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Como o cérebro aprende a ler Um leitor fluente 6 capaz de ler sem problema a sentenga: “N&o ipomtra em qaul odrem as Irteas de uma plravaa etaso, a Gncia csioa iprotmatne é que a piremria e utmilia Irteas etejasm no Igaur crteo”. Como isto é possivel? CChegamos 20 século XI com o desafio de tornar aleitura um bem cultural de acesso a todas as criangas. Isso estf’ainda longe de ser concretizado por vitios moti- ‘vos, entre os quais se inclui a adequacio do ensino ao de- senvolvimento humano. Por outro lado, temos hoje dispontveis novos conhecimentos sobre o desenvolvi- mento do ser humano, que nos permitem acreditar na universalizacSo da leitura, mesmo considerando a grande diversidade de experiéncias culturais e condigbes socioe- condmicas dos alunos. Entre esses, é importante ressaltar 0s conhecimentos, acumulados pela neurociéncia nas til- ELVIRA SOUZA LIMA timas décadas, sobre como 0 eérebro funciona para que © ser humano realize essa complexa atividade de compreen- der aescrita, seja cla ideogréfica ou alfabética. A escrita é um dos sistemas simbélicos inventados 20 longo da evolugio cultural da humanidade. Aprender a ler € um processo que permite a0 scr humano se apro- priar de um produro da cultura, Essa aprendizagem, como qualquer outra, é de narureza biolégica ¢ cultural. Em- bora nao exista heranga genética para a leivura, ela se apoia em condig6es dadas pela genética da espécie, notada- mente, a fungio simbélica ea meméria. Pesquisadoraem desenvolvimento humane, com formarso em neuoctaca,picolois,antropologiae mica SSS > 118 + n.103-*jandfex.2012 + PRESENGA PEDAGOGICA + 31 Ler: uma pratica cultural A leicura € uma pritica cultural, aprender a ler € uma aguisigao culeural. Um acervo considerivel de pes- ‘quisas sobre o cérebro jé nos confirma este fato, discutido «¢fundamentado por intimeros neurocientistas, entre eles Dehaene, Calvin, Gazzaniga ¢ Lent. Como nao hé um centro dado pela genética da espécie para ler, 0 cérebro “recruta’ varias dreas dos dois hemisférios cerebrais. A pa- lavra é percebida como uma imagem. O cérebro reage em milésimos de segundo & pala- vra escrita.A partir da érea responsével pela percepcio da palavra, chamada por Dehaene de drea visual da palavra (visual word form area), 2 imagem se difunde rapidarmente pelo cérebro, ativando varias outras ércas com as quais cestd conectada: as 4reas auditiva, da fala, invelectuais ¢ exe- cutivas, ¢, igualmente, as dreas da meméria e da emogio (apud SACKS, 2010). ‘A conexo imediata com a meméria permite veri- ficar se a palavra percebida visualmente ou pelo tato en- contra uma imagem correspondente na meméria. Essa identidade entre a palavra percebida ¢ a imagem mental ‘fiz pelo significado, O ato de ler poderia, entio, ser ex- plicado ou definido como a atividade de dar sentido a imagens grificas cuja composicio obedece ao sistema es- tabelecido da lingua escrita de cada lingua falada. Ora, 0 significado da palavra €inerente & sua fungao na sentensa. ‘Vejamos o seguinte exemplo: ‘A palavra “manga” pode ter vitios significados, ‘como a conjugasio do verbo mangar no presente do in- dicativo (ele/ela manga) ¢ como substantivo (a frura, a parte da camisa ¢ manga d’égua evento da natureza). Pode ainda ser um substantivo préprio, no caso de Manga, ci- dade de Minas Gerais. A compreenséo do significado da palavra se dé conforme a sentenca. A funcio € estabelecida pela sintaxe. Portanto, formar o significado na leitura ¢ de nacureza complesa, demandando, por isto, um plane- 32* PRESENGA PEDAGOGICA + «182103 jan/fev 2012 jamento cuidadoso para o ensino da crianga nos anos ini- Giais do Ensino Fundamental. “Temos uma indicago importante para 0 ensino da Ieitura: é preciso formar meméria semintica da palavra cescrita, no somente da palavra na oralidade. Saber o sig- nificado de uma palavra nio é transferido automatica- ‘mente da oralidade para a escrita (DEHAENE, 2007) ¢, além disso, € necessério aprender a fungao sintatica da pa- lavra na sentenga (CALVIN, 1996). ‘Como consequéncia, temos que 0 ensino da sin- taxe ¢ semintica sio os eixos da compreensio ¢ interpre- tagZo no ato de ler (LIMA, 2011). Linguas com muitos fonemas, como 0 portugués, precisam de vérias combi nagbes de letras ¢ acentos para representé-los. Aptender a ler implica constituir memérias de todas as possbilida- des das vogais, das consoantes_¢ todas as combinagées de letras (silabas) utlizadas por cada