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© 2013 Paras Boron Cnstina Fernandes Warth Mariana Warth Livia Cabrini Aron Balmas Babilonia Cultura Editorial ‘Rafael Nobre / Babilonia Cultura Editorial ‘Alain Chambaretaud Colesao particular de Esther Marty-Kouyaté mrojtto GRirico E DrsGRAMACH Abreu's System (Este livto segue as novas regras do Acordo Ortogratico da Lingua Portuguesa Todos 0s direitos reservados 3 Pallas Editora ¢ Distribuidora Lida, £ setada a reproducso por qualquer meio mecinico, eletrénico, xerografico etc, sem a permissio por eserito da editora, de parte ou totalidade do material escrito, CCIP-BRASIL. CATALOGAGAO NA PUBLICACAO. SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ BAdse Bernat, Isaac, 1960- Encontros com o griot Sutigui K Rio de Janciro: Pallas, 2013, 292p. griot, sotigui Kouyaté e a Africa Encontros com 0 griot Sotigui Kouya & dade, nao ha uma tinica versao para a definigao deste termo. Como costumava dizer Sotigui ao longo dos encontras, “existem trés verda- des: a minha verdade, a sua verdade e a Verdade”. Outro acontecimento que traduz a importancia da figura do griot na lrist6ria de Souridjata se da ny iumento em que seu pai, perto da mor te, nomeia o filho do seu griot como aquele que sera o griot do seu her- Jo e aconselha-lo durante toda a vida, deiro e que, portanto, ira condu Mari-Djata, eu estou velho, logo nao estarei mais aqui entre vocés; mas antes que a morte me leve, cu vou te dar o presente que cada rei da a seu sucessor. No Mande cada principe tem seu griot: 0 pai de Doua Doua é meu griot; o filho de Doua, Balla Fasséké foi o griot do meu pai; que esté aqui sera seu griot. Sejam a partir deste dia amigos insepard- veis: Através da sua boca vocé aprenderé a historia dos teus ancestrais, vocé aprender a arte de governar 0 Mandé, segundo os principios que os nossos ancestrais nos legaram. Eu cumpri meu tempo, eu cum- pri meu dever; eu fiz tudo o que um rei do Mandé deve fazer; eu te entrego um reino expandido, eu te deixo aliados seguros. Que o teu destiny xe realize, mas nao esqueca jamais que Nianni ¢ a capital eque © Mandé é o berco dos teus ancestrais (Niane, 1960, p. 39-40). Balla Fasseké € um griot Kouyaté e estara fielmente presente em toda trajet6ria de Soundjata, que é um Kei Para estabelecer a conci liagdo com o poderoso feitiveiro Soumaoro Kant, rei de Sosso, Sound- Jata envia seu griot até ele, Num determinacia momento, Balla Fassek® Consegue entrar no quarto do rei feiticeiro, toca seu balafom magico € descobie seus segredos. Ao ser surpreendido, ele, através do seu talento musical, seduz o feiticeiro, que o convida para ser seu griot. Porém, Balla Fasseké consegue fugir e revela a Soundjata o segredo para detro- {aro temido Soumaorn Kanté, que por isso consegue vencé-lo na bat tha final de Krina. Alids, esta é uma das explicacdes para que 0 nome Kouyate signifique “ha um segredo entre nds", ou seja, como alusao a0 Segredo revelado por Balla Fassaké a Soundjata, POs a divisdo em trinta clas, sendo quatro de griots, os Kouyat Passam a ter o primeirn papel na corte, tendo o dircito ¢ 0 privilégio. por exemplo, de a a ee trihos do império, ¢ cm particular aos Keita, Por isso a tradigao afirma que nenhum griot se iguala aos Konryaté. Como diz 0 ditado: “A guerra € 0 nobre fazem o escravo, mas 6 peus quem faz 0 artesdo (Admakdlay”. Antes de falar sobre o significado da palavra griot (lf ou jelf) em maninca, ¢ fundamental entender como se estruturava a antiga socie- dade malinca. Esta diviséo se dava através de trés castas. A primeira casta eta formada pelos nobres, ou hérd, que possuiam a autoridade politica, no outro extremo estava a casta servil dos escravos ou cativos. Entre estas duas se situavam os makdld. Esta Gltima é a casta dos griots (jel), ferreiros (mtu), teceloes (maabo) trabalhadores de couro (kirdté) © 0 artesios de madeira (Ki#lé). Pertencer a casta dos Aamakdld € um direito e um dever hereditario. A pessoa nasce ¢ morre Hamakal. Além dissv, v Casanerito s6 deve ser realizado entre as pessoas desta mesma casta com 0 objetivo de se perpetuar a transmissdo destes conhecimen- tos e oficios. £ importante observar que esta divisao de castas nao esta telacionada, como no caso da India, a um cardter religioso, mas sim ao Oficio exercido on A posigao na sociedade. A palavra famakdld, “antido- to do nyama”, significa forga oculta contida em todas as coisas. Considerados como possuidores de poderes especiais, antigamente ‘ram mals temidos e respeitados do que desprezados, Nao podem €m nenhum caso ser[em] submetidos a escravidao ¢ os nobres Ihe devem presentes, consideracao