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CAPITULO UM Para compreender como funciona a sociedade Para compreender 0 funcionamento da sociedade, devemos lentar definir a natureza geral ¢ 0 grau de nossa ignordncia reste campo" ‘Através de seus trabalhos, Hayek assinala a crenga muito comum, porém errénca, sobre o modo como funcionam as instituigbes socials. Simplificando, é costume erer que, j4 que o homem criou as institui- «bes da sociedade a civilizacdo -tais como lei, codigos morais¢ ins- tituigdes sociais ~ também pode alteré-las, & vontade, de forma a sa- tisfazer seus desejos ¢ aspiracbes * find uiltons A primeira vista, tal idéia parece muito razodvel e estimulante, ‘Sugere que, se quisermos construir uma sociedade melhor, consegui remos liberar-nos das leis valores e instituigGes existentes, e substitui- Jos por outros que nos proporcionem novas € melhores condigdes. Afi- nal, se criamos nossas instituigdes, podemos também modificétas. Po- rém Hayek sustenta que essa opinidio apdia-se em um grande equivo- co quanto as verdadeiras origens da vida social ¢ das instituigdes, ¢ que a reconstrusdo da sociedade que parece possfvel seria entio o mais grave dos erros. Seria como construir sobre areia movedica. ORDEM SEM COMANDO A idéia de que nossas instituigdes sto infinitamente maledveis apdia-se na iluséria divisto das coisas em “natura” “artificiais’ distingdo esta que existe desde os antigos grégos *, mas que, para Ha- yek, € falsa e provém do uso inadequado da linguagem do dia-a-dia. Existe decerto um terceiro grupo de coisas que nao € exatamente “ni tural” nem “artificial”, ¢ € neste grupo que as instituigdes sociais de- vem ser colocadas. ‘Quando se fala de “natural”, ha freatientemente conotagoes de algo nao planejado, irregular, ndo estruturado ¢ tosco. O oposto, “ar- tificial” ou “inventado”, sugere algo feito com propdsito, estrutura- do, regular e planejado. Quando a lei, 0 governo, as regras morais € outras instituigdes sociais esto funcionando regularmente, com uma estrutura ordenada, e quando (elas) aplainam os efeitos da atividade 9 Jhumana, as pessoas sto levacas a exer que essas instituigdes se enqua- Gram exclusivamente no segundo grupo: que s8o “inventadas” e, por isso, podem ser reinventadas. Nada é menos verdadeiro, insite Hayek. Precisamos de uma ter ceira categoria para deserever as instituigdes socias, pois, embora pa- recam estruturads, elas nio foram inventadas ou planejadas. As es- truturas da vida social crescem e se desenvolvem do mesmo modo co- smo se forma a estruturafisiea de um cristal ou como eresoe uma dr- vore, Nao as escolliemos conscientemente pelas vantagens que nos tra- iam; mas elas se desenvolvem e sobrevivem porque, de fato, propor- cionam vantagens aos grupos de pessoas que as adotam, Embora es- sas estruturas sejam, sem sombra de duivida, padres do comporta- mento humana eas fo so consenineia de desinio ou planejamen- to humano ¢ E uma nogio dificil de entender na medida em que nos equivo- camos com o uso vulgar das palavras “natural” e “artificial”; mas & muito importante se queremos perceber quo pouco conhecemos so- bre o funcionamento da sociedade, e quanto 0 nosso conhecimento & ele mesmo, produto da civilizasio, ¢ ndo seu autor ou mestre. Os homens primitivos ndo se agruparam somente para discutire inventar tum conjunto de regras sociais. Ao contrasio, foram os beneficios da vida em grupo que fizeram com que eles se desenvolvessem como se- res racionais ¢ sujeitos a normas. Quando as pessoas afirmam que de- ‘vemos usar a inteligéncia para reestruturar as instituigdes sociais, elas nao percebem que a estrutura dessas inteligéncias e ada sociedade se desenvolveram juntas * Exemplos de ordens nao planejadas: Hayek menciona varios exem- plos de fendmenos que s8o ordenados mas que nao resultam de pla- nejamento, A linguagem humana ¢ um: possui uma complexa estru- iarr-pramatical, as palavras so usadas de modo coerente, e pessoas diferentes esto de acordo quanto 20 significado das palavras e das frases. Contudo ninguém vai afirmar que a linguagem foi “inventa- da” por