You are on page 1of 47
A CONSTITUICAO COMO RESERVA DE JUSTICA* OSCAR VILHENA VIEIRA “Mas muito mais freqiiente & os homens serem distraidos de seus principais interesses, mais importantes mas mais longinguos, pela sedugao de tentagdes presentes, embora ‘muitas vezes totalmente insignificantes. Esta fraqueza é incurdvel na natureza humana”. David Hume A teoria da Constituigao, que por muito tempo recebeu exclusi- va atengdio dos juristas!, tem sido revisitada, e com bastante freqiiéncia, pelo pensamento politico contempordneo. Elster, por exemplo, utiliza-se de uma passagem da Odisséia de Homero?, onde Ulisses determina que 0 amarrem ao mastro de sua embarcagdo, pois sabe que se estiver livre ndo resistiré a0 canto mortal das sereias, para explicar o papel das consti- tuigdes nas sociedades democréticas. Com as maos deliberadamente ata- * A expressio “reserva de justica” tomei emprestada de José Joaquim Gomes Canotitho. Sou imensamente grato aos professores Leda Pereira da Mota, Ana Candida da Cunha Ferraz, Paulo Sérgio Pinheiro e Gabriel Cohn, pela generosa leitura e comentérios que fizeram sobre este texto; aos professores Alejandro Garro ¢ Gerald Neuman, da Universidade de Columbia, e Paul Chevigny, da Universidade de Nova York, agradego a leitura das versdes preliminares deste trabalho. Meu maior agradecimento, no entanto, é 2 Beatriz, que, além de leitora, no ‘me deixou abandonar este projeto. T Tenho em mente autores como Maurice Hauriou, na Franga, A. V. Dicey, na Inglaterra, Santi Romano, na Itélia, Edward Corwin nos Estados Unidos, ¢ mais recentemente Carl ‘Schmitt, na Alemanha, Kelsen, na Austria, Karl Loewenstein e Carl J. Friedrich (que, embora de origem alemd, desenvolveram suas carreiras nos Estados Unidos) Rui Barbosa, Afonso Atinos de Melo Franco, J. H, Meirelles Teixeira e Paulo Bonavides, no Brasil 2 Homero, Odisséia. trad. Jaime Bruna. Sio Paulo, Cultrix, p. 142, 34 LUA NOVA N42 —97 das, Ulisses consegue passar ao largo dos rochedos, ouvir 0 canto das se- reias, sem, no entanto, a ele sucumbir.3 Neste mesmo sentido suas paixGes e fraquezas.‘ Ao estabelecer que certos direitos e instituigdes encontram-se acima do alcance dos 6rgaos ordindrios de decisao politica, ‘ou mesmo fora de sua competéncia por forga das limitag6es materiais ao com cautela. no apenas Aquela que estabeleceu a Constituigao. Também se distingue do modelo de Ulisses na medida em que no processo constituinte a rigidez ndo funciona como simples auto-limitagao, mas| e alterar 0 decidido no processo de elaborago da Consti- tuigdo. No dizer de sim € que a Constituigado Francesa de ) OW a brasileira de 1891, definem a Repiiblica como preceito inalterdvel, fe- chando as portas aos monarquistas, inimigos da Constitui 3 0 paralelo desta passagem do Livro XII da Odisséia de Homero com o constitucionalismo € explorado por Jon Elster em Ulisses and the Sirens. Cambridge, Cambridge University Press, 1979; agradego & professora Maria Herminia Tavares de Almeida por ter me chamado a atengao para a sua leitura 4 Jon Elster, “Precommitment and Constitutionalism”, Columbia University materials, 1995, 1; Stephen Holmes, “Precommitment and the Paradox of Democracy”. in Passion & Con- straint. Chicago, The University of Chicago Press, 1995. 5 De acordo com Hume os homens softem de alguma forma de miopia pela qual sempre pre- ferem a satisfagdo imediata aquela futura, “Da origem do govemno”, in Ensaios morais, politicos e literdrios. S30 Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 225{)para Elster esta inconsisténcia temporal se manifesta pois quando os individuos planejam seus comportamentos eles tendem a atribuir ao futuro bem-estar um valor presente mais baixo do que 0 verdadeiro, “Precom- mitment”, ob. cit. . 6 Para uma auto-critica da abordagem adotada em Ulisses and the Sirens, ver do proprio au- tor “Ulysses Revisited - Precommitment and Constitutionalism”, ainda nao publicado, Uni- versidade de Columbia, 1995. 7 Carl Schmitt, “La Revolucion legal mundial”. Agora (Buenos Aires) no. 6, 1997, 132 ss. (Também neste mémero de Lua Nova). A CONSTITUIGAO COMO RESERVA DE JUSTICA 55. Guardadas estas distingdes, a imagem de Ulisses atado ao mas-- tro de sua embarcaco, por vontade propria, com a finalidade de.se auto- preservar, é paradigmatica dos sistemas constitucionais democréticos, em que a sociedade, através de um instrumento constitucional rfgido, restringe seu préprio poder de decisdo, objetivando perpetuar sua liberdade de de- cidir. Sua autonomia, Nos dois casos a possibilidade de ago por parte do individuo ou do corpo politico € bloqueada com o objetivo de auto- preservaciio. De acordo como Stephen Holmes as limitagées criadas pelo» constitucionalismo sao habilitadoras e emancipatorias.8 Esta possibilidade de auto-limitago e de restrigio da vontadé majoritéria das geragGes futuras é, no entanto, muito problematica se vista da perspectiva da teoria democratica, mais especificamente das teorias de- mocrticas procedimentais ou majoritérias. Para essas correntes a democra- cia “é um sistema de governo da maioria que nao impoe restrigdes substncia dos resultados sancionados pelo eleitorado, com excec&o daque- las que so exigidas pelo proprio procedimento democratico de governo popular. Assim toda a pretensfo de se controlar os resultados produzidos~ pelo procedimento democrdtico, que extrapole a defesa dos requisitoss minimos para o funcionamento da democracia, ser4 espuiria e injustificavel.’ Para os liberais, em sentido oposto, a inveng4o constitucional como meca- nismo de precomprometimento € absolutamente justificdvel, pois é um ex- celente mecanismo para a proteco de direitos, aos quais o procedimento democratico deve se submeter, Inscrevendo os direitos nas constituigdes, esses sio colocados a salvo das paixées e irracionalidade das massas/ O problema é saber que direitos so esses. Sdo direitos naturais transcen- dentes e portanto devem ser respeitados por emanarem de uma ordem su- perior, ou simples direitos positivos, colocados pelos proprios homens? Caso se compreenda que os direitos so fruto da construgéo humana, a questio da legitimidade da fonte produtora desses direitos, como a de sua justiga intrinseca, se colocam de forma obrigat6ria, Sem uma justificativa plausfvel ndo ha porque obedecer. Com a crise do direito natural, e, portan” to, a dificuldade de se estabelecer um critério independente de justiga, difi- cilmente se pode predeterminar a justica de um preceito juridico, sem que se incorra em uma escolha arbitréria. E nesse ponto que o procedimento de- mocrdtico, como mecanismo para a tomada de decisOes coletivas, exerce uma fi justificadora fundamental. Isto porque a democracia € a tinica forma de governo, até hoje encontrada, capaz de dar igual tratamento aos individuos no momento de estabelecer uma regra que a todos obrigara. 8 Ver Stephen Holmes, ob. cit, p. 134 ss. 9 Amy Gutmann , “A desarmonia da democracia”. Lua Nova, no. 36, 1995, p. 8. 56 LUA NOVA N°42—97 Para Robert Dahl, toda vez que se busca justificar a democracia se retoma uma presungado moral basica “denominada idéia intrinseca de igualdade.”!© Além de iguais os “individuos adultos so, em geral, os me- Ihores juizes dos seus interesses”. Dai a necessidade de que o governo dé igual consideragdo aos interesses de cada um na formaciio da vontade cole- tiva. A igualdade e a autonomia s6 se realizam num sistema em que cada um seja governado por uma vontade da qual participe. Se o princfpio fundante da democracia € a igualdade e autonomia de todos, qualquer mecanismo que suspenda uma decisao decorrente do processo de deliberaciio majo- ritéria serd, a priori, inaceitavel. Caso se assuma que todos so iguais, nao hd como se justificar que um grupo de sabios possa julgar e substituir a von- tade da maioria pela sua propria vontade, pois o mecanismo mais capaz de realizar um procedimento decis6rio que dé igual valor a todos € a regra da maioria, Ao somar as vontades individuais, atribuindo-lhes igual valor, a decisdo a ser tomada é aquela que corresponde & vontade do maior ntimero. Dessa perspectiva apenas aquelas expressdes da vontade da maioria que violem os proprios fundamentos ou procedimentos da demo- eracia € que podem ser legitimamente bloqueadas, Qualquer tentativa de controlar decisoes substantivas, que ndo estejam estritamente ligadas com a estrutura da democracia serd considerada ingeréncia ilegitima no proce- dimento democrdtico. As constituiges rigidas, principalmente aquelas que dispdem de um controle jurisdicional da constitucionalidade, e que portan- to autorizam que autoridades ndo eleitas bloqueiem decisdes tomadas pe- Jos representantes dos cidadaos, constituem auténticos mecanismos anti- majoritérios. Dai as tens6es entre constitucionalismo, que privilegia a protegdo de direitos, e democracia, que enfatiza a regra da maioria. CLAUSULAS SUPER-CONSTITUCIONAIS E DEMOCRACIA Esse paradoxo decorrente das relagdes entre constitucionalis- mo e democracia torna-se ainda mais agudo com o estabelecimento pelas constituigées contemporfineas de (€lfusulas super-constitucionais) Estas nado apenas criam dificuldades quantitativas ao legislador, mas obstaculos intransponiveis, pois diferentemente das demais cléusulas constitucionais nao podem ser alteradas!! ou abolidas!2, sequer por um procedimento qualificado, Este fendmeno da adogdo de limitagées ma- 10 Robert Dahl, Democracy and its Critics. New Haven, Yale University Press, 1989, p. 85. U1) Conforme a formulagio dada pelo art. 79 (3) da Lei Fundamental de Bonn. 12, Conforme formulagao dada pelo art. 60, para, 40., IV. da Constituigdio Federal de 1988. [A CONSTITUIGAO COMO RESERVA DE JUSTICA 37 teriais ao poder de reforma da Constituigéo, embora ndo seja uma novidade, sofreu um Tradi- cionalmente diversas constituigdes estabeleciam a intangibilidade de certos aspectos estruturantes do sistema politico, como a forma repu- blicana ou federativa.!2 Na propria histéria constitucional brasileira, a partir da proclamag3o da Repiblica, encontraremos esse tipo de vedacdo constitucional expressa, impedindo a alteragdo das formas re- publicana e federativa.!3 Essas “cldusulas pétreas” tinham cardter estdtico, voltado a impedir a supressdo da estrutura basica pelo qual o poder deveria ser exercido.!4 As atuais limitagdes materiais ao poder de emenda tém um cardter mais dinamico e sao passiveis de defesa por intermédio do Judicidrio. Além da protegao da estrutura central do poder contra uma total ruptura, buscam impedir que mudancas consti- tucionais “normais” gerem uma erosio dos _princfpios_e valores basicos_da_Constituigao. Passam assim a ter uma fungdoex-parte po} 5 mudancas ocorreram em primeiro lugar na Alemanha por motivos dbvios. Foi I4 que a erosdo do direito natural e do constituciona- lismo liberal e a desformalizagdo!5 do direito levaram a efeitos mais ca- tastr6ficos.!6 Naquele pafs a hegemonia do positivismo juridico afastou 13 Para uma andlise das tradicionais clausulas pétreas ver Carl Friedrich, Gobierno constitu- nal y democracia. Madri, Instituto de Estudios Politicos, 95 simplesmente anula a Constituigo por um golpe de Estado...” , Teoria de La Constitucion Barcelona, Ed. Ariel, 1983, 216 € ss. Este tipo de argumento, no entanto, questiona no ape- nas a uitidade de cldusulas pétreas, mas da prépria Constituigdo ¢ do direito em geral, pois a principio, nenhum mecanismo por si garante a eficdcia do direito constitucional. Esta decorre de uma construgao da sociedade e de sua prépria legitimidade. 15 alo de desformalizagio do direito no sentido emprestado por Max Weber, como transfor- ‘magio das caracteristicas internas do direito voltadas a atender as demandas do estado de bem. estare sua legislagio dirigista e regulamentadora, fundamentalmente importa a perda da forma bisica da lei, que € seu carater de abstragdo e generalidade. Economia y Sociedad. México, Fondo de Cultura, 1984, 639-660; Para uma interessante andlise do conceito de lei como not- matizagao geral e abstrata ver Giovanni Sartori, Teoria de la Demacracia. Madrid, Alianza Universidad, 1987, capitulo XI, especificamente “La supremacia de la lei en Rousseau”. 