You are on page 1of 47
CLAUDE LEVI- STRAUSS A ANTROPOLOGIA DIANTE DOS PROBLEMAS DO MUNDO MODERNO iors, Coleao soba diego de Maurice lender (etor Maurice Older agradece a Monique L8vcst tengo egeneasade cada etapa da publica deste volume, (rials oss captdos deste vo 80 de Claude Lev Straus fi etualzaa segundo 0 Acordo Orogéfico da Lingua Portuguesa de 1990, «que entou m igor mo Beal em 2008 tal orginal “Anthropologie fae ux problémes du monde moderne capa Victor Baron Preporacio ‘Maria Fernanda Alvares Revseo CCarmen'T-S. Costa ne Pessou Bandeira Paulista, 722, 6 (4532-002 — Sig Paulo — s seo logacompanbia 8 acompanou com ita Sumario Apresentagao, 7 1, O fim da supremacia cultural do Ocidente, 9 Aprender com os outros, 9 Fatos singulares e estranhos, Um denominador comum, 18 3 “Na perspectiva ocidental que éa minha”, 28 Um “optimum de diversidade”, 34 2. Trés grandes problemas contemporineos: a sexual ‘0 desenvolvimento econdmica e o pensamento mitico, 39 Genitor, emprestadora de titero efiliagao social, 40 Procriagao artificial: mulheres virgens e casais homossexuais, 44 Do silex da pré-histéria & cadeia industrial moderna, 49 Cariter ambiguo da “natureza’”, 54 “Nossas sociedades sio fei s para mudar”, 57 Que afinidades entre pensamento cientifico, histérico € mitico?, 62 3. Reconhecimento da diversidade cultural: 0 que nos ensina a civilizagao japonese, 69 Antropdlogos e geneticistas, 69 Raca” — um termo impréprio, 74 Oeescindalo da diversidade, 79 “A arte do imperfeito”, 84 Relativismo cultural ¢ julgamento moral, 89 Apresentagao Maurice Olender Por ocasito de sua quarta viagem ao Japao, na primavera de 1986, Claude Lévi-Strauss escreveu os trés capitulos que com- poem este livro — trés conferéncias proferidas em Téquio a con- vite da Fundagio Ishizaka. Ele escolheu para esse conjunto 0 titulo que agora é o deste livro: A antropologia diante dos proble- ‘mas do mundo moderno. Para destacar os grandes temas de sua obra, comenté-los € atualizd-los, Claude Lévi-Strauss volta livremente a seus escritos. Assim, relé este ou aquele texto que o tornou célebre, retomando 08 principais temas de sociedade que sempre o inquietaram, em especial a respeito dos lagos entre “raga”, historia e cultura, Ou entéo, medita sobre o futuro possivel de novas formas de huma- nismo num mundo em plena transformacao. Se os leitores de Lévi-Strauss reencontram neste volume as ‘questdes que servem de base a seus trabalhos, as novas geragaes poderio descobrir aqui uma visio de futuro proposta pelo famoso antropélogo. Sublinhando a importancia da antropologia como novo “humanismo democratico”, Claude Levi trauss se inter- roga sobre “o fim da supremacia cultural do Ocidente”, sobre os Jacos entre relativismo cultural e julgamento moral. Quando exa- mina os problemas de uma sociedade que se tornou mundial, também interroga as praticas econémicas, as questées ligadas & procriagéo artificial, aos lagos entre pensamento cientifico e pen- samento mitico. Nestas trés conferéncias, Claude Lévi-Strauss revela, por fim, suas inquietagdes relativas aos problemas cruciais de um mundo, prestes a entrar no século xx1, como as afinidades entre as diversas formas de “explosao ideolégica” e o futuro dos integrismos. Reconhecida mundialmente, a obra de Claude Lévi-Strauss é hoje um laboratério de pensamento aberto para o futuro. Este livro seré, sem duivida, para os estudantes ¢ para as novas geragdes, a melhor introducao 4 inteligencia sensivel do mundo de Claude Lévi-Strauss. 1.O fim da supremacia cultural do Ocidente Minhas primeiras palavras serio para agradecer a Fundagao Ishizaka pela imensa honra que me faz confiando-me este ano conferénciasilustradas desde 1977 por tantas eminentes persona lidades, Agradeco-lhe igualmente por ter me proposto como temaa maneira como a antropologia — disciplina a que dediquei minha vida — encara os problemas fundamentais com os quais é confrontada a humanidade de hoje. Comegarei por lhes dizer como a antropologia formula esses problemas na perspectiva peculiar que ¢ a sua. Tentarei em seguida definir 0 que é a antropologia e mostrar como ela langa sobre os problemas do mundo contemporaneo um olhar original, sem pretender resolvé-los sozinha, mas na esperanga de melhor compreendé-los. APRENDER COM OS OUTROS Hé cerca de dois séculos, a civilizagao ocidental definiu a si mesma como a civilizagao do progresso. [rmanadas no mesmo outras civilizagdes acreditaram dever toma-la como modelo, Todas partilharam a conviccdo de que a cigncia e as téc nicas avangariam sem cessar, proporcionando aos homens mais. poder e felicidade; que as instituigées pol ‘as, as formas de organizagio social surgidas no final do século xviii na Franga e nos Estados Unidos, e a filosofia que as inspirava, dariam a tados os membros de cada sociedade mais liberdade na conduta de suas vidas pessoais € mais responsabilidade na gestéo dos nego- cios comuns; que de estética, €m suma, 0 amor ao verdadeiro, ao bom e ao belo se propaga- riam por um movimento irresistivel e ganhariam 0 conjunto terra habitada. Igamento moral, a sensibil Os acontecimentos de que o mundo foi palco durante o pre- sente século desmentiram essas previsdes otimistas. Ideologias n varias regides do mund nuam a se espalhar. Os homens foram exterminados as dezenas de milhoes, e itérias se espalharam e, cont regaram.sea terriveis gen restabelecida a paz, nio \cidios. Mesmo uma vez aparece mais como certo que a cién- cia e a técnica t fi cidas no século xv \gam apenas beneficio: s6ficos, as instit 1em que os prince icas € as formas de vida social nas- T constituam solugdes definitivas para os grandes problemas postos pela condigéo human, ncias e as técnicas estenderam prodigiosa 10 do mundo nte nosso ico e biolégico. Deram-nos um poder sobre a natureza que ninguém poderia suspeitar hé apenas um Comegamos, porém, a calcular 0 preco que agar para ob lo crescente, apreser saber se essas conquistas n: iveram el I isposigao dos hom S, apenas por sua prese ram mj os de destruigao macigos a a esses meios ameagam a sobrevivéncia de ie. De modo s insi rarefacgo ou pela poluicdo dos bens mais essenciais: 0 espago, 0 ‘a dgua,a riqueza e a diversidade dos recursos naturais. Gracas, em parte, aos progressos da medicina, o nimero de ar, setes humanos nao parou de crescer, a tal ponto que, em varias fazer as necessidades ele- regides do mundo, jé nao se chega asa mentares de populacdes sujeitas & fome. Em outros lugares ‘viduos cada vez mais numerosos, é necessério produzir cada ver mais. Sentimo-nos, assim, arrastados numa corrida sem fim aglomeragées urbanas que Ihes impoem uma existén ¢ desumanizada, O funcionamento das in: es democra as necessidades de protecao soi invasora que tende a parasitar €a par: 20 de uma burocraci © corpo social. Chegamos a nos perguntar se as sociedade sobre esse modelo nao se arriscam a, em modernas construida breve, se tornar ingovernaveis. Por muito tempo um ato de fé, a crenga em um progresso naterial e moral votado a jamais se interromper sofre, assim, su ago de tipo ocidental perdeu 0 modelo 10 ousa oferecer esse modelo As 01 Portanto, nao: lhar para outros lugares, alargar os quadros tradicionais em que se fechavam nossas reflexes sobre a condigao humana? Nao devemo: tegrar experién das e mais diferentes das nossas, alé estreito por mui tempo nos c de tipo ocidental nao en: que se regenerar e tomar novo coisa sobre o homem em geral, e sobre si mesma em particular, nessas sociedades humildes e por muito tempo desprezadas, que ;poca relativamente recente ha m escapado 4 sua influéncia? Essas sio as perguntas que hé algumas dezenas de anos se fazem os Pensadores, eruditos ou homens de agao, e que os incitam — jé que as outras ciéne soci » mais centradas no mundo contempori- neo, nao Ihes fornecem resposta — a interrogar a antropologia. 0 que é, entao, essa disciplina que por muito tempo permaneceu na sombra, € sobre a qual se percebe que ela tem talvez al dizer sobre esses problemas? a coisa a FATOS SINGULARES E ESTRANHOS Tao longe quanto se procuram exemplos no tempo e no espag a vida e a atividade do homem inscrevem-se em quadros que oferecem caracteres comuns. Sempre ¢ em todo lugar, 0 homem ¢ um ser dotado da linguagem articulada. Ele vive em sociedade. A reproducio da espécie nao esta abandonada ao caso, mas esta sujeita a regras que excluem um certo niimero de unides biologicamente vidveis. © homem fabrica e utiliza ferra- mentas, que el rega em técnicas variadas. Sua vida social se exerce em conjuntos institucionais cujo contetido pode mudar de um grupo a outro, mas cuja forma geral permanece constante. Por procedimentos difer es, certas fungd ~ econémica, edu- ca igiosa — sdo regularmente garantidas. va, politica, Entendida em seu sentido mais amplo, a antropologia é a discipl a que se dedica ao estudo desse “fendmeno humano” Sem diivida, este faz parte do conjun de fendmenos natu is, No entanto, apresenta, em relagio as outras formas da vi mal, la ani racteres constantes ¢ espe: udado de modo independente que justificam que se Nesse sentido, pode-se dizer que a antropologia é tao velha quanto a prépria humanidade. Nas épocas sobre as quais pos- ‘suimos testemunhos histéricos, preocupagdes de um genero a que chamariamos hoje de antropolégico sio manifestas nos ‘memorialistas que acompanharam Alexandre, 0 Grande, na Asia, bem como em Xenofonte, Herddoto, Pausanias e—de um angulo loséfico — também em Aristételes e em Lucrécio. Ibn Batuta, grande viajante, e Ibn Khal dun, historiador e filésofo, testemunham no século xvr um espi- mais No mundo arabe, rito autenticamente antropolégico, assim como, varios séculos antes, os monges budistas chineses que foram a India para se documentar sobre 2 religiao deles, e 0s monges japoneses que, ram a China. Nessa época, as tracas entre 0 Japao ea sobretudo por intermédio da Coreia e, neste vit de nossa era. O com 0 mesmo objetivo, vis ina se faziam a curiosidade antropologica é atestada desde o sécul irmio do rei Munmu, dizem as antigas crénicas, s6 aceitou se tornar primeiro-ministro com a condigao de, primeiro, incégnito pelo reino para observar a vida popular. Pode-se ver ai ‘uma primeira pesquisa etnografica, embora, a bem da verdade, os etndgrafos de hoje nao costumem receber do anfitriao indigena que os acolhe, como esse dignitério coreano, uma encantadora para part est dito que o filho de um certo monge que escrevia livros sobre os costumes populares da China ede Si entre os dez grandes sébios desse reino. Na Idade Média, a Europa descobre o Oriente, primeiro por ocasido das cruzadas, depois pelos relatos de emissérios enviados seu leito! Sempre nas crdnicas coreanas, foi, por essa razao, posto rerd a reflexdo antropoldgica, como, por exemplo, jiteratura suscitada pelas invases turcas na Europa oriental e no Mediter neo; as fantasias do folclore