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PENSAR FOLK GEOGRAFIA RUY MOREIRA Copyright© 2007 Ruy Morei Todos os direitos desta edigio reservados & Editora Contexto (Editora Pinsky Leda.) Foro de capa Jaime Pinsky Montagem de espa e diagramario Gustavo S. Vilas Boas Reviséo Liliana Gageiro Cruz Sonia Cervantes Dados Internacionais de Catalogagéo na Publicagio (CIP) (Cimara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ruy, Pensar e ser em geografia : ensaios de historia, epistemologia e ontologia do espago ‘geogrifico / Ruy Moreira. — Sao Paulo Contexto, 2007, Morel Bibliografia ISBN 978-85-7244-366-1 1, Espaco e tempo 2. Geografia 3. Geografia Filosofia 4, Geografia — Histéria 5. Geografia humana 6, Geografia~ Metodologia I. Titulo D- 910.01 07-4074 Indice para catdlogo sistematico: 1. Geografia : Teoria 910.01 Eprrora ContexTo Diretor editorial: Jaime Pinsky Rua Dr. José Elias, 520~ Alto da Lapa 5083-030 — Sao Paulo — sr Papx: (11) 3832 5838 contexto@editoracontexto.com.br woww.editoracontexto.com.br 2007 _Proibida a reprodusio total ou parcial. Os infratores sero processados na forma da lei ‘Bx wa Nélson Werneck Sodré chamou a atensio, em livro de 1978, para 0 uso leol6gico da geografia pelo capitalismo no decorrer do periodo do colonialismo e do imperialismo. Mas 0 que nele expae, referindo-se A ideologia do determinismo Seogrifico ¢& geopolftica, nem de longe se compara com a manipulacao denunciads por Yves Lacoste (1974 e 1977), Lacoste abre seu livro de 1977 afirmando: Toda a gente julga que a geografia mais nio & que uma disciplina escolar ¢ Uuniversitdria cuja fungio seria fornecer elementos de uma descrigio do mundo, dentro de uma certa concepgao “desinteressada” da cultura dita geral [..] Pois qual poderia ser a utilidade daquelas frases soltas das lig aprender na escola? A fungio ideolégica essencial do palavreado da geografia escolar ¢ universitéria foi sobretudo de mascarar, através de processos que nao sao evidentes, a utilidade pratica da andlise do espaco, sobretudo para a condi da guerra, assim como para a organizagio do Estado ¢ a pritica do poder, E sobretudo, a partir do momento em que surge como “iniitil”, que o palavreado da geografia exerce sua fungio mistificadora mais eficar, pois a eritica de seus fins “neutros” ¢ “inocentes” parece supérflua. E por isso que ¢ particularmente importante desmascarar uma das fungbes estratégias € Senorurat 0s subterfiigios que a fazem passar por simples ¢ imitil (Lacoste, 1977: 3). S que era necessirio sencial Fea necesidade langa um desafio a0s ciemtstas ¢ estudiosos de geopeap Definida como a ciéncia da organizagio do espaco, a geografia até agora negligenci,. seu proprio fundamento de cientificidade. Desprestigitdos por todos quanios preocupam com as questoes da teoria e da pratica da transformagio social, 0s gedigrage nao alcangaram o quanto o desprestigio refletc uma inedmoda realdade, Fles ns, perceberam que o que Ihes falta é por os pés no seu préprio chao, ¢, entao, Propor tuma teoria do espaco que seja uma teoria social. Os termos da questao Lacoste intitulou seu livro A geografia serve antes de mais nada para fzey 4 uerra. Diriamos, alargando o significado desse enunciado, que a geografia, atrayg, da anilise do arranjo do espaco, serve para desvendar mascaras sociais, opiniao que por detras de todo arranjo espacial esto rclagoes socia histéricas do presente sao relagoes de classes. Com isso, afirmamos que espaco € histéria, estatuto epistemoldgico sobre 9 qual a geografia deve erigit-se como ciéncia. E tal nogao reside na mera constatacgg de que a histéria desenrola-se no espaco geogrifico, mas, antes de tudo, de que g espaco geogrifico é parte fundamental do processo