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colecao TRANS Jacques Ranciére MAL-ESTAR NA ESTETICA editoralll34 INTRODUCAO A estética tem ma reputacao. Quase nao passa ano sem que uma nova obra proclame seja o fim de seu tempo, seja a perpetua- gio de seus delitos. Tanto num quanto noutro caso, a acusagao é amesma. A estética seria 0 discurso capcioso pelo qual a filosofia, ou certa filosofia, desvia em interesse proprio o sentido das obras de arte e dos julgamentos de gosto. Se a acusacao € constante, suas expectativas variam. Ha vin- te ou trinta anos, 0 sentido do processo podia resumir-se nos ter- mos de Bourdieu. O julgamento estético “desinteressado”, tal co- mo Kant havia fixado a férmula, era por exceléncia o lugar da “denegacao do social”.! A distancia estética servia para dissimular uma realidade social marcada pela separacao radical entre os “gos- tos de necessidade” proprios ao habitus popular € os jogos da dis- tingdo cultural reservados apenas aqueles que dispdem dos meios para tanto. Uma mesma inspiracao animava, no mundo anglo-sa- xo, 0s trabalhos de historia social ou cultural da arte. Uns nos mostravam, por tras das ilusdes da arte pura ou das proclamagées das vanguardas, a realidade das coergoes econdmicas, politicas e ideolégicas, fixando as condigdes da pratica artistica.? Outros sau- 1 Pierre Bourdieu, La Distinction: critique sociale du jugement, Paris, Minuit, 1979 [ed. bras: A distingdo: critica social do julgamento, traducio de Danicla Kern e Guilherme J. F. Teixeira, Sao Paulo/Porto Alegre, Edusp/ Zouk, 2007]. 2 Dentre os numerosos trabalhos publicados nesse sentido pelos his- toriadores sociais culturais da arte, reteremos particularmente as obras de T.J. Clark, Le Bourgeois absolu: les artistes et la politique en France de 1848- Imtrodugao 7 davam, sob o titulo de A antiestética, 0 advento de uma “moderna que rompia com as ilusdes do vanguardismo.> ssa forma de critica jé ndo esta mais na moda. Hi vinte anos que a opiniao intelectual dominante nao cessa de denuncias, em toda forma de explicagao “social”, uma cumplicidade ruinosa com as utopias da emancipagao, declaradas responsaveis pelo horror totalitario. F, assim como canta o retorno para a pura politica, ely celebra novamente o puro face a face com 0 acontecimento incon. dicionado da obra. Poder-se-ia pensar que a estética sairia sem mé- culas desse novo rumo do pensamento. Aparentemente, nao foj isso que aconteceu. A acusagio simplesmente se inverteu. A esté- tica tornou-se o discurso perverso que impede o face a face, ao submeter as obras, ou nossas apreciagdes, a uma maquina de pen- samento concebida para outras finalidades: absoluto filoséfico, re- ligido do poema ou sonho de emancipacio social. Esse discurso deixa-se sustentar sem problemas por teorias antagénicas. L’Adiew 4 l'esthétique,' de Jean-Marie Schaeffer, assim faz eco ao Petit ma- nuel d’inestétique,’ de Alain Badiou. Os dois pensamentos sao, no entanto, antipodas um do outro, Jean-Marie Schaeffer apoia-se na tradicao analitica para opor a analise concreta das atitudes estéti- cas as errancias da estética especulativa. Essa teria substituido 0 estudo das condutas estéticas e das praticas artisticas por um con- ccito romantico do absoluto da Arte a fim de resolver o falso pro- blema que a atormentava: a reconciliagao do inteligivel e do sen- arte pés. 1851, Villeurbanne, Art Edition, 1992, ¢ Une Image du peuple: Gustave Cour bet et la Revolution de 1848, Villeurbanne, Art Edition, 1991 [no original: The Absolute Bourgeois: Artists and Politics in France, 1848-1851, Princeton, Princeton University Press, 1973, e Image of the People: Gustave Courbet and the 1848 Revolution, Londres, Thames and Hudson, 1973]. * Hal Foster (org.), The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern Culture, Nova York, The New Press, 1998, “Jean-Marie Schaeffer, L'Adiew a lesthétique, Patis, PUR, 2000. (N- daT) * Alain Badiou, Petit manuel d'inestétique, Paris, Seuil, 1998 [ed. bras Pequeno manual de inestética, tradugao de Marina Appenzeller, Sao Paulo, Estagao Liberdade, 2002]. (N. da T:) : Mal-estar na estética sivel. Alain Badiou, por seu turno, parte de principios totalmente opostos. E em nome da Ideia platdnica, da qual as obras de arte sao os acontecimentos, que ele rejeita uma estética que submete sua verdade a uma (anti)filosofia compromissada com a celebracio romantica sensivel do poema. Mas o platonismo de um e 0 anti- platonismo de outro concordam em denunciar na estética um pen- samento da mistura, participando da confusio romantica entre 0 Pensamento puro, os afetos sensiveis e as praticas da arte. Um e outro respondem a isso por um principio de separago que coloca 9s elementos ¢ os discursos em seus lugares. Ao defender, contra a “estética filoséfica”, os direitos da (boa) filosofia, eles ainda se mol- dam no discurso do socidlogo antifilos6fico que opoe a realidade das atitudes ¢ das praticas 4 ilusdo especulativa. Concordam, as- sim, com a opinido dominante que nos mostra a gloriosa presenga sensivel da arte devorada por um discurso sobre a arte que tende a tornar-se sua propria realidade. Encontrar-se-ia a mesma légica nos pensamentos da arte fun- dados em outras filosofias ou antifilosofias, por exemplo, em Jean- -Frangois Lyotard, em que é 0 golpe sublime do traco pictural ou do timbre musical que é oposto a estética idealista. Todos esses discursos criticam de maneira parecida a confusio estética. Mais de um, ao mesmo tempo, deixa-nos ver outro jogo implicado por essa “confusio” estética: realidades da divisdo de classes opostas a ilusdo do julgamento desinteressado (Bourdieu), analogia dos acontecimentos do poema e daqueles da politica (Badiou), choque do Outro soberano oposto as ilusdes modernistas do pensamento de que € possivel moldar um mundo (Lyotard), dentincia da cum- plicidade entre a utopia estética e a utopia totalitaria (0 coro dos terceirizados). A distingaio dos conceitos nao é em nada homénima da distingdo social. A confusao ou & distingao estética ligam-se cla- ramente desafios que tocam a ordem social ¢ suas transformagoes. As paginas que se seguem opdem a essas teorias da distingdo uma tese simples: a confusdo que elas denunciam, em nome de um pensamento que poe cada coisa em seu elemento préprio, é, na verdade, o proprio né pelo qual pensamentos, praticas e afetos encontram-se instituidos e providos de seu territério ou de seu ob- jeto “proprio”. Se “estética” é0 nome de uma confusio, essa “con- Introdugdo ee ry fusiio” é de fato 0 que nos permite identificar os objetos, os mod, de experiéncia e as formas de pensamento da arte que pretender, isolar para denuncid-la. Desfazer 0 n6 para melhor discernix sua singularidade as praticas da arte ou os afetos estéticosé hyn o, estar condenado a perder essa singularidad ‘Tomemos um exemplo. Jean-Marie Schaeffer quer denvnciy a confusio romantica a0 mostrar-nos a independéncia das con tas estéticas em relagio as obras de arte ¢ 20s julgamentos por el suscitados. Ele utiliza para isso uma pequena passagem da Vie d’Henry Brulard, na qual Stendhal evoca os primeiros barulhox antes — que, na infancia, marcaram-no: os sinos de — insign uma igreja, uma bomba d’agua, a flauta de um vizinho. Ele com para essas lembrangas com as de um escritor chinés, Shen Fu, evo. cando as montanhas que via, crianga, nos monticulos feitos pelas toupeiras no nivel do solo. Ele via ali o testemunho de “atitudes | estéticas”, id€nticas através das culturas, ¢ que nao tem como ob- jeto