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“Central do Brasil” TEXTOS vicissitudes da subjetivagao Matio Pablo Fuks Realizou-se no dia 23 de junho uma mesa redonda para discutiro filme Central do Brasil, de Walter Salles Jr, com a participagao de Olgdria Matos e Miriam Chnaiderman, coordenada por Mario Fuks. O evento foi o primeiro de um ciclo de debates organizadlo pelo Curso de Psicopatologia Psicanalitica e Clinica Contempordnea do Departamento de Psicandlise, e destinado a debater os problemas referidos @ subjetividade de nosso tempo, a partir de seus reflexos nas criagdes artisticas, nas ‘manifestacées culturais, nas ‘psicopatologias” atuais da vida quotidiana e nas demandas da clinica, Percurso ‘publica a introducao feita pelo coordenador da mesa, ¢ 0 textos apresentadas nesta ocasido. > contexto do curso que organizou o debate, iniciamos uma série de estudos destinados a compreender melhor certos tipos de sofrimen- {0s psiquicos novos, cuja novidade consiste na massividade com que se fazem presentes hoje em dia na clinica, e que adquirem também ressonancia piblica através dos meios de comunicagio. Sua caracterizacio 67 tem-se constituido num problema dentro do campo dos cuidados da satide mental, mas tende a desbordé-lo, transformando-se num problema para a sociedade em seu conjunto. ‘A psiquiatria oficial procura agrupar tais softimen- tos em sindromes , sintomas € quadros clinicos caracte1 zados como desvios em relacio a uma_normalidade que indo se poe em questio. Outros pensadores, outras disci- plinas, poem em questo esta normalidade consi in do que esté sendo produzida por uma época hist6rica, paralelamente a suas formas patolégicas. Estas novas enfermidades da alma comecam a ser discemnidas em sua significaglo na medida em que podem ser referenciadas aos malestares da contemporaneidade. ‘A fenomenologia da vida cotidiana nas grandes dades , as formas de habiti-las, de circular por elas ou de recluir-se nos espacos domésticos, de relacionar-se ou de nao relacionar-se com os outros, de trabalhar ou de nao trabalhar, de morrer ou de sobreviver, sio pontos ‘Mario Pablo Fuks 6 psicanalita, memo do Departamento de Psicansio, [ofeesor do Curso de Pstanalce e professor coordorador do Guts de Psicopabloia Plcanalicae Clinica Contomporinea, tos no Isitito Sodes Sapientae. Pereurso a 21 2/1998 TEXTOS de partida privilegiados pela maior parte dos estuclos que procuram es- tabelecer comrelagdes entre macro-es- truturas (econdmicas, sociais, politi- cas), configuracdes institucionais, formas de subjetivacio e padecimen- tos psiquicos. Que tipo de subjetividade € possivel conceber quando se parte de cenarios, como a estacao de trem que da nome ao filme, mas que po- deriam ser aeroportos, centros comer- cias, pracas publicas ou até uma rua qualquer? Lugares que ja foram es- pacos de sociabilidade, mas nos quais as pessoas ficam reduzidas a condi ‘sao de transeuntes que mal se olham, se falam ou se escutam: ali “come~ ‘ga-se com uma diluicio dos sistemas de reconhecimento do outro e aca- ba-se com uma perda de reconheci- mento de nosso préprio eu” ‘A presenca nestes lugares de um nniimero crescente de marginalizados € excluidos de diversos tipos, com uma visibilidade manifesta que nao se conheceu em outros tempos, trans- forma-os em postos de fronteira so- ial em que .a tensio se aproxima frequentemente do limite de estouro da violencia, Falando dessas questoes no en- contro. comemorativo dos “20 anos do Sedes", Marilena Chaui situava 0 problema com bastante clareza: “ As novas tecnologias (referindo-se & pro- ducao industrial © micro-empresari- al) convidam ao isolamento porque inutilizam a rua como espaco coleti- vo comum, Nao precisam de qual- quer espaco ptiblico, muito pelo con- tririo, tendem a descarté-los. Eu me Preocupo com isto porque, no nos- So presente, a forma de subjetivida- de que esta sendo plasmada é me- nos a de uma subjetividade (intercorporeidade, intersubjetivi dade, rela¢ao simbélica com 0 au- sente, transcencléncia do fato ao sen- tido) e muito mais a de uma intimi- dade. E essa intimidade nio é qual- quer. Modelada pela mass-midia e a publicidade, é uma intimidade narcisica. Por conseguinte, ela est fadada a incapacidade de simbolizar, de transcender as _condigdes dadas, de relacionar-se com o possivel e de realizar o trabalho da frustragao e da auséncia, uma intimidade infantili- zada a qual se promete a satisfagio imediata de todos os desejos que a ‘mass-midia inventou para fins de consumo.”* © homem modemo € definido, talvez dolorido, mas sem remorsos. A dor se “agarra” ao seu compo, se somatiza, “Se nao esta deprimido, se exalta com objetos menores ¢ desva- lorizados num prazer perverso que nao conhece satisfagdo.”* Kristeva P.. Julia Kristeva, o homem modemno é um Narciso, talvez, dolorido, mas sem remorsos. A dor se “agarra” ao seu corpo, se somatiza. Sobre este sujeito do consumo, isolado 20 mesmo tempo massifi- cado, € que toma corpo a ideologia neo-individualista da competicio ab- soluta, violenta, manipuladora ¢ cinica, adicta as relagdes de aprovei- tamento, pronta para. substituir a re- lagio com a pessoa pela relaglo com aparelhos € coisas, Atenta a outras coordenadas que ‘nos aproximam dos objetivos colo cados pelo projeto do curso, mas em. estreita relacao com o anterior, Julia Kristeva sustenta , em As niovas doen- Gas da alma, que a experiéncia coti- diana demonstra uma reduglo im- pressionante da vida interior, e per- _gunta-nos se temos hoje o tempo e o ‘espago necessirios para arrumar-nos ‘uma alma, ou se “pressionados pelo stress, impacientes por ganhar € gas- tar, por gozar e morrer, os homens € mulheres de hoje prescindem dessa representacio de sua experiéncia que chamamos de vida psiquica’ 68. falaré, ainda, da falta de identidade sexual, subjetiva e moral, do recur 50 os suportes quimicos, das diver. sas compensacdes narcisicas ¢ das formas de adoecer que aparecem quando estas falham. Paramos aqui este desenvolvi- ‘mento, que nos pareceu interessante discutir a partir do filme. Em primei- ro lugar, porque ja tragamos uma ponte de sentido entre as inquiet des do Curso em torno da psicopatologia, da clinica contem- porinea e do leque de interrogagdes que nos remete aos conceitos de modernidace ou pés-modernidade € a.questio da exacerbacio paroxistica dos tracos de uma época ou de uma verdadeira mudanga de época Por outra parte, parece-nos possivel reconhecer 0 protstipo no qual se encaixa um dos personagem do filme, Dora, nao s6 pela vida iso- lada € mesquinha, pelo vazio exis- tencial e pela solidao telacional, mas também pela peculiaridade de que 08 “objetos menores ¢ desvaloriza- dos’ que se compraz. perversamente ‘em condenar - agindo como um deus todo-poderoso que se arroga o direi- to de julgar e estabelecer 0 destino das almas que chegam até sua pre~ senca - so precisamente as cartas que escreveu. Trata-se de uma apro- priacao parasitéria e destrutiva dos frutos subjetivantes dé revivescéncias interiores, de processos de simbolizagao do ausente, de inaugu- racio ou cancelamento de compro- missos vinculares, de formulagao de desejos amorosos ou hostis, de rela- tos de experiéncias, de retomada de