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CAPITULO TRES O HOMEM DESCORRE Os S{mBOLOS E INVENTA O ALEM “A obra de arte é uma alegria criada para sempre.” JOHN KEATS “O paratso deve se¥ assim: descansar ‘numa rede por toda a eternidade.” a JORGE AMADO UM ANIMAL CAPAZ DE INVENTAR O ALEM Parece que por milhdes de anos os nossos antepassados nunca sentiram a necessidade de sepultar os mortos e de exercitar ritos magicos ou teligio- sos; portanto, de crer numa vida ultraterrena e em alguma divindade. A fé no além-timulo nao é um comportamento determinado geneticamente, mas uma construgdo cultural do homem que atingiu um estégio relativa- mente avangado da sua evolugio. Essa, obviamente, é uma opiniao leiga, fiel aos pais fundadores da so- ciologia, como Spencer, que formula a hipétese de uma passagem gradual de um atefsmo origindrio ao culto dos ancestrais, e depois ao politefsmo, para entdo passar ao monotefsmo e, por fim, chegar ao positivismo. Segundo essa opgiio, nao foi Deus que fez o homem ea Terra 4 sua imagem ¢ semelhanga, mas sim o homem que fez & sua propria semelhanga Deus € 0 parafso, o diabo e o inferno. De opinidio completamente distinta so, obviamente, os crentes. Estu- diosos como Julien Ries, sacerdote, tedlogo e grande cultor da Historia das Religides, realizam esforgos titdnicos a fim de forgar todo € qualquer mini- mo indicio ¢ deslocar o nascimento do sagrado para a €poca mais remota pos- sivel, le modo que possa coincidir com o surgimento do proprio ser humano. E plausfvel que o comportamento religioso tenha sido induzido pela confrontagio dos némades com os céus estrelados, pela observagiio do Digitalizado com CamScanner CRIATIVIDADE F GRUPOS ERIATIVOS cy universo, pelo sentimento de perda, desvario € ae que, ainda hoje, dela devas ou pela aspiagio a0 infnito €& etemidade como experangy para superar os limites humanos ¢ a morte ee a, pe : emogio do con. junto, da descoberta da ala, dedusida a partir da invasto persistente dos sonhos, do sono, das enfermidades e da morte; ou, mais ainda, pela inca. pacidade de suportar o luto e o desejo de prorrogar a convivencia com os proprios mortos, com os espititos invisiveis, com as poténcias sobrenaty. rais, representaveis tio-somente por intermédio dos simbolos € dos mitos, Espiritos potentes ¢ misteriosos, possuidores de energias inefaveis — 0 mang — que podem ser comunicados somente aos seres humanos mais sensitivos, através da agua, das plantas e das pedras. Para historiadores como Julien Ries, inclinado a encontrar em todo e qualquer indicio uma confirmagao & religiosidade natural aos seres hu- manos e até mesmo aos pré-humanos, esses elementos sao mais que sui cientes para que se conclua que, desde as origens do homem, “a contem. plagao da abdbada celeste... despertou nele o pressentimento do mistério do infinito e da Transcendéncia... Portanto, o Homo erectus, que é, sem _dévida alguma, um Homo symbolicus, € j4 um Homo religiosus” De seguro sabemos que, j4 no paleolitico, por pelo menos oitenta mi- Iénios, praticou-se o sepultamento dos cadaveres e que, perto do fim dessa longa era, os ossos eram descarnados, os cranios era decorados com con- chas e outras conchas eram encaixadas nas érbitas, quase que provendo um novo par de olhos ao defunto, obrigado para sempre a perscrutar a escuridao do além. Na gruta de Qafzeh, perto de Nazaré, na Galiléia, foram encontrados fosseis humanos intactos, com cerca de 90.000 anos, mas, ao que parece, foram sobretudo os homens de Neandertal que, aproximadamente 60,000 anos atrds, sentiram a necessidade de enterrar os seus mortos e depositar oferendas junto a seus cotpos, entrevendo a possibilidade de uma cont nuagdio da vida ap6s a morte & inventando, dessa maneira, a teligido, isto br fete bi ar oom unin divindade superior e abstrata, etemidade de existéncia" Sob esse apecre ng Te ee eee hs ‘i * SOD esse aspecto, a divindade é uma das cria- g6es mais ousadas da mente humana, Ries insiste: “A colocagio de alimentos e aderegos assim como as con chas encaixadas nas érbitas oculares indicam a idéia de uma continuidade pert mortem ds atividades do defunto, Por intermédionda van vee fane- ratias, o Homo sapiens dle N ‘©. Vor intermédio das suas agdes fune s ¢ Neandertal, assim como 0 Homo sapiens sapiens do paleolitic