obras de arte. E facil, todavia, ver ali totalmente o contrario, Ao participar da invengao de um género literario que borra as fron- teiras — a vida do artista como obra —, Stendhal instaura 0 que € chamado a tornar-se a forma exemplar da nova narragao roma- nesca: a justaposicéo de microacontecimentos sensiveis, cuja res- sonancia, através das camadas de tempo, opde-se ao antigo enca- deamento de ages voluntirias ¢ de seus efeitos desejados ¢ nto desejados. Longe de demonstrar a independéncia das atitudes es téticas em relagdo as obras de arte, ele atesta um regime estético no qual se borra a distin¢o entre as coisas que pertencem & arte © as que pertencem a vida ordindria. O barulho bobo da bombs agua que ele introduz em sua autobiografia de escritor é 0 mes- mo que Proust consagraré como prépria a marca da nova Ideia platénica, ao prego de sintetizé-la com o canto do tordo de Cha~ teaubriand. E também aquele da sirene de navio introduzida por biogrdfico * Vida de Henri Brulard, texto inacabado, de carater aut! pare escrito em 1835-1836 ¢ publicado muitos anos apés a morte de (1783-1842), em 1913, (N. da T.) 20 Mal-estar na est6n ‘Varese em Ionisation.” E esse barulho cuja fronteira com a miisica no cessou, no século XX, de se borrar com a prdpria miisica, co- mo esta se borrou no século XIX com as musas literdrias. Muito longe de denunciar a “confusdo” da teoria estética, a bomba d’agua de Stendhal testemunha exatamente 0 que essa te0- ria, A sua maneita, esforca-se por interpretar: a ruina dos canones antigos que separavam os objetos de arte dos da vida cotidiana, a forma nova, ao mesmo tempo mais intima e mais enigmatic, to- mada pela relagao entre as produgdes conscientes da arte e as for- mas involuntatias da experiéncia sensivel que sente seu efeito. E isso mesmo que as “especulacdes” de Kant, Schelling ou Hegel re- gistram: no primeiro, a “ideia estética” e a teoria do génio como marcas da relagio sem relagfo entre os conceitos da arte € 0 sem conceito da experiéncia estética; no segundo, a teorizagio da arte como a unidade de um proceso consciente e de um processo in- consciente; no terceiro, as metamorfoses da beleza entre 0 deus olimpico sem olhar e as cenas de género holandesas ou os peque- nos mendigos de Murillo, Stendhal nao deixa sequer de nos dizer, insistindo complacentemente nas sensages da pequena crianga de 1787 e 1788, o que estar no horizonte de suas especulagGes: essa nova educagao sensivel, formada pelos barulhos e acontecimentos insignificantes da vida cotidiana, é também a educagio de um pe- queno republicano, chamado a festejar sua idade da razao na épo- ca em que a Revolugao francesa celebrara o reino da Razio. E preciso entao ler ao contrério os raciocinios do discurso antiestético contemporaneo para compreender a0 mesmo tempo que significa estética ¢ 0 que motiva a animosidade que seu no- me suscita hoje. Isso pode ser resumido em quatro pontos. ‘A “confusio” estética nos diz. de inicio isso: nao existe mais arte em geral, assim como nao hé condutas ou sentimentos estéti- cos em geral. AA estética como discurso nasceu ha dois séculos, na mesma época em que a arte comeca a opor seu singular indetermi- nado 4 lista das belas-artes ou das artes liberais. De fato, nao bas- 7 Jonizagao, uma das pecas musicais mais célebres de Edgar Varése (1883-1965), escrita entre 1929 ¢ 1931 para treze percussionistas € 37 ins- ‘trumentos, entre os quais duas sirenes de navio. (N. da T.) Introdugio a1 a arte, que haja pintores ou misicos, ta, para que to ince. Nao basta, para que haja sentimento estétc chamos prazer em ve-los ou escuta-los. Para que haja att, ¢ pre, sins am olhar ¢ um pensamento que a identifiquem. Essa props

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