medieval prolongam as da Anti- ianas”, assim chamadas porque con- deseendentemente descritas no século1 de nossa eva por 0 Velho, pela an: nagi m sua Histéria natural: povos selvagens monstruosos nia € pelos costumes, O Japao nao ignorou imagi- » € decerto porque o pais se isolava voluntariamente do resto do mundo elas ali sobrev eram mais tempo no espirito popular. Durante minha primeira temporada no Japio, recebi de presente uma enciclopédia publicada em 1789, intitulada Zoho Kunmo Zui. Na parte geogrifica, consideram-se reais os povos exéticos gigantes, dotados de bragos e pernas desmesurada- mente longos. Na mesma época, a Europa, mais bem Java os conhecimentos positivos que, desde 0 formada, acumu. século xv1, come savam @ afluir da Africa, da América e da Oceania por ocasiao das grandes descobertas, Muito depressa as compilagdes desses rela- tos de viagem viraram na Alemanha, na Franga uma moda prodigiosa. Essa en: inglaterra e na feratura de via imentaré a reflexio antropoldgica que se inicia na Franca com abelais e Montaigne e que ganha toda a Europa a partir do século xvint Nela se encontra, alids, 0 eco do Japa das como ima s apresenta rias, por falt conhecimento direto dos pat ses distantes. Tal como a viagem ficticia de Oe Bunpa ao pais de Haras habitado wvra atrés da qual se re or indigenas “qui mnhece Brasi a dos cere, ‘ém rei e s6 tém como ram ac izes secas, nae co”, E, com pouea diferen aigne de ros levados para a Franca por um navegador. Mesmo se datarmos do século x1x 0 inicio da pesquisa teve como primeira antropolégica tal como & praticada hoje motivagao 0 que se poderia chamar de curiosidade de antiquétio. (Observava-se que as grandes disciplinas classicas — histér queologia,filologia, ciéncias que gozavam plenamente do direito dios — esque: toda espécie de residuos, de detritos. Um pouco como trapeiros, curiosos empreendiam recolher esses fiapos de conhecimentos, cesses fragmentos de problemas, esses detalhes pitorescos que as outras ciéncias rejeitavam desdenhosamente em suas latas de lixo intelectuais. No inicio, a antropologia nao foi decerto nada além do que essa coleta de fatos singulares e estranhos. E no entanto desco: bria-se pouco a pouco que esses detritos, esses residuos eram mais importantes do que se p © que impressiona 0 homem \sava. A razao é facil de entender. espetaculo dos outros toriadores, a tos pediram primeiro aos homens sao os pontos em que se assemelham. H quedlogos, filéso! povos recém-descobertos uma confirmagio de suas proprias cren- ‘gas sobre o passado da humanidade. Isso explica porque, durante 0s grandes descobrimentos do Renascimento, os relatos dos pri- meiros viajantes nao tenham causado surpresa: acreditava-se menos em descobrir novos mundos que encontrar © passado do mundo antigo, Os generos de vida dos povos selvagens demons. travam que a Biblia, os autores gregos ¢ latinos diziam a verdade a Fonte da Juven ao descrever o jardim do Eden, a Idade de Ou ide, a Atlantida ou as Ilhas Afortunadas. R g igenciavam, € até mesmo se recusavam a ver, as 8 do essen ngas que, is desde que se trata de estu: dar o homem, Pois, como devia dizer m rde Jean-Jacques Rousseau, “é preciso primeiro observar as diferencas para desco- brir as propriedades”. la-se também fazer outra descoberta: esas ngularidades, essas estranhezas se ordenavam entre si de modo muito mais coe. rente que os fe nenos considerados como os tinicos importan- genciados ferentes inada socie- dade, sio os homens ou as mulheres que se dedicam a ceramica, 4 ‘ow apenas estudados, tal como a maneira de sociedades partilharem o trabalho entre os sexos — em det tecelagem, ou que cultivam a terra? —, permitem com ficar as sociedades humanas a partir de bases muito mais sélidas do que ante se conseguia fazer. Citei a divisio do trabalho; pod falar também das regras de residéncia, Quando ocorre um casamento, onde vio morar os jovens recém-casados? Com os parentes do marido? Com os da mulher? Ou stalam uma residéncia independente? Da mesma maneira, as regras da filiagdo e do casamento, por muito tempo deixadas de lado, de tal forma pareciam € destituidas de sentido. Por que um grande ntimero de povos do mundo diferencia os primos em duas categorias, dependendo se sao oriundos seja de dois irmaos ou de duas irmas, seja de um irmao e de uma irma? Por que, nesse caso, condenam 0 casa- mento entre primos do primeiro tipo ¢ 0 preconizam, ¢ até o Gem, entre primos do segundo tipo? E por que o mundo arabe, pr Eexcegao a essa regra? ‘Também, da mesma forma, as proibigdes alimentares, que fazem com que, mundo afora, nao ha Povo que nao procure idade proscrevendo esta ou aquela categori fe na China, 0 porco para os judeus ¢ os mucul © peixe para certas t deos para ou! afirmar sua or mano: nericanas, a carne de cervi- Todas essas singu stituem outras ta rengas entre os povos, No entanto, essas difer dife- \¢a8 so compa- raveis na medida em que nao existe praticamente povo em que indo seja possivel observé-las. Dai o interesse que tém os antro- pologos pelas variagdes aparentemente fiiteis mas que permi tem estabelecer classificagGes relativamente simples, introdu- rindo na diversidade das sociedades huma uma ordem comparavel aquela que os zo6logos ¢ os boténicos utilizam para classificar as espécies naturais A esse respeito, as pesquisas mais eficazes foram aquelas \G40 e do casamento, De fato, as socie- dades estudadas pelos antropélogos podem ter efetivos muito varidveis, indo de algumas dezenas de pessoas a diversas cente- nas ou varios milhares, Todavia, comparadas as ni sociedades tém dimensdes muito reduzidas, de sorte que as rela- des humanas ai oferecem um cardter pessoal. Nada o mostra melhor do que a tend. berem as relagdes entre seus membros a partir do modelo do parentesco: ali todos sao irmao, irma, primo, prima, tio, tia ete de todos, E quem nao é parente, é um estrangeiro, portanto, um referentes is regras da fil sas, essas 1a das sociedades sem escrita a conce- inimigo potenci retragar as genealo. g as simples permitem atribuir cada individuo, pelo fato de seu nascimento, a esta ou Nem sequer € necessér s: em muitas dessas socie: Aquela categoria entre as quais prevalecem relagées equivalentes a lagos de parentesco. Ora, icnico e econdi existem sociedades, por mais humilde que seja seu niv o, € por mais diferentes que sejam por s i$ costumes sociais e suas crencas religiosas, que nao po! uma ra de parentesco e de regras de casamento que distingam os individuos aparentados entre conjuges permitidos e tem-se ai um primetro meio de dis es umas das outras e dar a cada uma seu lugar conjuges proibidos, Portant d inguir as soci numa tipologia UM DENOMINADOR COMUM Quais sao, pois, essas sociedades estudadas por predilecio pelos antropdlogos e que estamos habituados, por uma longa tradi- ‘cio, a qualificar de “primitivas”, termo que muitos hoje recusam € gue, de qualquer maneira, seria necessatio definir com exatidao? Em geral designam-se assim agrupamentos humanos que diferem principalmente dos nossos pela auséncia de escrita e de meios mecanicos, mas a respeito dos quais convém nao esquecer certas verdades primeiras: essas sociedades oferecem 0 tinico modelo para se compreender a maneira como os homens vive- ram juntos durante um periodo hist6rico correspondendo sem ditvida a 99% da duragao total da vida da humanidade, e, do ponto de vista geografico, numa época ainda recente, em trés quartos da superficie da terra habitada. Portanto, as informagdes que nos trazem essas sociedades nao decorrem tanto do fato de que elas poderiam ilustrar etapas de nosso passado longinquo. Elas ilustram mais uma situagio geral, um denominador comum da condigo humana. Vistas dessa perspectiva, sio as altas civilizagbes do Ocidente e do Oriente que constituem excegdes Na verdade, os avangos das pesquisas etnolégicas nos con- vencem mais e mais de que essas sociedades vistas como atrasa- das, consideradas como “abandonadas” pela evoluao, rejeitadas a regiOes marginais e fadadas & extin¢ao, constituem formas de vida social originais, Sao perfeitamente viéveis enquanto nio forem ameagadas do exterior. Assim, procuremos melhor delimitar seus contornos Em ultima instancia, elas consistem em pequenos grupos compreendendo entre algumas dezenas ¢ algumas centenas de pessoas, afastadas umas das outras por varios dias de viagem a pé,e cuja densidade demografica se situa em torno de 0,1 habi tante por quilémetro quadrado. Sua taxa de crescimento ¢ ‘muito baixa, nitidamente inferior a 1%, de modo que os ganhos de populagao compensam aproximadamente as perdas. Por conseguinte, seu efetivo nao varia, Essa constincia demogréfica é consciente ou inconscientemente garantida por diversos pro- cedimentos: tabus sexuais depois do parto, aleitamento prolon- gado que retarda na mulher o restabelecimento dos ritmos fisio- zicos. E impressionante que, em todos os casos observados, uum crescimento demografico nao incite o grupo a se reorgani zar em novas bases, Tornando-se mais numeroso, o grupo se cinde e da origem a duas pequenas sociedades da mesma ordem de grandeza que a anterior. Esses pequenos grupos tém uma capacidade espontnea de liminar de seu seio as doengas infecciosas. Os epidemiologistas deram a razio: os virus dessas doengas sé sobrevivem em cada individuo durante um nimero limitado de dias, e devem por- tanto circular constantemente para se manter no conjunto da populacao. Isso s6 é possivel se o ritmo anual dos nascimentos for elevado o suficiente, condigao possivel apenas a partir de um efe- tivo demogréfico de vérias centenas de milhares de pessoas. Ha que acrescentar que, nos meios ecolégicos complexos coma aqueles onde vivem povos cujas crengas ¢ praticas, que erradamente julgamos como superstigdes, visam a preservar recursos naturais, as espécies vegetais e animais sio muito diver- sas. Mas, sob os trépicos, cada uma s6 conta com um pequeno numero de individuos por unidade de superficie, eeste é também 0.caso das espécies infecciosas ou parasitas: portanto, as infeccdes podem ser miiltiplas embora permanecendo de baixo nivel cl nico. A doenga chamada Sida na Franga, e Aids em ingles, oferece um exemplo de atualidade, Essa doenga vira Iguns focos da Africa tropical onde provavelmente vivia em rio com as populagdes indigenas ha m localizada em mnios, tornou-se uum risco maior quando os acasos da historia a introduziram nas sociedades mais volumosas. Quanto a por vari doeng nio infecciosas, em geral esto ausentes razbes: rande atividade fisica, regime alimentar muito mais variado que o dos povos agricultores, apelando para uma centena de espécies animais e vegetais, as vezes mais, pobre em gorduras, rico em fibras ¢ em sais minerais, garantindo um aporte suficiente em proteinas ¢ em calorias, Dai a auséncia de obesi- dade, de hipertensio, de distiirbios circulat6rios