar nao se tornard socialmente mais vulneravel pelo fato de estar nessa posigéo. “Somos todos provedores e beneficidrios de care [sic] e, todos, dependentes’'’5!, mas, dada a configuragio atual, alguns tém maiores chances de receber cuidado, enquanto outros se encontram numa condicao negativamente marcada pelo exercicio do cuidado, tanto em suas formas nao remuneradas quanto nas remuneradas. Quando se rompe com a invisibilidade do complexo de relagdes de que estamos tratando ao falarmos de cuidado — invisibilidade que é caracteristica da maior parte do debate sobre democracia -, a dependéncia aparece como realidade da vida cotidiana. Mais uma vez, temos aqui um exemplo de como o debate sobre democracia pode se afastar do cotidiano das pessoas: se, nele, as demandas por cuidado podem ser desconsideradas como questées de primeira ordem, 0 mesmo nao se passa no cotidiano da vida. Em sua ampla maioria, “as teorias politicas democrdticas pressupdem a existéncia de atores auténomos como ponto de partida para a democracia’\”*|, 0 que impede que se levem em consideracéo a dependéncia ¢ 0 trabalho realizado cotidianamente para lidar com ela, Com isso, fica reduzida nossa capacidade de encontrar solucdes satisfatérias para equilibrar autonomia e dependéncia. Essa alocagio desigual néo é aleatéria, mas atende a padres que tém correspondéncia com as hierarquias de género, raga e classe social. Entre os que cuidam, ha mais mulheres, mais negras/os ¢ mais individuos das camadas mais pobres da populacao. Entre os que recebem cuidado mais intensivo (maior tempo e atengio) e mais qualificado (em termos da capacitagéo de quem prové os cuidados ¢ dos recursos materiais disponiveis para seu exercicio) estéo mais homens, mais brancas/os ¢ mais individuos das camadas mais ricas da populacéo. A invisibilizagao das tarefas alocadas est, assim, diretamente relacionada a quem as exerce. Helena Hirata aponta para dois caminhos diferentes na compreensio da desvalorizagéo social do trabalho de provimento de cuidado!””), Um deles, predominante no feminismo, é que, por ser extensio do trabalho doméstico néo remunerado realizado por mulheres, ele seria menos nesse caso, a causalidade é estabelecida de tal forma que se ressalta quem realiza 0 trabalho. No segundo, que ela atribui a Patricia valorizado socialment: Paperman'”*!, a desvalorizacao existiria em fungao da vulnerabilidade e do baixo reconhecimento social de quem precisa de cuidado, sobretudo idosos ¢ pessoas com deficiéncias: a causalidade, portanto, é estabelecida pelo destaque a quem recebe 0 cuidado. Aqui me associo ao primeiro, sem excluir a possibilidade de que o segundo desempenhe algum papel na desvalorizagio desse trabalho. Entendo que é na convergéncia entre convengoes de género & ampliagio da mercantilizacao das relacdes que se produzem a desvalorizaao ¢ a precarizacéo do trabalho remunerado doméstico e de cuidado. Por serem tais tarefas assumidas por quem esté em condi desvantajosa, é m problemas, sobretudo como problemas politicos. Esse raciocinio pode ser 10 socialmente reduzida a probabilidade de que elas sejam defi las como, estendido produsao do conhecimento. E possivel aventar a hipétese de que quem participa da construgiéo tedrico-filosdfica dos problemas da democracia esté, provavelmente, situado entre os que recebem cuidado com mais frequéncia ¢ intensidade do que entre os que exercem a fungao de cuidadores. Nos dois casos, no ambito da pratica politica ¢ no do pensamento politico, essa situagéo converge para a prevaléncia de determinadas agendas, concepcées ¢ pressupostos. Parece-me ser esse 0 contexto em que se definem os esteredtipos da independéncia dos homens como cidadaos ¢ trabalhadores ¢ da dependéncia das mulheres quando estio na posigao de cuidadoras de outras pessoas!”"!. Os ptimeiros — homens como cidadios ¢ trabalhadores - sio dependentes do trabalho de outras pessoas, em geral mulheres. Sem alguém que cozinhasse, mantivesse limpas suas roupas ¢, quando ha filhos, cuidasse das criangas (ou estivesse disponivel para levé-las ¢ pegé-las na creche ou na escola) — para clencar apenas tarefas regulares bastante comuns —, cles veriam afetada sua rotina de trabalho ¢ reduzido seu tempo para recompor as energias do trabalho. Por outro lado, quando as mulheres se tornam dependentes, quer de programas sociais, quer de homens que lhes sejam prdximos, isso ocorre porque esto sendo responsabilizadas por tarefas cotidianas que vio ao encontro da dependéncia de outras pessoas. Mesmo essa dependéncia dos que sio tomados como independentes néo é algo que possa ser simplesmente eliminado. O problema esté no fato de que as tarefas que Ihes garantem a autonomia sio realizadas por pessoas que, ao fazé-lo, perdem a autonomia, a0 mesmo tempo que seu trabalho é invisibilizado ¢ alocado de maneira desigual. O