lingua escrita. Considerando como o oérebro terd que criar esas memaérias, Dehaene sugere que a esctita ndo fem como objetivo restituir (recuperar) a palavra como a pronun- cciamos. Mais do que isso, segundo ele, a escrita foi uma invengo que buscou representar a fala (palavra oral) em tum nivel abstrato, a fim de que pudéssemos facilmente recuperar a palavra na meméria (evocat) com seu signifi- cado, Ler é, entio, compreender. Quem lé: 0 othe ou o cérebro? As maos ou o cérebro? Quem compreende ¢ 0 oérebro. Os érgios do sen- tido (visio ou tato) enviam as informagées para o cére- bro, ¢ este processa a leitura. O uso do érgio do sentido para a leicura dependerd da formagéo e pericia do movi- ‘mento especifico necessirio para enviar as informagbes 20 cétebro. O olho Ié por deslocamentos ou sacadas (pausas feitas apés percursos bem pequenos), ¢ as mis leem per- correndo superficies. Como o cérebro aprende a ler ‘Um leitor fuente é capaz de ler sem problema as sentencas abaixo: ‘Ni ipomtra em qaul odrem as Irteas de uma plra- vaa etaso, a tincia csioa iprotmatne & que a piremria ¢ it- miliaIrveas etejasm no Igaur crteo. O rseto pdoe ser uma ttoal beguana que veoé poe anida ler sem pobrlmea. Itso € pogrue nés nao Imeos daa Irtea, mas a plravaa cmoo um tdoo. ‘Come isto é possivel? O olho fixa inicio ¢o final da palavra, ou seja, 0 olho se desloca por sacadas, fixando- se na primeira e ultima letra. O oérebro, entio, “preenche” © que estd no meio, porém no de maneira aleatbria. Ele pe as letras em ordem mentalmente, isto &, combina as letras em sflabas. Para fazer isso, € preciso que a pessoa tena os padrées de sflabas em sua meméria. Quem no domina totalmente os padrées de silabas nfo consegue compreender. Leitura, sonorizagéo e compreenséo O ser humano tem a capacidade de sonorizar simbolos, tanto emitindo 0 som vocalmente, como “so- norizando” em sua mente (fala interna). Sonorizar é a capacidade do ser humano de emitir sons de altura, in- ensidade, duragio ¢ timbre variados. Com a evolugio cultural foram inventados simbolos gréficos para cada som possivel, criando-se, entre outras, a escrita musical ¢ a lingua escrita. A sonorizagio dos simbolos gréficos das letras do alfabeto ¢ suas combinages em sflabas e palavras & semelhante 4 capacidade humana de “cantar” as notas musi- cais colocadas em uma pauta. Sonorizar faz parte de ler, mas nfo dé conta da acio de leitura. Ler € um ato de significagdo de simbolos que se organizam em padres com valor posicional, formando as sflabas ¢ as palavras. E estas, por sua ver, também se organizam em valor posicional para formar as sentengas. O cérebro extra, seleciona, classifica ¢ ex- plora as regularidades da escrita. Assim, a crianga & capaz de perceber que a escrita tem regularida- des, como as sflabas. Isto, rodavia, nfo implica que a crianga aprenda imediatamente as sflabas. Ela pode perceber que hi constincias de agrupamen- tos, na ingua portuguesa, de duas, urs ou quatro letras. Para saber quais letras, no entanto, ela de- penderd de ensino, uma vez que as combinagbes possiveissio enormes. Nao sendo ensinadas as re- gularidades, a crianga inventard uma sequéncia de » 18 +1.103+ janie, 2012 * PRESENGA PEDAGOGICA * 33 letras que poderd constituir wm padrio de sflaba ndo exis- tente em portugués, com “vsto” ou “gnot”. Ao contrério, se for ensinada a sflaba, ela terd diferentes recursos para apropriar-se da leitura. Por exemplo, “brin” em brincar, brinquedo, brincadeira, brincante, brincando, brinco, ‘Apropriar-se desse sistema mobiliza varias 4reas do ‘cérebro, uma vez. que no temos um tinico centro para leitura. Essas so Areas dos dois hemistérios cerebrais, Dehaene (2007), a partir de extensa reviséo nas pesquisas envolvendo cérebro ¢ leitura, sugere que 0 lobo parietal seria uma das regides mais importantes do cérebro para a leinura: esta é a regifo na qual processamos imagens ¢ na qual o ofrebro percebe visualmente a palavra como uma imagem. De fato, a palavra é constituida por linhas que se combinam graficamente em Angulos ¢ em semi-cfrcu- Jos. Apesar das diferencas entre linguas escritas ideogrifi- 34.© PRESENGA PEDAGOGICA + «18 + 2.103 +janJfer. 