16 Nos Estados Unidos a erosio da idéia de direitos naturais e a desformalizagao do diteito sim- plesmente abriram espago para surgimento do estado de bem estar. A critica do Justice Holmes € dos realistas demonstrou que sob a capa de direitos naturais a Suprema Corte e as demais instanciasdo judicidrioestavamnarealidadedefendendoadoutrinaecondmicado laissez-faire. 38 LUA NOVAN°42—97 por definitivo substancia e forma, moral e direito!7, deixando um fértil solo para a erosdo da Constituigdo de Weimar pelos decretos de Hitler. Esta ruptura dos paradigmas jusnaturalistas, embora sem conseqiiéncias tao dramdticas como as da Alemanha, difunde-se por todo 0 mundo oci- dental. Nos paises de tradigdo romanica, sobrepés-se ao jusnaturalismo nquanto nos paises de fala inglesa é que passou a exercer maior influéncia no mundo do direi @B barbaries dos totalitarismos, onde o direito foi transfigura- do em um mero mecanismo de organizagdo e imposigao da forga, aler- tam para a necessidade de se reconstruir o sistema juridico a partir de um contetido ético mais s6lido. No entanto, se deu na esfera positiva pela protecao oferecida as chamadas cldusulas intangiveis pelo art. 79 (3) e pela abertura constitucional as idéias de inalienabilidade dos di- reitos humanos. Na esfera supra-constitucional impds-se a submissao dos poderes do Estado & “justica” (art. 20 (3) ), garantindo-se também 0 direito de resisténcia (art. 20 (4))) Tem-se assim um processo de subs- tantivagao do direito constitucional, passando a legitimidade da pro- dugio legislativa, assim como da reforma da Constituicdo, a estarem vinculadas nao somente & realizagio de um procedimento!8, mas & sub- missdo a um direito com contetido ético, que busca seu fundamento nos direitos humanos, no direito natural e nos princfpios do Estado de direi- to e da separagiio dos poderes. 17 Para uma abordagem filoséfica deste processo de mudanga dos paradigmas da cultura Juridica que precederam o nazismo ver Celso Lafer, A Reconstrucdo dos Direitos Humanos, ‘Um Didlogo com o Pensamento de Hannah Arendt. So Paulo, Cia. da Letras, 1988, particu- tea Parte |. A CONSTITUIGAO COMO RESERVA DE JUSTIGA 59 A SUPER-CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL No Brasil um amplo grupo de cléusulas super-constitucionais foi estabelecido como cerne inalterdvel do Texto de 1988. O enrijecimento desses dispositivos, por forga do artigo 60, pardgrafo 40., IV da Consti- tuigdo, constitui uma resposta as diversas experiéncias autoritéria de nossa histéria, nas quais os princfpios e direitos, agora entrincheirados como cldusulas super-constitucionais, foram sistemdtica e institucionalmente violados//A)adogio dessas cldusulas limitadoras do poder de reforma tam- bém parece corresponder a uma alteracio do proprio modelo constitucio- nal adotado em 1988. u de cardter social, que se iniciou com a Constituigao mexicana de ea Constituigao de Weimar de 1919. Diferentemente das constituigées liberais, que buscavam limitar © Estado assegurando 0 maior espago de liberdade para o mercado, as is organizam um Estado que visa promover?? 0 bem estar da sociedade, sendo, portanto necessariamente mais amplas do que as constituigdes liberais classi ulada num ambiente democrdtico, sob a influéncia de uma participagao social jamais vista na hist6ria legislativa e constitucional brasi- leira, a Constituigdo de 1988 foi também impregnada pelo corporativismo da politica brasileira. Constituiu-sea partir de um compromissoentreos diversos setores da sociedade e do Estado que detinham poder naquele momento. Constitucionalizou-se, porexemplo, atipifi- cagao de crimes, o sistema tributdrio nacional, os interesses de diversas corpo- rages, um detalhado sistema de previdéncia, etc. A inflagdoconstituinte, que ampliou a inclusdo de matérias tipicas de legislaco ordindria no texto consti- tucional, colocando-as no mesmo patamar hierdrquico que os temas mais es- 1 Pua un rt su oem ve os SRE CA CORES vinculagao do legislador. Coimbra, Coimbra., I 20 Para a funcio promocional do direito ver Noberto Bobbio, Dalla strurura alla funzione. Mildo, Ed. di Comunitd, 1977. 60 LUA NOVA NP 42.—97 senciais, como os direitos fundamentais, a organizagao do Estado de direitoe ademocracia, além de banalizar esses princfpios e valores, deu a Constituiga “endo aConstituigdo formal se flexibilizado, as cléusulas super-constitucionais vieram estabelecer uma outra barreira, esta mais lta, a0 proceso ordindrio de reforma.22 Destinadas a salvaguardade va- lores nucleares ¢ fundamentais da Constituigdo, as cldusulas super- constitucionais também server como princfpios que auxiliam ainterpretacdo constitucional, suprindo as dificuldades tenses impostas pela desformali- zago do direito constitucional, que acompanham a implementagdo de uma Constituicdo tdo vasta como a brasileira. Tem-se desta maneira um constitu- cionalismo social desformalizado, em que impera uma cultura juridica positi- vista, porém submetido a regras super-constitucionais que pretendem asse- gurara intangibilidade dos valores ético/constitucionais fundamentais. Um constitucionalismo fortalecido por dispositivos super- constitucionais, como os inscritos no texto de 1988, pode servir como protegiio contra paixdes daqueles envolvidos pelo canto mitico das se- reias® ou simples inconsisténcias temporais, a que estamos todos sujeitos. Porém, caso esses dispositivos super-constitucionais sejam mal formula- dos, compreendidos ou interpretados, poderao servir como barreira intransponivel As decisOes majoritarias, protegendo privilégios ou insti- tuigdes incompativeis com as necessidades impostas por uma hist6ria em constante fluxo. Nesse sentido 0 constitucionalismo torna-se um instru- mento antagénico a democracia. Este dilema classico da teoria politica, en- tre democracia e constitucionalismo, entre procedimento e valores, entre (oo nota Carlos Ari Sundfelg, este detalhamento jusifiease na medida em que hava, € no sem motivos, uma grande desconfianga no legislador comum e nos demais poderes, encartegados de aplicar a Constituigio, assim restringir ao méximo o espago de discricionariedade dos érgios constitufdos. 