de producao social e da estrutiry de controle da sociedade. Compreendido como reuniao de dois processos articulados que sio vitaisanilise de uma formacio econdmico-social — 0 de producao social ¢ 0 de controle de suas instituigdese relagdes declasses—, 0 espago éumaentidade de rico tratamento cientifico, processo formador do espaco gcogrifico é o mesmo da formasio cconémico- social. Por isso, tem por estrutura ¢ leis de movimento a propria estrutura ¢ leis de movimento da formacio econémico-social. Podemos, com isso, doravante designar © que até agora chamamos de organizacao do espago por formagao espacial, ou formacio sécio-espacial, como propés Santos (1978). Confundindo-se com a formagao econémico-social, a formacao espacial contém sua estrutura e nela esta contida, numa relagao dialética que nos permite, através do conhecimento daestruturaedos movimentos da formagao espacial, conhecer aestrutura ¢ os movimentos da formagio econémico-social, ¢ vice-versa. Relacdo que é de fundamental importancia & destinagao do estudo da formagao espacial para o conhecimento da formasao cconémico-social. E.chave da insercao da geografia e dos gedgrafos no campo da teoriae pratica da transformacao social, no sentido da resolucao dos problemas mais candentes de nossa ¢poca ao lado dos demais estudiosos sociais E ficil perceber-se, por exemplo, através de elementos do arranjo espacial (objetos espaciais), a fusio do espaco com as relagées que compéem a estrutura da formacio econémico-social, como a fabrica (relagéo econdmica), o tribunal (relagao juridico- politica) ea Igreja (relagao ideoldgica). Fica evidente, portanto, que tais clementos do arranjo espacial nao se encontram soltos no espago, pois se inserem numa légica de arranjo espacial que reproduz a propria légica do modo de produgao a que pertent c E nossa 8, que nas codices |62| A GEOGRAFIA SERVE PARA DESVENDAR A fibrica moderna, por exemplo, jamais seria um objeto espacial encontrado na paisagem de uma formagio econdmico-social feudal. Qualquer objeto espacial, a exemplo da fabrica, sé pode ser apreendido quando visto no interior da totalidade social de que faz parte. Desligado dessa contextualidade, perde completamente sua expressio ¢ seu valor analitico. Se, por um lado, a presenga da fibrica na paisagem sugere revelagées sobre 0 grau de relacionamento do homem com o seu meio fisico, por refletir determinado estagio de desenvolvimento das forgas produtivas, daf sua auséncia na paisagem de uma formagao espacial feudal, por outro lado, seu significado ¢ papel na dindmica do espago s6 podem ser apreendidos na medida em que se distingam as relagde: sociais que @ originaram ¢ comandam. Assim, desde que conceituado nos quadros de uma tcoria do espaco geogréfico submetido ao rigor epistemolégico necessitio ¢ da compreensio de que a geografia & por origem, uma ciéncia social, por construir-se sobre um objeto de natureza historicamente determinada (o espaco), ¢ que, portanto, scus objetos (os objetos espaciais), como a fabrica do nosso exemplo citado anteriormente, tiram seu significado da natureza da rotalidade social de que fazem parte, perdendo completamente sua expresso quando isolados dessa totalidade, 0 arranjo espacial pode e deve ser transformado numa categoria de anilise, de fundamental valor para aanilise do espaco. E, por extensao, de cada formacéo econdmico-social, como deve ser 0 objetivo da geografia ¢ do gedgrafo. Ora, como vimos que o arranjo espacial € a propria estrutura da totalidade social, ¢ como na base dessa estrutura esté a natureza do processo de reprodugao social, € no conhecimento das leis que regem esse processo de reproducio que deve se apoiar a andlise do espaco. ‘Como, em face da