e sustento. Outrora, cada fun¢ao artcsanal correspondia a um caminho inicidtico especifico (Ham- até Ra, 2003, p. 110). ——— "arentesco jocoso", noularse py difer vinculo sagrado de alianca que permite brincar e zombar, isto @, ‘ciprocamente, sem que isso traga consequéncias. Na realidade é algo muito inte de ir sério e profun- 0, ‘uma brincadeira; esta relagao representa um vinculo muito sério ¢ p "Que ne Uma alia, 22° IMplicava dever absoluto de assisténcia e ajuda mutua ong 4 align ois cig Mito antiga entre os membros ou ancestrais de duas aldeias, duas etnias ou * (Hampaté na, 2003, p, 252), 0 griot, Sotigui Kouyaté e a Africa wn 6 Encontros com 0 griot Sotigui Kouyaté s balhadores de madeira ¢ de couro estag ao superior a do griot, sendo que 0 ferrej- 10 € o primeiro da escala, seguido pelo tecelao. Isto se deve ao fato de cesses oficios artesanais demandarem iniciacdo ¢ eonibecimantons espe. ciais Por outro lado, dentro destas classes também ha subdivises. No que se refere aos ferreiros, por ‘exemplo, ha o ferreiro de mina ou alto- -forno, 0 ferreiro do ferro negro € o ferreiro de metals preciosos. Cada tum desses oficios esté relacionado a um tpo de poder oculto, O tevelao esta vinculado & palavra criadora que se disuibui no tempo ¢ no espa- ¢0. A tira do tecido em volta do bastav sobre o ventre do tecelao repre- senta 0 passado € u 1ulo do fio a ser tecido representa o mistério do Os terreiros, tecelves, tral hierarquicamente numa posi amanha. Ao trabalhar 05 gestos no tear, o tecelao representa a criacio, eas palavras que emite an acompanhar os gestos passam a ser 0 proprio canto da vida. O movimento do vaivém dos pés do tecelao esta ligado a0 movimento e ao ritmo, a vida € 4 agao. Assim, 0 oficio do tecelao baseia-se na fala criativa em ago. O ferreiro, por sua vez, é 0 mestre do fogo, da transmutacao, e é chamado de primeiro filho da terra: Suas habilidades remontam a Maa, o primeiro homem, a quem 0 ctiador Maa Ngala ensinou, entre outros, os segredos da “forjadura”. Por isso, a forja é chamada de Fan, 0 mesmo nome do ovo primor- dial, de onde surgiu todo 0 universo e que foi a primeira forja sagra- da. Os elementos da forja estao ligados a um simbolismo sexual, sen- do esta a expressao, ou o reflexo, de um processo césmico de criacao. Desse modo, os dois foles redondos, acionados pelo assistente do ferreiro, sév comparados aos testiculos masculinos. O ar com que s40 enchidos é a substancia da vida enviada, através de uma espécie de tubo, que representa o alo, para a fornalha da torja, que representa a matriz onde age o fogo transformador (Hampaté Ba, 1980, p. 197)- Estes exemplos tém Por objctivo mostrar que os artesdos perten Centes a casta dos ramakdlé passam por um aprendizado que esti inti- Mamente ligado a uma filosofia na qual nao existe uma divisio enue ° Oficio ea vida, o trabalho e 6 universo invisivel, ou seja, entre a pratt Giatia e o sagrado, A grande diferenga destas tradicoes em relas0 * ocupagdes do mundo moderno e globatizado é que, : ' antes do carater utilitario, elas visam uma participagao inte gral com a vida. Nesse sen- tido, tudo esta ligado, tudo se relaciona, Pode-se dizer que 0 oficio, ou atividade tradicional, esculpe o ser @ educagao moderna e a tradi- @o oral encontra-se ai. Aquilo que se do homem. Toda a diferenca entre aprende na escola ocidental, Por mais itil que seja, nem sempre ¢ vivido, enquanto 0 conhec. mento herdado da tradi¢ao oral encarna-se na totalidade do ser. Os instrumentos ou as ferramentas de um oficio materializam as Pala- wras Sagradas; 0 contato do aprendiz com o oficio o obriga a viver a palavra a cada gesto (Hampaté Ba, 1980, p. 199). Com isso, ha a formacéo de um homem particular ligado a uma tadicao e a uma ética permeadas pela pratica, que nao esta dissociada do conhecimento oculto que a compée. Esta unidade é que vai deter- minar que estes oficios sejam exercidos de forma integra e elevada. i, as ciéncias ocultas Apesar de o griot pertencer a casta dos Aamakal “«solericas nao estéo na base da sua formacao, mas sim a arte da pala- \ta, 0 canto, a mii ica, a poesia lirica e os contos que animam e edu- “ain. Os griots sao também depositarios da historia dos reis e da comu- ‘lade a que pertencem, Podem ser divididos en ues categorias: os Stiots misicos, os griots embaixadores e cortesdos, e os griots genealogis- "8 histonadores ou poetas. Os primeiros tocam instrumentos wom ‘or € tants, cantam, compoem e preservam as misicas antigas. Os “balkadores e cortesdios sao mediadores entre as grandes als "incipalmente a dos nobres. Os genealogistas, historiadores hee ‘almente fazem as trés coisas ao mesmo tempo. Além disso, S20 a “adores de historia e grandes viajantes. O grande diterencial dos ee ts 0205 outros nama est no fato de possitem v2 paso Pendente no que se refere a fala, com uma liberdade ae bres nao tém, podendo até mesmo falar coisas sem P do Pris erto de perctiysdo, ra de cordas, Tanta @ umn tnstrumne 0 griot, Sotigui Kouyatée a Africa Encontro: com o griot Sotigui Kouyaté a 8 Por isto costuma-se dizer que 0. griot tem duas linguas. Eles também sao considerados literalmente a lingua dos nobres. Sao 0s griofs que fazem © pedido de casamento no lugat do noivo. Por conhecerem profunda. mente a historia das familias as quais estao ligados, suas falas podem tanto trazer elogios como criticas, por isso sao temidos. Nesse sentido, podem ainda ser porta-voz de noticias importantes ou tomentar a dis- cordia com infamias. Por isso, diz-se que o griot pode tanto construir a usar a guerra. Nas circuncisbes encorajam a crian¢a ou 0 paz como cat jovem durante a vigilia que precede o rito, a0 Ihes contar os feitos dos antepassados para que fiquem serenos. Os griots so chamados de deli, que significa sangue em maninca, Uma das explicagdes para esta atribuicao é que da mesma forma como ‘© sangue circula pelo corpo humano, 0s griots circulam pelo corpo da suciedade podendo curé-la ou deixd-la doente, conforme atenuem ou aumentem os conflitos através da sua palavra. Existem varias lendas que procuram explicar a origem da palavra djeli ser utilizada para desig- nar o griot. Certa lenda fula* conta o seguinte: Dois irmAos fulas viajavam juntos, mas a estacao estava hem inds- pita ocasionando a falta de alimentos, Era 0 periodo das secas € ainda faltava bastante tempo para que estas acabassem. A fome comegava a torturar as entranhas do irmao mais jovem, que nao parava de gritar para seu irmao: “Estou com fome, ache alguma coisa para eu comer!”. 0 irmao mais velho entao Ihe disse: “Espere- -me na beira do caminho". E dizendo isso, se embrenhou dentro da brousse onde nada encontrou, nem frutas nem caga de pelos ou de pens. Para que seu jovem irmao nao o pressionasse mais, to- mou coragem e cortou um pedago da sua panturrilha com seu fa- 40, acendeu o fogo para cozinhé-lo e em seguida o levou embru- Thado em grandes folhas de arvore ao mais jovem, que 0 comeu- Entao, © mais velho enfaixou a panturrilha com um pedago de San EemEEEEET * Conhecida tambén Saeed oe m Como peu, no francés. Esse povo €, depois dos bambara, 4 s* Ue traicionaliog eae nflueocia na propagagao do isla na Africa Ocidental. © sane lista Hampaté Ba, por exemplo, egunda um fula, pano, a fim de que 0 mais jovem nada percebesse. Mas o can: da caminhada e a dor o obrigaram a mancar. O mais jovem vntao perguntou: “OQ que vocé tem na perna que te faz mancar?”. Entao mais velho respondeu: “Nao encontrando nada para apaziguar tua fome, eu cortei um pedago da minha panturrilha para te dar. £ por isto que eu estou mancando”. A partir dai, o irmao mais jovem nao parou de exaltar a coragem e a devocao do seu irmao mais velho por todos os lugares onde os dots passavam, Diz-se que 0 mais jovem € socialmente inferior a0 mais velho. Sens descenden- tes so os mabo*, que adulam os outros fulas para ganharem pre- sentes. Por causa desta amputa¢ao, os fulas passaram a ter a pantur- rilha pouco carnuda (Zemp, 1966, p- 632). Numa outra versdo mandinga o irmao, mais velho, ao invés de dar ao mais jovem um pedaco de sua carne, Ihe dé 0 seu proprio sangue. Nestas duas lendas a origem do grivt esté ligada a um sacrificio, que envolve sangue e dor. Fica evidente também a presenga do costume do riot tanto de receber presentes como de ser provido pelo outro. Toda- enta um aspecto negativo € dissolvido pelo reconteci- 0 nobre e pelo compromisso de contar esta historia .s valorizando conceitos como coragem, solidarieda- sta com alguns detalhes dife- o surgimento do Maomé, na qual via, 0 que apres mento de um at para outras geragoe: dee generosidade. Ha lendas similares a ¢: rentes, Entre elas, ha uma de origem malinca para primeito griot, da tribo dos Kouyaté, ligada ao profeta 0 sangue também esta presente. pele inchava. Mas @ tocos das arvores fize- ue de Maomé fosse 0 profeta estava com um abscesso na perma. A terra recusava 0 sangue. O céu, as folhas, 08 Tam o mesmo, Eles néo queriam que 0 Sans Perdido, Entao Sourakata bebeu o sangue- As Pk é isso cha- Tam: *Sourakata tem rma parte do sangue de Maomé POX isso idly’ yessoas entao disse- (sanguc) (id, ib. Maremos todos os seus descendentes de (sangue) ( P. 630) oo Pala lavra fula homologa a djéli (grat), em maninc O