2 Ordindrio aqui inclui o processo na constitucional por intermédio de emer acordo com a proposigio ndo acatada, a Constituigao seria ‘enquanto a maioria seri Os Fundamentos da Liberdade. Brasilia, idade de Brasilia, 1983. A CONSTITUICA COMO RESERVA DE JUSTICA 61 regra da maioria e direitos, é 0 que pretendo explorar nesse ensaio/Oargu- mento fundamental desse trabalho € que’ se as limitagGes materiais a0 po der de reforma derem protegao especial a direitos, princfpios e instituigdes que além de essenciais 4 formagéo de uma vontade democratica constitu- am uma verdadeira reserva de justica constitucional, ndo se colocarao > como uma afronta a democracia. Ao retirar do ambito de deliberagao ma- joritéria aqueles direitos, princfpios e instituiges que constituem a reserva de justica da Constituigdo, as cldusulas super-rfgidas se transformam em legitimo instrumento de preservagaéo da democracia, paradoxalmente, ao limité-la, Como na Odisséia de Homero, esses mecanismos de auto- limitacdo e precomprometimento, se bem construidos, interpretados ¢ apli- cados, poderdo favorecer a continuidade da jornada.24 O problema € deter- minar, racionalmente, que direitos, princfpios ¢ instituigdes sdo estes. A CONSTITUICAO E SUA RESERVA DE JUSTICA. Dé acordo com Habermas) a/proposigad de Weber de que oidis teito moderno seria fruto de uma racionalizagdo auténoma, moralmente neutra, e que constituiria a base de sua propria legitimidade, nao se reali- zou por completo.25 Desta forma, se as constituigdes pretendem ser validas, devem ser intrinsecamente boas, funcionando como “reserva de justiga” para os sistemas politico e juridico que organizam. Assim: “o cri- tério de legitimidade do poder constituinte nao € a mera posse do poder, mas a concordancia ou conformidade do acto constituinte com ‘as idéias de justiga’ radicadas na comunidade, Poderia talvez dizer-se que o funda- mento de validade da Constituicao (=legitimidade) é a dignidade de seu re- conhecimento como ordem justa (Habermas) e a conviccio, por parte da colectividade, da sua ‘bondade intrinseca’.”26 Isso nado significa, no entan- to, que para se fundamentar eticamente o direito deva-se fazer um retorno ao velho direito natural - em qualquer de suas diversas matizes. As pro- postas absolutas das teorias substantivas do direito natural, com suas de- mandas universalmente obrigatérias, so demasiado fortes, ao ver da filo- sofia contemporanea’, para regular sociedades pluralistas, onde hd varias pretensdes ao estabelecimento de verdades morais, que embora confli- 24 Para uma anilise das restrigdes do constitucionalismo como mecanismos que habilitam & fortalecem a democracia, ver Stephen Holmes, ob. cit, 1997. 25 Jurgen Habermas, “Derecho y Moral”, in David Sobrevilla (org) El Derecho, la Politica y la Moral. México, Siglo Veintiuno Ed., 1991, p. 37. 28 José Joaquim Gomes Canotlho, Direito Consrnucional. Coimbra, 1993, p. 111 idem, 36. (ed LUA NOVA N°42—97 tantes ndo podem ser excluidas.28 A legitimidade do direito tem que ser buscada, antes de mais nada, em teorias éticas procedimentais. A ‘oi, certamente, 0 esforgo mais significativo da teoria politica contempordnea para superar as incon- sisténcias do direito natural, com suas cargas valorativas de diffcil justifi- cago numa sociedade pluralista e democratica sem, no entanto, abrir mo da necessidade de se estabelecer princ{pios de justiga que informem a or- ganizacio e cooperacdo dos individuos em sociedade. (Afasta-se, assim) tanto dos jusnaturalistas modernos, que desenvolvem suas teorias a partir de valores preconcebidos, como dos relativistas, que negam a possibi dade do estabelecimento de preceitos morais dotados de validade e assu- mem uma postura puramente decisionista. Os adversdrios primordiais de Rawls, no entanto, sdo os utilitaristas, que véem justificativas para de- cis6es morais apenas no principio da maximizagao da felicidade para o maior ntimero.2? Essa alternativa € descartada por Rawls, para quem “cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiga que nem mesmo o bem estar da sociedade pode sobrepujar.”30 Num trabalho que pretende explorar os problemas concernentes & adogdo de cléusulas constitucionais que ndo podem ser alteradas por emenda a Constituigdo, 0 pensamento de Rawls é provocador. Pois se as cldusulas super-constitucionais so uma limitagdo A democracia, elas pre- cisam de uma justificagdo muito forte se pretendem se legitimar. Nao ha- vendo mais condigdes de fundar essa legitimidade num direito transcen- dente, e nao se aceitando os riscos do decisionismo relativista ou utilitarista, necessdrio se faz buscar numa teoria procedimental da justiga, como a de Rawls, os fundamentos de uma ordem constitucional justa e por conseqiiéncia os elementos constitucionais que poderiam se constituir legitimamente como obstéculos ao poder constituinte reformador. Para Rawls o estabelecimento de padrdes morais deve decorrer de uma construgao racional e ndo de uma pressuposigao, como na teoria natura- lista, Assim, sua Teoria da Justiga empenha-se nesse processo construtivo. Antes de mais nada é necessdrio salientar que a empreitada de Rawls limita- se a uma esfera experimental e abstrata que permita a elaboracao racional de dispositivos morais. Assim como Locke ou Rousseau, Rawls nao pretende que as operagées por ele descritas para 0 estabelecimento dos principios de “The Idea of Overiaping Consensus Press, 1993, p. 135. 29 Para uma precisa andlise da obra de Rawls ver Alvaro de Vita. Justiga liberal. Rio de Ja~ neiro, Paz e Terra, 1993, e do mesino autor “A tarefa prética da filosofia politica de John Rawls", Lua Nova, 25, Sao Paulo, 1992. 