pensamento conservador defende o aperfeigoamento da familia ¢ mais responsabilidade dos homens em nome da protecéo as mulheres. O liberalismo reformista, inclusive em abordagens feministas, defende que a mulher vulnerabilizada pela dependéncia receba assisténcia financeira por ter justificadamente falhado no teste da independéncia. As abordagens mais radicais no feminismo questionarao, ao contrario, as proprias nogées de mérito ¢ independéncia, assim como a visio da dependéncia como um desvio. Nos arranjos convencionais, os homens “si téo dependentes do trabalho nao remunerado das mulheres (incluindo seu trabalho emocional) quanto as mulheres sio dependentes da renda dos homens” ¢ 0 cuidado com as c1 iangas € uma contribuigo social ¢ deveria ser assim reconhecido!®"!, £ uma visto que contesta a escala de valorizagéo das diferentes atividades e as formas de definicao da independéncia e do mérito. As alternativas consideradas para combater o empobrecimento das mulheres quando os casamentos terminam sio um exemplo da mobilizacao de entendimentos distintos dos papéis de género ¢ da opressio a cles relacionada. No debate nos Estados Unidos, em que as disputas em torno das politicas de bem-estar social, a partir dos anos 1980, tornaram explicitas algumas dessas sa politicas para a manutengao dos casamentos — mais casamento implicaria menos pobreza; 2) compreensées, ha, tipicamente, 1) argumentos favorév. argumentos favordveis & garantia de recursos para mulheres em condigéo de vulnerabilidade, para que tenham condigées de cuidar dos filhos — se os casamentos nao sio mantidos, o Estado supre, de certo modo, a renda do marido; ¢ 3) argumentos favordveis a politics para 0 compartilhamento do cuidado, como a oferta de creches ¢ escolas piiblicas de qualidade em periodo integral, mudangas na legislacao, no sentido de avangos nos direitos & flexibilidade na rotina de trabalho e a licencas para mées e pais com filhos pequenos'*!), Nos dois primeiros casos, 0 papel convencional da mulher na esfera doméstica é reforcado ow restabelecido. Apenas no ultimo se questiona nao apenas esse papel, mas também a privatizagdo do cuidado ¢ suas consequéncias. Ele permite, ainda, incorporar a diversidade sexual, os arranjos nio convencionais mesmo a solidao, sem que as pessoas sejam punidas na velhice ‘ou quando adoecem. Para quem nao se engaja em relacées estaveis ou ndo tem filhos, 0 pressuposto de que o cuidado na velhice se dard no ambito familiar € ainda mais danoso. Mesmo em trajetérias mais convencionais, a reducao da natalidade torna mais distante a ideia de que o cuidado na velhice seré garantido pelos filhos. Ha muitos matizes entre 0 foco nas desigualdades intrafamiliares ¢ nas interfamiliares. A redefinigio das responsabilidades individuais ¢ coletivas depende de abordagens — ¢ politicas - que ultrapassem 0 foco nos atranjos interpessoais ¢ sejam capazes de perceber de que modo as desigualdades de género se conectam a desigualdades de classe ¢ de raca. Essa preocupagio norteou os investimentos em equipamentos piiblicos para a infancia em paises do norte da Europal*”! ¢ fundamenta o Sistema Nacional de Cuidados, implementado em 2013 no Uruguai, pais das Américas ssa pel fortemente incorporada nas politicas publicas, num sistema integrado!®), No Brasil, os parimetros definidos para o sistema de seguridade na Constituicao de 1988, regulamentados na Lei Organica de Assisténcia Social (Loas), de 1993, ¢ presentes nas condigdes especiais consideradas pelo Beneficio de Prestagio Continuada (BPC), também correspondem a um pacto social de cuidado. Com limites e deficiéncias, esse pacto orientou as politicas no ciclo democratico que se iniciou com a Constituigéo e se encerrou com o golpe de 2016, que depés Dilma Rousseff. Desde 2016, a aprovacéo de um teto para os gastos ptiblicos por meio de emenda & Constituigéo (PEC 241/55), com validade de vinte anos, inviabilizou politicas correntes ¢ limitou decisées faturas que priorizassem as necessidades de cuidado, Atrelada a mudancas na legislagao trabalhista aprovadas em 2017 e a propostas em curso de mudancas no sistema universal de satide ¢ na Previdéncia Social, essa politica prenuncia a abertura de um fosso ainda maior nas desigualdades de classe, raciais e de género que constituem a “crise do cuidado” no pais. © cnfrentamento das desigualdades relacionadas as formas atuais (privatizadas e mercantilizadas) do cuidado nao pode prescindir de uma abordagem de género; no entanto, esse enfrentamento sera restrito caso se limite a tal enfoque — mesmo que desconstrutivista -, uma vez que é na convergéncia entre género, classe ¢ raga que tais desigualdades se produzem. spectiva foi mais em que Por isso, na defesa de politicas focadas de combate & pobreza, tem merecido atengdo grupos especificos de mulheres, como as mulheres negras chefes de familia ¢ as mies solteiras'*“), No primeiro caso, racismo ¢ sexismo atuariam em conjunto; no segundo, seriam mais agudos os efeitos da maternidade ¢ da maternagem sobre a posicao das mulheres no mercado de trabalho, por terem de dar conta sozinhas do cuidado e do sustento dos filhos. A coexisténcia entre ampliagao do leque de estilos de vida ¢ inseguranga econdmica de parte significativa da populacéo € constitutiva da “crise do cuidado”. Nas palavras de Brenner, temos “crescentes oportunidades de autoexpressio por meio de um amplo leque de identidades mercantilizadas”!