um ser racional, apesar de sua regularidade e apesar das evi dentes vantagens que traz aqueles que a usam. Ela simplesmente ddesenvolveu-se e sobreviveu porque € itil As sociedades aniimais proporcionam varios exemplos de com- portamento ordenado °, As complexas sociedades das abelhas ou dos cupins, com a divisao de tarefas entre sus componentes, formam uma impressionante ordem gcral. Mas isso nao quer dizer que cada abelha cou cupim saiba como o seu comportamento contribui para 0 conjun- to, e nem que esse conjunto tenha sido de alguma forma “planejado” 20 A utilizagdo de uma trilha através de um campo é outro exem- plo de como a acao individual pode produzir um resultado benéfico porém nao planejado. Ao seguir as pegadas de alguém, o intuito é de formar a caminhada mais fécil; é meramente egoista. Mas depois que algumas pessoas tenham agido assim, elas terdo tragado uma estrada sélida que facilitard a passagem de todos no futuro. A eriagao da tri- Tha nao dependeu da intenc4o de ninguém, mas foi o resultado feliz da aibigdo de cada um de utilizar a rota’ mais facil ’. COMPORTAMENTO INDIVIDUAL B ORDEM SOCIAL Esses exemplos niio apenas mostram que organizagdes comple- xas podem vir a existir sem serem conscientemente planejadas. Tlus- tram também uma questo crucial para se compreender a visio de Ha- ‘yek sobre a sociedade: que existe uma enorme ¢ evidente diferenga en- ire as regularidades da conduta individual as regularidades gerais da sociedade que aquelas produzem. A abelha operaria, por exemplo, cexceuta atividades diversas, tais como aprovisionamento, limpeza dos alvéotos e assim por diante, em diferentes estagios de sua vida; loro, podemos dizer que seu comportamento é regular ou que pode ser de- finido por normas. Muito embora a abelha nao se dé conta de que ‘suas agdes so regulares, seu comportamento bem como o de suas com panheiras contribui para a criagdo de uma complexa comunidade de insetos. Torna-se muito dificil, porém, prever como a mudanga de cor portamento de uma abelha (que gaste mais tempo para trazer pro' '36es ou menos tempo para limpar os alvéolos) vird a afetar o perfil final da comunidade, porque sto duas coisas diferentes e esto rela- cionadas de forma muito complexa. (Ou, tomando-se de novo o exemplo da trilha, embora os moti- vos dos individuos tenham sido meramente egofstas, serviram assim ‘mesmo para criar uma situacao que aparenta ser cooperativa. A rela ‘cao entre 0 comportamento do individuo eo padrao social que ele ria & portanto e de todas as formas, direta. Por esse motivo, Hayek alerta contra a crenga de que podemos reeriar instituigdes sociais & vontade. Nossa compreensao de como as regularidades da conduta individual e as regras da moral, da lei e dos costumes relacionam-se com as regularidades da ordem social é no rinimo, frégil. Ao solicitarmos s pessoas que mudem de comporta- mento, podemos inadvertidamente destruir a complexa ordem geral que pretendiamos methors a antes de tentarmos reformar 2 socladade de forma ineligene, devemos co: tecer seu funcionamento; e coavem ter em mente que mesmo quando acre amos compreender seu Taneionamenta,podemos estar equvoeados, Pre mos procurar entender que a cvilang2o humana tem vida propria, quel ‘8 nosastentalivs de melhoramento devem dare dent de uma estutute ge Fal que ndo podemos controlar: resanos apenas esperar failiar ¢auxiia © funeionarpento das foras desta esutura na medida em que as postamos com preender Regras e ordem: A tarefa dos estudos sociais ¢ politicos, entdo, é des- cobrir que tipos de aco em nivel individual irdo realmente propor- cionar um funcionamento harmonioso a ordem social. Para que uma ‘ordem ou padrao nao planejado possa existir, diz Hayek, tem de ha- ver um certo grau de regularidade no comportamento dos individuos, ‘uma vez que um comportamento fortuito dos individuos no produ- ziria uma ordem estével. Hayek chama essa regularidade de regras, (© que ndo supe que os individuos estejam seguindo quaisquer or- dens estabelecidas, nem mesmo que estejam percebendo que agem de ‘uma certa forma, mas somente