30 John Rawls, Theory of Justice. Cambridge, Harvard University press, 1971, p. 3. in Political Liberalism. New York, Co- A CONSTITUICAO COMO RESERVA DEJUSTICA 683 Rawls pressupée uma sociedade bem ordenada, que possibilite a identidade de interesses e cooperacao social, entre cidadiios livres e iguais, que faca a vida melhor do que se cada um vi- vesse separadamente; essa sociedade bem ordenada est4 unida a partir de princfpios morais basicos. Hé porém conflitos de interesses nessa sociedade, posto que as pessoas niio so indiferentes sobre de que forma deve-se distri- buir os beneficios decorrentes da colaboracao entre os individuos. Assim ne- cessita-se de um conjunto de princfpios de justica que satisfaga os partici- pantes.3! Sao esses principios, que irdo definir a estrutura bésica da sociedade, que a Teoria da Justiga busca apresent Wwls utiliza-se do para demonstrar de que forma é possivel alcangar esses princfpios de justica sem a necessidade de uma metafisica. Sua fungdo € 0 estabelecimento de uma situacdo especial onde os individuos sejam capazes de fazer julgamentos morais imparciais, ou seja, em que tenham a capacidade no s6 de “ter uma concepgiio de seu proprio bem” como também de pensar e respeitar as concepgdes alheais de bem.32 Para alcangar seu objetivo ‘rata-se portanto de uw do contar com critérios independentes de justi¢a, como os oferecidos pelo direito natural, para avaliar se os resultados sdo justos, Rawls busca esta- belecer um procedimento onde os resultados sejam necessariamente jus- tos, em fungao da justica do préprio procedimento. rimeiro estigio desse procedimento, que denomina indiv{duos racionais esto separados do mundo real por pelo qual ficam destitufdos da capacidade de pen- sar estrategicamente sobre o resultado das decisGes que esto tomando. Nao sabendo sua condigao social, religiao, género, habilidades intelectuais ‘ou fisicas na sociedade que esto organizando, nfo serao capazes de prever se as decisdes tomadas Ihes serdo benéficas ou no. Devem portan- to deliberar e decidir sobre os princfpios de justiga que irdo organizar a es- trutura da sociedade independentemente de seus interesses particulares. Nessa posig&o irdo escolher os principios de justiga de forma absoluta- mente imparcial, pois no sabendo qual a sua futura insergdo na sociedade que esto estruturando, irdo racionalmente buscar estabelecer um ambiente que nao thes seja desfavordvel, caso estejam numa posicao social e econdmica menos privilegiada, ou pertengam a uma minoria discriminada) 31 idem, p. 4. 32 De Vita. ob cit, 1992, p. 10. 64 LUA NOVA N°42—97 Decidindo nesse ambiente artificial. agentes racionais, que bus- cam maximizar seus interesses e minimizar suas perdas33, escolheriam, ao ver de Rawls, os seguintes princfpios de justiga: 1) “cada pessoa deve ter igual direito a mais ampla liberdade compativel com a liberdade dos de- Mais”. Como salienta Fletcher, essa é uma outra maneira de expressar 0 princfpio kantiano de que cada pessoa deve gozar de maxima liberdade, de forma que “a escolha de um possa se unir a escolha de outro de acordo coma lei universal da liberdade.’"34 Sob o véu de ignorancia individuos racionais escolheriam ter suas liberdades maximizadas, porém de forma igualitaria, pois ninguém correria o risco de ficar em desvantagem de direitos em relagiio aos demais. O segundo princfpio a ser escolhido por aqueles que se encontram na posico original refere-se a distribuicdo, Conforme a formu- lagéo de Rawls as 2) “desigualdades sociais e econdmicas devem ser arran- jadas de forma que ambas correspondam (a) a uma razodvel expectativa de que a todos beneficiardo, e (b) que sejam ligadas a posigGes e postos abertos & todos.”3° Por intermédio do “principio da diferenga” Rawls busca corrigir os problemas de um igualitarismo que néo se beneficie dos incentivos pro- vocados pela desigualdade. De acordo com o “prinefpio da diferenga” a de- sigualdade ser4 admitida, desde que beneficie os menos favorecidos. Dessa forma, permitir que um médico/cientista receba mais do que os demais, pode ser um incentivo para que ele descubra a cura de varias doengas que afetam muitas pessoas, Nesse caso qualquer pessoa na posigao original de- veria racionalmente optar por estabelecer esses incentivos, pois caso ele contraia uma doenga pretenderd ter o melhor tratamento possivel.36(Por ine termédio do “principio da diferenga” Rawls busca minorar os efeitos de to- das as diferencas a que as pessoas estdo arbitrariamente submetidas, como diferengas quanto a recursos, educagao, talento, inteligéncia, origem fami- liar, etc. Os mais talentosos seriam assim estimulados a produzir bens ¢ co- nhecimentos que pudessem ser utilizados em favor dos menos favorecidos. Por fim, as posiges que poderiam receber uma maior alocagio de recursos, pois melhorariam a vida dos menos favorecidos, estariam abertas a todos.37 33 Rawls utiliza-se aqui do chamado prinefpio maximiin, que ¢ familiar a partir dteoria dos jo- £205, no explicar 0 que se deve entender por parte justa-em relagiio.aos resultados, de qualquer. empreendimento cooperativo. (..) Convém jogar de forma a minimizar as perdas méximas, ou ‘maximizaros ganhos minimos .., Alan Ryan, “John Rawls”. in Quentin Skinner (org,) As Cién- Ccias humanas e seus grandes pensadores . Lisboa, Publicagdes Don Quixote, 1992, 141 34 Fletcher, ob. cit, p. 136. 35 John Rawls, 1971, p. 60. 