2012 cas ¢ alfabéticas, todas tém em comum os elementos da geometria que as compSem. Accvolucio da escrita através dos milénios seguiu o ppercurso que a aproximou cada vez mais da capacidade do oérebro em perceber ¢ distinguir imagens e atribuir- Ihe significado. A leltura informa e forma a pessoa (Os textos elaboram ¢ determinam as formas de pensamento, ¢ a estrutura linguistica funciona como um arcabougo para a formagio de significado (LIMA, 2007). ‘Textos cientificos ¢ literatura tém um papel fundamental ‘na formacéo do aluno: sua capacidade de lidar com 0 co- nhecimento formal ¢ determinada, em grande parte, pela sua capacidade de compreensio na leitura de textos lin- guisticamente elaborados. O texto escrito tem um im- pacto na formacéo de estrucuras de pensamento. A formulacio linguis- tica do texto de conhecimento for- mal, ou seja, das virias Areas do conhecimento humano, leva 3 for- magéo de estruturas de pensamento, assim como influi naatitude que cada aluno toma frente a0 conheci- ‘mento sistematizado, Por exemplo, a insergio da pergunta como parte do texto ex- planatério de um contetido traz a oportunidade para 0 aluno se posi- cionar frente a0 conhecimento com ‘uma postura investigativa. O aluno forma comportamentos de estudo como parte da aprendizagem do conteiido ensinado, dependendo, naturalmente, da qualidade da do- Como o cérebro aprende a ler céncia e da qualidade e pertinéncia dos contetidos esco- Ihidos, incluindo-se a selegio dos textos que serio utili- rados. ‘Ao apresentar questées, 0 autor instiga o aluno a “participar” do contetido por meio da reflexao. A ciéncia é produzida e avanca a partir de pergunuas. A busca de es- postas para as perguntas conduz.2 pesquisa, assim a leitura de um texto pode levar a formar comportamentos inves- tigativos. Na contramio, ele também pode ser escrito de tal forma que distancia 0 aluno do préprio conhecimento. Informagécs insuficientes, simplificagao excessiva, frag- mentagéo, vocabulirio ou estrutura lingufstica inadequada séo alguns dos fatores que influenciam negativamente na formacao de conceitos a partir da leitura, dificultando a aprendizagem ¢ o desenvolvimento da fala interna. ‘A fala interna se constitui pelo Iéxico (vocabulé- rio) ¢ pelas formas sintdticas formadas na meméria. A fala interna é importante para a meméria de trabalho, que € a meméria que usamos para aprender novos conheci- mentos. O aluno depende de sua meméria de trabalho pata lidar com os ensinamentos que recebe em qualquer 4rea de conhecimento, tanto sendo ensinado em sala de aula, como realizando tarefas na escola ¢ em casa. Conse- quentemente, o léxico em todas as categorias gramaticais faré diferenga nos processos de pensamento mais com- plexos, raciocinio ¢ formagéo de conceitos. Sem dispor em sua memsria das formas sintéticas, como os verbos conjugados nos tempos presente, futuro ¢ passado, 0 aluno nfo terd os recursos ¢ inscrumentos mentais neces- strios para entender os contetidos dos textos das diversas dreas de conhecimento que constituem o currfculo. Sintaxe Um dos pioneiros no extudo do cérebro ¢ lingua- gem, Calvin (1996) postula que © componente central para a compreensio na leitura e para.a escrita éa sintaxe, ‘em que o verbo de aco exerce o papel central. A ago re- presentada pelo verbo constitui a possbilidade maior de aderéncia e integragso de outras categorias gramaticais, como 0 substantivo, 0 adjetivo e o advérbio. A ctianga pequena desenvolve a fala adquirindo e ‘uilizando verbos de ago. Na leivura, novamente 0 verbo de acio serd elemento vital de formagio de significado € na apropriago das formas sinvéticas que caracterizam cada lingua escrita. No ato de escrever, a forga do verbo de ago se apresenta mais significativamente, uma vez que & cle que possibilita a construggo consciente da sentenga. E fato que uma pessoa que aprende a ler tem modificado seu funcionamento cerebral. Outras modificages ocor- rerfo se ela aprender a escrever. Referéncias Sugestées de leitura CALVIN, Wiliam B. How brains think — evolving Harper Collins Publishers, 1996. DEHAENE, Stanislas. Les Neurones de la Lecture. LENT, Roberto. Cem bilhdes de neurénios? S80 Paulo: Editora Athoneu, 2010. LIMA, Eivira S. As contribuigSes da neurociéncia para ‘0 ensino da escrita. SP: Inter Alla Comunicaco € Cultura, 2011. . Dimensées da Linquagem. SP: Inter ‘Nia Comunicagao e Cultura, 2007. - Neurociéncia @ Leitura. SP: inter Alia ‘Comunicagéo e Cultura, 2007. MICHAUD, Yves (Org.). Le corveau, le Langage, fe Sons. Université de Tous Le Saviors 5. Paris: Odile ‘Jacob, 2002. ‘SACKS, Oliver. A man of fetters, in the mind's eye. ‘New York: The Random House, 2010. ‘118+ 0103 janice 2012 + PRESENGA PEDAGOGICA * 35 —_—

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