sua natureza, pode-se partir do arranjo espacial para 0 conhecimento das leis da reproducao social, ou vice-versa, hd af uma flexibilidade de alta importincia para o gedgrafo. O importante ¢ que sempre se tenha em vista a nccesséria relagio entre 0 atranjo espacial ¢ 0 contexto social de que faz parte. Objeto e objetivo da geografia espaco € 0 objeto da geografia. O conhecimento da natureza ¢ das leis do movimento da formagao econémico-social por intermédio do espago é 0 seu objetivo. O espago geografico ¢ 0 espago interdisciplinar da geografia. E a categoria por intermédio da qual se pode dialogar com os demais cientistas que buscam compreender 0 movimento do todo da formagao econémico-social, cada qual a partir de sua referéncia analitica. A nogio de espago como chao da geografia ¢, certamente, um tema que perpassa todos os discursos geograficos em todos os tempos, tal como se pode aferit duma simples confrontagao da maneira como os gedgrafos a vém definindo no tempo. |63) PENSAR FE SER EM GOOGRAFIA Os gregos definiam a geografia em seu sentido etimoldgico: como descrigio q, terra, O objeto da geografia seriam os fendmenos da superficie terrestre, mas come, esses tinham sua génese numa escala fenomenolégica que transcendia a epiderme de planeta, suas dimensdes eram césmicas. Essa foi a heranga que se arrastou até o século xvitt ¢ foi desenvolvida poy Estrabio, Ibn Khaldun, Cluverius, Avenarius, cada qual alargando 0 seu campo de conhecimento ¢ esbogando uma primeira sistematizagio da geografia como ciéncia, periodo cientifico que tem lugar no século xvi se inicia, no dizer de Tatham, com os alemies J. R.¢ J. G, Forster (Tatham, 1959). E nesse perfodo que Kant lang, os alicerces da geografia cientlfica, apés leciond-la por 40 anos (de 1756 a 1796) na Universidade de Kénigsberg, arrola os principios que serdo retomados por Ritter ¢ Humboldt no século xix, Durante toda segunda metade do século xix ea primeira metade do século x, por quase um século, o pensamento geogréfico girou em torno de duas matrizes: a escola francesa ea escola alema, multiplicando-se as definiges, em todas as quais 0 espaco est implicito. La Blache define-a como o estudo das regides e Hettner como o estudo das diferenciagées de‘ireas. Delas, Carl Sauer, no Estados Unidos, extrai a definicao deestudo das paisagens humanizadas, nascendo o que veio a chamar-se geografia culeural, talvez pretendendo fugir & dicotomia homem-meio ou vendo na cultura a resposta. Continuador conspicuo da tradigao francesa, George, marxista ¢ militante do PcF até o rompimento em 1956, define a geografia como estudo da organizagao do espago pelo homem, refletindo a influéncia de F. Perroux ¢ de seus trabalhos sobre a economia espacial, particularmente de sua teoria de pélos de crescimento. ‘Nao é nosso intuito tragar neste texto um retrospecto da evolucao do pensamento geogrfico, embora seja nossa opiniéo de que ¢ hoje uma necessidade das mais prementes o desenvolvimento de trabalhos histérico-criticos sobre o saber geogrdfico. Mas queremos ver que se 0 espaco foi sempre o “chao” desse saber, como se explica nio ter sido notado, dotado do minimo tigor te6rico e epistemoldgico usado como inscrumento de conhecimento ¢ transformagio das sociedades? Questées que, para 0 gedgrafos, si0 ainda mais desafiantes quando se observa que o espaco ¢ hoje tema comum nos trabalhos das demais ciéncias sociais, como a economia, a sociologia ¢ a antropologia. Quando se observa, enfim, que 0 espaco foi descoberto pelo capital como instrumento de acumulagio e poder. A geografia é uma ciéncia social Tendo por objeto uma categoria de carder social, 0 cardter cientifico da geografia fica determinado pelo carder doseu objeto. Ora, 0 espaco éessencialmente um entesocial. Pelo que jé se dew a entender, o espaco nao ¢ suporte, substraco ou receptéculo das agées humanas. E nao se confunde com a base fisica. O espaco geografico & um espago produzido. 