Portanto, nada de espantoso se um vi ante francés que visi- tou 0s indios do Brasil no século xvr pudesse se admirar porque esse povo — cito-0 — J nunca (...] cancrosas, nem tilceras, ou -omposto dos mesmos elementos que nés etargia, doe s vicios do corpo que se veem superficialmentee no exterior”; a0 ps ingido por lepra, pai ou século € meio que se seguiu a descoberta da América, as populagées do México e do Peru cairam de uma centena de milhdes para quatro ou cinco, sob os golpes, menos dos conquistadores que das doen- nportadas, que se tornaram mais virulentas por causa dos novos géneros de vida impostos pelos colonizadores a mba, febre gas sarampo, escart amarela, célera, peste, dfteria, e paro por aqu Assim sendo, esta mos errados em depreciar essas socieda~ des porque as conhecemos num estado miseravel. © que, mesmo empobrecidas, Ihes da um valor inestimavel é que as milhares de is continuam sociedades que existiram, e das quais algumas cent em experiéncias jd prontas: diferenga de nossos colegas das odemos fabricar nossos objetos de estudo, que sio as soci Bssas experiénci ides, e fa funcionar no laboratério. adas de sociedades escolhidas porque sto as ‘mais diferentes das nossas nos proporcionam o meio de estudar os homens, suas obras coletivas, para tentar compreender como 0 espirito humano funciona nas situagoes concretas mais diversas em quea historia ea geografia o puseram. gar, a explicagao cientifica repousa sobre o que se poderia chamar de boas simplificacdes Desse ponto de vista, a antropologia faz da necessidade virtude, Ora, sempre e em qu uer Como acabo de dizer, uma fracio importante das sociedades que ela escolhe estudar é pequena pelo vol io da estabilidade. fe, € concebe a si mesma sob o mi Essas sociedades exéticas esto afastadas do antropélogo que as observa. Uma distancia nao s6 geogréfica mas também intelec- tual e moral os separa, Esse afastamento reduz nossa percepgao a s. De bom grado eu di junto das cigncias sociais e humanas, o antrop. compardvel aquele que cabe ao astronomo no conjunto das |guns contornos essenci que, no con- 0 ocupa lugar ien- cias fisicase naturais. Pois, sea astronomia péde se constituir como cigncia desde a mais alta Antiguidade, foi porque, na prépria falta de um método cientifico que ainda ndo existia, o afastamento dos corpos celestes permi er deles uma visdo simplificada, Os fendmenos que observamos esto extremamente longe de nds, Longe, como eu disse, primeiro no sentido geografico, j4 que outrora precisivamos viajar durante semanas ou meses para alcancar nossos objetos de estudo. Mas longe, sobretudo, num , na medida em que esses detalhes menores, esses fatos humildes em que fixamos nossa atengio repousam em ages dle que os individuos nao tém clara ou nenhuma cons: udamos linguas mas os homens que as falam nao tem. consciéncia das regras que aplicam para falar e ser entendidos. Nao somos tampouco conse das raz6es pelas quais adota mos um alime € proscrevemos outro. Nao somos conse eda fungao re: ntes de boa educagao ou de sas raizes no mais profundo do inconsciente dos individuos e dos grupos, sio aqueles mesmos que tentamos analisar e com- preender apesar de uma distancia psiquica interior que, em outro plano, duplica 0 afastamento geografico. Mesmo em nossas sociedades, em que nia existe essa distan- ia fisica entre 0 observador e seu objeto, subsistem fendmenos compardveis aqueles que vamos procurar muito longe. A antropo- logia retoma seus direitos e reencontra sua funcao em qualquer lugar onde usos, géneros de vida, praticas ¢ técnicas nao foram var- ridos pelas reviravoltas histéricas e econdmicas, atestando assim que eles correspondem a algo suficientemente profundo no pensa- mento e na vida dos homens para resist as forgas de destruid0; portanto, por todo lado onde a vida coletiva das pessoas comuns — esas que o ilustre antropdlogo Yanagida Kunio chamava de jémin — ainda se baseia, em primeiro lugar, nos contatos pessoais, nos lagos de fami nas relagdes de vizinhanga, seja nas aldeias, seja nos bairros das cidades: em suma, nos pequenos ambientes tradi cionais em que a tradigao oral se mantém. Alids, parece-me tipico dessas relagdes de simetria que observamos entre a Europa ocidental eo Japao o fato de que a pesquisa antropoldgica ai se inicia na mesma época — no século XVIII —, mas, na Europa ocidental, sob o impulso das grandes viagens que dio acesso ao conhecimento das culturas mais di rentes, a0 passo que no Japio, entao fechado sobre si mesmo, pesquisa antropolégica tem provavelmente suas raizes na escola Kokugaku, em cuja linha, um século mais tarde, o monumental empreendimento de Yanagida Kunio ainda parece se inscrever, pelo menos aos olhos do observador ocidental. Também é no século Xvi11 que a pesquisa antropologica se com 05 trabalhos da escola de cia na Coreia, hak, que se concentram na vida rural € nos costumes populares no préprio pais, € nao, co! Europa, nos povos distantes. Recolhendo uma multidéo de fatos mitidos que, por muito tempo, 0s historiadores julgaram indignos de sua atengao, suprindo pela observacao direta as lacunas ¢ as insuficiéncias dos documentos escritos, tentando conhecer 0 modo como as pessoas rememoram o passado de seu pequeno grupo — ou como o ima ginam —, 0 modo também como vivem o presente, chegamos a constituir arquivos de um tipo original ea por de pé o que Yana. gida Kunio, para cité-lo de novo, chamava bunkagaku, “ciéncia da cultura”, isto é, numa palavra, a antropologia. “\UTENTICIDADE” E “INAUTENTICIDADE” Chegando a esse ponto, estamos em melhores condicdes de compreender o que € a antropologia e o que faz sua originalidade. A primeira ambigao da antropologia é atingir a objetividade. Para ela nao se trata apenas de uma objetividade que permite a quem a pratica fazer abstracao de suas crengas, de suas preferéncias ede seus preconceitos. Tal objetividade caracteriza todas as cién- cias sociais, do contrério ndo poderiam pretender ter o nome de ciéncia. O tipo de objetividade a que pretende a antropologia vai ‘mais Jonge. Ela nao se contenta em elevé-la acima dos valores pré- prios & sociedade ou ao meio social do observador, mas de seus métodos de pensamento: alcangar formulagdes vélidas nao s6 para uum observador honesto e objetivo, e sim para todos os observado. res possiveis. Portanto, o antropélogo nao faz apenas calar seus sentimentos. Ele molda novas categorias mentais, contribui para introduzir nogdes de espago e de tempo, de oposigao e de contradi- ‘lo, 180 estranhas a seu pensamento tradicional como as que se encontram hoje em certos ramos das ciéncias fisicas e naturais. ssa relagio entre a maneira como os mesmos problemas se apre: sentam em disciplinas muito afastadas foi admiravelmente perce- bida pelo grande ico Niels Bohr, quando ele escreveu em 1939: “As diferencas tradicionais entre culturas humanas |... se parecem ‘em muitos pontos as diversas maneiras equivalentes como os resul- tados de experiéncias fisicas podem ser descritos’.* A segunda ambico da antropologia é a totalidade. Bla vé na vvida social um sistema em que todos os aspectos estéo organica- ‘mente ligados. Ela reconhece de bom grado que, para aprofundar 0 conhecimento de fendmenos de certo tipo, é indispensavel frag- mentar um conjunto, como fazem o jurista, o economista, odemé- grafo, o especialista de ciéncia politica. Mas o que o antropélogo procura ¢ a forma comum, sio as propriedades invariantes que se ‘manifestam por tris dos mais diversos géneros de vida sociais, Para ilustrar com um exemplo considerages que podem parecer aos senhores abstratas demais, vejamos como um antro- pologo apreende certos aspectos da cultura japonesa, Sem duivida, nao é preciso ser antropélogo para observar que ‘© marceneiro japonés se serve do serrote e da plaina a0 contrario de seus colegas ocidentais: ele serra e aplaina puxando a ferra- menta em diregao a si, e nao a empurrando para longe. O fato ja tinha impressionado Basil Hall Chamberlain no fim do século XIX, Esse professor da universidade de Téquio, observador sagaz da vida e da cultura japonesas, era um eminente fildlogo. Em seu célebre livo Things Japanese, ele registra 0 fato, assim como varios outros, na rubrica “Topsy-turvidom”, que traduzo aproxi- madamente por “onde tudo esta de ponta-cabeca”, como uma ‘esquisitice & qual no dé significado particular. Em suma, nio vai mais longe que Herédoto ao observar, hé mais de 24 séculos, que em relagao a seus compatriotas gregos os antigos egfpcios faziam tudo pelo avesso. * Niels Bohr. Physique atomique et 1991,p.33 Patis: Gallimard, Folio Essais, 157) De seu lado, especialistas da lingua japonesa notaram como sendo uma curiosidade o fato de que um japonés que se ausenta por um curto instante (pr uma carta no correio, comprar o jornal ou um maco de cigarros) dira de bom grado algo como “Itte mairi- ‘mésu”; a0 que lhe respondem “Itte irasshai”. Portanto, a énfase néo € posta, como nas linguas ocidentais em circunstancia semelhante, nna decisio de sair, mas na intengo de um préximo retorno. Da mesma maneira, um especialista da antiga literatura japonesa sublinharé que a viagem aqui é ressentida como uma dolorosa experiéncia de dilaceragdo, e permanece cercada pela obsessio do retorno ao pa mais prosaico, parece que a cozinheira japonesa nao diz, como na Europa, “mergulhar na fritura” mas “levantar” ou “elevar” (ageru) ;. Do mesmo modo, enfim, em para fora da fritura, © antropdlogo se recusar’ a considerar esses fatos menores como varidveis independentes, particularidades isoladas. Ao con- tririo, ficard admirado com o que eles tém de comum. Em campos diferentes e com modalidades diferentes, trata-se sempre de trazer para si, ou de levar a si mesmo para dentro, Em vez de por no inicio ‘0 “eu” como entidade auténoma e ja constituida, tudo se passa como se o japonés construisse seu eu partindo do exterior. O “eu” japonés aparece assim nao como um dado primitive mas como um, resultado para o qual se tende, sem certeza de atingi-lo. Nada de espantoso se, como me afirmam, a famosa proposta de Descartes “Penso, logo exist ‘campos tao variados como a lingua falada, as técnicas artesanais, as, preparacées culindrias, a histéria das ideias (eu poderia acrescentar aarquitetura doméstica, pensando nas numerosas acepgdes que os € rigorosamente intraduzivel em japonés. Em senhores do a palavra “uchi"),* uma diferenga ou, mais exata- no fempoa casa como construcio, o interior. fa a 0s homens de negacios, em linguagem popular. mente, um sistema de diferencas invariantes se manifesta em nivel profundo entre o que, para simplificar, chamarei de alma ocidental € de alma japonesa, que se pode resumir pela oposigao entre um movimento centripeto € um movimento centrifugo. Esse esquema servird ao antropélogo de hipétese de trabalho para tentar melhor compreender a relacao entre as duas