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Ciod QUID u~ Ana Maria Machado Bisa Bia, Bisa Bel llustrag6es de Mariana Newlands Maioridade Crefisul - 198 0 APCA ~ Melhor Livro juvenil - 1982 O Melhor para o Jovern, FNLY - 1982 io Bienal Noroeste « Melhor Livro Infantil - | 983 Prémio Bienal de Sdo Paulo « Melhor Livro Infantil do Biénio - 1984 Je Honra do IBBY (International Board on Books for Young People) 1984 Prémio Américas - 2003 Save? Vou Ihe contar uma coisa que € segredo. Ninguém desconfia. E que Bisa Bia mora comigo. Ninguém sabe mesmo. Ninguém consegue ver: Pode procurar pela casa inteira, duvido que ache. Mesmo se alguém for bisbilhotar num cantinho da gaveta, ndo vai encontrar. Nem se fucar debaixo do tapete. Nem atrds da porta. Se quis de até esperar uma hora em que eu esteja bem distraide piar pelo buraco da fechadura de meu quarto. Pe vai conseguir ver Bisa Bia? Vai nada. Sabe por qué? E que Bisa Bia mora comigo, mas nao é do meu lado de fora. Bisa Bia mora muito comigo mesmo. Ela mora dentro de mim. E até bem pouco tempo atrds, nem eu mesma sabia disso. Para falar a verdade, eu nem sabia que Bisa Bia existia. No fundo de uma caixinha A primeira vez, bem que Bisa Bia estava escondida. S6 apareceu por causa das arrumag6es da minha mie. Minha mae € gozada Nao tem essas Manias de arrumacao que muita ma ae dos outros tem, ela até que vai deixando as coisas meio espalhadas na casa, um bocado fora do lugar, e na hora em qu tigUMa COisa quase deixa todo mundo maluco, r pra cd. Mas de vez em quando ela cisma. D Oomo ela diz, Arruma, arruma, arruma, Gols, tr lira tudo do lugar, rasga papel, separa O usa mais, acha uma porcdo de coisas Gas, joga revista fora, manda um monte de 0 para a gente usar na aula de arte na escola, E sempre tem umas surpresas Para mim — como um colar todo colorido € brilhante que um dia ela achou e me deu Para brincar. Pois foi numa dessas arrumacoes, quando minha Mae estava Cando uma geral, que eu fiquei conhecendo Bisa Bia. Parecia até a historia da vida do gigante, que minha tia conta. Sabe? Aquela histéria que diz assim: dentro do mar tinha uma Pedra, roupa velha que esta bagulh ——— R da pedra tinha um Ovo, dentro do ovo tinha rnd vela matava o gigante. Claro que e quem soprasse a ae eel da minha ee sao a vela cor-de-rosa, do bolo de qu as a e que ela guardava de recordacao, der r sapatinho velho de neném, de quando eu era pequedl eu lembrei da histdria do gigante porque 4 gente pedi co a histéria de Bisa Bia assim: dentro do quarto de mi tinha um armédrio, dentro do armério tinha uma gaveta, da gaveta tinha uma caixa, dentro da caixa tinha um e dentro do envelope tinha um monte de retratos, dentro retrato tinha Bisa Bia. Mas no come¢o eu nao sabia. Cheguei da escola e via p do quarto aberta, a porta do armdrio aberta, a gaveta minha mae sentada no chao, descalca, toda despente uma caixa fechada na mao. Dei um beijo nela e olhel caixa. Era a coisa mais linda do mundo, toda de n madeira de cores diferentes, umas mais claras, €scuras, formando um desenho, uma paisagem, onc e um Morro, uma casinha, um Pinheiro, umas nuvens no minha mae abriu a caixa e tirou de dentro, bem la do fu tm envelope de papel pardo, velho e meio amassadel ~ Que € que tem af dentro, mae? — Nem lembro ™als, minha filha, Vamos ver. Eom Un an los * ™ monte de retratos, Tinha Tinha outro com SOAS sérias numa praca, cachorro, bem debaixo cheia de criangas e até um Me bicho. Era ra Praca Parts.cam hagar com laguaio © TESS ratara que xenda colondo de bem aceso 10 G0. Como € que vat sabe disso tudo! __ Ey lembro, minha Sha. Essa menmna af Sou et _— Nao € possivel Voce e514 brincance: fe ohave pas maa rae € 922 0 rexmio da mens, achave mao gozado aqulo, THre gaho de um cameio, pensanco em D esqusto, 2 garde ai na rene frente. sertada no dio, ©€ hs vezes tha reboque. Quando a gente pagava 2 passagem. 