griot, Sotigui Kouyaté e a Africa Z & Encontros com o griot Sotigui Kouyaté tsta outta Fenda, alem reforgar 4 ideia Ue sereM 05 Koyyarg a a W2 a its 95 i1os grits, também caracteriza a ligacao estreita entre gs 4M Sria4s « isla. Al ° S88 CO Sriot & « cretismo que ha na sua tradigdo, reunindo 0 animismo e 9 islamig Hé ainda outra hipotese, que considera que os ferreiros © Sriots sey me me iis, uma das mais interessantes caracteristicas ¢ si My : -ebido influ@neia iat oriundos de negros que tinham recebido influéncia judaica entre » m5 séculos X1e XVI. Contudo, A. Humblot, antigo administradoy de gy, lonia, encontrou em 1918 um manuscrito em arabe de um grigg Malin ca, no qual o cla dos Aamakdld, a que pertencem os griot pontady como um cla composto por desceridentes de judeus, e 0 cla dos hong (nobres) como sendo constituido por descendentes de arabes (Cama. ra, 1992, p. 81-84). Se pensarmos na tradi¢ao judaica de contar hist. rias € parabolas como forma de educar e propagar a sua filosofia, ta vez haja realmente uma ligacao. No entanto, sao varias hipéteses, ¢ nao é 0 meu objetivo esgotar os temas relacionados com a origem do griot malinca.* Para chegarmos a uma definicdo geral do termo griot, temos que levar em conta o fato de esta figura pertencer a uma casta dita inferior, os fdmakild, Dentro desta casta, ele € © Gnico que nao desempenta um oficio manual ou mecanico. Seu dominio é 0 da palavra e sua att- ayao esta ligada ao tipo de relagdes que ele estabelece com a sociedad através da sua arte. Por intermédio da palavra, o griot sera sempre Ul" depositario da histéria e das antigas tradigdes. Apesar de ser semp'¢° mais fraco ¢ 0 covarde nas lendas, ou seja, de suscitar desconfianca outros grupos por nao ser um homem da acao e dos oficios pratices 0 riot compensa esta incapacidade ac abili- no plano material através da hab dade com a palaves 4 om a palavra, a musica @ a memoria. © proprio fi propio fato, de por causa das suas condutas desviantes, ee har um grupo de eferencia emt un referencia negativa, constitui paradoxalme™ n aspecto po a PECLO positive quanto a regulagdo da conduta dos 100" | ni Beltrame (1995 " ae! mara (1992) ou -se de doutorad? 519%) 14 (1992) ow ainda a teve de dout Quando vem exprimir publicamente a8 coisas que ferein as normas da boa convivéncia, Parece que uma comunicagéo silenciosa e in- consciente se estabelece entre 0 interior reprimido o ibido da personalidade dos espectadores eo personagem desempenhado pelo griot (Camara,1992, p. 166). Passo agora a abordar a historia pessoal de Sotigui, sua infancia, educagao e a relacdo com a familia Kouyaté, antes da sua ida para a Furopa, atendendo ao chamado do diretor Peter Brook. A familia Kouyaté e a educagao de um griot A origem dos Kouyaté esté na Guing, na cidade de Fara, Porém, seu pai, Dani Kouyaté, nasceu numa aldeia do Mali, chamada Kita. Dani, entio, vai instalar-se em Burkina Faso (Alto-Volta na época) antes do nascimento de Sotigui. Quando casou pela segunda vez, a mae de Soti- gui, Soussaba Sako, jé tinha dois filhos: Mabé ¢ Bakari. Do novo casa- mento com Dani Kouyaté, um griot especialista no balafom, nasceu Sotigui. Sua mde era uma famosa griotte, uma das maiores cantoras do Mali, bem mais velha que Dani. Ninguém acreditava que ainda pudes- se ter filhos. Inclusive a familia de Sotigui era contra o casamento, que 86 péde ser realizado quando Dani aceitou se casar ao mesmo tempo com outra mulher mais jovem. Esta exigéncia se devia a necessidade de Perpetuar a prole, para a continuidade da familia. Os pais de Sotigui se apresentavam juntos em casamentos, batizados e demais eventos em ‘due o griot € mestre de ceriménias. No entanto, negando as expectativas, Soussaba engravidou, Durante 4 Sua gravidez as pessoas diziam que ela nao estava gravida, que 0 cres- cimento do ventre era causado por uma doenga. Assim, para poder ter 0 ‘iho com tranquilidade, Soussaba foi para Bamako, no Mali, junto da “ud familia. Quando Soussaba voltou a Burkina com Sotigui nos Dracus, “Ie passou a ser chamado de “pequena grande doenca’, Sotigul se tor- "SU primeiro filho do seu pai e 0 tiltimo de sua mae. Seu nascimento ©considerado um milagre até para ele mesmo, pois devido a idade avan- Sada de sua mae a gravidez era praticamente improvavel. Soussaba entao “MP6s uma musica para o filho. Sempre antes de comegar a cantar di- O griot, Sotigui Kouyaté e a Africa Encontro: com 0 griot Sotigui Kouyaté & ha pequena grande doenga” + Sotig a nto an ae zia “eu Ihes apreser : " nam chamado pelos amigos dos pais de o filho da nossa velhinhg também chama Sotigui herdou o nome do avd, que possi