ior, s mo re Preoc! ‘© Superior, demonstra i > er Hi : ; ; ‘omo religiosus, preocupado co! Digitalizado com CamScanner Oh jomem descobre os simbolos ¢ inventa 0 além 6 ‘As sepulturas so de varios tipos: i8oladas, espalhad: zadas num espaco planificado; em campo hea Ee eo ouorganl: terra batida ou com laje de pedra; tonplseeneny fr cavetnas e grutas; em por oferendas rituais, como flores, objetos ou aa 5 ae i enfeltadas tra colorido, ou vinda exleenerlo com medalhies, ou tom eee bare vicas, em varies posigdes e a uma distancia at Liens bastante fossa. Alguns fosseis apresentam até mesmo indicios d 'elacao as paredes da Embora as sepulturas permanegam raras até 10.000 sae testemunhos colaterais de outro género, capazes de riaasiaare dos “mudos” com noticias posteriores sarod ar Dee acha- nificados simbélico, ritual e metafisico da morte, senieaie ey eee os neandertalenses a morte tinha se tornado ja fat coma cee gioso para todo 0 grupo, que procurava de alguma forma arenas om ae tato com seus membros, mesmo apés a morte. a Dos achados, que nao chegam a constituir uma amostra representativa, podemos ter certa idéia quanto as causas dos dbitos e dos tipos de doengas que prevaleciam. Mais da metade (54,8%) dos corpos que remontam 20 tipo Neandertal morreu por lesdes traumaticas; seguem-se as artroses (16,6%), as osteftes infecciosas (9,5%) e as causas congénitas (4,8%). Mais tarde, tratando-se de corpos pertencentes ao tipo Homo sapiens sapiens, diminui o percentual ligado a lesdes traumaticas (45%) ¢ aumenta a pro- porgao das artroses (21,2%). As varias enfermidades, da artrose & calci- nose, sio mais ou menos aquelas hoje existentes, variando somente as suas incidéncias do ponto de vista quantitativo. Como testemunho da periculo- sidade das tarefas cotidianas e da violéncia do relacionamento com a natureza e com os outros seres humanos esté o fato de que os traumas eran, de longe, a causa mais freqiiente de morte, ainda que tenham diminuido com o passar dos milénios, da fase mais arcaica até a mais evolufda. A pritica de proteger e cobrir os defuntos, quase como que prolongando as suas vidas depois da morte, demonstra que “com as primeiras sepulturas na gruta de Qafzeh e com aquelas dos neandertalenses, 0 homem criou a mais extraordindria manipulagao da realidade: a sua mente criou uma cé- pia do mundo cotidiano, atribuindo-Ihe um tal significado que, por vezes, condicionava a existéncia inteira em direcao a esse objetivo imagindrio, a Ponto de serem sacrificadas, freqiientemente, incontaveis riquezas - Pelo cotidiano dos vivos, gradualmente difunde-se a presené® dos mor tos e do sagrado: numa cidade agricola-artesanal descoberta na Anaté ia, menos 40 continham habitada entre 6250 e 5400 a.C., de 139 casas, pelo fi a Pequenos santudrios, com afrescos, altos-relevos, estatuetas € figuras, na Digitalizado com CamScanner a CRIATIVIDADE E GRUPOS CRIATIVOS Entre 100.000 e 30,000 anos atrés, os neandertalenses diferenciam-se dos outros hominfdeos pertencentes d espécie Homo sapiens. Os tiltimos Tepre- sentantes dessa raga circumediterranea — a mesma que 60.000 anos antes de Cristo havia aprimorado a invengdo do mundo supraterreno — alguns mi- Iénios mais tarde aprimoram a arte, fazendo com que fosse assim cumprido o segundo passo fundamental a produgao metafisica do homem. Numa ordem temporal, portanto, primeiro nasceu a tecnologia, depois a teoldgia e por fim. a estética. Esta wltima, quando traduz-se em termos de producao artistica, Tequer a faculdade de abstracao, de sintese, de simbolizagao e de associagio. Os longinquos hominideos do tipo neandertalense, evoluidos, mas * mesmo assim as vésperas de serem ultrapassados pelo homem moderno de tipo Cro-Magnon, talvez tenham sido os primeiros - entre 50,000 e 30.000 anos atrés — a saborear a alegria da beleza criada pelo homem e a iniciar, com simples entalhos ritmados, tanto no osso como na pedra, a grande aventura artistica humana, que sob muitos aspectos se confunde com a religiosidade e com o sagrado. Os homens de tipo Cro-Magnon, bem mais evoluidos, irdio em seguida realizar verdadeiras criagdes artisticas na forma de pequenas estatuetas antropomérficas, com enfeites entalhados em pedras e em ossos, até a grande explosao da arte naturalistica, que ornamentard centenas de impo- nentes santudrios com perfcia e criatividade surpreendentes. A datagao da pré-histéria, como jé recordei, esta sujeita a modificagses imprevistas e radicais. Basta a descoberta de um osso, de um seixo, de uma inscri¢do ou grafite, para nos obrigar a revolucionar a divisao dos eventos e as suas implicagées. Act poucos anos ats, duas clreunstancias cham yam a atengio na longa histéria da arte originaria, cuidadosamente dividida por André Leroi-Gourhan em trés perfodos (primitivo, arcaico.