0 motomero purara uma corénha e tocava uma campanina, ai mudava um nimero numa espéce de relégo que ficava a no ato © marcare quantas pessoas viayaram no bonde. Eu ficava magnando como seria aquilo, sabia que ez uma espéce de trem de cidade, 4 inha visto em televedo, queria saber mars. — E quando 0 motomero puxava a cordinha, no tinha que larger 0 motor! Nao era penigoso? Mamfe achou graga: Nao, que ideial Bonde era a coisa Menos per mundo. & 0 motomeiro nao tinha nada a ver com ele 96 cobrava, 0 Nome & que parece... Quem dirig condutor... A gente ia conversando e€ olhando os retratos. De re eu vi um que era a coisa mais fofa que vocé puder ji Para comecar nao era quadrado nem retangular, com retratos que a gente sempre vé. Era meio redondo, esp Oval, mame explicou depois, em forma de ovo. E colorido nem preto-e-branco. Era marrom e bege Mamie disse que essa cor de retrato velho chamava se E nao ficava solto, que nem essas fotos que a gente fi busca depois na loja, num dlbum pequeno ou dentro d envelope. Nada disso. Esse retrato oval e sépia ficava pi num carto duro cinzento, todo enfeitado de flores e lagos papel mesmo, s6 que mais alto, como se o papelao estiv meio inchado naquele lugar — gostoso de ficar passa dedo por aquele cartdo alto. E dentro disso tudo é que est a fofura maior, Uma menininha linda, de cabelo todo vestido claro cheio de fitas e rendas, segurando numa uma boneca de chapéu e na outra uma espécie de p bicicleta soltinho, sem bicicleta, nem raio, nem pedal, sel coisa parecida com um bambolé de metal. Ah, mae, me da essa bonequinha... Nao é boneca, minha filha, é um retrato da vove Be Ué, essa avé eu nao conheco, $6 conhe¢ge v6 Ester Tem outras, 6? —Tem, mas é minha. Vovo Beatriz. Sua bisavo... — Minha bisavé Beatriz... Fiquei olhando para o retrato e logo vi que nao podia chamar de bisavé Beatriz aquela menina fofa com jeito de boneca. Nao tinha cara nenhuma de bisavé, vé Id... Dava vontade de brincar com ela. — Cadé a boneca da menina, mae? E o bambolé? Que fim levou? Alguém guardou? — Nao. Isso tudo ja faz muito tempo, se perdeu por ai. E nao era bambolé... — Pneu de bicicleta, ja sel. — Nao, era um brinquedo antigo, que se empurrava pelo cho, rodando e equilibrando Chamava arco. Nao é nem do meu tempo, € do tempo da vovd Beatriz. Sua bisavo... minha mae ia respondendo com uma voz meio sonhadora. — Minha Bisa V6... Minha Bisa Beatriz... Acho que deve ter sido meio por af que comecei a pensar nela como minha Bisa Bia. E queria o retrato pra mim: — Ah, mae, me da a foto, da... E uma gracinha, parec boneca, dd pra mim... — N§o posso, minha filha. Pra que 6 que: Vocé nem conheceu sua bisavo... _— Por isso mesma, para eu ficar com ela para cima € baixo, até conhecer bem. Levar para a escola, para a praca, a calgada, pra todo canto. Dé pra mim, da. O tom de voz da mamie ficou mais firme: : — Nio. E 0 unico retrato que eu tenho dela, ndo posso- dar. Mas eu devo ter olhado com uma cara tao pidona que ela ficou com pena: — Estd bem. Dar, eu nao dou. Mas empresto para vocé levar para a escola. Quando eu j4 ia saindo aos pinotes com o retrato na mao, ela ainda recomendou ™as unto cudado, hem? Nao suje o retrato, no amasse. te. veja se nao larga por af a toa... E a Unica foto \SavO quando era pequena. Pensei jogo em botar a foto no bolso de trés da calga. Nao entrou. Na hora, eu achei que era porque o retrato era maior do que © bolso. $6 depois que eu fiquei conhecendo melhor Bisa Bia € que soube da verdade: ela nao gosta de ver menina usando calca comprida, short, todas essas roupas gostosas de brincar Acha que isso é roupa de homem, j4 pensou? De vez em quando ela vem com umas ideias assim esquisitas. Por ela, menina s6 usava vestido, saia, avental, e tudo daqueles bem bordados, e de babado. Mas isso eu s6 soube depois. 