*°) ¢ “insegurangas ¢ preocupacées econédmicas” também crescentes, derivadas da baixa protecéo social. A tenséo entre a légica de mercado e a légica da democraci: na base dessa coexisténci: es Quando a primeira predomina, prevalece 0 que podemos definir como um enquadramento das relagées ¢ das atividades humanas na perspectiva dos ganhos financeiros; a segunda, por sua vez, pode ser definida como a afirmagao de valores ¢ instituigées nos quais prevaleceriam nao apenas interesses plurais — colocando em questio 0 peso relative dos agentes econdmicos —, mas também a concepgio de que os individuos sio ao mesmo tempo atotes ¢ fins. O quadro histérico mais amplo das formas atuais de organizacao da vida é aquele em que o trabalho remunerado é definido como fator primordial de socializagao e valorizagao do individuo, mas, numa contradisdo permanente, é reduzido a um meio para a finalidade prioritéria, que seria o consumo'®®), algo que se acentua quando 0 individuo se torna, cle mesmo, um capital que depende de constante autoinvestimento'®”!, Ha uma continuidade entre o trabalhador-consumidor, 0 individuo como capital que depende de autoinvestimento ¢ a idealizacao da domesticidade: a racionalidade da competicéo, do oportunismo e da condescendéncia com os superiores hierérquicos no trabalho - organizado segundo as normas da eficiéncia econdmica — teria como contraponto a vida privada confortdvel, opulenta ¢ hedonistal®*!, A idealizagao da esfera doméstica serve mal as classes sociais menos privilegiadas, com ainda menos autonomia no seu cotidiano de trabalho e, sem ditvida, com menor remuneracio e menores condigées de alcangar os niveis de consumo que compensariam as formas de isolamento da familia ¢ a falta de tempo para o cultivo das relagées. A Iégica de mercado organiza a vida segundo valores quantificéveis, néo para que corresponda aos “valores relativos ao ‘tempo de viver’ da soberania existencial”|®?!, Com o predominio da légica de mercado, impée-se a exigéncia de que os individuos sejam “independentes”, assamam responsabilidades e formas de cuidado, para com os outros ¢ para consigo, que, no entanto, lhes sio negadas cotidianamente como alternativas. A falta do cuidado adequado transform: em comprovagao de falta moral, em vez de ser lida como resultado de um pacto social cruel ¢ excludente. Um caminho alternative ao da mercantilizagio poderia consistir em assumir como pressuposto que “todos os membros adultos de uma sociedade se tém alguma responsabilidade no apoio a todas as criangas”!"°! ¢ aos individuos vulnerdveis. Além de politicas centradas no suporte aos individuos dependentes!?!! econdmica das criangas, dos idosos ¢ daqueles que séo responsabilizados pelo cuidado dessas pessoas. A superagio da oposicéo entre trabalho remunerado ¢ cuidado parece necessiria para que se tenha uma configuragéo mais justa das , politicas de renda basica universal reduziriam a inseguranca relagées de género ¢ de classe!”2!, O segundo permanece como barreira para o exercicio do primeiro quando a responsabilizagio das mulheres pelo cuidado as impede de participar paritariamente da sociedade e quando a ldgica de mercado determina quem terd acesso ao cuidado ow apoio na tarefa de cuidar. Se dependéncia e auronomia sdo referencias conjuntas para a construgao de relagbes mais igualitérias, a critica A mercantilizagao parece ser, pelas razdes elencadas, um dos esforgos necessétios, Mas a aposta na ampliagéo do suporte piblico nao esta livre de problemas. Algumas das ambivaléncias antes consideradas séo validas também aqui. O risco de que a ago do Estado se dé de tal forma que aprofunde as convencées de género, que estéo na base da responsabilizagio diferenciada, tem sido, como se disse anteriormente, alvo de criticas feministas ao Estado de bem-estar social ¢, no Brasil, as politicas de tansferéncia de rendal?), Associo-me ao entendimento de que séo necessdrias estratégias para promover a independéncia das mulheres como individuos e para lhes dar suporte como mies!”