36 Ha uma larga bibliografia critica a presungdo de Rawls de que na posigdo original os agentes. racionais efetivamente escolheriam os dois principios que Rawls entende que escolheriam. Esta discussdo porém nio é relevante paraesse trabalho. Remeto para Alan Ryan, ob. cit. 140 ss. 37Para uma andlise eritica das conseqiiéncias da adogo do “principio da diferenga” ver Will Kymlicka, Coniemporary Potitical Philosophy . Oxford, Clarendon Press, 1990, p.70 ss. A CONSTITUICAO COMO RESERVA DE JUSTICA 65 Independentemente do acerto ou nao de Rawls no estabelecimento desses dois gives de juts acima descritos, a ingore de sua obra foi restabelecer a sibili ile se discutir eticamente, numa “a domina- da pelo ceticismo e pelo relativismo, critérios independentes de justiga que devem informar a Constituigao de uma dada sociedade, Como numa socie- dade pluralista os individuos tendem a discordar sobre as decisdes que vin- culam a todos, principalmente quando afetam seus interesses, necessdrio se faz 0 estabelecimento de um procedimento justo para a tomada de de- cisdes coletivas. Comega aqui a segunda etapa da teoria de Rawls. Apés a adocao dos prinefpios de justiga na posigdo original, as pessoas se voltam para 0 processo de elaboraco da Constituigdo. “Aqui eles devem decidir sobre a justiga das férmulas politicas e escolher uma Constituigao...Submetidos aos limites dos princfpios de justi¢a j4 escolhi- dos, eles devem desenhar um sistema para os poderes constitucionais do governo e os direitos bésicos dos cidadaos."3* Trata-se de um momento ainda artificial, em que o véu da ignor&ncia foi apenas parcialmente levan- tado, e as pessoas continuam a onto suas oe pessoais, ou econdmicas, tendo informagées exclusivamente gerais sobre 0 nivel cultural e econémico da sociedade, e logicamente sobre os dois principios © procedimento seria 0 processo politico governado pela Constituigdo, 0 resultado 0 corpo de legislacao adotada, enquanto os princfpios iriam definir um critério independente tan- to para o procedimento quanto para a legislagao"3? Para se compreender a teoria constitucional de Rawls é impor- tante notar que o autor estabelece uma hierarquia entre os dois princfpios, sendo certo que a Constituigao abriga o primeiro e a legis- 38 Rawls, 1971, pp. 196-197. 39 idem, p. 197. 66 LUA NOVA NP 42 —97 lagdo*se responsabiliza pelo segundo. “{O] primeiro princfpio da iguat liberdade é o parametro primério para o poder constituinte. Suas exigén- cias ptincipais sao de que as liberdades fundamentais das pessoas ¢ li- ‘berdade de consciéncia e liberdade de pensamento sejam protegidas e uigue‘o’ processo politico como um todo seja um procedimento justo. As- sim a Constituic¢éo estabelece um starus comum seguro de cidadania igualitéria ¢ realiza justiga politica. (©) Segundo principio entra em jogo no estdgio legislativo. Dita as politicas sociais e econdmicas sendo vol- tado a maximizar as expectativas de longo-termo dos menos favorecidos sob as condigées de igualdade de oportunidade, submetido & manutengdo das liberdades iguais.”#° Os estdgios acima descritos sfo parte de uma teoria e nio ‘uma‘constatagdo de como delegados constituintes e legisladores efetiva- smente-agem. O préprio Rawls reconhece que os parametros aferidos por sua Teoria da Justiga so muito abstratos, o que nao deve ser visto “conto: um defeito, pois a finalidade de sua teoria é apontar com mais ‘agudeza “os mais graves erros que uma sociedade deveria evitar”! na conformagdo de suas regras basicas de convivéncia. Nao é um programa de ago mas apenas uma teoria “que auxilia a pensar a questo da jus- tiga na Constituigao. Rawls busca reduzir esse grau de abstraciio e pretensio de estabelecer uma teoria geral de justiga em diversos trabalhos poste- tiores, compilados em Political Liberalism, que respondem as criticas e vastos debates que sucederam da publicacio da Teoria da Justica.O primeiro passo de Rawls é rever a idéia de sociedade bem ordenada. A sociedade bem ordenada onde os individuos partilham de valores mo- rais bdsicos, ndo parece possivel a luz das sociedades democraticas e pluralistas existentes, onde distintas visdes razodveis e concorrentes do mundo convivem, O que mantém essas sociedades unidas, portanto, “ndo“é uma visdo moral unificada, mas a adesdo a uma concepgdo politica de justiga, que pode e é feita a partir das diversas visées de mundo. Trata-se da adogio de um Se See Oe sobreposto (overlapping consensils) de dOutrinas compreensivas razodveis. “Nesse consenso, as doutrinas razodveis endossam a concepgiio politica, cada uma de seu préprio ponto de vista. A unidade social é fundada num consenso sobre a concepgiio politica; ¢ a estabilidade é possivel quando as doutrinas que compdem 0 consenso sio afirmadas pelos cidadaos ativos da socie- dade ¢ as exigéncias de justiga no estéo em muito conflito com os in- 40 idem, p..199. 4M idem , p. 201. ACONSTITUICAO COMO RESERVA DE JUSTICA 67 teresses essenciais dos cidaddos organizados e encorajados pelos seus arranjos sociais.""? Os regimes constitucionais devem ser analisados a partir de dois pressupostos: em primeiro lugar é necessério constatar que entramos para a sociedade por um ato involuntério; em segundo, o poder politico se organiza a partir da coergdo. A distin¢do dos regimes constitucionais democraticos € que as agdes do Estado séo uma representacdo da agdo de cidadaos iguais, portanto do poder do pablico. Inerente & discussdo dos regimes constitucio- nais est colocada a questo da demanda por legitimidade. exercicio do “poder politico € inteiramente préprio apenas quando 6 exercido de acordo com uma Constituicao cujos fundamentos (es- sentials) pode-se esperar de que todos os cidadaos como livres e iguais pos- sam endossar & luz dos princfpios e ideais aceitaveis 4 sua razdo comum. Esse € 0 princfpio liberal da legitimidade."* aos regimes constitucionais existentes, Rawls busca demonstrar que se pode partir de uma realidade constitucional que tem a capacidade de esta- bilizar as relagGes em direcdo a um consenso sobreposto que inclua certas demandas basicas de justiga. Embora ainda muito abstrata, e limitada a es- fera da filosofia 42 Rawls, Political Liberalism, p. 134. 43 idem, p. 137. 44 idem, p. 164. 