civilizacoes, Para o antropélogo, enfim, a busca de uma objetividade total 86 pode se situar num nivel em que os fendmenos guardem um significado para uma consciéncia coletiva. £ esta uma diferenca essencial entre o género de objetividade A qual aspira a antropolo- gia e aquela com que se contentam as outras ciéncias sociais, As realidades que visam, por exemplo, a ciéncia econémica ou a demografia nao sio menos objetivas, mas ndo se pensa em lhes pedir para ter um sentido na experiéncia vivida do sujeito, que af nfo encontra objetos como o valor, a rentabilidade, a produti dade marginal ou a populagdo maxima. Essas so nocdes abstra- tas, situadas fora do campo das relagdes pessoais, dos lagos con- cretos entre os individuos, que so a marca das sociedades pelas guais se interessam os antropélogos. Nas nossas sociedades modernas, as relagdes com 0 outro 1ndo so mais, sendo de modo ocasional e fragmentario, fundadas ‘nessa experiéncia global, nessa apreensio concreta dos sujeitos uns pelos outros. Elas resultam, na maioria, de reconstrugdes indiretas com de documentos escritos. Estamos ligados @ nosso passado, ndo mais por uma tradicéo oral que supde um contato vivide com pessoas, mas por € outros documentos empilhados nas bibliotecas, por meio dos quais a critica se empe- nha em reconstituir 0 rosto de seus autores. E no presente nos Comunicamos com a imensa maioria de nossos contemporaneos por intermediarios de toda espécie — documentos escritos ou ‘mecanismos administrativos — que mi plicam imensamente hnossos contatos mas ao mesmo tempo thes conferem um carater \ | | i de inautenticidade. Este marca doravante com seu selo as relagdes entre 0s cidadios e os poderes. A perda de autonomia, oafrouxamento do equilibrio interno que resultou da expansio das formas indiretas de comunicagao (livro, fotografia, imprensa, radio, televisio) destacam-se no pri- meiro plano das preacupagées dos tedricos da comunicagio. Desde 1948 as encontramos na pluma do grande matematico Norbert Wiener, criador, com Von Neumann, da cibernética, e, com Claude Shannon, da teoria da informagio. Raciocinando sobre bases totalmente diferentes das do antropélogo, Wiener observava no iiltimo capitulo de seu livro fundamental Cybernetics. Control and Communication in the ‘Animal and the Machine (1948) — cito: “As pequenas comunida- des estreitamente soldadas tém um grau de homeostasia conside- e isso, que se trate de comunidades muito cultas no seio de lizado ou de aldeias de selvagens primitivos”. E pros- seguia: “Portanto, nio é surpreendente que as grandes coletivida- des, expostas a influéncias perturbadoras, contenham muito meno: ormagdes acessiveis a todos do que as pequenas, para nada dizer dos elementos humanos de que sio feitas todas as comunidades Sem diivida, as sociedades modernas nao sio completa- ‘mente inauténticas, Virando-se hoje para o estudo das sociedades modernas, o antropélogo se empenha em detectar e isolar niveis de autenticidade. O que permite ao antropélogo encontrar um terreno familiar quando estuda uma aldeia ou um bairro de grande cidade € que todos ali conhecem a todos ou quase todos. ‘Um antropélogo se sente a vontade numa aldeia de quinhentos nd C lo parao francés por Paul CI ‘mann & Cie, 1948, pp. 187-8. habitantes, 20 passo que uma cidade grande ou mesmo média Ihe resiste. Por qué? Porque 50 mil pessoas nao constituem uma sociedade da mesma maneira que quinhentas, No primeiro caso, a comunicagéo nao se estabelece principalmente entre as pessoas, ou a partir do modelo das comunicagdes interpessoais. A rea dade social dos “emissores” e dos “receptores” (para falar a lin- guagem dos teéricos da comunicagio) desaparece atrés da com- plexidade dos “cédigos” e dos “retransmissores”, 0 futuro decerto julgaré que a mais importante contribuigao tedrica da antropologia as ciéncias sociais vem dessa distingao capital entre duas modalidades de existéncia social: um género de vida percebido, primeiro, como tradicional e arcaico, mas que é aquele das sociedades auténticas; e formas de aparigao mais recente, de que o primeiro tipo nao esta ausente mas em que gru- Pos imperfeita e incompletamente auténticos emergem como Pequenas ilhas na superficie de um conjunto mais vasto, ele ‘mesmo atingido pela inauienticidade NA PERSPECTIVA OCIDENTAL QUE £ A MINHA” No entanto, nao se deveria reduzir a antropologia ao estudo de sobrevivencias que mos buscar muito longe ou muito perto. O que importa antes de tudo nao é 0 arcaismo dessas for- mas de vida mas as diferencas que oferecem entre si ou com aque- Jas que se tornaram as nossas. Os primeiros trabalhos sistematicamente dedicados aos costumes e as crengas dos povos selvagens ndo datam de aquém de 1850, isto é, da época em que Darwin lancava os fundamen- tos do evolucionismo biolégico, ao qual respondia, no espirito de seus contemporineos, a crenga numa evolugao social e cultu- ral. E é mais tarde ainda, no primeiro quarto do século xx, que «9s objetos ditos “negros” ou “primitivos” foram reconhecidos ‘como tendo um valor estético, tariamos errados ao concluir dai que antropologia é uma ciencia nova, oriunda das curiosidades do homem moderno. Quando nos esforgamos para po-la em perspectiva, para the atri- puir um lugar na historia das ideias, a antropologia aparece, a0 contrario, como a expressio mais geral e 0 ponto conclusivo de ‘uma atitude intelectual e moral que teve seu nascimento ha varios séculos e que designamos com a palavra “humanism Permitam-me colocar-me um instante na perspectiva oci- dental que é a minha, Quando, na Europa, os homens do Renas- cimento redescobriram a Antiguidade greco-romana, ¢ quando 60s jesuitas fizeram do latim a base da formagao escolar e universi- tia, ndo era esse, jé, um procedimento antropologico? Reconhe- cia-se que uma civlizagio nao pode ela mesma se pensar caso no disponha de uma ou de varias outras para servir de termos de comparagao. Para conhecer e compreender sua propria cultura, é preciso aprender a olha-la do ponto de vista de outra: um pouco & maneira do ator de n6 de que fala o grande Zeami, que, para jul- gar o proprio jogo, deve aprender a vera si proprio como se fosse oespectador. Na verdade, quando procurei o titulo que poderia dar a um livro publicado em 1983, para fazer o leitor captar a dupla essén- cia da reflexao antropol6gica, que consiste, de um lado, em olhar muito longe, para culturas muito diferentes daquela do observa- dor, mas também, para o observador, em olhar sua propria cul- tura de longe, como se ele mesmo pertencesse a uma cultura dife- rente, 0 titulo que finalmente escolhi, Le Regard éloigné {O olhar distanciado}, me foi inspirado pela leitura de Zeami, Com 0 auxi- 10 de meus colegas japonélogos, simplesmente transpus em fran- césa formula riken no ken que ele emprega para designar o olhar do ator olhando para si mesmo como se ele fosse o piblico. Da mesma maneira, os pensadores do Renascimento nos ensinaram a pér nossa cultura em perspectiva, a confrontar nos- 0s costumes e nossas crencas com as de outros tempos e outros lugares. Em resumo, criaram os instrumentos do que se poderia chamar uma técnica de desenraizamento, Nao foi esse também o caso do Japao, quando a escola cha- mada de “nativista”, de Motoori Norinaga, empreendeu destacar os caracteres especificos, a seus alhos, da cultura e da civiizacio japonesas? E iniciando um dialogo apaixonado com a China que le consegue fazé-lo, Motoor' confronta as duas culturas, eé desta- cando certos tracos,tipicos em seu entender da cultura chinesa — “pomposa verbosidade”, como diz, gosto pelo taoismo para as afir- Magdes categoricas earbitririas —, que ele consegue, por contraste, definir a esséncia da cultura japonesa: sobriedade, concisio, discri. s@o, economia de meios, sentimento de impermanéncia e da pun. séncia das coisas (mono no aware), relatividade de qualquer saber. Esse modo de ver a China como meio de afirmar a especifici- dade da cultura japonesa fo igarizado de maneira muito suges- tiva nas estampas sobre temas chineses — ilustragdes do romance ados do Kanjo — produridas Por Kuniyoshi e Kunisada em torno de 1830. Elas man gosto marcado pela énfase, Suikoden e de relatos guetreitos ‘mum, © estilo flamejante, o barroco exacer- bado, a riqueza e a complica 10 dos detalhes vestimentares, muito afastado das tradigdes do ukiyo-e, Essas estampas refletem luma interpretagao tendenciosa, sem davida, da China antiga, ‘mas que se pretenderia etnogratica Na época de Motoori, o Japao s6 tinha conhecimento direto ou indireto da China ou da Coreia. Na Europa também, a dife renga entre cultura classica e cultura antropolégica decorre das dimensdes do mundo conhecido nessas épocas respectivas No inicio do Renascimento, o universo humano é circuns- ites da bacia mediterranea. Quanto ao resto, apenas se suspeita de sua existéncia. Mas ja se compreendeu que nenhuma fragao da humanidade pode aspirar a se compreender, senao por referéncia a outras. Nos séculos xvii e x1x, 0 humanismo se alarga com 0 avango da exploragao geografica. A China, a India, 0 Japao se ins- crevem progressivamente no quadro. Interessando-se hoje pelas mas civilizagdes ainda mal conhecidas ou negligenciadas, a antropologia faz o humanismo transpor sua terceira etapa. Com certeza ela sera também a tltima, jé que depois disso 0 homem nao tera mais nada a descobrir sobre si mesmo, pelo menos na extensio (pois existe outra pesquisa, esta em profundidade, da qual nao estamos prestes a alcangar o fim). : © problema comporta outro aspecto. Os dois primeiros humanismos, um limitado 20 mundo mediterrineo, ¢ outro englobando 0 Oriente e 0 Extremo Oriente, viam sua extensao limitada nao s6 em superficie mas também em natureza. Tendo desaparecido as civilizacdes antigas, nao era possivel atingi-las senao através dos textos e dos monumentos. Quanto ao Oriente € ao Extremo Oriente, onde nao se esbarrava na mesma dificul- dade, o método continuava a ser o mesmo porque, acreditava-se, civilizagdes tao longinquas e tao diferentes s6 mereciam interesse por suas produgdes mais eruditas e mais requintadas. ages de outro tipo que também apresentam problemas diferentes. Sendo sem © campo da antropologia compreende ci escrita, elas nao fornecem documentos escritos. E como seu nivel técnico ¢ geralmente muito baixo, a maioria no deixou monu- mentos figurados. D. novos instruments de investigagao. jade de dotar o humanismo de a nece: Os meios de que dispdea antropologia soa um s6 tempo mais exteriores e mais interiores (também se poderia dizer: mais grossos mais finos) que aqueles de suas predecessoras: a filologia ea histé- ria, Para penetrar nas sociedades de acesso dificil, o antropélogo deve se por muito no exterior (como fazem a antropologia fisica, a pré-hist6ria, a tecnologia) ¢ também muito no interior, pela identi- ficagao do etnélogo com o