“!, Se a primeira dessas dimensdes for deixada de lado, sua cidadania poderd ser comprometida — ¢ 0 que ocorre quando sua condicéo de individuo é fundida & de mae. Por outro lado, quando a segunda é deixada de lado, fica comprometida a possibilidade de que as mulheres que sto maes tenham acesso a oportunidades e chances de exercer efetivamente a autonomia. E 0 que ocorre quando se faz de conta que a responsabilizacao desigual nao existe, legando as “familias” a responsabilidade pelas criancas sem que se considere © fato de que isso implica a responsabilizagdo das mulheres pelo cuidado, com os desdobramentos j4 discutidos. E importante, assim, que as garantias aos direitos individuais nao sejam confundidas com as politicas piblicas de suporte as mulheres que desejarem ser maes e que nao impliquem o apagamento das mulheres como individuos em nome da prote¢do as criancas, buscando-se alternativas para. que =~ ambas_—sejam_—_consideradas concomitantemente. Outra frente possivel para essa critica evoca 0 controle coletivo como algo distinto da ago do Estado. Ao falar sobre o sistema de satide nos paises da Europa ocidental, André Gorz chama atengao para o fato de que o Estado capitalista colabora para que os problemas sejam definidos como individuais. Com isso, mesmo a ampliagao da assisténcia e dos tratamentos mantém os individuos como consumidores menos ou mais atendidos, fortalecendo a ideologia do consumo. A realidade coletiva dos problemas de satide seria, ibilitaria buscar assim, ofuscada, reduzindo um enfoque que nos po alternativas para ampliarmos 0 controle coletivo sobre problemas que séo coletivos e melhorarmos nossa “capacidade de cuidar de nés mesmos e ter vida saudavel”°>), £ uma critica que estaria presente também no entendimento de que o homo politicus tem-se diluido no homo oeconomicus, que se firma, assim, como a forma da subjetividade possivel em meio aos riscos e contingéncias atuais\”°), O enfraquecimento de solugdes coletivas, que adensa a “crise do cuidado””!, compromete também a democracial”®) As condigées materiais ¢ simbélicas de quem cuida s discutidas, frageis. A vulnerabilidade de quem depende do cuidado de outras pessoas amplia-se quando essa dependéncia é uma peca na Iégica de mercado. ‘Ao mesmo tempo, apoio ptiblico nao significa, necessariamente, controle coletivo democrético. $6 este tiltimo permitiria regular as formas da o, nas condig $ responsabilidade estatal coletiva de tal modo que estas nao se convertessem em ingeréncia indevida — as fronteiras entre uma coisa ¢ outra teriam de ser democraticamente negociadas e definidas, 0 que remete a um tema de que nao trato de fato aqui, o da privacidade. Permitiria também a construcéo de alternativas que nao se baseassem nas hierarquias existentes, como nos casos em que 0 apoio piiblico reforca a manutengio das mulheres na posicao de cuidadoras, sem preocupagio com a vulnerabilidade social associada a essa posicao. O “mito da autonomia” funciona socialmente!®”!, colaborando para que as desigualdades sejam justificadas ¢ naturalizadas. As formas incontornaveis da dependéncia séo permanentes no ciclo de vida dos individuos e fazem parte das relagdes que se estabelecem entre eles. Quando tais formas so ignoradas por normas ¢ praticas sociais que teriam validade se todos fossem adultos, se todos fossem iguais na sua capacidade de trabalho ¢ se todos tivessem recursos iguais como ponto de partida para a construgéo de sua vida, nio se definem condigées adequadas para 0 cuidado, © que procurei mostrar aqui é que a auséncia dessas condigées, assim como a busca de solugées que repousem sobre a subordinagéo de algumas pessoas, nao é compativel com o estabelecimento de relagdes mais justas e se contrapée aos ideais democraticos. A manutengao da divisio sexual do trabalho como pressuposto para politicas do cuidado pode aprofundar as desigualdades eé de género. Hoje, essa diviséo, além de nao ser desejavel, nao é factivel — que foi algum dia. Com mais mulheres no mercado de trabalho ¢ com formas de organizacéo das relagdes de trabalho que exigem a auséncia das mulheres do espaco doméstico, a industrializagdo ¢ a socializagio do trabalho doméstico tornam-se “uma necessidade social objetiva’!!°°), Ao mesmo tempo, procurei expor os limites da mercantilizagio, que pode ser a solucao para a posigao desigual de algumas mulheres relativamente a alguns homens, mas aprofunda desigualdades ¢ injusticas num prisma em que convergem género, classe ¢ raca, Por isso, um dos desafios quando se entende que a configuracéo convencional de género nao é uma resposta adequada nem mesmo possivel imaginar politicas para a promogio de relagées fortalecidas para o provimento de cuidado, relagdes baseadas em valores solidarios, nao na légica de mercado. A centralidade do cuidado é fundamental para abordagens da democracia que ultrapassem a igualdade formal, em diregio a uma compreensao alargada dos mecanismos de reprodugao de vantagens e desvantagens para individuos e grupos sociais. A atribuigao das responsabilidades, assim como as formas possiveis