4Sidem, p. 227 ss. 68 LUA NOVA N42 Jue se refere a pratica constitucional Rawls adota a Trata-se do estabelecimento de um ambiente discursivo ideal voltado para a deliberagiio sobre as questdes de justia politica e dos fundamentos constitucionais. Esta “razio publica”, ‘no entanto, nao se limita a organizagao da estrutura basica, mas também deve permear a acdo do Judiciario e especialmente dos tribunais constitu- cionais, ao decidirem casos ligados aos essenciais constitucionais: “isso porque os juizes devem explicar e justificar suas decisées como fundadas na sua compreenstio da Constituigao...”47 0 que nao é exigido do Legislati- vo e do Executivo ordinariamente. , OU Seja, capaz de fundar ra- cionalmente suas decisGes naquilo que foi decidido (fundamentos constitu- cionais) democraticamente, no proceso constituinte, Rawis nao vé porque a agdo do tribunal violaria a igualdade de participagao. “Ao aplicar a razio publica a Corte est a prevenir que 0 direito seja erodido pela legislagdo de uma maioria transitéria, ou mais possivelmente, por interesses bem organi- zados e situados... que conseguem 0 seu espaco. Se a Corte assume o seu papel e 0 realiza de forma efetiva, é incorreto afirmar que é simplesmente ‘Ao aceitar a visdo dualista da politica, awls nao coloca a Corte como sendo a guardia dltima da Constituicao. 46 Bruce Ackerman, We the People, Foundations. Cambridge, The Belknap Press of Harvard University Press, 1993, p.3 ss. 47 idem, p. 216. 48 idem. Destaque-se que Rawls alerta para o fato de que historicamente a Suprema Corte americana nao realizou esse papel, citando casos como Ded Scott e Lochner, p. 234. ‘A CONSTITUIGAO COMO RESERVA DE JUSTICA 69 O seu papel de intérprete definitiva da Constituigdo limita-se & aco do Legislativo, pois no governo constitucional ndo é o Legislativo, o Exe- cutivo e muito menos 0 Judicidrio que devem dar a ditima palavra, pois essa pertence ao povo. Quando este se manifesta, através de sua razdo ptiblica, no h4 limites que possam ser aplicados pela Constituicdo. Rawls admite que, sob a perspectiva da teoria moral, essa concepgao de Constituigdio possa ser inferior as constituigdes que impossibilitam a mu- danga de certas disposigdes ¢ princfpios essenciais, mesmo que isto seja realizado pelo proprio povo.*? Destaca, porém, que se emendas & Consti- tuigdo, promulgadas em conformidade com os procedimentos constitucio- nais que autorizam a reforma da Constituigdo, violarem preceitos essen- ciais como 0 da igualdade ou liberdade de expressdo, 0 que se tem nao é uma emenda, mas uma ruptura constitucional, podendo entdo ser inadmi- tida pela Suprema Corte. Ao sair do campo da filosofia moral e buscar articular argumen- tos de justificacaio da ago dos tribunais limitando a democracia, Rawls ba- sicamente segue a teoria do dualismo politico formulado por Ackerman, que nao responde a todas as demandas da teoria democratica, pois a dis- tingdo entre politica constitucional de hierarquia superior e politica or- dindria, de posigéio inferior, vista material ou moral. Assumindo a ipresentada por Dworkins!, Rawls compreende que © papel primordial dos tribunais é interpretar a Constituiciio da melhor for- ma possivel, por intermédio do seu texto, precedentes e prinefpios. E aqui vai mais além de Dworkin, propondo que os juizes fundamentem suas de- cisdes, quando necessdrio, também numa “concepgio politica de justiga” tal qual por ele formulada.s? Caso a corte ndo tenha uma teoria da interpre- taco razodvel ela ndo estaré cumprindo a sua fungao de articular o debate piiblico sobre os fundamentos constitucionais. 49 idem, pp. 234-235. 50 Bruce Ackerman, We the People, p. 295 ess. 51 Para uma andlise das idéias de Ronald Dworkin em relagdo a teoria da interpretagdo ver Law's Empire, Cambridge, Belknap & Harvard University Press, 1986, p.225 ss. 52 Rawls, ob. cit., 1993, ver especificamente nota 23, p. 236. 70 LUA NOVA N° 42 — 95 EXIGENCIAS DA DEMOCRACIA A CONSTITUICAO Para John Hart Ely alternativas como as apresentadas por Rawls € outros autores contemporaneos néo se despiram dos vicios que inviabi- lizaram as teorias do direito natural, como fonte de legitimaco para uma teoria da interpretagao constitucional coerente com a democracia. Ao seu ver, nas democracias representativas as decisdes morais devem ser feitas pelos representantés do povo e nao por magistrados que néo possuem nenhuma legitimidade democratica. Ainda mais quando os juizes utilizam- se de teorias filosGficas que sequer os fildsofos reconhecem consensu- almente como verdadeiras. Ely apresenta assim uma alternativa que pode acomodar a possibilidade de controle da constitucionalidade das leis, e no nosso caso de emendas, com o préprio principio democratico, que exige 0 direito de cada geragao de se auto-governar. A construgio de Ely interessou tanto & ciéncia politica porque ao invés de investir no aperfeigoamento das teorias da interpretagao até entao existentes, como tem feito Dworkin, afinando o seu instrumental de forma que a discricionariedade judicial ficasse reduzida, Ely reavalia 0 papel do controle da constitucionalidade na sociedade democratica. O principal problema do controle da constitucionalidade, ao seu ver, consiste no fato de que “um corpo que nao € eleito ou mesmo responsével politica- mente de nenhuma forma significativa estd a dizer aos representantes elei: tos pelo povo que eles ndo podem governar como querem.”33 Isso pode ser compreendido como certo ou errado, dependendo do prinefpio do qual se parta. Se o princfpio que fundamenta o sistema politico for 0 democratico, © poder dos tribunais de controlar a constitucionalidade das leis dificil- mente deixard de criar embaracos. Principalmente se a corrente doutrindria dominante compreender que ao interpretar a Constituicdo os juizes devern ir além das fronteiras do texto%4, como quer Dworkin. O que, como visto, pode ocorrer com uma freqiiéncia indesejavel, quando se trata de interpre tagdo constitucional. Assim, para Ely, num Estado que nasceu sob o signo da demo- cracia, de que a vontade de cada um deve ser levada em conta na cons- 53. John Hart Ely, Democracy and Distrust. Harvard University Press, 1980, pp. 4-5. 