¢ classico). A primei- ra circunstancia consistia no fato de que, a meio caminho entie 0 nasci- mento da arte e os nossos dias, ocorreu aquele prodigio extraordinario que foi a arte rupestre da gruta francesa de Lascaux, datada de cerca de 20.000 anos. As pinturas de Lascaux foram consideradas por muitos 0 épice irrepli- cAvel na criatividade estética da pré-histéria, comparivel 4 Capela Sistina Depois dela vieram, em ordem cronoldgica ou ao ciclo giottesco em A: e de importancia, as pinturas espanholas de Altamira, datadas de cerca de 17.000 anos. A segunda circunstincia, bem diferente da primeira, ma misteriosa, é que ap6s 20.000 anos de progressos incessantes, e apés haver igualmente Digitalizado com CamScanner Pre © homem descobre os sfmbolos ¢ inventa o além 6 atingido o auge de Lascaux e de Altamira, a produgio artistica pré-histérica repentinamente se interrompe e por 6.000 anos emudece. "Atualmente, essa segunda circunstincia ainda permanece vilida e ietadora, enquanto 0 primado de Lascaux foi destituido em 1994, quando o espeledlogo Jean-Marie Chauvet descobriu um outro grandioso ciclo de afrescos numa outra caverna francesa, que agora traz 0 seu nome, ao longo do rio Ardéche. Este bem-recebido achado antecipa de fartos 15,000 anos a época em que o Homo sapiens soube criar obras-primas pic toricas de extraordinéria beleza e vivacidade. Permanece de toda forma valido, pelo menos até agora, que o homem ereto ¢ 0s utensflios nasceram na Africa, enquanto a arte teve a Europa como bergo, a0 longo do vale do Vézére, onde os primeiros neantropos da espécie Homo sapiens sapiens deliciaram-se em representar em duas dimen- s6es aquilo que viam em tomo de si em trés dimensdes. Em alguns blocos de pedra portéteis, eles representaram existir , miséria, dores, cansago © morte; rie de maravilhas, que vio desde a musica, bem Ges, 08 figados ¢ tod dos consistira na sddica satisfagio de ver os amaldigoados sofrerem ¢ os poderosos serem humilhados, mesmo quando estes eram parentes ou ami- gos proximos. Escreve Tertuliano em De Spectaculis (Sobre os espetaculos): “Como admirarei, como rirei, exultarei ¢ me alegrarei quando vir tantos monarcas orgulhosos e falsos deuses gemerem no mais profundo abismo das trevas! Tantos magistrados, que perseguiram em nome do Senhor, con- sumidos por fogos muito mais violentos do que aqueles que acenderam contra os crist&os! Tantos sdbios filésofos torrarem nas ardentes chamas com seus iludidos discfpulos!” Em suma, o paraiso é 0 oposto da terra: quanto mais se sofre aqui, mais se goza 14. E, para gozar, evita-se toda ¢ qualquer forma de trabalho: 0 qual, pelo contrério, € um castigo imposto ao homem para expiar a sua culpa original, como garante ainda a Rerum Novarum de Leao XIII E Louis-Antoine de Caraccioli carrega na dose garantindo-nos on exuados: “Todos os corpos que ressuscitarao (0 prazeres, de forma inefavel, ¢ prazeres to Ges atuais que os mos intensfssimos, embora a para a gloria experimentara puros, tao maravilhosos ¢ tao supe muculmanos deveriam enrubescer por quao carnal & © paraiso deles.” jores As Nossas sensat MUGULMANOS: NADEGAS DE UMA MILHA E ORGASMOS DE UM SECULO Entéo, vamos dar uma olhadela, pelo buraco da fechadura, nesse paral so do Alcorio. Como o Isla coincide sobretudo com zonas térridas, desér- i ‘i P ‘I ct a oO paratso ticas, privadas de Agua ¢ de verde, eis que, para compensar, 0 paral 1, ao qual podem tet nem frie, as jarizes ¢ Os mugulmano ¢ inteiramente um jardim de eterna delic acesso homens, mulheres ¢ animais. O clima nao é quente (0 freqiientes, assim como numerosos sito os rios, os chal chuv: Digitalizado com CamScanner © homem descobre os sfmbolos ¢ inventa o além B riachos: nfo somente de Agua, mas também de mel, de leite e de vinho. Os jardins produzem