'Naquela primeira vez, achei que o retrato nao cabia no bolso e ld fui com ele na mao para © meu quarto. Nem desconfiava que ela é que nao queria saber de bolso de calga comprida. ‘Nem desconfiava que ela tinha vontades e opinides sé dela, Nem desconfiava que ela jd estava era com vontade de mo comigo. Pastel bochechuda a Bia foi comigo para 0 colégio, bem No dia seguinte, Bis cheia de enfeites. No recreio, MOS- encaixada na sua moldura trei para Adriana, que é minh — Vocé precisa conhecer essa Mm: a maior amiga: enina aqui, Adriana. E Bisa Bia. Ela nao € um amor! Ela achou engracadinho aquele retrato de menina, mas ficou 1ue era minha bisavd. Para falar a muito espantada de saber qu verdade, eu acho que ela ficou foi com inveja, porque depois bonitinha, ela falou de olhar para a fotografia e dizer que era assim: — Minha bisavé é muito diferente. AI eu pensei que ela estava escondendo o jogo, porque nunca tinha me dito que tinha uma bisavo. Ela continuava: Minha bisavé é velhinha, tem cabeca branca, dculos, vestido de velha, nao da para sair por af brincando comigo. Eu tive que explicar que a minha bisavé nem existia mais, jd tinha morrido hé muito tempo e nao tinha aquela cara de menina, que aquilo era s6 um retrato de quando ela era pequena. S6 no tempo de crianga, tempo muito antigo, é que ela tinha sido como o retrato mostrava. — Ento por que é que vocé fica falando nela desse jeito ai, dizendo que € preciso conhecer, que é uma menina, essas coisas? Até parece que ela existe. — E existe, claro que existe, Adriana... Entao eu ia andar por af com o retrato de alguém que nao existe! — Ué..Vocé mesma nao acabou de dizer que ela nao existe mais, que ela j4 morreu? E... Desse ponto de vista, Adriana tinha razao. Como € que eu podia explicar a ela que Bisa Bia estava existindo agora para mim? E muito.. Eu sabia que ela tinha morrido hd muito tempo, mas naquele tempo eu nem conhecia a minha bisavé. Tinha mais: de verdade, naquele tempo quem no existia era eu, ainda nem tinha nascido. Mas agora, de repente, desde a hora em que eu vi aquela belezinha de retrato, ela passou a existir para mim, e eu ficava pensando nela, imaginando a vida dela, as coisas que ela brincava, o que ela fazia, o mundo no tempo dela. Nao dava para explicar isso para Adriana. Mas quem vinha chegando era o Sérgio, e para mim ele é uma pessoa muito especial, 0 garoto mais bonito da classe, o mais divertido, o que tem melhores ideias. Adoro quando ele vem conversar comigo. Tem horas que eu acho que a gente devia se casar quando crescer, porque eu tinha vontade de ficar 0 resto da vida olhando para ele, ouvindo o que ele conta, fazendo coisas para ele... E eu queria muito que ele conhecesse Bisa Bia: Sérgio, olha sé... Adivinhe de quem é esse retrato... Nao sei, mas é de alguém que eu conhe¢o, deixa eu ver melhor, Ele olhou bem para o retrato e disse, de repente: — Ah, ja sei! Claro! Como € que nao vi logo? Também, com essa fantasia, vocé ficou tao diferente... E seu. Mas com essa roupa de caipira nao deu para reconhecer logo. Desaforo... Chamar de caipira 0 vestido lindo de Bisa Bia... Eu ja ia ficando com raiva quando lembrei que minha tia diz que homem € assim mesmo, vive ocupado com coisas mais importantes, nao entende muito de moda, a gente pre muita paciéncia com eles. De qualquer jeito, com minha raiva, Sérgio ia continuando: — S6 que aqui no retrato vocé estava mais gordint bochechuda. Mas é claro que eu ia conhecer... E, vendo que outros meninos da turma vinham chegando, fo dizendo em voz mais al Imagine se eu nao ia conhecer em qualquer lugar do mundo essa sua cara de pastel. A\ eu fiquei furiosa. O