da igualdade, varia ao longo da vida. Por isso, “as pessoas, quando jovens ¢ em estado de dependéncia, precisam de igualdade de acesso a cuidado adequado, para que possam crescer ¢ transformar-se em adultos plenamente capazes”!0!!, Quando adultas, devem ter dircito de expressar-se de mancira independente ¢ como iguais, 0 que leva a necessidade de se adotarem mecanismos institucionais que garantam que elas nio serao silenciadas. Para tanto, é preciso também construir afirmativamente as condigées para essa vocalizacao, ica e no trabalho, que permitam que os individuos tenham tempo e recursos para tomar parte na vida politica, assegurando praticas ¢ arranjos, na vida dom no debate puiblico e em esforcos coletivos que Ihes paresam relevantes. E, como terceira condigao para a igualdade, “quando as pessoas estao doentes, idosas, ou incapacitadas, é preciso que existam arranjos institucionais que assegurem que suas vores também serio ouvidas’!!), A ampliagio da responsabilidade social pelo cuidado seria, assim, construida num processo democratico de que participassem tanto aqueles que estéo na posicgao de dependentes quanto aqueles que proveem cuidado. Em vez de privatismo ¢ isolamento, terfamos a chance de encontrar alternativas sociais para que as necessidades de cuidado que todos temos ao longo da vida sejam adequadamente atendidas. Nao é necessério romper com a ideia de que temos responsabilidades especiais — como aquelas que os pais, biolégicos ou nao, tém em relagio as ctiangas — para avangar no sentido de construir instituigdes € mecanismos de apoio que garantam que a integridade e 0 bem-estar, sobretudo dos mais vulnerdveis, nao estejam sujeitos 4 sorte nem a légica de mercado. O préximo capitulo discute as configuragées das relagées familiares, tendo em vista os problemas que foram aqui tratados. Numa perspectiva histérica, analiso as mudangas nos arranjos ¢ nos valores familiares e afetivos, assim como no exercicio ¢ nos sentidos da maternidade. Trata-se de uma arena de dispuras politicas agudas hoje. Reacdes conservadoras a essas mudangas expressam-se no “familismo”, eixo do reacionarismo moral. [1] Naney Fraser ¢ Sarah Leonard, “Interview with Naney Fraser: Capitalism’s Crisis of Care", Dissent Magazine, 2016. [2] Joan C. Tronto, Garing Democracy: Markets, Equality, and Justice (Nova York, New York University Press, 2013), e “ere is an Alternative: Homines Curans and the Limits of Neoliberalism”, International Journal of Care and Caring, ¥.1, 0. 1, 2017, p. 27-43. (3] Idem, “ere isan Alternative’, ct [4] Vale conferir a coletinea sobre cuidado e cuidadoras organizada por Helena Hirata ¢ Nadya Araujo Guimaties, Cuidado ¢ cuidadoras: as vdrias faces do trabalho do care (Sao Paulo, Atlas, 2012) ¢ também 0 trabalho de auroras como Clara Aratjo e Céli Scalon, “Género e a distancia entre a intengio € 0 gesto", Revista Brasileia de Ciéncia Politica, v. 21, n. 62, 2006, p. 45-68; Helena Hirata, "Género, classe e raga: interseccionalidade e consubstancialidade das relagSes sociais", Tempo social, n. 1, 2014; v. 26, p. 61-735 Bila Sori “Arenas do cuidado nas intersegées entre género e classe social no Brasil”, Cadernos de Pesquisa, v.43, n, 149, 2013, p. 478-91, entre outs. [5] Flivia Biroli, Autonomiae desigualdades de género: comtribuigies do feminiomo para a ertica demoerdtica (Niterdi/Valinhos, Eduff/Horizonte, 2013). [6] Martha Albertson Fineman, ¢ Autonomy Myth: A cory of Dependency (Nova York/Cambridge, ¢ New Press/Polity Press, 2004) [7] Paul Guyer, “Kant on the cory and Practice of Autonomy", em Ellen Frankel Paul, Fred D. Miller Jr. € Jeffrey Paul (orgs.), Autonomy (Cambridge, Cambridge University Press, 2003), p. 70-98; Gerald Dworkin, ¢ cory and Practice of Autonomy (Cambridge, Cambridge University Press, 2001 [1988]); Hague, Autonomy and Identity: ¢ Politics of Who We Are (Londres/Nova York, Routledge, 2011); Nancy J. Hirschmann, ¢ Subject of Liberty: Towards a Feminist cory of Freedom (Princeton! Oxford, Princeton University Press, 2003). [8] Charles W. Mills, ¢ Racial Contract (Ithaca/Londres, Cornell University Press, 1997); Carole Pateman, —¢ Sexual Contract (Stanford, Stanford University Press, 1988); Ellen M. Wood, Democracia contra capitalismo: a renovagéo do materialismo histérico (trad. Paulo 2003 [1995)) tanheira, Sio Paulo, Boitempo, [9] Norberto Bobbio, Liberalismo ¢ democracia (trad. Marco Aurélio Nogueira, Séo Paulo, Brasiliense, 1988); Louis Dumont, Esais sur Uindividualisme: une perspective anthropologique sur Uidéologie moderne (Paris, Editions du Scuil, 1983). [10] John Rawls, A cory of Justice (Cambridge, Harvard University Press, 1971), p. 103-4 [11] Ronald Dworkin, Virtude soberana (trad. Jussara Simées, Sao Paulo, Martins Fontes, 2005 (2000)), 1p. 458-9, Nio hé razdes para pressupor que as riquezas-talentos sejam