grupo cuja existéncia ele divide, e pela importancia que ele deve atribuir — na falta de outros meios de informagao — aos menores matizes da vida psiquica dos indigenes. Sempre aquém ¢ além do humanismo tradicional, a antro- pologia o transborda em todos os sentidos, Seu terreno englobaa totalidade da terra habitada, ao passo que seu método retine pro- cessos que dizem respeito a todas as formas do saber: ciéncias humanas e ciéncias naturais. Sucedendo-se no tempo, os trés humanismos se integram, portanto, e fazem avangar o conhecimento do homem em trés direcdes: na superficie, sem dtivida, mas é o aspecto mais “super- ficial” no sentido préprio como no sentido figurado, Em riqueza dos meios de investigacao, jé que percebemos pouco a pouco que, se a antropologia foi obrigada a forjar novos modos de conheci- ‘mento em fungio dos caracteres particulares das sociedades “resi- duais” que Ihe eram deixadas como quinhio, esses modos de conhecimento podem ser aplicados com proveito ao estudo de todas as sociedades, inclusive a nossa. Mas ha mais: o humanismo classico nao era restrito somente a seu objeto, como também aos beneficidrios, que formavam a classe privilegiada. Ohumanismo exético do século x1x se viu ele mesmo ado. 08 interesses industriais e comerciais que lhe serviam de suporte © 208 quais ele devia o fato de existir. Depois do humanismo ari tocratico do Renascimento do humanismo burgues do século X1X, a antropologia marca, assim, o advento, para o mundo aca- bado que se tornou o nosso planeta, de um humanismo dupla- mente universal, Buscando sua inspiracao no seio das sociedades mais humildes e por muito tempo desprezadas, ela proclama que nada de humano deveria ser alheio ao homem. Funda assim um humanismo democritico que ultrapassa aqueles que o precede- ram, criados para os privilegiados, a partir de civilizagdes privi- legiadas, E, mobilizando métodos e técnicas emprestados de todas as ciéncias para fazé-las servir ao conhecimento do ho- mem, apela para a reconciliagio do homem e da natureza num hnumanismo generalizado. Se compreendo bem o tema que os senhores me pediram para tratar nestas conferéncias, a questéo sera, para nds, saber se essa terceira forma de humanismo, constituida pela antropologia, se mostraré mais capaz.que as formas anteriores de trazer solu- ‘goes aos grandes problemas com os quais a humanidade de hoje esté confrontada. Durante trés séculos, 0 pensamento humanista imentado e inspirado a reflexdo €a agio do homem ociden- tal. E hoje verificamos que ele ter sido impotente para evitar os tera massacres em escala planetaria que foram as guerras mundi miséria ea subnutri¢ao que castigam de forma cronica grande parte da terra habitada, a poluigao do ar e da égua,a pilhagem dos recursos e das belezas naturais. O humanismo antropolégico sera mais capaz que os outros de trazer respostas as interrogagdes que nos assaltam? Nas conferéncias seguintes, tentarei definir e delimitar algumas grandes questées as quais @ antropologia pode, creio, nos ajudar a responder. Para concluir hoje, gostaria de indicar ‘uma contribuicao da antropologia que, mesmo sendo modesta, oferece ao menos a vantagem de ser certa. Pois um dos benefi- cios da antropologia — talvez, no final das contas, seu beneficio essencial — é nos inspirar, a nés, membros de civilizagoes ricas € poderosas, uma certa hui Os antropélogos estao lade, ensinar-nos uma sabedoria para testemunhar que a maneira como vivemos, os valores em que acreditamos, nao sio os tnicos possiveis; que outros géneros de vida, outros sistemas de valores permitiram, permitem ainda a comunidades humanas encontrar a felicidade. A antropologia nos convida, portanto, a temperar nossa gl a respeitar outros modos de viver, a nos recolocar em questo pelo conhecimento de outros usos que nos surpreendem, nos chocam ou nos repugnam — um pouco & maneira de Jean-Jac- ques Rousseau, que preferia acreditar que os gorilas, pouco antes descritos pelos viajantes de seu tempo, eram homens, a correr 0 rrisco de recusar a qualidade de homens a seres que, talvez, revelas- sem um aspecto ainda desconhecido da natureza humana, As sociedades estudadas pelos antropélogos ministram licoes ainda mais dignas de ser ouvidas na medida em que, por todas as. espécies de regras — que, como eu dizia ha pouco, estariamos erra- dos de considerar meras superstigoes —, elas souberam estabelecer entre o homem e o meio natural um equilibrio que nao sabemos ‘mais garantir. Vou me deter um instante neste ponto. UM “OPTIMUM DE DIVERSIDADE” Na Franga, no século x1, 0 fildsofo Auguste Comte formu- Jou uma lei da evolugo humana chamada dos trés estados, segundo a qual a humanidade teria passado por dois estados sucessivos: religioso, depois metafisico, e estaria prestes a aceder a.um terceiro estado positivo e cientifico ‘Talvez a antropologia nos revele uma evolucio do mesmo tipo, embora o conteiido ¢ o significado de cada estado sejam diferentes dos concebidos por Comte. Sabemos hoje que povos qualificados de “primitivos”, igno- rando a agricultura e a criagi , ou praticando somente uma agri- cultura rudimentar, as vezes sem conhecimento da ceramica e da tecelagem, vivendo principalmente de caga e pesca, de colheita e apanhadura de produtos selvagens, nao esto atenazados pelo temor de morrer de fome e pela angistia de ndo conseguir sobre~ -viver num meio hostil. Seu pequeno efetivo demografico, seu conhecimento prodi- gioso dos recursos naturais Ihes permitem viver no que hesitaria- ‘mos talvez.chamar de abundancia, E no entanto — estudos minu- ciosos mostraram na Australia, na América do Sul, na Melanésia ena Africa —, de duas a quatro horas de trabalho cotidiano bas- tam amplamente a seus membros ativos para garantir a subsi téncia de todasas familias, inclusive das criangas e dos velhos que 1nao participam ainda ou nao participam mais da produgao ali- menticia, Que diferenca com o tempo que nossos contempora- neos passam na fabrica ou no escrit Seria, pois, falso acreditar que esses povos sio escravos dos imperativos do meio, Muito 20 contrario, gozam diante do meio de maior independéncia que 0s cultivadores ¢ os criadores. Dispoem de mais tempo livre que lhes permite atribuir um amplo espaco a0 imaginario, interpor entre sie o mundo externo, como almofadas amortecedoras, crengas, devaneios, ritos, em suma, todas essas for- mas de atividade que chamarfamos de religiosa e artistica. Admitamos que, desse ponto de vista, a humanidade tenha vivido num estado comparavel durante centenas de milénios. Observariamos entao que com a agricultura, a criagdo, e depois a industrializagio, cada vez mais ela “engatou”, se ouso dizer, estreitamente no real. M se operava indiretamente, por intermédio de concep des filos6ti- case ideoldgicas. no sécul XIX € até hoje, esse engate Totalmente outro é 0 mundo em que penetramos hoje em dia mundo em que a humanidade se encontra abruptamente confron- tada com determinismos mais duros. S40 aqueles que resultam de seu enorme efetivo demogréfico, da quantidade cada vez mais limi- tada de espaco livre, ar puro, agua ja de que ela dispie para satisfazer suas necessidades biolégicas e psiquicas. Nesse sentido, pocemos nos perguntar se as explosies ideo- logicas que se produzem ha quase um século e continuam a se produzir — as do comunismo e do marxismo, a do totalitarismo, que nao perderam sua forga no Terceiro Mundo, e esta mais recente do integrismo islimico — nao constituem reagdes de revolta diante das condigdes de existéncia em ruptura brutal com as do passado. Produziu-se um divorcio, um fosso se cava entre os dados da sensibilidade, que para nés nao tém mais significado geral fora daqueles, restritos e rudimentares, que eles nos fornecem sobre 0 estado de nosso organismo, e um pensamento abstrato em que se concentra todos os nossos esforgos para conhecer e para com- preender 0 universo. Nada nos afasta mais desses povos estuda- dos pelos antropélogos, para quem cada cor, cada textura, cada odor, cada sabor tém um sentido. Esse divércio é irrevogavel? Nosso mundo vai talvez rumo a tum cataclismo demogréfico ou a uma guerra atmica qué exter- minard trés quartos da humanidade. Nesse caso, 0 quarto res- tante reencontraré condigées de existéncia no tio diferentes daquelas das sociedades em vias de extingdo de que falei Mas, mesmo afastando hipéteses tao aterradoras, podemos nos perguntar se sociedades que se tornam enormes, cada uma Por sua conta, € que tendem a se tornar parecidas umas com as outras, nao recriarao fatalmente em seu proprio seio diferencas situadas em outros eixos que nao aqueles em que se desentvolvem similaridades. Talvez exista um optimum de diversidade que, sempre ¢ em qualquer lugar, se imponha a humanidade para que ela permanega vidvel. Esse optimum variaria em funsao do niimero das sociedades, de sua importancia numérica, de seu afastamento geografico € dos meios de comunicacio de que dis- poem, Pois esse problema da diversidade nao se apresenta apenas a respeito das culturas encaradas em suas relagdes reciprocas. 6 Apresenta-se também em cada sociedad que retine em seu seio grupos ou subgrupos que nao sao homogéneos: castas, classes, rmeios profissionais ou confessionais... Esses grupos desenvolvem entre si diferengas s quais cada um da grande importancia, e é possivel que essa diversificagao interna tenda a crescer quando a sociedade se tornar mais numerosa e mais homogenea de outros pontos de vista Provavelmente os homens elaboraram culturas diferentes em razio do afastamento geogréfico, das caracteristicas particula- res do meio onde se encontravam, da ignorancia em que estavam de outros tipos de sociedades. Mas, ao lado das diferencas decor- rentes do isolamento, ha aquelas, igualmente importantes, devi- das a proximidade: desejo de se opor, de se distinguir, de ser si mesmo. Muitos costumes nasceram nao de alguma necessidade interna ou de um acidente favordvel, mas unicamente da vontade de nao ficar para trés em relagdo a um grupo vizinbo que subme- tia a normas precisas um campo de pensamento ou de atividade em que o outro grupo nao tinha pensado em estabelecer regras. A atengio e o respeito demonstrados pelo antropélogo as diferencas entre as culturas como aquelas préprias a cada uma constituem o essencial de seu procedimento, Assim, o antropélogo nao procura elaborar uma lista de receitas em que cada sociedade se servir segundo seu estado de espirito toda vez que perceber ‘em seu seio uma imperfeigao ou uma lacuna. As férmulas proprias a cada sociedade nio sto transponiveis a nenhuma outta. © antropélogo apenas convida cada sociedade a no acredi- tar que suas instituigdes, seus costumes e suas crengas so 0s tini- cos possiveis; ele a dissuade de imaginar que, pelo fato de que os juga bons, essas institu es, esses costumes € crengas estao ins- critos na natureza das coisas