para indicar que o comportamento de- les segue certos principios capazes de serem descobertos. Porém, para que um padrao social geral possa emergir e sobre- viver através da evolucao, nao é exigido necessariamente que os indi viduos ajam exatamente da mesma forma ou tenham um objetivo em comum. Até mesmo uma pequena semelhanca de a¢do pode ser sufi- ciente; por exemplo, regras contra o que é prejudicial 20 préximo, ou furto de propriedades, ou quebra de compromisso poderio tornar a ‘cooperacdo e a vida social possiveis, mas deixando a cada individuo uma grande margem para a agdo livre. Decerto, a maioria das regras sociais, c6digos morais, costumes e leis funciona exatamente deste mo- do, proibindo certos atos, mas deixando intocada uma vasta gama de comportamento possivel ®. E, quanto ao propdsito comum, 0 exem- plo da trilha demonstra que esse propdsito ndo é indispensivel para ue surja um efeito benéfico, Nao é de se supor que exista uma mira- calosa harmonia natural de interesses pessoais que explique como sur- gem, sem tropecos, as ordens sociais '°, Um comportamento inteira- ‘mente egoista pode as vezes produzir esse resultado, ‘Mas quem pensa que podemos reconstruir a sociedade de acor- do com os nossos desejos deve notar que nem toda regularidade no ‘comportamento individual produz uma ordem geral. Como afirma Ha- yek, uma regra que determine que um individuo deva tentar matar qual- {quer outro que encontre, ou que fuja to logo veja um outro, tornaria qualquer ordem social impossivel. Embora este posea parecer um exem= plo extremo, haverti certamente muitas outras regras plausiveis que po- dem parecer a principio veiculos de uma sociedade viével, mas que, 2 na prética, podem levé-la ao fracasso. A dificuldade ¢ que a relaglo centre as regras individuais ¢ a ordem geral resultante ¢ t20 complexa ¢impenetrdvel que no podemos afirmar de antemao qual o conjun- to que dard certo. © tinico indicador de que dispomos é 0 que deu certo no passa- do. Os sistemas de regras da conduta individual que produzem uma ‘ordem trardo as pessoas os beneficios da cooperagao e darao condi- 40 de expanséo aos grupos que seguirem esses sistemas de regras. A. alteracdo deliberada de qualquer dessas regras podera prejudicar a de- licada inter-relagio entre elas e levar a0 caos; nunca podemos estar inteiramente seguros. Hayek nao é um conservador inflexivel endo firma que devamos deixar nossas regras morais ¢ legais da maneira {que so; ao-contrario, como as circunstncias mudam, diz ele, nosso modo de agit tem de evoluir e se adaptar a elas. Mas ele destaca que nnossas instituigdes existemtes, herdadas, satisfazem as suas proprias Fungdes ao tornarem uma sociedade possivel, de forma que dificilmente ‘conseguiriamos imaginar. Elas contém, por assim dizer, uma certa sa- bedoria, um saber como agir. Quem quiser abandonar todas as re- gras existentes e substitui-las por outras esta errado, pois no se dé conta desse fato; porém, o conteiido do conhecimento das regras for- ‘ma o alicerce do préximo grande passo na exposi¢do de Hayek sobre a estrutura da sociedade, © CONTEUDO DO CONHECIMENTO DAS REGRAS Hayek tem uma visdo muito ampla do significado da palavra “conhecimento”. Este significado ndo se restringe, segundo ele, ape- nas aos “fatos” conhecidos; o conhecimento do “como” fazer as coi- sas ¢ igualmente importante. Nossas habilidades, por exemplo, so um importante conhecimento que tems, mas sao de um tipo que nao pode ser escrito em livros. Nossos habitos, ¢ até nossos gestos e atitudes emocionais, desempenham indubitavelmente um papel importante no fato de tornar a vida social possivel, mas ndo temos a obrigacio de entendé-Los ou de explicar a sua relevancia para a sociedade como um todo. Simplesmente nds 0s seguimos, e 0 conhecimento que contém ajuda-nos a viver € a agit de forma cooperativa, sem ter de pensar sobre isso. Ou ainda, 0s instrumentos que usamos sdo essenciais se pretendemos dominar nosso meio ambiente, mas geralmente ignora- ‘mos por que nossos apetrechos estao moldados de uma forma e no de outra, pois eles sto o resultado da