dois significados, chefe da casa e proprietario de cavalos. Os dois significados esto ligados ng medida em que um verdadeiro chefe de familia tinha que ter sempy um cavalo. Prima de Sotigui, Tagaré nos disse que a origem do nonie Sotigui na familia Kouyaté esté ligada a um dos seus ancestrais, yyy habil griot chamado Soumaila: Ele recebeu o nome de Sotigni porque nas guerras acompanhava os homens nos campos de batalha, encorajando-os. Ele era tao bravo que, em troca, o seu chefe Ihe dava os cavalos que capturava dos inimigos. Ele entao passou a comercializar cavalos. Com isso, pas- Sou a ser proprietario de cavalos (Kouyaté, 2003). A educacao tradicional de um homem na Africa Ocidental € dividi- da em ciclos de sete anus. Até os 42 anos a pessoa ainda € considerada uma crianga. A familia € a primeira escola. Até os 21 anos se da a criacdo do individuo. Nos primeiros sete anos de vida a crianca fica totalmente sob os cuidados da mac. A partir da idade de 7 anos, ela fica sob 0s cul- dados do pai, que a introduz na escola dus adultos. A partir dos 14, éa ver da “escola da rua", onde o jovem comega a se desenvolver fora de Casa, nas brincadeiras e nas aventuras com os amigos. Porém, a mae set sempre uma forte referéncia no que se refere a conduta ¢ as atiludes tomadas diante das dificuldades da vida. Dos 21 anos aus 42 anos sc completa 0 ciclo de aprendizado do homem. No entanto, s6 a partir dos 42 anos ele passa a ter 0 direito a palavra diante dos mais vellios, Enti0, durante 21 anos, ou Seja, até os 63 anos o homem deve passar adiante aquilo que aprendeu. Finalmente, ensinar, mas ele pode fazi-lo, e g educagio tradicional exercida pela Coranica e a escola ocidental de in Assim, nos prinnettos sete anos, como é o costume, Sotigui firol S0b 0s chidados da mae, Como el; 4 oportunidade de 405 63 anos cessa sua obrigagao de eralmente o faz. Juntamente a est@ familia ¢ pela vida, ha ainda a escola fluéncia francesa. ‘a era uma cantora de renome, ele te¥¢ Yiajat Muito ao seu lado. Além de conhecer out! cidades ¢ paises, pode observa-la cantando e isso contribuiu para agu- gar a sua musicalidade, O fato de a mae cantar em kassonke* Ihe possi- pilitou entrar em contato com mais uma lingua além do maninca ¢ do francés. Como cada lingua traz em sia forga da cultura que representa, com suas lendas, rito contos Sotigui cresceu ouvindo estimulos so- noros diferentes, alem de ter contato com caracteristicas particulares, de cada uma dessas tradigoes. Aos 10 anos sua mae morre. Por ocasiaio do seu batizado, ja havia sido escolhida a sua mde adotiva. Jonkunda, a esposa de um tio. Apesar do apoio e dos fortes lagos com a mae adotiva, o pai de Sotigui acabou se incumbindo da educagao do filho, o que fez com que mantivessem uma ligagao que durou toda a vida. Ate a sua ida para Franga nos anos 1980, Sotigui ainda morava com o pai, apesar de ja ter vai 10s filhos © dois casamentos. © convivio estreito com o pai desde a intancia foi responsavel por grande parte do aprendizado necessario para que, como griot, ele de senvolvesse a habilidade para mediar conflitos. A transmissao esta no cotidiano da familia e pode ser exercida tanto através da palavia como da simples observagao. Ha coisas que ndo podem ser ditas e ha coisas que devem ser obser- vadas, para que vocé mesmo tire sua prépria licdo. Mas mew pai me dizia as coisas. F quando meu pai encontrava as pessoas que vinham_ trazer seus problemas ou debater assuntos, me convidava para sen- tar ao seu lado. Assim, eu via as situacdes € OS conflitos, como tam- outros. Alguém que tem a responsa- pois do contrério nao otigui Kouyaté, 2002). bem a sua intervencao e a dos bilidade de transmitir precisa aprender, havera nada a transmitir (Les Chemins de S avo foi fundamenta- A educacao a partir do convivio com 0 pai 0 yar os ensina da na maneira tradicional utilizada por um griof para Pas Mentos aos seus descendentes: —__ : ingua per- No Mali além do fula, bambara € maninca, tambem se fala ok j ee “ tence d etnia do mesmo nome. Os kussonké s30 oriundos da mestigagem dos TDS 60 Malincas fica O griot, Sotigui Kouyaté ea Afri Encontros com o griot Sotigui Kouyaté & Perdi minha mae aos 10 anos. Ao mesmo tempo que foi um cho. que, me aproximou muito de meu pai, que preferiu me manda, para uma escola coranica. Meu pai e meu avd eram sabios, tinham experiencia de vida, Além de griots e chefes de griots, eram também mediadores de conflitos na mesquita. Fu tive este privilégio. Bes diziam que hé trés tipos de educacdo: pela palavra, pelo olhar ¢ pelo siléncio. Quando meu pai talava com os olhos, eu sabia; quan. do ele queria