e que é possivel impunemente impé-los a outras sociedades cujo sistema de valores ¢ incompa- Livel com o seu. Eu dizia ha pouco que a mais alta ambigao da antropologia é inspirar aos individuos e aos governos uma certa sabedoria. Nao posso Ihes oferecer melhor exemplo que o testemunho de um antropélogo americano que foi Public Affairs Officer do general MacArthur durante a ocupacao do Japao. Li dele uma entrevista em que conta como a publicagao, em 1946, do famoso livro de Ruth Benedict, The Chrysanthemum and the Sword, dissuadiu 0 ocupante americano de impor ao Japao a aboligo do regime imperial, contrariamente & sua primeira intengao. Ruth Benedict, gue conheci bem, nunca foi ao Japao antes de escrever seu livro:¢, tanto quanto sei, tinha trabalhado em campos muito diferentes, Mas era antropéloga, e portanto pode-se creditar ao espirito antropol6gico, i sua inspiragao ea seus métodos, ainda que abor- dando uma cultura de muito longe e sem experiéncia prévia, 0 fato de ter sabido penetrar em sua estrutura e ter Ihe evitado um desmoronamento cujas consequéncias teriam sido ainda mais trdgicas, talvez, que as da derrota militar Como primeira ligdo, a antropologia nos ensina que cada costume, cada crenga, por mais chocantes ou irracionais que pos- vem parte de um sistema cujo equilibrio interno se estabeleceu a0 ‘sam nos parecer quando os comparamos com 0s nossos, longo dos séculos, ¢ que, desse conjunto, nao se pode suprimir um elemento sem correr 0 risco de destruir todo o resto. Ainda que ela ndo trouxesse outros ensinamentos, s6 este bastaria para justificar o lugar cada vez mais importante que a antropologia ocupa entre as ciéncias do homem e da sociedade. | 2. Trés grandes problemas contemporaneos: a sexualidade, o desenvolvimento econémico e 0 pensamento mitico Em minha primeira conferéncia, disse que tentaria definir e delimitar alguns problemas que se apresentam ao homem moderno, ¢ para cuja solugao o estudo das sociedades sem escrita pode em parte contribuir. Para isso, terei de considerar essas sociedades sob trés angulos: sua organizagio familiar e social, sua vida econdmica e por fim seu pensamento religioso, Quando se consideram de um ponto de vista muito geral as caracteristicas comuns s sociedades estudadas pelos antropélo- gos, impSe-se uma constatagaa: como indiquei brevemente, essas sociedades apelam para © parentesco de maneira muito mais sis- temitica do que é 0 caso hoje entre nés. Primeiro, utilizam as relagdes de parentesco e de casamento para definir 0 pertencimento ou o nao pertencimento ao grupo. Muitas dessas sociedades recusam aos povos estrangeiros a quali- dade de seres humanos. E, se a humanidade cessa nas fronteiras do grupo, ela é reforgada, no interior, por uma qualidade suple- mentar: 0s membros do grupo nao sio apenas 0s tinicos huma nos, 0s tnicos verdadeiros, os tinicos excelentes. Eles nio sao ape- nas concidadiios, mas parentes de fato ou de direito, Em segundo lugar, essas sociedades consideram o paren- tesco ¢ as nogées a ele vinculadas como anteriores e exteriores as relacdes biolégicas, tal como a filiacao pelo sangue, as quais nbs mesmos tendemos a redu; '. Os lagos biolégicos fornecem 0 modelo sobre 0 qual sio concebidas as relagaes de parentesco, mas estas oferecem ao pensamento um quadro de classificagio logica, Uma vez concebido, esse quadro permite distribuir os individuos em categorias preestabelecidas atribuindo a cada um seu lugar no seio da familia e da sociedade. Por fim, essas relagdes e essas nogdes compenetram o campo inteiro da vida e das atividades sociais. Reais, postuladas ou inferi- das, elas implicam direitos e deveres bem definidos, diferentes para cada tipo de parentes. De modo mais geral, pode-se dizer que nessas sociedades o parentesco e 0s lacos do casamento constituem uma linguagem comum, prépria a expressar todas as relagoes sociais: econdmicas, politicas, religiosas etc., e nao apenas familiares, GENITOR, EMPRESTADORA DE UTERO = FILIAGAO SOCIAL A primeira exigéncia que se impée as sociedades humanas ¢ se reproduzir, em outras palavras, manter-se no tempo. Toda sociedade deve, portanto, possuir uma regra de filiagdo que per- ita definir o pertencimento de cada novo membro a0 grupos tum sistema de parentesco que determine a maneira como se clas sificario os parentes, consanguineos ou jados; por fim, regras que definam as modalidades da alianga matrimonial estimulando quem se pode ou nao se pode desposar. Toda sociedade deve tam- bém dispor de mecanismos para remediar a esterilidade. Ora, é esse problema dos remédios a esterilidade que se apre- senta de modo muito agudo nas sociededes ocidentais desde que 4 «elas descobriram 0s meios para assistir a procriagdo, ou obté-la artificialmente. Nao sei como se passa no Japao. Mas 0 assunto {tos na Europa, nos Estados Unidos, na Australia, paises onde comiss6es foram oficialmente constituidas para debaté-lo, As assembleias parlamentares, a imprensa ea opiniao pablicaecoam amplamente esses debates, Deque se trata exatamente? Agora é possivel — ou, para cer- tos processos, breve o seré — que um casal com um dos mem- bros, ouambos, estéril tenha filhos, empregando diversos méto- dos: inseminagdo artificial, dom de évulo, empréstimo ou aluguel de sitero, congelamento de embrido, fecundacio in vitro com espermatozoides provenientes do marido ow de outro homem, évulo proveniente da esposa ou de outra mulher, : As etiangas nascidas de tais manipulagdes poderio, por- tanto, dependendo do caso, ter um pai e uma mae, como é nor- mal, uma mae e dois pais, duas maes e um pai, duas mies e dois pais, trés maes e um pai, eaté trés maes e dois pais quando o geni- tor nao for o mesmo homem que o pai, e quando trés mulheres intervierem: a que dé um 6vulo, a que empresta seu titero ea que seria mae legal da crianga. Nao é tudo, pois nos encontramos confrontados com situa~ «des em que uma mulher pede para ser inseminada com o esper~ ‘ma congelado de seu marido defunto, ou entio em que duas mulheres homossexuais solicitam a possibilidade de ter juntas um filho proveniente do dvulo de uma, fecundado artificial- mente por um doador anénimo ¢ logo implantado no itera da outra. Tampouco se vé por que 0 esperma congelado de um bisavo nao poderia ser utilizado, um século depois, para fecun- vo de sua mae e irmao dar uma bisneta; o filo seria entio tio-bi do proprio bisav6. Os problemas assim colocados sao de duas ordens, uns de natureza juridica, outros de natureza psicolégica e moral Quanto ao primeiro aspecto, os direitos dos paises eurapeus se contradizem. No direito inglés, a paternidade social nao existe, nem mesmo como figao juridica, e 0 doador de esperma pode, portanto, reivindicar legalmente o filho ou ser obrigado a arcar com seu sustento. Na Franga, ao contrario, 0 cédigo Napoledo, fiel a0 velho adagio Pater is est quem nuptiae demonstrant, decide que 0 marido da mae é o pai legal da crianga. Mas o proprio ireito francés se contradia, jé que uma lei de 1972 autoriza as agbes de busca de paternidade. Se o social ou se 0 biolégico, néo se sabe, portanto, qual aspecto prima sobre o outro, £ um fato que, nas sociedades contemporaneas, a ideia de que a filiagdo decorre de um laco biolégico tende a se impor sobre aquela que vé na filiago um laco social. Mas como resolver entao 05 problemas apresentados pela procriacio assistida, em que, justa- ‘mente, o pai legal nao é mais o genitor da crianga, eem que a mae, no sentido social e motal do termo, nao forneceu, ela mesma, 0 ‘ovulo, nem talver o titero em que se desenvolve a gestacao? Por outro lado, quais serao os direitos e os deveres respecti ‘vos dos pais sociais e biolégicos a partir de entio dissociados? Como deverd decidir um tribunal se a emprestadora de titero entrega uma crianga malformada e se o casal que apelou para seus servigos a recusa? Ou inversamente, se uma mulher fecundada com 0 esperma de um marido volta atras e pretende ficar com a crianga como se fosse sua? Por fim, qualquer uma dessas praticas, desde que é possivel, pode ser livremente empregada ou a lei deve autorizar umas ¢ proibir outras? Na Inglaterra, a chamada comissio Warnock (do nome de sua presidenta) recomendou proibir o empréstimo de utero, baseando-se numa distingao entre a maternidade genética, a maternidade fisiol6gica e a maternidade social, e considerando que, das trés, € a maternidade fisiolégica que cria 0 laco mais intimo entre a mae € a crianga. Se a opi aceita em sua maioria a procriagdo assistida para permitir a um casal casado resolver um problema de esterilidade, ela passa a ser indecisa no caso de um casal que vive em unio livre e naquele de uma mulher desejando ser fecundada com o esperma congelado do marido defunto, E a opiniao piiblica se torna francamente negativa quando se trata de um casal que deseja ter um filho depois da menopausa da mulher, de uma mulher sozinha ou de um casal homossexual desejando ter um filho. Quanto ao aspecto psicoldgico e moral, parece que a questo essencial é a da transparéncia. © dom de esperma ou de dvulo, o empréstimo de titero devem ser anénimos ou 0s pais sociais e, eventualmente, o proprio filo podem conhecer a identidade dos intervenientes? A Suécia renunciou ao anonimato, a tendéncia inglesa parece ir na mesma dire¢ao, ao passo que na Franga a opi- nido € a lei vao no sentido oposto. Mas mesmo os paises que admitem a transparéncia parecem de acordo com os outros para dissociar a procriagao da sexualidade, e se poderia até dizer da sensualidade. Pois para nos limitarmos ao caso mais simples, o do dom de esperma, a opiniao piblica s6 o julga admissivel se ocor- rer no laboratdrio € com a intervengao de um médico: método artificial que exclui entre o doador ea receptora qualquer contato qualquer partilha emotiva e erética. Ora, tanto para o ess0. dom de esperma como para o de évulo, a preocupagao de que as coisas ocorram no anonimato parece contraria aos dados univer- sais que, mesmo em nossas sociedades, mas sem dizé-lo, fazem com que esse género de servico se preste, com mais frequéncia do que se cré, “em familia”. A guisa de exemplo, citarei um romance inacabado de Balzac, iniciado em 1843, época em que os precon- ceitos sociais eram bem mais fortes na Franga do que hoje. Intitu- lado de modo significativo Os pequenos burgueses, esse romance mui documental conta como dois casais de amigos, um fecundo €0 outro estéril, se entenderam: a mulher fecunda se encarregou de fazer um filho com o marido da mulher estéril. A filha nascida dessa unio foi cercada de uma ternura idéntica pelos dois casai que moravam no mesmo prédio, e todos ao redor deles conhe- ciama situagao. Portanto, sao as novas técnicas de procriagao assistida, pos- sibilitadas pelo progresso da biologia, que puseram em desordem © pensamento contemporaneo, Num campo essencial & manu- tengo da ordem social, nossas