bananas, romas, I6tus e uva em abundancia. Os palécios sio ricos em saldes, terragos com vistas, pavilhdes mobiliados com espre- guicadeiras, divas e leitos elevados, Os héspedes eleitos siio cobertos com ouro e pérolas, nao dormem nem adoecem; passam parte do seu tempo a zombar dos condenados, mas durante a maior parte da eternidade dedicam-se ao repouso, as ablugées, & comida e ao amor. Possuem um étimo apetite e dispdem de saborosos quitutes; tém trinta metros de altura, privados de traseiros, mas ultradotados de 6rgdos sexuais: centuplicados no comprimento e incansdveis nas suas fungdes. Cada homem dispée seja das Huri, seja das suas eleitas: todas elas sorri- dentes e portadoras de “um sexo assaz convidativo”. (As Hurikao virgens eternas, que toda vez readquirem a propria virgindade logo depois que a podem atingir dimens6es de uma milha por uma milha, A cada abraco cor- e trabalho, nem se fala. Escrevem Bernheim e Stavridés no seu Paradiso Paradisi (Paraiso, parafso), fonte da qual me servi copiosamente a fim de ilus- trar este assunto, no qual aventurei-me: “Alguns contos se referem a refei- torios nos quais € suficiente apoiar as maos para saciar a fome e a sede. Narra-se também sobre uma variedade de dtvores, das quais despontam 70 mil pratos prepatados. Péssaros de todas as cores, grandes como camelos, caem jd assados no ponto, prontos para a delicia dos gourmants. Finda a tefeigaio, os passaros ressuscitam, voam embora, pousam num ramo e entoam um gorjear para a gléria dos beatos. Em outra parte os beatos alinham-se diante do eleito e, um por um, dizem: ‘Oh, santo de Deus, coma-me.” “__.A fruta estd em primeiro lugar na alimentagao, 0 Mi’raj aborda o assunto com tons surrealistas: se desejais um fruto, uma arvore daquela espécie despontara naquele instante, 0 colhereis, 0 saboreareis eis que vos vem a vontade de um fruto diverso. Nao ha problema algum, pois a mudanga efetua-se automaticamente dentro da vossa boca. Um outro modo, numa outra eventualidade, mais direto: 0 consumidor limita-se a olhar o fruto no pé e ja sente imediatamente 0 seu sabor. “,. Quesito angustiante: o que fazer com os eleitos que gostam de tra- balhar? Nao é obrigacdo deles, mas se teimam em querer, tratar-se-4 — como dizia Sale — de um ‘trabalho agreste que possa satisfazer aqueles que possuem tais cismas’. Liberado do trabalho, o eleito discute com os ami- g08, escuta as hist6rias contadas pelos anjos, por Deus, passeia sozinho ou acompanhado por uma das suas mulheres; a pé ou sobre um cavalo alado, ou, melhor ainda, na garupa de um camelo.”” Digitalizado com CamScanner CRIATIVIDADE E ORUPOS CRIATIVOS 9 PROTESTANTES: RESGATE DO MUNDO E CENTRALIDADE DE DEUS Cada cultura possui as sua éticas e os seus paraisos. A cultura protes. tante, aquela que exaltou 0 espirito do capitalismo e 0 mito da eficiéncia, quais parafsos inventou? O protestante devaneia com um paraiso ocioso como o dos catélicos, um paraiso de luxtiria como 0 dos muculmanos oy um paraiso laborioso como aquele que agradaria aos nossos empresérios? O fervor religioso sempre teve vicissitudes alternadas: perfodos, vigoroso em outros. Sob o agoite de monges a Girolamo Savonarola e por emulagiio de misticos dedicados como Tomas de Kempis, o século XV resgatou a espiritualidade e a devogao que hare, perfumado de incenso o mundo medieval e que, em seguida, o Humanismo do Renascimento havia coberto com um véu de terrestre beleza. Reflores- ceram, portanto, as fraternidades, as ordens teligiosas, as Peregrinacées e as festas religiosas; a tal Ponto que os padres e a Igreja encontravam difi- culdade na apropriago dessas formas espontdneas e até mesine antiecle- sidsticas de culto. A atengao dos fiéis deslocou-se do papa e do clero para Deus, epicentro absoluto da vida crista, da nova espiritualidade ede parat- so reformado, no qual a beatitude exprime-se de forma mais sdbria. Ou melhor, dos paratsos: Porque aquele de|Martinho Lutero)(1483- 1546), frade agostiniano, alemao, portador de valores rurais absorvidos no thundo agricola e nos pequenos vilarejos Hos quais crecee, ‘sua familia sriginal, ligetamenteato Calvino (1509-1564),\leigo,~ sufco. filho de uma cidade como Genebra, pleno de valores urbanos fun- dados no capital, no crédito, no em; resariado, na atividade financeira