Sérgio é um amor, tem horas que eu quero casar com ele quando crescer, e coisa e tal. Mas se tem um trogo que me deixa louca de raiva com ele € essa mania de rir de mim quando os amigos estado perto, esse jeito de fazer de conta que menina é uma pessoa sem importancia, de me tratar como se eu fosse uma boboca. Nesse dia, fiquei com tanta raiva que sa/ correndo atrds dele, com vontade de bater mesmo. Acho que ele viu que era para valer, porque correu. la rindo de mim, implicando, gritando coisas, mas nao ficou nhe de quem é esse retrato... — Sérgio, olha 50... Adivi ém que eu conheco, deixa eu ver _— Nio sei, mas é de algu melhor. Ele olhou bem para o retrato — Ah, ja seil Claro! Como é qu vocé ficou tao diferente... e disse, de repente: e nao vi logo? Também, com essa fantasia, _E seu. Mas com essa roupa de caipira ndo deu para reconhe' Desaforo... Chamar de caipira © vesti Eu ja ia ficando com raiva quando lembrei que homem é assim mesmo, vive ocupado c nao entende muito de moda, a gente precisa ter Ye qualquer jeito, com ou sem a cer logo. ido lindo de Bisa Bia... que minha tia diz ‘om coisas mais importantes, muita paciéncia com eles minha raiva, Sérgio ia contr — $6 que aqui no ret bochechuda. Mas é claro q) nhecen. E, vendo que outros meninos da turma vinham chegando, foi » mais gordinha, mais dizendo em voz mais alta: — Imagine se eu nao ia conhecer em qualquer lugar do mundo essa sua cara de pastel. A(eu fiquei furiosa. O Sérgio é um amor, tem horas que eu quero casar com ele quando crescer, € coisa e tal. Mas se tem um trogo que me deixa louca de raiva com ele 6 essa mania de rir de mim quando os amigos estao perto, esse jeito de fazer de conta que menina é uma pessoa sem importancia, de me tratar como se eu fosse uma boboca. Nesse dia mesmo. Acho que ele viu que era para valer, porque corr la rindo de mim, implicando, gritando coisas, mas nao Vai ver ele ficou com medo de es ndo eu ja estava quase alcangar i — ele gritou: ue ia fazer — © orhueri’ ae de pastel bochechuda, hem? pendurar na porta do meu quarto. oii aS te, qual uma surra. De repente, ene! _ Nao va perder © ainda posso precisar Pra tar mosquito. ae olhei pra trds e vi que tinha largado o retrato de ) eu Bia no meio do patio e o vento aia levando. A surra Sérgio podia esperar, mas eu nao podia perder aquela fote Voltei correndo atrds dela. Foi dificil pegar Até parecia q 2 Bisa Bia estava fugindo de mim. Ficava no chao e quando eu ia chegando perto para pegar, la se ia ela de novo... D parava outra vez, como se estivesse me es) eu passava perto, levantava no vento e voa\ as poucos, acabou passando pela janela ¢ caindo dentro da sala de aula, Fui !é buscar, Quando entrei, vi que a professora de Histdria, Dona Sénia, estava com 0 retrato na mao: — Oi, Isabel, vem cé. Olha sé que lindo esse retrato que o vento acaba de jogar aqui dentro. Gostei porque ela achou lindo e fui explicando: — Eu sei. Estava mesmo vindo buscar. E meu A\ ela disse: — Adoro retratos antigos, tenho uma colecdo. Esse é mesmo muito bonito. Que’ — Minha bisavo. — Estd se vendo. Eu devia te parecidas mesmo. E sé a gente ‘engao que vai logo vendo. O mesmo formato de rosto, esse queixo levantadinho, sem tirar nem por. do. Vocés sao muito Dona S6nia ia falando e comparando, pegando meu rosto, virando para a luz da janela: — Impressionante... Vocé tem os olhos dela. Mas quando eu ia perguntar como é que os olhos podiam ser dela, se eram meus, o sinal tocou e Dona Sénia saiu pelo corredor, dizendo que ainda tinha que buscar giz antes da turma voltar. Nao consegui mais falar direito com ela naquele dia. Guardei Bisa Bia na pasta, dentro de um livro. $6 quando cheguei em casa € que pude olhar para a foto com calma.

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