virtudes, segundo Dworkin. Afinal, a sorte seria 0 fator mais importante: “Estar no lugar certo é quase sempre mais importante do que qualquer outra coisa". E ainda que as riquezas-talentos fossem virtudes, dai nao decorre necessariamente que deva haver recompensa material para elas, E, mesmo quie assim fosse, ndo ha justificativa plausivel para que 0 mercado comercial fosse a forma mais adequada de gerar essas recompensas (ibidem, p. 460- 1). Destaquei Ronald Dworkin pela sua importincia nesse debate, mas ele tem sido situado numa subcorrente, a do “igualitarismo de fortuna’, Além de Dworkin, Elizabeth Anderson sicua nessa vertente Richard Arneson, Gerald Cohen, _ omas Nagel, Eric Rakowski e John E, Roemer, indicando também a incorporagio de muitos dos seus principios por Philippe van Parijs. Na sua definigéo, “o igualitarismo de fortuna se ancora em duas premissas morais: que as pessoas devem ser compensadas pela ma sorte imerecida ¢ que essa compensagio deve vir somente da parte da boa sorte dos outros que é imerecida’. Ver Elizabeth Anderson, “What Is the Point of Equality?”, Eshics, v. 109, n. 2, 1999, p. 5. [12] John Rawls, A cory of Justice, cit, p. 102. [13] Alvaro de Vita, “Liberalismo, justiga social ¢ responsabilidade individual”, Dados, v. 54, n. 4, 2011, p. 569-608 [14] John Rawls, Justice as Fairness: A Restatement (Cambridge/Londres, _ ¢ Belknap Press of Harvard University Press, 2001), p. 139. [15] Ver os dados apresentados no World Social Science Report de 2016 e no Relatério da Ofkam de 2017. Disponiveis em: acessados em: ago. 2017. [16] David Harvey, A Brief History of Neoliberalism (Oxford, Oxford University Press, 2007). [17] Wendy Brown, Undoing the Demos: Neoliberalism’ Stealth Revolution (Cambridge, Zone Books, 2015) [18] Idem [19] is Marion Young, Responsibility for Justice (Oxford, Oxford Uk [20] Elizabeth Anderson, “What Is the Point of Equalicy?”, cit. p. 23. sity Press, 2011). [21] Martha McCluskey, “Efficiency and Social Citizenship: Challenging the Neoliberal Attack on the Welfare State’, Indiana Law Journal, v. 78, ». 2, 2003, p. 783-876, citado em Joan C. Tronto, Caring Democracy, cit., p. 40; aqui, em tradugéo minha. [22] Susan Moller Okin, Justice, Gender, and the Family (Nova York, Basic Books, 1989). (23] Patricia Hill Collins, Black Feminist ought: Knowledge, Conscioumes, and the Politics of Empowerment (Nova York/Londres, Routledge, 2009 [2000]); Angela Y. Davis, Mulheres, rapa e classe (S40 Paulo, Boitempo, 2016 [1981]); Nancy Fraser, “Rethinking the Public Sphere: a Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy", em Craig Calhoum (org.), Habermas and the Public Sphere (Cambridge-MA, © MIT Press, 1992), p. 109-42: Nancy Fraser, Justice Interruptus: Critical Reflections ‘on the "Postsocialss” Condition (Nova York, Routledge, 1997); Aleksandra Kollontai, “Working Woman and Mother”, em Selected Writings (Nova York, Norton, 1977 [1914]), p. 127-39. (24) Johanna Brenner, Women and the Poities of Class (Nova York, Monthly Review Press, 2000). Ver também Christine Delphy e Diana Leonard, Familiar Exploitation: A New Analysis on Marriage in Contemporary Western Societies (Cambridge, Polity Press, 2004 [1992]) e Nancy Folbre, Who Pays for the Kids? Gender and the Seructures of Constraint (Londres/Nova York, Routledge, 1994) [25] Clara Araijo e Céli Scalon, “Género e a distincia entre a intengio e o gesto”, cit., p. 45-68; Natélia Fontoura et al. “Pesquisas de uso do tempo no Brasil: contribuigdes para a formulacio de politicas de conciliagio entre trabalho, familia vida pessoal”, Revita Econémica, v2, n.1, jun. 2010, p. 11-46. [26] Christine Delphy ¢ Diana Leonard, Familiar Exploitation, cit. p. 18; aqui, em tradugo minha. [27] Sylvia Walby, corizing Patriarchy (Oxford, Basil Blackwell, 1990). [28] Helena Hirata e Nadya Araujo Guimaries (orgs.), Cuidado ¢ euidadoras, cit. [29] Eleonora Faur, “El cuidado infantil desde la perspectiva de las mujeres-madres. Un estudio en dos barrios populares del Area Metropolitana de Buenos Aires", emValéria Esquivel, Eleonora Faur Flizabeth Jelin (orgs.), Las logicas del euidado infantil: entre las familias, el Estado y el mercado (Buenos Aires, Ides, 2012). [30] Bila Sorj e Adriana Fontes, “O care como um regime estratificado: implicagées de género e classe social”, em Helena Hirata e Nadya Araujo Guimaraes (orgs.), Cuidado e euidadoras,cit., p. 105. [31] PNAD, citado em Bila Sor) ¢ Adriana Fontes, “O care como um regime estratificado”, cit, p. 106. [32] © nivel de ocupasio € definido pelo Instituto Brasileico de Geografia ¢ Estatstica (IBGE) como 0 pereentual de pessoas ocupadas no momento em que foi realizada a pesquisa em relagio as pessoas em idade de trabalhar. Aqui, trata-se do nivel de ocupacio entre as mulheres em idade de trabalhar. [33] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), “Estatisticas de género: uma anilise do Censo Demogréfico 2010” (Rio de Janeiro, IBGE, 2014) [34] Gosta Esping-Andersen, —¢ Incomplete Revolution: Adapting to Women’s New Roles (Cambridge, Polity Press, 2009), jurema Gorski Brites, “Afeto ¢ desigualdade: género, geragio e classe entre empregadas domésticas e seus empregadores”, Cadernos Pagu, n. 29, juldez. 