projetos, de recuperagio e reatamen- to de hist6rias. Frutos de processos que cla mesma contribuiu para de- sencadear. Serio concebiveis potencialida- des ou possibilidades miltiplas de emergéncias ¢ desenvolvimentos de processos subjetivantes? Que situa~ es, ou que ordenamento particu- lar dos elementos de uma situagao, na sua configuracao cénica, ou que ‘dispositivos” (tomando um concei- to da andlise institucional) os dispa- ram € sustentam? Que incidéncias os inibem ou bloqueiam? Indo para 0 contexto da filmagem, conforme 0 relato do proprio tor, a instalacio da mesa provocou uma aproximacio espontinea de pessoas dispostas a “citar suas car tas’ que interrompeu o fluxo de fa- las preparadas. O “desvio” acabou produzindo seqiiéncias de uma viva- cidade tal, que explica a voltagem ‘emocional do impacto produzido nos espectadores, (© outro personagem, o alter do filme com quem Dora contracena, € ‘um ser exposto aos perigos decor rentes de uma condligo social “obje- tiva" de maximo desvalimento e de- samparo, mas animado, nesse sen- tido de alma que estamos recuperan- do, por um desejo fundamental que orienta sua existéncia: encontrar 0 pai, ser reconhecido por ele e des- frutar dos valores dignificantes con- feridos por uma familia, um sexo € um oficio pleno, para o menino, de significagao social. Este desejo ¢ este ideal - que podemos chamar de wid- ico no sentido conceitualmente mais rico € mais denso que Ihe conferi- mos hoje em dia - vai ser 0 que pro- duz “enganche” no indestruido (e por defini¢ao indestrutivel) do de- sejo inconsciente de Dora. St possibilita a elaboragao de algo vivido, significativo para 0 outro, que se ressignifica para o sujeito. ‘A mesinha da “Escriba” no meio da estagio, interrompe a circulacao, produz um corte, induz um desvio, uma fala, um pensar reflexivo, cria um. espace um tempo diferentes. Atravessando 0 combate de vida ede morte que marca o encontro € 0 comeco do vinculo entre ambos € que produz parada e, finalmente, corte no fluir alienado © monétono 69 da existéncia dela, essas sd as for- ‘cas que impulsionam e sustentam, na proposta cle diretor, a viagem em bus- ca da recuperacio (nostilgica e por- tanto ilusGria?) , da conquista (precé- ria?) ou da invengio (incerta?) de uma humanidade possivel.! 5 cenérios insdlitos, geografi- cos € sociais, que essa viagem vai percorrendo suscitam uma multiplici dacle de associagdes € interpretagdes A temporalidade encontra-se, aqui, ‘em jogo. Em quase todas elas, em nossa opiniao na perspectiva de um. suporte evocativo, de forte senso- rialidade sem dtivida, mas destinado a uma espécie de rememoragio pa radoxal de um nao vivido, que pos- sibilita a elaboragao pela historizacio de algo vivido, que a0 ser significative para outro se re-sig- nifica para si, desfazendo os recalques ou recusas que o deixavam esqueci do ou anulado. Aspecto forte e cor vincente do processamento subjet vo de Dora que faz assemelhar-se a0 processo de anilise. perspectiva de uma proposta mais abrangente para um contexto mais amplo, o filme (e o debate) ac ba estimulando-nos menos a uma volta para um Brasil arcaico, que a uum trabalho da hist6tia, com evoc ‘oes ou sem elas, que permita uma “volta” ao Brasil atual NOTAS E Gaede, Des tn ce Bain te Comentroe™ vita Subjtodader Contempo: 97 BJ Kies, tas mucous enfermedades del ala, Mach Eaciones ited 193, “4. ‘Dest fot ur tnd comers etc nn ‘rslgumas ds inimerssnteoqagees seca, Shrate 0 dese, pls commumeagtes de Mit Chnsiderman ¢ de Oigsrin Matos, tambem publica nae nomen Ge Pectesa

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