experiéncia de geragdes sucessi- ‘vas que 0s manipularam. Sempre que descobrimos uma melhoria, to- 23 ‘mamos posse dela e a passamos para a geragdo seguinte; desta forma, 08 instrumentos por ela herdados contém nossa experiéncia e 0 “co” ‘nhecimento” das geragdes que nos precederam. E instituigdes sociais, tradigdes, costumes, valores e outros tipos de comportamento regular so exatamente instrumentos que contém esse conhecimento do co- mo agir © ‘As instituigdes sociais podem, portanto, conter em si informa- ‘s0es vitais, sem que 0 conteiido desse conhecimento chegue a ser en- tendido pelos individuos que agem dentro dessas instituigdes. Nao te- ‘mos de “saber” por que nos comportamos de certo modo ou por que seguimos determinadas tradicdes e costumes, para que essas regras se- Jam os meios através dos quais se produz uma ordem social. Elas no resultam tanto de nossa escolhia deliberada no esforco pata realizar fins especificos, mas sim de um processo de selesao evolutiva no qual 95 grupos que obtiveram uma ordem mais eficiente afastam 0s ou- tos, muitas vezes sem saber a que devem a sua superioridade, Grupos ‘Ros quais as diversas regras adotadas se ajustam umas as outras, co- ‘mo num relégio, para produzir uma eficiente ordem geral, vao expandir-se e afastar outros, sem que os individuos cheguem a enten- der a complexidade do mecanismo. A transmissao de regras: As tegras de comportamento séo seleciona- das no nivel do grupo pelo fato de poder ou nio gerar uma ordem social funcional; mas so transmitidas geneticamente através de dis- posigdes emocionais, certas expressdes faciais hasicas, e assim por dian ‘te, Outras tm origem cultural, ¢ delas Hayek destaca tr8s importan- tes categorias. O.primeiza grupo é 0 das regras que sao escolhidas deliberada- ‘mente, Quem acredita que a sociedade possa ser conscientemente ma- nipulada A vontade (0s construtivistas, como Hayek os chama) alega ue sao estas as regras mais importantes, Desde que tenham sido deli- beradamente redigidas, elas existem em palavras e senteneas, e podem ser prontamente comunicadas e discutidas. © segundo grupo € 0 das regras que seguimos mas que nao po- demos expressarem palavras. Por exemplo, so aceitos habitos de fair lay que dificilmente conseguiriamos por por escrito, muito embora ossamos dizer quando eles ndo sio seguidos. Ou ainda, percebemos quando alguém tem “facilidade para a linguagem” e segue no ape- hhas as regras gramaticais mas apresenta um bom estilo, embora nao Possamos verbalizar no que consiste a boa gramética e 0 bom estilo. E, talvez 0 mais importante, temos um “senso de justiga” que nos diz quando alguém esti agindo dentro de principios corretos, mesmo sem 4 conseguir explicar precisamente quais so esses principios. Este segundo grupo de regras, que Hayek julga 0 mais impor- tante a ser considerado pelos tedricos sociais, abrange normas que po- dem ser de fato muito complexas. E duvidoso, por exemplo, que al- ‘guém consiga descrever com palavras tudo 0 que esté subentendido no principio do fair play. Mas para que ele seja aprendido, nao hé necessidade de ser escrito ou explicado. Nds o vemos acontecendo na vida didria, e podemos observar como nossos pais, professores¢ cole- «gas se comportam em iniimeras circunstancias particulares. Desses va- ros exemplos de como agir em milhares de circustancias especificas, ‘nossas mentes desenvolvem as regras que nos guiam, reunindo os ca. 508 € tornando-os padres de comportamento ¢ meios de ver o mun- do, que podem ser de espantosa complexidade ". De fato, eles costu- mam ser tio complexos que as mésmas mentes que os seguemn niio conseguem explicd-los com palavras. O terceito grupo de regras corresponde aquelas que inicialmen- te so aprendidas pelo mesmo processo de observaca0 da aco, mas ‘que também se tenta expressar em palavras. lei comum, por exem- plo, € formada ao longo dos séculos ¢ & realmente uma coletfnea de julgamentos ¢ casos individuais que podem ser usados como prece- ddentes em litfgios futuros; mas nds os julgamos ites se conseguimos _pér em palavras os principios que ligam num