2007, p. 91-109, e “Trabalho doméstico: questies, leituras e politicas”, Cadernos de Perguisa, v. 43, n. 149, maio-ago. 2013, p. 422-51. [36] Danila Gentil Rodriguez Cal, Comunicasio ¢ trabatho infantil doméstico (Salvados, Eduba, 2016); Patricia Hill Collins, Black Feminist ought, cit; Délia Dutra, “Marcas de uma origem ¢ uma profissio: trabalhadoras domésticas peruanas em Brasilia’, Cadernos CRH, UFBA, v. 28, n. 73, jan.-abr. 2015, p. 181-97. [37] Christine Delphy Diana Leonard, Familiar Exploitation, cit; Atlie Russell Hochschild, — ¢ ‘Managed Heart: Commercialization of Human Feeling (Berkeley-CA, University of California Press, 2003 (1983). [38] Johanna Brenner, Women and the Politics of Clas, cit.; Helena Hirata, “Género, classe ¢ raga", cits Joan C. Tronto, Caring Democracy, cit. [59] Instituto de Pesquisa Econémica Aplicada (Ipea), Retrato das desigualdades de género ¢ raga (Brasilia, Ipea, 2014) [40] Conforme o citado relatério do Ipea, vale observar que 0 mtimero de trabalhadoras domésticas que residem no domicilio onde trabatham vem diminuindo continuamente desde 1999: naquele ano, elas ceram 9% das trabalhadoras; em 2013, eram 1,9%. Esse dado € significativo porque é justamente nos casos de residéncia das trabalhadoras no local de trabalho que pode haver maior exploragio e aproximagio de condigées de servilidade, sem definigdo clara das jornadas de trabalho ¢ das tarefa. [41] Helen Schwenken, “ ¢ Challenges of Framing Women Migrants’ Rights in the European Union’, Revue Européenne des Migrations Internationales, v. 21, ». 1, 2005, p. 177-94, ¢ “Mobilisation des travailleuses domestiques migrantes: de la cuisine 4 ‘Organization internationale du travail”, Cahiers du Genre, «. 2, n. 51, 2011, p. 113-33; Rafaella Sati, “Domestic Service: Past and Present in Southern and Northern Europe”, Gender &- History, v. 18, n. 2, 2006, p. 222-45, [42] Joan C. Tronto, Caring Democracy, cit, p. 111 [43] Helena Hirata, “Tendéncias recentes da precarizagio social ¢ do trabalho: Brasil, Franca, Japao”, Cadernos CRH, ¥. 24, n. 1, 2011, p. 15-22; Bila Sorj, “Arenas do cuidado nas intersegdes entre género € classe social no Brasil”, cit [44] Joaze Bernardino-Costa, “Intersectionality and Female Domestic Worker's Unions in Brazil”, Women Seudies International Forum, n. 46, 2014, p. 72-80. [45] Bila Sorj ¢ Adriana Fontes, “O care como um regime estratificado”, it, p. 110. [46] IBGE, “Estatisticas de género: uma anslise do Censo Demogrfico 2010", cit. (47 Ipea, Retrato das desigualdades de genero e raga ct. [48] Carol Gilligan, In a Different Voice: Prychological cory and Women's Development (Cambridge-MA, Harvard University Press, 1982). [49] Jean Bethke Elshtain, “_¢ Power and Powerlessness of Women”, em Gisela Bock ¢ Susan James (orgs), Beyond Equality and Difference: Citizenship, Feminist Politics, Female Subjectivity (Londres/Nova York, Routledge, 1992), p. 113; aqui, em cradugio minha. [50] Ibidem, p. 116; aqui, em tradugio minha, [51] Rita Laura Segato, La guerra contra las mujeres (Madri, Traficantes de Suefios, 2016). [52] Seyla Benhabib, “ © Generalized and the Concrete Other: © Kohiberg-Gilligan Controversy and. Feminist eory”, em Seyla Benhabib e Drucilla Cornell (orgs.), Feminism as Critique (Minneapolis, University of Minnesota Press, 1987), p. 85; aqui, em tradugio minha. [53] Silvia Vegetti Finzi, “Female Identity becween Sexuality and Maternity”, em Gisela Bock e Susan James (orgs), Beyond Equality and Difference, cit p. 126-45. [54] Rita Laura Segato, La guerra contra las mujeres, ct [55] Carol Gilligan, na Different Voice, cit. p. 70. [56] Seyla Benhabib, “ e Generalized and the Concrete Other”, cit. p. 78. [57] Gilligan parte da teoria dos estdgios morais do filésofo ¢ psicélogo estadunidense Lawrence Kohlberg, Essays on Moral Development: ¢ Philosophy of Moral Development (San Francisco, Harper & Row, 1981), para quem os estigios iniiais do desenvolvimento moral sio referenciados pela existéncia ou pela auséncia de punicio e pelo prazer e satisfagéo do proprio individuo. Os estégios mais avancados do desenvolvimento moral seriam orientados pela lei, pelo contrato social democritico e, no topo do que denomina desenvolvimento pés-convencional, pelo reconhecimento de principios morais universais Aplicando as categorias de Kohlberg a entrevistas realizadas com mulheres ¢ homens de diferentes idades nos Estados Unidos, Gilligan se dedicaria a compreender as “vores