comercial. Diferente, nas nlio a ponte de inboaie e con- templativa descrita por Lutero a materialidade do trabalho e das nossas tarefas cotidianas tao caras a Calvino, A abertura confiante em dirego a0 mundo novamente centralidade de Deus na experiéncia terren: tituem as bases da visio protestante. A i homem ¢ Deus representa o seu corolatio, fragil em alguns rrebatados como valorizado e a 1a € celeste dos individuos cons- intransponivel distancia entre o LUTERO: ;OMOS MENDICANTES STA £ A VERDADE” A iltima frase que parece ter sido escrita “Somos mendicantes, esta é a verdade”, mendicantes que por toda a vida devem se esforgar para glorificar Nosso Senhor, mesmo nas coisas mais simples ¢ humildes, mesmo quando bebem ou comem. Nos seus Discursos Mesa, Lutero reflete varias vezes sobre a vida eterna uma vida imutivel, na qual nao se come, nem se bebe, niio se trabalha e no por Lutero antes de morrer foi: Digitalizado com CamScanner © homem descobre os simbolos e inventa o além a1 se tem nada para fazer porque “estaremos muito ocupados com Deus”, que, holograficamente, “sera tudo em todos”. No céu, os setes humanos vio se tornar novamente fortes e belos, como jé havia sido Addo no Eden; gozardo da presenga de ovelhas, bois e animais de todas as espécies. Até mesmo “as formigas, as cigarras e todas as criaturas desagradaveis e fétidas sero, ao contrario, deliciosas e terio uma maravilhosa fragrincia”.” Para descrever o parafso ao prdprio filho pequeno, Luteto fala de “um pra- zeroso, espléndido, encantador jardim repleto de criangas que usam casa- quinhos de ouro e colhem, debaixo das Arvores, frutas deliciosas: magis, péras, cerejas e ameixas amarelas e azuis. Elas cantam, saltam e sao felizes”. CALVINO: TRABALHO NA TERRA E REPOUSO NO CEU Calvino, por sua vez, escreve que, “inteiramente ocupados na contem- plagao de Deus, os santos nao tém nada de melhor para voltar os seus olhares ou dirigir os seus desejos”. Nessa relaco com Deus, todos os beatos séo praticamente iguais, mas, apesar de todos conservarem o proprio sexo, perderao toda e qualquer diferenga de cardter social: “O mundo teré um fim e, com ele, acabarao 0 governo, a magistratura, as leis, as distingdes de classe, as diversas ordens de dignidade e todas as demais coisas desse género. Nao haveré mais qualquer distingao entre patrio e servo, rei e camponés, magistrado e simples cidadao.” Portanto, nem mesmo para Calvino, certamente o mais “calvinista” entre os fundadores do protestantismo e o mais decidido defensor da importancia do trabalho na terra para obter a salvagdo, nem mesmo para ele as almas beatas no paraiso desempenharao atividades assimil4veis ao trabalho rural ou industrial. Sobre a Terra, para o severo genebrino, a vida urbana que fervilha em suas miltiplas atividades deve ser ancorada, dia aps dia, no empenho espiritual: nao somente através da oragio, mas tam- bém por intermédio do trabalho, que é valorizado e santificado. ‘Aquele que obtém sucesso nos negécios é um predileto de Deus, de ta forma que recebe antecipadamente ainda nesta vida uma parte do prémio celestial. © contrétio, ser pobre e azarado nos negécios, significa ser con- denado por Deus desde j4, aqui e agora, € por isso 0 pobre nao merece aj comiseragiio por parte dos ricos. a ee Depois de terem trabalhado tanto e de maneira tio meritéria sobre a Terra, as almas justas deverdo passar, de alguma forma, 0 longo intervalo de tempo que corre entre a hora das suas mortes € 0 dia do juizo universal. Durante este perfodo, segundo Calvino, a alma repousa, mas nao dorme; e Por repouso € necessario que se compreenda “nao a frouxidao, nem mes- Digitalizado com CamScanner 2 CRIATIVIDADE E GRUPOS CRIATIVOS 8 cl mo a letargia ou qualquer outra coisa que possa Parecer-se com o torpor dos embriagados... mas a tranqitilidade da consciéncia ¢ da seguranga”. Depois do juizo final, a alma beata poderé descansar por toda a eternidade: sera uma unidade com Deus e contemplaré os seus bens com uma intensa alegria “que esta felicidade ultrapassard largamente todas as comodidades que ora nos s4o proporcionadas”. TAMBEM O PARAISO INDUSTRIALIZA-SE Da descoberta do além ~ e a esta altura 90.000 mil anos se Ppassaram desde entao — até o advento da sociedade industrial, na segunda metade do século XVIII, a humanidade