todo esses diversos jul- ‘gamentos. Podemos registrar um grande mimero desses principios le- sais procedentes de casos. Mas 0 que escrevemos € apenas uma tenta- tiva de mostrar aproximadamente 0 que tem sido em geral observado na agdo, e muitas decisdes judiciais sto, no dizer de Hayek, esforcos para articular regras de justica que sto seguidas na prética mas que no foram previamente registradas ©, ‘Assim, as regras valores que chegaram até nds o fizeram atra- vés de varios caminhos, e niio devemos por isso aceitar a afirmacio segundo a qual apenas as regras articuladas, escolhidas propositada- ‘mente, s4o importantes '. Explicar com exatido como determinada estrutura evoluiu biologicamente € tarefa dificil ou quase impossive. ‘Para explicar a razo pela qual espécies de organismos tém determi- nada estrutura corporal, por exemplo, teriamos de conhecer tudo so- bre a histéria genética das espécies em questtio, bem como sobre os indmeros acontecimentos particulares, desde a formago do mundo, ‘que foram importantes para a sua formacdo evolutiva. Explicar a ¢s- ‘rutura da sociedade ¢ tarefa ainda mais impossivel. Nao podemos ape- nas “somar” padrdes de comportamento individual para mostrar co- ‘mo eles formam uma ordem social global. A ordem geral da socieda- de aparece como resultado do ajustamento das agdes de milhdes de 25 individuos entre si, com a fusdo de muitas regras complexas de com- portamento, ¢ através das ripidas flutuacdes das circunstancias atuais, assim como da histéria do meio ambiente. VANTAGENS DAS SOCIEDADES REGIDAS POR REGRAS Em um pequeno grupo de individuos que se conhecem entre si, ¢ ficil para qualquer deles prever como seus companheiros reagirdo ‘a0 seu modo de agir ¢, portanto, avaliar qual o efeito geral sobre 0 grupo. A telagdo entre as agdes do individuo e o resultado geralé i- feta, Mas na sociedade ampla, extensa, de nossos dias, as coisas S40 bem diferentes: 0 individuo conhecerd apenas um punhado dos mi Ihares ou milhdes de pessoas que compdem a comunidade. Avaliar 6s efeitos das apes de cada um seria impossivel, a menos que se pu- desse contar com a maioria das pessoas para que seguissem regras ge- rais de ayio e se comportassem de modo regular e prevsivel. A vida social moderna depende pois de 0 nosso comportamento ser regido Por regras. As regras tém o que Hayek chama uma natureza abstrata: plicagdes de todas as nossas ages, tentando constantemente desco- brir como os outros reagiriam e como isso iria ainda afetar outros. Felizmente, o comportamento regido por regras faz esse trabalho por rnés. Assim como a aquisigio de uma habilidade nos permite fazer al- 0 sem termos de pensar muito, as instituigdes sociais tais como as leis, costumes e moral nos permitem cooperar com outros sem nos preocuparmos como deve ser 0 nosso comportamento. Tal como as habilidades, as instituigoes nos do um répido e inconsciente resumo de como agir "5 ‘A sociedade ampla de individuos regidos por regras apresenta outras vantagens em termos de conhecimento, habilidade e informa- 0 com que ela pode contar. Qualquer sociedade organizada e diri- sida por uma autoridade central, seja esta um lider, um conselho de homens experientes, ou até mesmo um sistema de computacao, fica obviamente limitada pela quantidade de conhecimento que a autori- dade possui. A sua capacidade de reagir ¢ de sobreviver a novas mu- ‘dangas do meio ambiente vai depender da quantidade de conhecimento ‘que exista na mente central. Igualmente importante é o fato de que sua estrutura estaria limitada em complexidade pelo moderado grau decomplicagioque a autoridade central pudesse planejar e controlar'® 26 Desde’ que uma inteligéncia ndo consiga explicar ¢ controlar algo mais complexo do que ela mesma", forgosamente fica definido o li- mite maximo de complexidade numa sociedade cujo governo é cen- tralizador; mas, bem abaixo desse, estard o limite pritico da quant dade de conhecimento que pode ser manipulado pela autoridade cen- tral. J4 que o tamanho ¢ a complexidade de uma sociedade centrali- zada sfo limitados, portamto, ordens sociais muito