que eu aprendesse alguma coisa pelo siléncio, eu tam- bem sabia (id., 1b.). A educagao africana tradicional apresenta muitas regras de com. portamento e de respeito aos mais velhos. Antes da escola coranica e da escola laica, a escola dos brancos, é no seio da familia que a crianga vai comegar a sua iniclagao sobre a hist6ria, a vida, a nalureza © 4 Cunvi- véncia em sociedade, como nos diz Sotigui: Eu cresci com muitas regras, muito rigor. A sociedade africana tem uma complexidade e uma riqueza enormes. Nos dizemos que na vida s6 se pode colher aquilo que semeamos. Aquilo que vocé nao semeia nao colhera jamais. A crianga nao pode ser aquilo para o qual nao foi formada. Eu aprendi a estudar 0 cordo. Eu passei por dois grandes mestres do cordo. Mas ha ensinamentos que nem a escola francesa nem a escola coranica me deram. Partiram de valores da minha fami- lia, da minha casa (id., ib.). Aos 9 anos Sotigui passa por uma experiéncia que marcara sua vida, “o campo de iniciacao”, nos arredores de Bobo, em Burkina Faso. Trata- -se de um local na hrousse, considerado sagrado, onde os jovens ficam sob a orientacao de iniciadores. Sem a familia eles ficam um long? tempu vivendo de uma forma completamente diferente do convivi? em familia. Alids, este é um dos objetivos do “campo de iniciagao” — sair do seu referencial fam\ r € cotidiano. Exercitar no jovem a nece™ Sidade de se adaptar a outras realidades. O néimcro de jovens pode chegar a cer “gar a cem, mas, no campo que Sotigui ficou, 0 grupo era formad por 33 jovens com idades entre 7 € 21 anos. No comeco, o jovem deve observar 0s iniciadores, sdbios hem idosos que conhecem os segredos da natureza, da brousse e dos homens. Em seguida, jovens instrutores passam as regras e sangoes, enfim a disciplina. No décimo dia cada um deve abandonar a sua “pele” de origem e se vestir com a “pele” co- mum. Nesse momento, 0 aprendiz deve esquecer 0 que 6, e ser 0 que vai viver ali. E como se fosse uma nova vida. Este momento é precedido pela circuncisao, quando o jovem deve demonstrar coragem, Hé entao uma sequéncia de provas, como, por exemplo, saltar por uma grande fogueira. No entanto, o momento mais duro para um malinca ¢ ter que obedecer aos mais jovens: Nés aprendemos a submissao total aos mais vellius. No “campo de iniciacdo” ha momentos nos quais 0 mais jovem passa a ser o chefe. £ preciso respeita-lo. E isto é duro. Ele € 0 massa (chefe). E ele quem decide 0 que vamos fazer. Por exemplo, ele pode decidir que temos que andar 15 quilémetros e na volta 30. Tinha um companheiro de 18, que estava junto com o irmao de 7, e teve que obedecer por um tempo as vontades do menor. Foi duro para cle. O “campo de inivia- cio” esté ligado a cura. Na primeira semana tive que comer os restos dos velhos. Voce s6 pode sair depois que todos estiverem aptos a sair. Vocé divide tud dor, a felicidade ¢ 0 sofrimento (id., ib.). Este aprendizado no “campo de iniciagao” esta profundamente re- lacionado a um aspecto pouco conhecido sobre a educagao africana —a necessidade de se adaptar, de experimentar outras possihilidades Ou seja, aprender a viver dentro de uma estrutura a que vocé nao esta acostumado, onde nao é protegido. E ao mesmo tempo ele busca cons- Clentizar 0 jovem da necessidade de adquirir uma forga interior. Sotigui costuina dizer que “ninguém pode dar aquilo que ja nao esta em vocé". Ha uma énfase no desapego, na redugdo do dominio do ego sobre o “spirito. E acima de tudo, estimula o exercicio da tolerancia e da pa Ciencia. Ao comentar a intengao de seu pai de mandé-lo ao “campo de ‘niclacdo”, Sotigul revela o que esta por tras desta experiencia: J Ogriot, Sotigui Kcuyaté e a Africa Encontros com 0 griot Sotigui Kovyaté No inicio ew nav consegula compreender 0 que Meu pai querig lo in a : : . dlepois compreendi. F tudo informacao. F. para compreender mas de : ider as coisas nao se passam sempre como se passa com voce, f que a preciso poder se adaptar (id, ib.) Este periodo de provas e privagdes tem por objetivo propiciar um crescimento do jovem nos planos fisico, emocional e espiritual. A saida do “campo de iniciagao” écelebrada numa grande festa com musica ¢ cantorias onde sobre os cavalos os jovens se tornam homens e passam a ter orgulho de si mesmas. Segundo Sotigui, a lembranca dos “cama- radas de casa”, como sia chamados os jovens que passam este tempo juntos, esteve sempre presente na sua memoria. Outros oficios e 0 encontro com o teatro Apés 0 periodo de formacao na escola coranica, no “campo de inicia- cdo”, na escola francesa dos brancos e no seio da familia, Sotigui entra para o Liceu Técnico. Aprende