continuou a sonhar com uma vida sem morte, sem fadiga, sem miséria e sem dor. Como jé dissemos, nio podendo obter essas condi¢des durante a vida terrena, os seres humanos comegaram a fantasiar sobre a possibilidade de mundos futuros, nos quais as fraquezas fossem, finalmente, transformadas em forgas; & morte do corpo correspon- desse a imortalidade deste mesmo corpo, além daquela da alma; A miséria Correspondesse uma gratuita opuléncia; 4 dor, um prazer sem fim; cansago, 0 écio contemplativo. Quando a confianga humanista no progresso, que havia entusiasmado 0 século XVI, ainda durante o Renascimento, cedeu o Passo A angistia exis- tencial do século XVII, entao protestantes, puritanos, piedosos, jansenistas € metodistas focalizaram toda a prdpria aten¢do nos valores da frugalidade e do sactificio. O austero mosteiro jansenista de Port-Royal-des-Champs con- trapds-se idealmente ao triunfo barroco de Versailles. No seu famosfssimo ensaio, Max Weber descreveu magistralmente essa passagem e a conse- qiiente difusao, tanto da ética protestante como do espirito do capitalismo. Com 0 Iluminismo e com a Revolugao Industrial, as coisas mudam: 0 A Paraiso, conservando as conotacées de imortalidade, de riqueza e de pra-) J @y zer, seré contudo modernizado quanto aquilo que diz tespeito ao dcio, que} ¢.,.18 serd banido da vida dos beatos. O céu, que a sociedade rural havia identi- une? ficado como um jardim fértil, capaz de dar fratos sem requerer fadiga, serif. /,54,. imaginado pela sociedade industrial como uma fibrica produtos sem infligir algum tipo de abuso. Quando o frenético maquinismo industrial conseguiu triunfar na Europa e na América, a tradi¢do anglo-saxa, mais pragmitica ¢ eficientista do que a catolica, rejeitou como um imperdosivel desperdicio a icéia de um paraiso de mandrides, que passam o tempo a “tocar, indolentemente, @ harpa feita de ouro, a recostar-se sobre as nuvens, a vagabundear sem uma meta precisa no paraiso de Deu: © ao ‘apaz de oferecey Digitalizado com CamScanner O homem descobre os sfmbolos ¢ inventa 0 além 83 Iniciada no final do século XVII, a modernizagtio do parafso prosseguiu durante todo 0 século XVIII ¢ culminou no século XIX, paralelamente a Ruvolucio Indastrial, Gottfried Wilhelm (Leibniz (1646-1716),Jpartindo do pressuposto de que a felicidade consiste num “progresso continuo € ininterrupto em diregiio a um bem Sempre maior”, sustenta que os santos "ero motivos para multiplicar infinitamente a propria seatitude” € que, para isso, Serdio obrigadds a um continuo progresso, sem © qual “néio podem existir 0 pensamento e, conseqiientem fem mesmo o_ praze Também fim mmanuel Kant (1724-1804) festava convencido de que, apos morte do corpo, alma continuasse nun progresso sem fim em dire¢ao Aguela inatingivel perfeicao que somente Deus possui._» Na primeira metade do século XVIII, os dois “especialistas do além” com maior crédito — Swedenborg e Watts — atribufram ao paraiso quatro conotagées: variedade, movimento, servigo € mudanga. Emanuel Swedenborg (1688-1772), que nao por acaso era engenheiro, matemitico, cientista e gerente das minas suecas, deu crédito, com os seus bem-sucedidos livros, a uma idéia de um paraiso muito mais ativo do que aquele tradicional: os seus anjos nao se limitavam a louvar e a glorificar Nosso Senhor, a partir do momento em que o simples repouso ¢ a con- templagao isoladamente “no seriam uma vida ativa, mas uma vida ociosa, na qual se tornariam preguigosos”. Por isso, nao podiam recusar-se a exe- cutar uma série de tarefas como acolher e treinar os recém-chegados, pro- teger os vivos ¢ desempenbar fungdes civeis de utilidade publica, enquan- to as jovens bordavam e as mulheres acudiam as criangas. Ainda na primeira metade do s culo XVIII, 0 j4 citado pregador Isaac Watts (1674-1748) descreveu o paraiso como um tour de force, onde as almas, desviando-se de “um estado sedentério de contemplagao inativa” e io divina, esforgavam-se para fazer carreira € diferen- ciar-se das almas concorrentes. Habituadas durante toda a experiéncia ter- rena ao ativismo fatigante dos protestantes, essas almas nao poderiam jamais ter suportado a idéia de se tornarem preguigosas justamente no teu, onde “toda e qualquer ocupagio delicia e todo e qualquer esforgo, u incentivadas pela vis uma