complexas, forne- ‘cendo mais fatos do que qualquer cérebro possa averiguar ou mani- ular, sio somente possiveis se forem o resultado da evolusto de sis- temas de regras € no de um projeto deliberado. ‘Onde 0 saber como agir é controlado por virios milhdes de in- duos - € nfo por uma autoridade central - pode-se dispor, como, iz Hayek, de mais informago. Como os individuos podeth utilizar © seu préprio conhecimento dos acontecimentos locais, so capazes de ajustar-se a eles sem necessidade de serem dirigidos, e seu ajusta- ‘mento no esta limitado a0 conhecimento controlado por uma agén- cia central. Assim, a sociedade que ¢ formada pela adovdo de resras ‘scrais de conduta tende a ser mais eficiente em ajustar-se as mudan- gas, do que aquela que ¢ conscientemente projetada e dirigida. Hayek chega pois & conclusio de que, embora seja certamente possivel construir organizacdes sociais que funcionem de acordo com regras de nossa escolha, elas devem necessariamente ser limitadas em alcance ¢ tamanho, Supor que podemos simplesmente desprezar nos- sas leis ¢ instituigdes sociais existentes, substituindo-as por outras de nossa escolha, & correr 0 grave risco de demolir nossa complexa socie- dade & qual milhdes de pessoas devem a existéncia ®. Para poder mu- dar algumas instituigdes ¢ necessdrio um extremo cuidado. A IMPORTANCIA DA LIBERDADE INDIVIDUAL “Munidos desses principios sobre a evolugdo das sociedades com- plexas, podemos entender a posigio fundamental que ocupa a liber- dade individual no pensamento social e politico de Hayek. Para ele, essa liberdade ¢ 0 estado no qual um homem nao esta sujeito & coer 40 pela vontade arbitréria do outro; a sociedade liberal ou livre que Hayek deseja é uma sociedade na qual a submissio dos individuos & vontade dos outros e 0 uso da coergao sio minimizados. claro que muitos autores afirmam que a liberdade é um valor em sie obviamente vale em causa propria. Hayek ndo é contririo a essa idéia, Mas nao concorda com quem acredita que os beneficios da liberdade podem ser trocados por outras coisas que também valo- 27 rizamos e que somente poderdo ser alcangadas se desistirmos de uma parte da liberdade. Ao contririo, diz ele, as vantagens mais profundas ‘ea longo termo da vida social, para serem totalmente possiveis, exi- igem liberdade; ¢ ele enumera uma série de argumentos para justificar tal postura liberal * Ignordncia: Uma importante justificativa da liberdade esté na inevi- tdvel ignorancia de todos nds com relagdo aos miltiplos ¢ varios fato- res dos quais a realizagdo de nossos objetivos e bem-estar depende. Simplesmente ndo sabemos com exatidio como nossas agdes ¢ insti- tuigdes contribuem para a ordem geral da sociedade, nem 0 que a mu- ddanca delas significa, Forgar as pessoas a agirem numa certa diregdo ‘pode, portanto, romper o complexo mecanismo que nos traz muitos beneficios. Embora a eliminagdo da liberdade pessoal e 0 ordenamento da sociedade de acordo com um plano central possam prometer al- ‘guns beneficios, € mais provavel que tenham efeitos desastrosos. O progresso © o uso do conhecimento: A liberdade € essencial para deixar espaco ao imprevisivel e ao imprognosticavel. Acidentes, &s ve- zs felizes, acontecem, ¢ é freqiiente esbarrarmos em novas formas-de ‘agit melhores que as precedentes. E desse modo que aprendemos € fazemos uso do conhecimento disponivel. Entretanto o progresso no pode ser planejado; 0 maximo que podemos fazer é eriar condigdes propicias ao surgimento de novas descobertas. Quem acredita que tu ddo deve ser plantejado encaminha-se para a predigo ¢ controle dos acontecimentos, © que Se opde a realizagio do progresso 7". ‘Temos de reconhecer as forcas criativas que somente uma civli- zacho livre apresenta. Por serem livres para agir dentro das regras que tornam a vida social possivel, os individuos sentem-se livres para ex- pplorar e experimentar novas formas de agit. Novas idéias podem ser ‘desenvolvidas, novos instrumentos podem ser delineados, € mudan- t¢as,em determinados aspectos do meio ambiente podem ser busca- das. A riqueza de possibilidades para 