ideias juridicas, nossas crengas morais ¢ filoséficas se revelam incapazes de encontrar respostas para situacdes novas. Como definir a rela¢do entre o parentesco biolégico ea filiagao social que agora se tornaram distintas? Quais sero as consequéncias morais e sociais da dissociagao da sexu: dade e da procriagao? Deve-se ou nao reconhecer 0 direito do individuo de procriar, se se pode dizer assim, “sozinho"? Uma crianga tem o direito de aceder as informagdes essenciais relativas @ origem étnica ¢ a satide genética de seu procriador? Até que ponto e em que limites é possivel transgredir as regras bioldgicas que os figis da maioria das religides continuam a considerar insti- tui¢do divina? PROCRIAGAO ARTIFICIAL: MULHERES VIRGENS E CASAIS HOMOSSEXUAIS Sobre todas essas questées, os antropélogos tém muito a dizer, porque as sociedades que eles estudam pensaram nesses problemas ¢ oferecem solugdes. Evidentemente, essas sociedades ignoram as técnicas modernas de fecundagao in vitro, de retirada de dvulo ou de embriao, de transferéncia, de implantagio e de congelamento, Mas imaginaram e puseram em pratica formulas equivalentes, ao menos quanto ao aspecto juridico e psicolégico. Permitam-me dar alguns exemplos. ‘A inseminagio com doador tem seu equivalente na Africa, entre os Samo, de Burkina Faso, estudados por minha colega Francoise Héritier-Auge, que me sucedeu no Collége de Prance. Nessa sociedade, cada menina é casada muito cedo, mas antes ei viver com 0 esposo ela deve, durante trés anos ou mais, ter ‘umamante de sua escolha e oficialmente reconhecido como tal Bla leva para o marido o primeiro filho nascido das artes do amante, mas que seré considerado como o primeiro nascido da unio legitima. De seu lado, um homem pode ter varias esposas Jegitimas, mas se elas o abandonam ele continuaré a ser 0 pai legal de todos os filhos que elas puserem no mundo em seguida. Em outras populagdes africanas, o marido tem também um direito sobre todos 0s filhos a nascer, contanto que esse dircito seja reinstaurado depois de cada nascimento por meio da pri- rmeira relagao sexual post partum. Essa relagao designa o homem {que sera o pai legal do proximo filho. Um homem casado cuja mulher é estéril pode, assim, mediante pagamento, se entender com uma mulher fecunda para que ela 0 designe. Nesse caso, 0 marido legal & doador inseminador, ¢ a mulher aluga seu ventre a outro homem, ow a um casal sem filhos, Portanto, a questao, candente na Franga, de saber se a emprestadora de titero deve fazé-lo gratuitamente ou se pode receber uma remuneragao nao se coloca, Entre os indios Tupi-Kawahib do Brasil, que visitei em 1938, um homem pode se casar simultaneamente ou em sucesso com varias irmas, ou com uma mée e sua filha de uma unio anterior. Essas mulheres criam em comum 05 filhos sem se preocupar, pareceu-me, se filho de que esta ou aquela mulher cuida é0 seu ou10 de outra esposa de seu marido. A situagio simétrica preva lece no Tibete, onde varios irmaos tém em comum uma s6 esposa. ‘Todos os filhos sao atribuidos a0 mais velho, a quem eles cha- mam de pai. Chamam de tio aos outros maridos. Em tais casos, a paternidade ou a maternidade individual sio ignoradas, sao levadas em conta. ou nao Voltemos a Africa, onde os Nuer, do Sudio, assimilam a mulher estéril a um homem, Na qualidade de “tio paterno”, ela recebe, portanto, o gado que representa “o prego da noiva” (em inglés, bride price) pago para o casamento de suas sobrinhas, e ela © utiliza para comprar uma esposa que Ihe dard filhos gracas aos servigos remunerados de um homem, volta e meia um estran- geiro. Entre os Yoruba, da Nigéria, mulheres ricas também podem adquirir esposas que elas incitam a ir viver com um homem. Quando nascem filhos, a mulher, “esposo” legal, os rei- vindica, ¢ os procriadores reais, se querem conservi-los, devem agar a ela generosamente, Em todos esses casos, casais formados por duas mulheres e ue, literalmente falando, chamariamos de homossexuais prati- cam a procriacao as la para ter filhos dos quais uma das mulheres seré o pai legal, a outra, a mle biolégica As sociedades sem escrita conhecem também equivalentes da inseminagao post mortem que os tribunais franceses proi- bem, enquanto na Inglaterra a comisséo Warnock propde uma lei que exclua da sucessao e da heranga do pai qualquer filho que ndo esteja em estado de feto no titero da mae no momento do falecimento do marido. E, no entanto, uma instituicao atestada }hé milénios (pois jé existia entre os antigos hebreus), o levirato, Permitia € até mesmo as vezes impunha ao irmao cacul la que engendrasse em nome de seu irmao morto. Entre os Nuer suda- neses de que falei, se um homem mortia solteiro ou sem descen- déncia, um parente préximo podia se servir do gado do defunto Para comprar uma esposa. Esse “casamento fantasma”, como dizem os Nuer, 0 autorizava a engendrar em nome do defunto, ja que este dora da fil timo fornecera a compensagao matrimonial cria- 20. Embora, em todos os exemplos que dei, o estatuto familiar e social da crianga se determine em fungao do pai legal (ainda ave este seja uma mulher), essa crianga nem por iso deixa de con i cer a identidade de seu genitor,¢ laos de afeigdo os unem. Ao contrério do que tememos, a transparéncia nao causa na erianga ‘um conffito resultante do fato de que seu procriador biol6gico e seu pai social sejam individuos diferentes. : Essas sociedades tampouco sentem um temor do género do que provoca entre nds a inseminagio com 0 esperma congelado do marido defunto ou até mesmo, teoricamente falando, de um thos séo supostamente ancestral afastado: para muitas delas, os a reencarnagio de um ancestral que escolhe reviver nessa crianga, Eo “casamento fantasma” dos Nuer admite um requinte suple- mentar caso 0 itmao, substituindo-se ao defunto, nao tenha engendrado por conta prépria. O filho gerado em nome do defo (e que su pa biolgico considera portanto, como sobri- ho) poder prestar ao pai biolégico o mesmo servigo. Sendo entio esse genitor o irmao de seu pai legal, os filhos que ele puser no mundo serao legalmente seus primos. ‘Todas essas formulas oferecem outras tantas imagens meta- foricas antecipadas das técnicas modernas. Verificamos assim que 0 conflito que tanto nos embaraca entre a procriagdo bialé- gica e a paternidade social nao existe nas sociedades estudadas pelos antropélogos. Elas dio, sem hesitar, a primazia ao social, sem que os dois aspectos se choquem na ideologia do grupo ou no espirito dos individuos. Se insisti nesses problemas, foi porque eles mostram muito bem, parece-me, qual 0 genero de contribuigio que a sociedade contemporanea pode esperar das pesquisas antropolégicas. 0 antropélogo nao propde a seus contemporaneos adotar as ideias € 68 costumes desta ou daquela populagio exética, Nossa contribu 40 € muito mais modesta, ¢ se exerce em duas diregdes. Primeiro, @ antropologia revela que o que consideramos como “natural”, ba- seado na ordem das coisas, reduz-se a dificuldades ea habitos men- tais préprios a nossa cultura, Portanto, ela nos ajuda a nos livrar- mos de nossas viseiras, a compreender como e por que outras sociedades podem considerar simples e ébvios costumes que, para 16s, parecem inconcebiveis ou mesmo escandalosos. Em segundo lugar, os fatos que recolhemos representam uma experiéncia humana muito vasta, ja que provém de milha- res de sociedades que se sucederam ao longo dos séculos, as vezes de milénios, e que se repartem em toda a extensio da terra habitada. Ajudamos assim a destacar 0 que podemos considerar como os “universais” da natureza humana, e podemos sugerir em que quadros se desenvolverio evolugées ainda incertas, mas Que estariamos errados em denunciar de antemao como desvios ou perversies, © grande debate que atualmente se desenrola a respeito da Proctiacao assistida € saber se convém legislar, sobre o que e em que diresao. Nas comissdes e nos outros organismas instituidos pelos poderes puiblicos de virios paises tém assento representan- tes da opiniao pt a, juristas, médico: socidlogos, as vezes antropélogos. £ impressionante que estes ajam por todo lado na mesmo diregdo: contra uma pressa demasiado grande em legislar, em permitir isto e proibir aquilo. Aos juristas e moralistas impacientes demais, os antropélo- {80S prodigalizam conselhos de liberalismo e de prudéncia. Fazem valer que mesmo as praticas e as aspiragdes que mais chocam a opiniao publica — procriagao assistida posta a servigo de mulhe- tes virgens, solteiras, vitivas, ou a servico de casais homossexuais — tém seu equivalente em outras sociedades que se comportam bastante bem, Portanto, desejam que deixemos as coisas correr, e que nos entreguemos a l6gica interna de cada sociedade para eriar em seu 10, ou para dela eliminar, as estruturas familiares e sociais que seio, z : : .e revelariio vidveis e as que gerarao contradicdes que s6 pelo uso se revelard poderdo se revelar insuperiveis. po S{LEX DA PRE-HISTORIA A CADEIA INDUSTRIAL MODERNA. asso agora a meu segundo capitulo: o da vida econémica Nesse setor também o interesse das pesquisas antropolégicas é nos revelar modelos muito diferentes dos nossos, portanto nos incitar a refletir sobre estes, eventualmente até a questioné-los, Nas fronteiras da antropologia e da ciéncia econmica, um debate deu o que falar nestes iltimos anos: as grandes leis da cién- cia econdmica sao aplicdveis a todas as sociedades ou somente aquelas que, como as nossas, funcionam sab o regime de uma economia de mercado? Nas sociedades antigas, nas sociedades camponesas recentes ou contemporaneas, ¢ também nas estudadas pelos antropélogos, 1no mais das vezes ¢ impossivel separar os aspectos que chamamos econdmicos de todos os outros. Nao é possivel reduzira atividade econdmica exercida pelos membros dessas sociedades a um cél- culo racional cujo nico objetivo seria maximizar os ganhos ¢ minimizar as perdas. Nessas sociedades, 0 trabalho nao serve ape- nas para obter um lucro, mas também — talvez se deva dizer sobretudo — para adquirir prestigio e contribuir para bem da comunidade. Atos que, para nés, teriam um cardter puramente econdmico traduzem preocupagdes a um s6 tempo técnicas, cul- turais, sociaise reli Em menor medida, nao é este também 0 caso entre nds? Se toda a atividade das sociedades de mercado tivesse a ver com as leis econdmicas, a ciéncia econdmica seria uma ciéncia verda- josas, deira, permitindo prever e agir, o que manifestamente néo é 0 «aso, Pode-se ver ai a prova de que mesmo nos comportamentos que nos parecem puramente econdmicos outros fatores intervém € mostram 0 erro da ciéncia econémica. Mas esses fatores perma- necem velados para nés atrs de uma tela de pretensa racion; dade, e 0 estudo de sociedades diferentes, que Ihes dao mais importancia, nos ajuda a evidencié-los. Entéo, 0 que elas nos revelam? Em primeiro lugar, e