54 Bly denomina essa corrente de nio-interpretativista; a esta corrente se contrapdem 0s inter- pretativistas, para quem os jutzes ao decidirem um caso devem se limitar a aplicagao das nor- ‘mas constitucionais ou aquelas claramente implicitas no seu texto, pois assim os jufzes no estariam substituindo a vontade dos legisladores pelas suas préprias, mas apenas pela von- tade da Constituigo, enquanto os ndo-interpretativistas estariam aplicando valores proprios ‘ou buscando valores fora da Constitui¢ao para realizar sua fungSo adjudicativa, idem, 1; para ‘uma breve andlise das idéias de Ely sobre os modelos de interpretagao ver Canotilho, Direito Constinucional, p. 197. ‘A CONSTITUICAO COMO RESERVA DE JUSTICA n trugdo da vontade piiblica, como os Estados Unidos, a possibilidade de que magistrados nao eleitos possam substituir a vontade da populagdo €- algo dissonante. A democracia tem sido defendida ha dois séculos; nos Es- tados Unidos, por absolutistas morais, que compreendem que cada um tem 0 direito natural de se auto-governar, assim como por relativistas, para os quais apenas a regra da maioria serve como reagdo aos que acreditam que hd certezas morais absolutas. Se a idéia de governo de acordo com “o con- sentimento da maioria dos governados € o cerne do sistema governamental americano”, esta porém nao pode ser a histéria completa sobre-as bases desse edificio constitucional. Os diversos mecanismos de freios e con- trapesos, as proprias emendas que formam a carta de direitos, tudo isso: serve como protegao as minorias.55 Esta é a contradigao original do cons- titucionalismo americano: um governo por consentimento da maioria, em que, no entanto, a minoria deve ser protegida com base na Constituigao. As principais correntes do constitucionalismo americano tentam solucio- nar esse paradoxo, buscando demonstrar que ao declarar uma lei inconsti- tucional ages nada mais estio fazendo do que aplicar a Constituigao diretame Para os6riginalistasia fungao do magistrado € se ater aos termos expressos no texto, enquanto para uma corrente delintemprélativistas menos- ortodoxos toda vez que se estiver aplicando uma norma de textura aberta™” ‘os juizes podem realizar um trabalho de preenchimento daquela norma com outros valores, desde que retirados do texto constitucional. Essas teo- tias interpretativistas sdo, no entanto, objeto de muitas criticas. H4 uma di- ficuldade inicial de se resolver problemas atuais a partir de um texto con- cebido no século XVIII. Por outro lado diversas questdes foram deixadas em aberto pelos fundadores da Constituigao. Portanto o texto nao oferece: respostas, como pretendem os interpretativistas. A alternativa consiste em procurar fora do texto constitucional 0 preenchimento do contetido das normas abertas. Dentro dessa alternativa 0 recurso ao direito natural foi o mais comum no século XTX. Ely demonstra que © recurso ao direito natural nao possui mais credibilidade como no passado. Com Unger parece concordar que “todas as tentativas de cons+- truir uma doutrina moral e politica a partir da natureza humana falharam. Os fins universais alegados so poucos e abstratos para dar contetido para SS Ely, ob. cit, p. 7-8. 56 Hart aponta para o fato de que ao adotar termos genéricos para a construgo de um dispositive normativo o direito passa muitas vezes a se organizar a partir de normas que no dispoem de um significado univoco e segura. Dai denominar estes dispositivos de normas de contetido aberto. O Conceito de Direito. Lisboa, Gulbenkian, 1972, p. 137 ss. R LWA NOVA N°42—97 a idéia de bem, ou eles sao numerosos e concretos para serem verdadeira- mente universais. Tem-se que escolher entre a trivialidade e a implausibili- dade.”57 Por outro lado as teorias morais oferecem fundamentos os mais diversos para o direito natural. Muitas dessas proposigdes seriam dificil- mente concilidveis entre si ou mesmo aceitas como racionais. O fato € que ly critica mesmo as afirmagées de que 0 direito constitucional deve se deixar impregnar pela filosofia moral? Nada mais equivocado, pois no h4 qualquer consenso nessa drea. Basta analisar as contradigdes entre a Teoria da Justiga de Rawls e Anarquia, Estado e Utopia, de Nozik, para perceber que 0 caminho da filosofia moral ndo leva muito longe. Mais ainda, duvida que os juizes estejam efetivamente habilitados para de- sempenhar esse papel, que fildsofos treinados para a tarefa tém sido inca- pazes. No mais das vezes isso vai resultar numa aplicagéio dos valores dos proprios magistrados. “Depois de aproximadamente vinte e cinco séculos, as tinicas pessoas que parecem estar convencidas das vantagens de serem governadas por reis fildsofos sdo...alguns fildsofos.” Iternativa proposta por Ely é de buscar o preenchimento do contetido aberto da Constituigéo, nao em uma ordem superior de valores - que em tltima instancia serio os valores dos préprios juizes, como pre- viam os realistas - , mas na propria democracia. Partindo da experiéncia da Suprema Corte americana, no periodo em que foi presidida pelo Jus- tice Warren®!, Ely argumenta qu nota mais importante de todo direito constitucional americano, redigida He tice Stone no caso United States v. Carolene, Ely desenvolve sua A leitura da referi- 57 Roberto M. Unger, Knowledge and Politics. 1975, 241, citado por Ely, ob. cit. p. 51-52 S8Ely, ob. cit, p. 54 59 Referéncia 4 afirmagtio, aqui jé citada, de Ronald Dworkin, ob. cit., p. 149. 60 Robert Dahl, Democracy in United States. Citado em Ely, ob. cit,, p. 59-60. iJustice Warren presidiu a Suprema Corte Americana de 1953 a 1969, provocando uma ver~ dadeira revolugao constitucional, principalmente nas esferas da igualdade do voto, dessegre- ‘gagdo das escolas e direito dos réus no processo crime. Para uma anélise desse perfodo glorio- so do constitucionalismo americano ver o trabalho da maior conhecedora dos tribunais americanos no Brasil, Leda Boechat Rodrigues, A Corte de Warren, Rio de Janeiro, Civili- zagio Brasileira, 1991.

You might also like