0 progresso humano que isso permite é um dos mais fortes arguinentos em favor da liberdade ¢ um ‘poderoso fator contra a tentativa de submeter a sociedade humana ‘20 planejamento e ao controle central. & assim que Hayek se insurge contra a influéncia inibidora dos planejadores: efor permitdo a intelecto buenane que se imponta um padnto preconcebido acide, se nose capacidade de reflexdotver dese submeter a um monopé- fio do esforv crlativo »- entlo no ser surpreendente sea sociedade, como (al parar de funcionar como fora crativa 2B (© ponto essencial é que a liberdade permite as pessoas conduzi- rem suas proprias experiéncias, fazerem suposigdes sobre o que vai fun- cionar ou ter valor para elas, ¢tentarem novasidéias. Nao somos to sébios a ponto de saber de antemdo que novas idéias ou disposigBes dardo certo no futuro; por isso acreditamos que os esforgos indepen- dentes e competitivos de muitos provocario a emergéncia de novos progressos. Nao hi ninguém (planejador central ou outro) que esteja perfeitamente bem equipado para trazer novas idéias que se confir- ‘mario proveitosas. Se dermos oportunidade a cada um para fazer suas propriasexperiéncias e assumir seus propriosriscos, as ida que pro- vem ser lites serdo adotadas. Nao dirigimos © progresso, encoraja- mos 0 seu desenvolvimento”. Complexidade exige liberdade: Hayek inverteu habilmente a afirma- do segundo a qual devemos renunciar a liberdade porque a socieda- de € atualmente t@o complexa que exige um planejamento. Como j& vimos, isso € uma tocal distoreo, pois sociedades nao planejadas sio capazes de complexidade muito maior do que qualquer organizagio planejada, Esse assunto sera examinado mais profundamente quan- do apresentarmos o pensamento de Hayek sobre as tees do planeja mento A radical visio de liberdade de Hayck: Depois de ter justificado a li berdade porque ela deixa emergir inovaedes e melhorias nao intencio- nais, Hayek afirma que assim nai seria se restringissemos a liberdade ‘aos casos cujos efeitos sabemos de antemao que serdo benéficos. Nao S40 05 desenvolvimentos previsiveis que constituem 0 objetivo da berdade, mas sim os desenvolvimentos que so novos e imprevisiveis. ‘A liberdade pode ser usada de inimeras formas e, & claro, pode acontecer que ela seja utilizada para desenvolver coisas que muita gente esaprove, ou que permita ages que venham chocar « maioria. Mas no a apoiamos ou rejeitamos pelo efeito particular que venba a pro- duzir; defendemos esse prinefpio porque, a longo prazo, tem vanta- gens evidentes. No dizer de Hayek: [Nossa na iberdade nose base nos resultados previsives em determina ‘lrcunstioclas, mas na convigelo de que ea aeabardliberando mas forgas par fo bem do.que para.o mal Isso também significa que a liberdade ndo se limita ao quanto dela nos possamos utilizar. O fato de que, dentre um milho de pes- soas, apenas uma deseje a liberdade para fazer determinada coisa nao deve ser um impedimento, porque a liberdade desse indivi fazer determinada coisa pode trazer beneticios duradouros e de gran- de valor para todos nds. A idéia de liderdade de Hayek é portanto, muito radical ¢ até dogmatica, porque ele acredita que uma defesa menos completa des- se conceito exporia seus alicerces a ataques. Mas iso nao significa que podemos fugir a toda ameaca de coercio. A coergo - isto & forgar um individuo a servir os objetivos de outro sob a ameaca de maiores prejuizos -ndo pode ser evitada de todo, pois 0 tnico modo de preve- nira coeredo é ameagar, por sua vez, de coergdo aqueles que tentarem usé-la”®, Assim, na livre sociedade algum tipo de aparelho coercitivo serd necessério se a coereao for mantida, de fato, em minimo grau. Sociedades lives habitualmente superaram esse problema: conferiram ‘0 monopdlio de coergao ao Estado, mas restringiram 0 uso dessa coer- 40 ao que & permitido pelas regras gerais. Sem um aparelio coercitive do Estado, poderia haver individuos que coagissem outros sob a ameaca de violencia ou seqiiestro, ¢ que se envolvessem em atividades como roubo, dolo, fraude - 0 que evi- dentemente tem efeitos perniciosos