diferentes” das mulheres em seus préprios termos, definindo o paradigma de Kohlberg como um tipo de desenvolvimento moral, 0 da justiga e dos direitos, e contrapondo-o a um paradigma alternativo, o do cuidado e das responsabilidades. [58] Nancy Chodorow, ¢ Reproduction of Mothering (Berkeley/Los Angeles, University of California Press, 1999 [1978]). [59] Elisabeth Badinter, O conflito: a mulher ¢ a mée (trad. Vera Liicia dos Reis, Rio de Janeiro, Record, 2010). [60] Joan C. Tronto, “Beyond Gender Difference toa cory of Care”, Signs, v. 12, n. 4, 1987, p. 646. [61] Ibidem, p. 646-7. [62] Ibidem, p. 652. [63] Martha Albertson Fineman, ¢ Autonomy Myth, cit., p. 35. [64] Ibidem, p. 42: aqui, tradusio minha. [65] Ibidem, p. 49, [66] Ibidem, p. 48. [67| Ibidem, p. 38; aqui tradugéo minha. [68] bell hooks, Feminist eory: From Margin to Center (2. ed., Nova York/Boston, South End, 1984), p. 61 [69] No original, world-making and meaning-giving. [70] Iris Marion Young, Intersecting Voices: Dilemmas of Gender, Political Philosophy. and Policy (Princeton, Princeton University Press, 1997), p. 156; aqui, em tradugo minha, [71] Patricia Hill Collins, Black Feminist ought, cit. [72] Angela Davis, Mulheres, raga e clase, cit., p. 240, [73] Johanna Brenner, Women and the Politics of Class, cit., p. 108: aqui, em tradugéo minha. [74] Flavia Biroli, Familia: novos conceitos (Sio Paulo, Fundagéo Perseu Abramo, 2014), ¢ “Political Violence against Women in Brazil: Expressions and Definitions’, Direito & Préxis, v7, n. 15, 2016, p. 557-89 [75] Pascale Molinier, “Cuidado, incerseccionalidade e feminismo”, Tempo Social, v. 26, n. 1, 2014, p. 41 [76] Joan C, Tronto, Gering Democracy, cit p. 313 aqui, em tradugao minha. [77] Helena Hirata, “Genero, classe ¢ raga’, cit. p. 67. [78] Patricia Paperman, “Travail et responsabilités du care: questions autour du handicap”, comunicacio apresentada no coléquio internacional éories et Pratiques du Care: Comparaisons Internationales, Paris, 13-14 jun. 2013, [79] Johanna Brenner, Women and the Politics of Class, cit., p. 109. [80] Ibidem, p. 104; aqui, em tradugio minha, [81] Mapeio essas posigées a partir de Johanna Brenner, “ _¢ Feminization of Poverty”, em Women and the Polties of Class, cit, de Nancy Fraser, “A Genealogy of Dependence”, em Justice Interrupts, cits e de Iris Marion Young, “Mothers, Citizenship, and Independence”, em Intersecting Voices, cit. [82] Gosta Esping-Andersen, — ¢ Incomplete Revolution, cit [83] Rosario Aguirre e Fernanda Ferrari, La construccién del sistema de euidados en el Uruguay: en busca de consensos para una protecciin social mds igualitaria (Santiago, Cepal, 2014), série Politics Sociales, n. 193. [84] Lena Lavinas, “As mulheres no universo da pobreza: 0 caso brasileiro", Revista Estudos Feministas, ano 4,n. 2, 1996, p. 469. [85] Johanna Brenner, Women and the Politics of Class, cit, p. 188; aqui, em tradugéo minha. [86] André Gore, Metamorfoses do trabalho: critica da razdo econémica (trad, Ana Montéia Formato, Séo Paulo, Annablume, 2003 [1998]). [87] Wendy Brown, Undoing the Demos, [88] André Gorz, Metamorfoses do trabalho, cit, p. 43. [89] Tbidem, p. 117. [90] Iris Marion Young, Intersecting Voices, cit p. 111; aqui, em tradugao minha [91] © Beneficio de Prestagéo Continuada (BPC) é, no Brasil, um exemplo de programa de transferéncia de renda focado. Destina-se a portadores de deficiéncias © a idosos com mais de 65 anos. Nio ha condicionalidades para o recebimento, mas é dirigido a pessoas que vivem em familias com renda menor do que um quarto do salétio minimo. Em 2012, atingia 3,6 milhées de pessoas, segundo Marcelo Medeiros, ‘Tatiana Britto ¢ Fabio Soares, Programas focalizados de transferéncia de renda no Brasil contribuigées para o debate, Brasilia, Ipea, texto para discussio n. 1.283, 2007. (92] Naney Frases; Justice Interruptus, cit, p. 61 (93] Silvana Aparecida Mariano ¢ Cissia Maria Carloto, “No meio do caminho entre 0 privado 0 piblico: um debate sobre o papel das mulheres na politica de assisténcia social”, Revista Estudos Feministas, ¥. 18, n. 2, 2010, p. 451-71 (94| Johanna Brenner, Women and the Polities of Class, eit., p. 118. [95] André Gorz, Paths to Paradise: On the Liberation from Work (Londres, Pluto, 1985 [1983)), p. 175 aqui, em tradugio minha. [96] Wendy Brown, Undoing the Demos, cit. p. 84. [97] Nancy Fraser, “Feminism, Capitalism, and the Cunning of History”, em Fortunes of Feminism: From ‘State-Managed Capitalism to Neoliberal Crisis (Nova York, Verso, 2013), p. 209-26. [98] Wendy Brown, Undoing the Demos, [99] Martha Albertson Fineman, —¢ Autonomy Myth, cit. [100] Johanna Brenner, Women and the Politics of Clas, ei., p. 224. [101] Joan C, Tronto, Caring Democracy, cit., p. 108; aqui, em tradugio minha, [102] Ibidem, p. 109.

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