contra- rlamente ao que se poderia crer, uma espantosa capacidade para resolver problemas de produgdo. Mesmo nos tempos longinquos da pré-histéria, os homens souberam se dedicar em grande escala 2 atividades industriais. Conhecemos na Franga, na Bélgica, na Holanda, na Inglaterra sitios de varias dezenas de hectares criva- dos de pogos de mina para a extracio do silex, e onde trabalha- vam as centenas operiios provavelmente organizados em equi- pes. Os nédulos de silex passavam por oficinas tao especializadas quanto os postos de uma cadeia industrial moderna. Em certas oficinas desbastava-se a matéria-prima, em outras cortavam-se as lascas, em outras moldavam-se os esbocos para Ihes dar uma forma definitiva: picaretas de mineiro, martelos, machados ete. Esses centros mineiros e industriais exportavam seus produtos para varias centenas de quilémetros ao redor, o que supunha uma organizagao comercial poderosa. A antropologia fornece indicagdes da mesma ordem. Por muito tempo nos perguntamos como as populagdes numerosas cujo trabalho era requisitado para construir as cidades eos monu- mentos maias do México e da América Central consegui viver no local tirando sua subsisténcia de uma pequena agric tura familiar dispersa, como esta praticada pelos camponeses maias atuas Gragas as foto, m fias feitas de aviao e de satélite, soubemos hha pouco que em terra maia ¢ em diversas regides da América do sul — Venezuela, Colémbia, Bolivia — existiam sistemas agrico- Jas muito aperfeigoados. Um deles, na Colombia, data de uma época que vai do inicio da era crista ao século vit. No fim desse periodo, ele se estendia por 200 mil hectares de terras inundaveis drenadas por milhares de canais entre os quais se cultivava a terra em taludes artificialmente elevados. Unida a pesca nos canais, essa agricultura intensiva conseguia alimentar mais de mil habi- tantes por quilometro quadrado. ‘A antropologia revela, contudo, um paradoxo. Pois, ao lado dessas grandes realizagées que demonstram 0 que, em nossa linguagem, chamarfamos de mentalidade produtivista, existem outras que vao na diregao oposta. Esses mesmos povos, ou outros, sabem limitar sua produtividade por processos nega tivos. Na Africa, na Austrilia, na Polinésia, na América, chefes ou sacerdotes especializados, ou entéo corpos de policia organi- zados para esse fim possuem poderes absolutos para fixar o ini- cio ea duragao da caga, da pesca e da colheita dos produtos sel- vvagens. A crenca, muito espalhada, em “mestres” sobrenaturais, de cada espécie animal ou vegetal que castigam os culpados de retiradas excessivas contribui para moderé-las, Da mesma e tabus de todo tipo tornam a caga, a pesca ou a colheita atividades graves e com pesadas conse- quéncias, que exigem de quem a elas se dedica um comporta- ‘mento prudente e refletido. maneira, prescrigées Portanto, em niveis ¢ em terrenos muito variados, as socie- dades humanas observam, em matéria econdmica, atitudes heterogéneas. Nao hé um modelo de a varios. Os modos de produgio estudados pelos antropélogos — hort idade econdmica, mas colheita e apanhadura, caca ¢ colhi Itura, agricultura, artesanato etc, — representam outros tantos tipos diferentes. E dificil reduzi-los, como se acreditava ser possivel fazer, a fases, sucessivas do desenvolvimento de um modelo nico que con- duzam, todas, ao estagio mais evol propomos como modelo. Nada mostra isso melhor do que as discusses em curso sobre 2 origem, o papel e as consequéncias da agricultura. Sob varios aspectos, a agricultura representou um progresso: fornece mais a mentos num espago € num tempo determinados, permite uma expansio demografica mais répida, um povoamento mais denso, sociedades a um s6 tempo mais extensas e mais numerosas, Mas sob outros aspectos constitu uma regressio, Como notei Jo: este que nés mesmos em minha primeira conferéncia, ela degrada o regime alimentar, desde entao limitado a alguns produtos ricos em calorias mas rel tivamente pobres em principios nutritivos, Seus resultados si0 -menos seguros, pois basta uma colheita ruim para que a fome se instale, A agricultura também exige mais labor. Poderia mesmo acontecer de ser ela responsiivel pela propagagao das doengas infec- ciosas, como sugere, na Africa, a coincidéncia notavel, no tempo € no espaco, da difusao da agricultura ea da malaria. A primeira ligdo da antropologia em matéria econdmica & pois, que nao existe uma s6 forma de atividade econdmica mas varias, que nao é possivel ordend-las numa escala comum. Elas mais representam escolhas entre solugdes possiveis. Cada uma apresenta vantagens, mas é preciso pagar 0 preco, ‘Temos alguma dificuldade em nos colocar nessa perspec- tiva, porque considerando as sociedades ditas atrasadas ou sub- desenvolvidas, tais como apareceram quando estabelecemos contato com elas no século x1x, negligenciamos um fato evi- dente: essas sociedades nao eram mais que sobrevivéncias, ves- tigios mutilados em seguida a transtornos que nés mesmos inhamos direta ou indiretamente provocado. Pois foi a explo- ragao vida das regides exdticas e de suas populagdes, entre os séculos XVI € XIX, que permitiu ao mundo ocidental promover sua propria expansao. A relacdo de estranheza entre as socieda- des ditas subdesenvolvidas e a civilizagao industrial consiste sobretudo no fato de que nelas essa civilizagao industrial encon- tra seu préprio produto, mas sob um aspecto negativo que ela nao sabe mais reconhecer. A simplicidade e a passividade aparentes dessas sociedades nao lhes sao intrinsecas. Esses caracteres sao mais os resultados de nosso desenvolvimento em seu cio, antes que ele fosse se impor do exterior a sociedades previamente saqueadas para que o proprio desenvolvimento pudesse nascer e crescer sobre seus detritos. Atacando os problemas da industrializagao dos paises sub- desenvolvidos, a civilizagao industrial ai encontra, primeiro, a imagem deformada, e como que fixada pelos séculos, das destrui- {Goes que ela precisou, inicialmente, realizar para existir. Doencas {troduzidas pelo homem branco entre as populagdes que nao tinham contra elas nenhuma imunidade riscaram do mapa socie~ dades inteiras. Até nas regides mais recuadas do planeta, onde se poderia imaginar que subsistem sociedades intactas, os germes patogénicos, que viajam com uma rapidez surpreendente, exerce- ram seus estragos, as vezes varias dezenas de anos antes que 0 contato propriamente dito tivesse ocorrido, Pode-se dizer o mesmo das matérias-primas ¢ das técnicas. Ha na Australia sociedades em que a introdugao de machados de ferro, embora facilitando e simplificando o trabalho ea atividade econémica, causou a ruina da cultura tradicional. Por motivos complexos em cujos detalhes seria muito longo entrar, a adogao das ferramentas de metal provocou a derrocada das instituiges econdmicas, sociais ¢ religiosas que estavam ligadas & posse e & transmissio dos machados de pedra. Ora, em forma de ferramen- tas gastas ou estragadas, as vezes mesmo de indescritiveis detri- tos, 0 ferro viaja mais depressa e mais longe que os homens, favo recendo guerras, casamentos, trocas comerciais. CARATER AMBIGUO DA “NATUREZA” Depois de termos definido os quadros hist6ricos no seio dos quais se manifestam as descontinuidades culturais, pode- ‘mos tentar, com menos riscos de erro, destacar as causas pro- fundas da resistencia que essas sociedades opdem com fre- quéncia ao desenvolvimento. Sao, primeiro, a tendéncia da maioria das sociedades ditas primitivas preferir a unidade aos conflitos internos; em segundo lugar, o respeito que manifes- tam pelas forgas naturais; por fim, a repugnancia que tém em se envolver num devir histérico, Volta e meia se evocou 0 cariter nio competitivo de algumas dessas sociedades para explicar sua resisténcia a0 desenvolvi- ‘mento e a industrializagéo. Nao esquegamos, porém, que a passi- vidade e a indiferenga que Ihes recriminam podem ser uma con- sequéncia do traumatismo consecutivo ao contato, nao uma condigao presente desde a origem. Além disso, 0 que nos aparece como um defeito e como uma auséncia pode corresponder a um modo original de conceber as relagGes dos homens entre si e com © mundo, Um exemplo nos faré compreender. Quando povos do interior da Nova Guiné aprenderam com os missionarios a jogar futebol, adotaram esse jogo com entusiasmo, Mas, em ver de bus- car a viléria de um dos dois campos, mult icavam as partidas até que as vitorias e as derrotas de cada campo se equilibrassem. (Q jogo nao termina, como entre nés, quando hé um vencedor, mas quando tém certeza de que nao haverd perdedor. Observagées feitas em outras sociedades parecem ir em sen. tido inverso; no entanto, sao igualmente exclusivas de um verda- deiro espirito de competigao. Por exemplo, quando jogos tradi- cionais se desenrolam entre dois campos que representam respectivamente 0s vivos e os mortos, e devem portanto, necessa riamente, terminar pela vitria dos primeiros Por fim, é espantoso que quase todas as sociedades ditas primitivas rejeitem a ideia de um voto tomado pela maioria dos presentes. Flas consideram a coesao social ¢ 0 bom entendi- mento dentro do grupo preferiveis a qualquer inovagio. A ques- {do litigiosa 6, por isso, postergada tantas vezes quanto for necessério para que se obtenha uma decisdo unanime. As vezes, combates simulados precedem as deliberacdes. Esvaziam-se assim velhas querelas e s6 se passa ao voto quando 0 grupo, reftescado e renovado, atendeu em seu interior as condicdes de uma indispensavel unanimidade. A ideia que muitas sociedades tém da relagao entre a natu- reza ea cultura explica também que essas sociedades resistam a0 desenvolvimento. Pois o desenvolvimento supde que se faca pas: sar a cultura na frente da natureza, ¢ essa prioridade dada a cul- tua quase nunca é admitida sob essa forma, a nao ser pelas civili- zagoes industriais. Sem davida todas as sociedades reconhecem que existe uma separagao entre os dois reinos. Nenhuma, por mais humilde que seja, recusa atribuir um valor eminente as artes da ci cerdmica, tecelagem, pelo que a condigio humana se afasta da lizagdo: cozimento dos alimentos, condigéo animal. No entanto, entre as povos ditos primitivos, a nogio de natureza oferece sempre um carter ambiguo: a natureza € pré-cultura, ¢ ela é também subcultura; mas constitui o terreno em que o homem espera encontrar os antepassados, 0s espiritos, os deuses. A nogao de natureza inclui, portanto, um componente “sobrenatural”, e essa sobrenatureza esta tao acima da cultura ‘quanto a propria natureza esté abaixo. Assim, nao deveros nos espantar se as técnicas e 0s objetos manufaturados sdo desvalorizados pelo pensamento indigena isto &, das relacdes entre o homem e 0 mundo sobrenatural, Tanto na Antiguidade classica como na do Oriente e do Extremo Oriente, no folclore europeu toda vex que se trata do essenci

You might also like