para a comunidade. O poder coer- citivo de que a livre sociedade necessita nfo é 0 poder de obrigar as pessoas a agirém de determinada forma, mas sim o de impedir os ci- dados de infringirem as regras e de s¢ envolverem em atividades no- civas, $6 0s que infringem as regras estio sujeitos & coerydo, ¢ os de- mais so deixados livres dentro dos limites do compostamento regido por normas. TTodavia, pode haver ocasides em que nio se deseje apenas evi- tar ages perniciosas, mas sim levar as pessoas a fazerem coisas tteis cespecifieas, tais como pagar impostos ou alistar-se no exército. Por 350, & preciso delimitar as fronteiras entre a livre Sociedade, cujo g0- vyerno pode forcar as pessoas a desempenharem estas obrigagées, ¢ 8 declarada sociedade nao livre, cujo governo pode controlar cada mo- vvimento de todos, no intuito de atingir os objetivos desse governo ¢ satisfazer a sua vontade arbitraria. Para Hayek, a linha diviséria consiste em que o governo de gen- te live seja ele pr6prio governado por normas. Mesmo onde a coet- ‘sao nao pode ser evitada, seus piores efeitos podem ser abrandados se ela for confinada a aplicacdo de obrigasSes limitadas e previsiveis. Se soubermos que apdes esperam de nés, em termos de coisas que nao devemos e coisas que devemos fazer, e se conhecermos as regras que cerceiam 0 governo no seu uso da forga, estaremos ao menos preser- vvados da natureza arbitrdcia de muitos governos. Para Hayek, por- tanto, a livre sociedade nao é aquela que nao possui.regras, nem leis, nem poder de governo, mas sim aquela cujo governo esté ele também 30 Limitado por regras preestabelecidas ”. Descobrir as leis ¢ poderes que ‘devem existir numa livre sociedade ¢ o principal objetivo da maior parte dos trabalhos subsegiientes de Hayek. A ESTRUTURA LEGAL DA LIVRE SOCIEDADE © pensamento atual sobre a natureza da lei e das finalidades que um sistema legal deve atender é bastante confuso. Hayek acredita que tanto as leis modernas quanto os princ(pios de justica provém do sis- tema de regras que sempre guiaram a sociedade e tornaram a vida so- cial possivel. Se compreendermos a natureza e a fungdo evolutiva des- se sistema de regras, vamos perceber melhor o que a lei ¢ realmente 0 que deve tentar fazer. Uma das causas da confusdo atual é a nossa tendéncia a consi- derar qualquer medida aprovada por uma assembléia eleita como sendo uma “lei”. Mas Hayek faz uma clara distingdo entre dois tipos bem ddiversos de legislagdo que se confundem numa mesma palavra ”*. 0 primeiro tipo de lei provavelmente explica,a massa de medidas apro- vadas hoje em dia por autoridades cleitas, medidas de ordem admi- nistrativa ou organizacional. Destinam-se a movimentar a méquina governamental, a instruir os funciondrios publicos a agirem, a deter= minar as prioridades dos gastos piblicos etc. Podemos considerd-las ‘como comandos as burocracias governamentais, que explicam como conduzir o setor piiblico. ‘Numa economia coletivista, todas as leis s8o deste tipo. O go- verno coletivista procura um determinado resultado das questdes s0- ciais e econémicas, bem como a realizaydo de planos definidos. Para atingir esses objetivos, o governo instrui os seus cidadaos sobre a for- ma de agir, guia-Ihes 0 comportamento de acordo com os mesmos ob- jetivos. Tal sociedade nd se baseia em regras gerais, mas sim nos di tames das autoridades, que podem ser totalmente arbitrdrias ¢ tratar (08 individuos de forma bem inadequada. A lei de uma livre sociedade: A livre sociedade, porém, nao é coman- dada por aqueles que detém a autoridade, mas repousa na accitagao,- da parte de seus membros, das regras gerais de ago e na opinido pre- dominante desses membros sobre quais agdes sfo justas ou injustas. E a partir desse sistema de regras gerais, afirma Hayek, que a lei de fato cresce. Porque a lei neste sentido nao consiste em instrugGes para, a administragao do governo, mas sim consiste na descoberta ¢ deter“ ‘minagio das normas do comportamento correo. 31 Podemos imaginar quanto a le se desenvolveu desde os tempos

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