datilografia (muito importante na época para fungoes publicas), além de se tornar tecnico em enfermagem. So- tigui desde jovem teve que desempenhar outras fun¢ées para auxiliara familia. Os tempos dos griots mantidos pelos nobres passaram. Apos a colonizacao, a Africa passa por mudangas irreversiveis. O griot nao pode ser exclusivamente griot. E preciso retirar o sustento diario de ou- tros oficios. Assim, Sotigui passa Por varias protiss6es, num ecletismo que também contribuiré para a ampliacdo do seu olhar: datilografo, prema, wnconso ce anc, funciona do Minisério da Said (CEC), cantor, ten reogato, fe et ’ Coredgrafo, bailarino, boxeador (11 vitd- tas € uma derrota) e Jogador de futebol, chegando a se tornar capita da selecao de Burkina Faso, ‘ ° , O teatro ent Ta na sua vida de {i i fon 7 en- (80 se tornar um ator Ma inesperada. Nao era sua inte! Da mesm na forma que a @ UE aprendi a tu a car Viol a ei DOF ner so. ao passe Pornenhuma escola de teatto, Passe; zinho, no pas ‘atro. Passed 4 frequentar a grande escola da vida. Fol um amigo meu, Dicko Boubakar (diretor da trupe da Casa da Cultura), que me convidou para fazer teatro, O teatro nao me interessava. Ao montar uma pega hist6rica sobre Burkina Faso (antes da colonizagao), cle precisou de ajuda para coreografar uma danga guerreira. Nos griots estamos sempre a disposigao, porque o griot esta a servico de todo mundo. Ainda mais quando é um pedi- do de um amigo. Entao eu montei esta danga. Acabei ficando no espetaculu, porque as pessoas que levei sairam. Entao, eu nao po- dia abandonar Dicko. A peca foi premiada e acabou viajando du- rante um ano por todo 0 pais. Depois 0 mesmo Dicko fez outro espetaculo ¢ eu acabei fazendo um papel, pois o texto era de um tio meu (Sotigui Kouyaté-Portratt Senstble, 2001). Em 1967, Sotigui acaba criando seu proprio grupo de teatro, a Companhia do Alto Volta. © grupo monta espetaculos relacionados a temas da tradicao africana e também textos do teatro classico ociden- tal. De Moliére o grupo encenou “O avarento” e “O médico a forca”, entre outros. Uma das bases do trabalho do grupo, v koteba, esta vincu- lada a disposigao espacial com varios circulos tanto no que diz 1espeito avs artistas como av pablico. Em volta dos percussionistas, 0s ballari- nos, homens e mulheres giram em sentido contrario evocando a figura do caracol, a partir deste movimento em espiral. Por outro Jado, a pla- teia é dividida também em circulos: o primeiro composto pelas crian- (85, 0 segundo pelas mulheres e o terceiro pelos homens. © koteba é bem representativo do espitito comunitério na Africa Ocidental: AS ctiangas jamais ficam isoladas de qualquer manifestaca0 artistica ou Cotidiana, Da mesma forma, o pai de Sotigui desde pe Nas ‘ou a participar das rodas de conversa dos adultos, es te apresentaco tro, também ni es di dangas ou teatro, ee eiaeemamene til, por exemplo, queno © estimu 8enero ou de faixa etaria. Nao existe um tealTO infant 0 cair da as um teatro para todos. U kotebu € sempre ear wos partes ‘ Je dui Aoite pelos proprios habitantes da aldeia. E€composto’s* A primeira parte é consagrada 4 danga € S¢ estende até 0&8 amente teatral, que & 40s participantes; entao, comega a parte propriamente 0 griot, Sotigui Kouyaté e a Africa eT Encontros com « griot Sotigui Kouyaté ~ & composta por improvisacoe seus problemas. Os entreatos satiricos servem para distrair 0 publicg « aliviar as tenses. Atitudes negativas como a preguiga, ambicao desen. freada, avareza e charlatanismo sao criticadas através dos personagens Os temas sao relacionados & aldeia ¢ aos e das pecas. As apresentacoes Custumam Scr ao ar livre nas aldeias ¢ noy bairros das grandes cidades. Atualmente 0 koteba € utilizado para cam. pauthas de prevengto da Aids, bem camo para recomendacdes de higie. ne alimentar e até mesmo para debater um grave problema como a excisio nas mulheres. Ha também o koteba terapéutico, que auxilia no tratamento de doentes mentais. Sem diivida, o espirito comunitario, a direta comumicacao com 0 piiblico, o humor ¢ principalmente o aspecto dialogico do koteba esto presentes no taballiv de diretor ¢ na atuagéio de Sotigui. Porém, tam bém faz parte dos ideais do griot transcender fronteiras, entrar cm con- tato com a desconhecido e dai se fortalecer para novos desafios e des- cobertas. Assim, pode-se dizer que j4 nessa época Sotigui buscava estabelecer um encontro e um didlogo entre a tradigéo e a modernida- de, pois se o mundo se transforma o tempo inteiro, a recep¢ao do pa- blico também sofre alteracoes, € € preciso sempre buscar comunicasao e didlogo para que a transmissdo seja possivel. Segundo Maomeé: “Fale as pessoas na medida do seu entendimento”. Enfim, mesma antes de ser convidado para trabalhar com Peter Brook, Sotigui ja trazia o dese) de conhecer outras tradicdes € partilhar conhecimentus: © koteba sempre me deu forga. A minha forca é de poder ficar mui- to ligado as minhas raizes, sem no entanto recusar a abertura dian- te do desconhecido, porque o conhecimento vem do desconheci- do para 0 conhecido, e nao do conhecido para o desconhecido. 