alegria”. Modernizando-se, 0 parafso cristo atenuou as suas diferengas com a; tornou-se mais material e mais sensual; mais dina- ativi- respeito a vida terren mico ¢ mais laborioso, assim como mais bem organizado nas su: dades sociais. Influenciados pelo Iluminismo, os tedlogos o transformaram de um lugar de repouso num centro de atividade e de progresso. Além disso, aumentou a divergéncia entre a concepgao cat6lica e a protestante sobre as atividades desempenhadas pelos beatos: enquanto os tedlogos do Digitalizado com CamScanner 84 ERIATIVIDADE E GRUPOS CRIATIVOS protestantismo defendiam uma idéia ativa da eternidade, feita também d, trakatho e de servigo, os eatsicos inclinavamse para una visio sefnnies ociosa do parafso, onde os espfritos se entretinham nos Prazeres da misic 7 do teatro, cas converse ds psscos: equescatin pace (escanse em no ESTUDO, MEETING E PIQUENIQUE No século XIX, no encalgo do progresso tecnoléigico e empresarial, quer os fis da sociedade industrial fossem seguidores do Evangelho do Sur quer os seus criticos fossem seguidores do Evangelho Social, tedos cnn cordavam quanto importéncia da mudanga, do desenvolvimento e do ativismo. Thomas Hamilton, num livro com um titulo la ficgao cientifi- ca, de fazer inveja a Spielberg — Beyond the Stars (Para além das estrelas) -, estava certo de que os beatos nao teriam se limitado a incumbéncias tediosas, mas teriam sido muito mais ativos, passeando com Cristo, como jd haviam feito na Terra os seus discfpulos. Ao trabalho € necessério acrescentar as relagdes sociais com os pa- Tentes, os amigos e os amantes, os meetings, as reunides, as conversas e as discussdes e até mesmo os passeios nos campos e os Piqueniques, dos quais os anglo-saxées so célebres cultores. Aumentam, obviamente, as ocupa- Ges intelectuais, precisamente enumeradas pelo reverendo escocés Thomas Dick, na sua obra The Philosophy of the Future State (A filosofia do Estado do futuro), 1828, na qual um capitulo inteiro é dedicado conexao da cign- cia com o Estado do futuro. Intui-se imediatamente que no paraiso nao sera mais necessdrio 0 estudo dos idiomas, do direito, da medicina, da econo- mia polftica, das artes militares, da caga, da pesca e nem da organizagio industrial. Em vez disso, serio muito cultivadas a astronomia, a matemati- ca, a aritmética, a filosofia natural, a anatomia, a fisiologia e a historia Permanecerao, segundo Dick, as diferengas intelectuais: por exemplo, entre um filésofo experiente e um escravo negro. Mas este tiltimo, es- tudando alegremente, podera contudo recuperar a distancia que o separa do filésofo. ‘ : Na primeira metade do século XIX tiveram uma grande difusio as idéias contidas na obra Physical Theory of Another Life (Teoria fisica de outa v ida), que 0 fil6sofo escocts Isaac Taylor publicou em Nova York em 1836 Segundo Taylor, a vida na Terra nfio é nada mais que uma preparagdo part é fs sno intensa vida ultraterrena. Também no paraiso as almas ni pel de “ociosas contempladoras do onipo uma bem ma poderio se limitar ao frivolo k re tente”, mas continuariio a exercitar a propria coragem, a propria inictativa, ‘apacidade de calcular as a propria ambigio, a versatilidade, a sagacidade, a capaciclade de cal Digitalizado com CamScanner O homem descobre os stmbolos ¢ inventa o além 5 probabilidades, a paciéncia e a diligéncia. A vida de servigo que os santos viverdo no paraiso implica confrontos com adversérios, fungdes de governo, assim como tarefas de guia, socorro e instrucio para com os necessitados. As idéias de Taylor difundiram-se entre os protestantes americanos e ingleses. Em 1857, o pregador batista Charles Spurgeon apregoa, na Inglaterra, contra o écio, seja na Terra, seja no Céu; torce pelo trabalho, considerado uma béngao, um privilégio, uma gloria e um prazer; identifi- ca o Céu como um “lugar de servigo ininterrupto (...) no qual serve-se a Deus de dia e de noite”. Uns 20 anos depois, do outro lado do Atlantico, lhe faz eco o presbite- riano Robert M. Patterson, da Filadélfia, que em 1874 descreve o paraiso como se fosse uma empresa, na qual os beatos obedecem, com diligéncia e prontidao, as ordens de Deus, que os envia a exercitar a justiga em mun- dos distantes. Se 0 d6cio forgado nos entedia mortalmente — como susten- tard dali a pouco Levi Gilbert -, esté completamente excluida a hipétese de que o Céu seja sé um pats do “bem-bom”, ou um paraiso de preguigosos, onde “ninguém quer nada com a dureza”. Chega a vez de Thomas De Witt Talmage, que no Brooklyn, em 1892, isto é, em plena decolagem industrial, garante que o parafso é “o lugar mais laborioso do universo”, que nos reserva sempre “mais éxtase, mais co- nhecimento, mais intercomunicagao e mais adoragao”. O Céu nao vem comparado nem com um calmo subiirbio residencial nem com uma igreja durante a fungao, mas sim com uma grande metrépole. Sempre no Brooklyn, em 1875, o pastor da Igreja presbiteriana David Gregg publica um ensaio no qual sustenta que todas as tarefas desempe- nhadas pelos anjos e pelos santos no parafso so, para todos os efeitos, tra- balho, embora desvinculado das leis de produgao; este perde a sua cono- taco instrumental, tornando-se totalmente expressivo, voltado, como é, para o divertimento, a caridade e a obediéncia a Nosso Senhor. Nos ter- mos atuais, podemos dizer que se trata de um trabalho do “terceiro setor”, liberado da tensio e da alienagaio: “O que eles fazem é um trabalho, mas um trabalho livre da Ansia, da fadiga e do cansago, assim como o bater das asas da cotovia, que alga vo com juibilo na luz de uma jornada fresca e clara e, espontaneamente, para o seu bel-prazer, abandona-se ao proprio canto que ressoa alegremente.”” O MAIS LABORIOSO DOS LUGARES k, o pastor batista William C. Ulyat rebate Em 1901, Nova Yor! " ‘aa See Lo paratso é “0 mais laborioso dos lugares”, aidéiade Talmage, segundo o qua iG Digitalizado com CamScanner 86 CRIATIVIDADE E ORUPOS CRIATIVOS descrevendo a vida ali nos seus mfnimos detalhes: alguns santos governam os palécios, outros prestam assist¢ncia como enfermeiros, outros exercem atividade politica ¢ outros ainda — sozinhos ou em cooperativa — dedicam- se a “ser mensageiros, ensinar, claborar trabalhos artesanais, cantar ¢ tocar instrumentos musicais, conversar ¢ realizar discursos publicos, estudar filosofia, ciéncias e teologia, assim como exercitar-se nas artes criativas”, Com os ensaios de Gregg e de Ulyat, que chamam explicitamente de “trabalho” as atividades desempenhadas pelos santos, a analogia entre paraiso e industria encontra as suas maximas expressées: para Gregg, de fato, o Céu “ressoa com o mesmo zumbido da indkstria’; para Ulyat, é “um lugar de magnificéncia construtiva... Na pratica, é uma oficina” Segundo outros tedlogos, jd 0 esforgo de interceder junto a Deus paraa salvagao dos amigos e parentes é um belo abacaxi, compardvel ao dos nos- sos homens politicos, atormentados pelos postulantes. Em 1917, o professor de Cambridge Henry Barclay Swete desencoraja toda e qualquer esperanga de moleza: “Incorremos num grave etro se asso- ciamos A nossa concepgiio de Céu a idéia de repouso do trabalho. Repousar do esforgo, da fadiga e do esgotamento, isso sim; mas repousar do trabalho, da produgao e do servigo, certamente nao.””” Ainda em 1917, 0 tedlogo americano Walter Rauschenbush chega a afirmar que os cursos de recuperagao adquirirao uma grande importancia no paraiso. Na Terra, escreve ele, uma parcela considerdvel de individuos “€ abandonada a um tal estado de subdesenvolvimento pelo nosso sistema terreno de previdéncia social, que ela merece um curso celeste de recupe- racéio. No Céu serd uma grande alegria ver homens que se retinem na saida das minas ou das lojas, mulheres que deixam a cozinha de restaurantes ou lavanderias repletas de vapores para receberem a educacao superior que lhes é de direito e por tanto tempo negada”.”* Pelo que parece, o industria~ lismo tornou também os sonhos um tanto angustos, limitados. Esse, cronologicamente, 0 tiltimo porto, certamente nao definitivo, da invengao, talvez a mais imaginativa, persistente e conjunta de toda a historia humana. Néo sabemos quais os paraisos que a sociedade pos- industrial sera capaz de elaborar, mas ¢ facil supor que também ela propor i ivo ao qual nenhuma novidades, prosseguindo nesse desafio inventivo ao qual nenhum: mais se subtraiu e que, para sempre, con: Jo de mundos religifio, nenhuma comunidade tinuard a compensar a infelicidade terrena com a inveng supraterrenos eternamente felizes. Digitalizado com CamScanner

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