4 riqueza é esta. O koteba esté sempre comigo, eu nunca o rejeitel Mas sempre mantive a curiusidade com 0 que ver de fora, aquild que eu posso encontrar no que vem de fora que seja complement" ao que hé em mim, minha hase, minha fundagia Porque quand? Voce corta as raizes de uma Arvore, ela nao viverd mais. £ prec? Contar com suas fontes, mas também podemos nos enriquectt com novas fontes. N3o podemos nos contentar apenas com " om 0 que somos, do contratio seremos rapidamente a ultrapassados (Les ( he- mins de Sotigui Kouyaté, 2002), us Porem, nao ha nenhuma ingenuidade nesse pensamento, Nem U foi relatado por Sotigui durante a oficina por ele RIO. Segundo ele, era comum a Franca mandar trutores de teatro para “ tudo o que vem de fora merece ser incorporado. Um bom exemplo me ministrada na UNI- 4 Para as colnias ins- Snsinat” a técnica europeia. Ou seja, Tegras de posicionamento no palco, relacan entre o gesto v a Palavra ou até mesmo exercicios que visavam despertar a imaginagao dus atores, Uma das regras proibia o ator de falar diretamente para o publico. Uma espécie de recomendacao completamente im cao de “quarta parede” culo, pregnada pela no- , que obviamente nao serve a qualquer espeta- muito menos ao tipo de relacio que um griot sempre procura estabelecer com 0 puiblico. Aliés, quando um griot se apresenta num espago fechado pede que as luzes da plateia fiquem acesas, pois preci- sa ver e sentir © ptiblico, perccber sua temperatura, para, de acordo com a recepcao da plateia, alterar a forma e o ritmo de contar a hist6- tia, Outra regra pregada pelos instrutores franceses dizia respeito a Sonceitos de abertura ¢ fechamento. U instrutor “ensinava” que nao Se deve virar para o lado contréziv unde estiver 0 publico, ou, ainda, ue 0 gesto deve ser precedido da palavra, ao apontar para alguma Soisa ao longe por exemplo. Para Sotigui tudo soava estranho, pois a rela¢ao com 0 corpo € os gestos para ele devem ser absolutamente na- turais. Nao ha uma estilizacao ou um formalismo nestas decisoes. Em determinado momento o instulo1 passou a “ensinar” como se deve andar no palco. Para um griot isto € completamente absurdo, pois nao “iste esta divisdo entre teatro e vida. O ator e 0 homem. Assim o an- dar esta, vondicionado as necessidades da a¢ao ou da situacao vivida, °u das Persouagens, os quais, porventura, 0 contador vena a assumnir durante uma contagao de historias. _ Talvez o exemplo mais elucidativo desta dissonancia seja um exer- “0 Proposto Para estimular a imaginacdo, como relata Sotigui O griot, Sotigui Kouyaté e a Africa é Encontros com o griot Sotigu! Kouyat = va ar o barquinho que Jo estes instrutores me mandavam olhar o barquinho que se Quando estes ins s ondas, olhando para uma parede sem nenhuma as ondas, sm .xplicagao, eu olhava bem fixo para a parede e dizta: “Eu nag outra e} 7 ° @ ; ‘ ° a barquinho”. Entio o instrutor repetia: “Olhe bem”, jo nen! a vejo nada!”. Entao, chamavam outro: movia sobre Eu olhava e dizia: “Eu : “Vocé vé o barquinho?”. Ai o outro dizia: “Sim, eu veio Be © ins. trutor prosseguia: “Ele avan¢a, vocé vé?” “Sim, eu vejo!”. Entao chamavam outro que dizia a mesma coisa. Depois me chamavam de volta e perguntavam: “Agora vocé vé o barquinho?”. E eu res. pondia: “Nao, cu nao vejo nada!”. Ora, ha varias formas de se des. pertar a imaginagao, ao invés de procurar visualizar um harquinho na parede,* Este tipo de procedimento dos instrutores franceses jamais levava Em conta o saber e a realidade das antigas colonias. Era como seo ator africana estivesse comecando do zero. Assim, toda a tradigao do koteba, dos griots, da danca e da musica africana era considerada apenas exsti- ca. Alids, Paulo Freire tem uma frase muito aj i comportamentu: ” A arte do colonizado é folclore, a arte do coloniza- dor é cultura” (Freire e Guimaraes, 2003, p. 44), A ahertura para o outro esta na base do aprendizado do Sriot, sem co um teste para “Mahabharata”, Cido hatendo a Porla e, como veremos, abrindo outras, * Anotagoes pessoais realizadas du so- “a0 Kouyate, em agosto de ag slavra em Cena, ministrada por

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