164] Digitalizado com CamScanner A GEOGRAFIA SERVE PARA DESVENDAR Nele a natureza nao é mera base ou parte integrante. £ uma condigio concreta desua produgio social. E isso porque natureza ¢ uma condigao concreta da existéncia social dos homens. Conquanto a “primeira natureza” nfo seja 0 espago geogrdfico, nfo hé espago geogréfico sem cla. Sobre esse assunto, que merece de uma teoria do espago viva atengao, vale Jembrar que de todos os objetos existentes num arranjo espacial, os de ordem natural sfo 0s tinicos que nao derivam do trabalho social. So valores-de-uso que podem servir 4 construcio de uma sociedade dos homens ou para a produgao de valores-de- troca numa sociedade mercantil. Seja como for, a “primeira natureza” € incorporada ao espaco do homem quando & absorvida pelo processo da histéria humana, Daf decorre que sua importancia geogrifica resulta, sobretudo, do fato de situar-se no proprio amago do carter social do espaco do homem. Sendo esse Amago o trabalho social, a “primeira nacureza” integra a prépria base social da sociedade humana. O espaco como produto social O caréter social do espaco geogrifico decorre do fato simples de que os homens rém fome, sede ¢ frio, necessidades de ordem fisica decorrentes de pertencer ao reino animal, ponte de sua dimensio césmica, No entanto, & diferenga do animal, o homem consegue os bens de que necessita intervindo na “primeira natureza’, transformando-a. Transformando o meio natural, o homem transforma-se asi mesmo. Ora, como a obra de transformagao do meio é uma realizagao necessariamente dependente do trabalho social (a ago organizada dos homens em coletividade), €0 trabalho social o agente de transformacao do homem de um ser animal para um ser social, combinando esses dois momentos em todo o decorrer da histéria humana (Engels, 1978). Decorre disso que a formagio espacial deriva de um duplo conjunto de interages, que existem de forma necessariamente articulada: a) 0 conjunto das interagoes homem-meio; ¢ b) 0 conjunto das interacées homem-homem. Tais interages ocorrem simultanea ¢ articuladamente, sendo, na verdade, duas faces de um mesmo processo. O carater simultineo ¢ articulado dessas interagées pode ser expresso nos seguintes termos: os homens entram em relago com o meio natural através das relagbes sociais travadas por eles no processo de producio de bens materiais necessirios a existéncia. Engels jé observava que os homens entram em relagdes uns com os outros através do trabalho de transformagao da nacureza. Nao haveria relacdes sociais se nao houvesse a necessidade de os homens transformarem o meio natural em meio de subsisténcia ou de a este chegarem por meio do trabalho. Decorre do exposto que é 0 proceso de produgio dos bens necessétios & existéncia humana, no bojo do qual se dao tais interagées, que confere unidade entre eles e com 0 meio. 165) Digitalizado com CamScanner GHEOGRAPIA pensan & SBR EM andlise da formagio espacial confuunde.se de produgio. Ve Som a processo dle producto. Vejamos ig 0 em da Eis por que achamos que (0 anilise do processo do trabalho dentro do mos breves. . _ terra consecuggo des bens de subsistencia humans implica uma imtervengig conse ee ; almente cab a forma de exragio ea seguro |, inici forma de a transformagio crescencemente COMPIONy a onto de vista da Fis a origem da primeira forma de interagoes: 8 aaa merci, Genre que esa consecucio dos bens sa pela forma mals primi, ato mais complexo de transformagio do meio nasurt 6 Pro Hs Cumage transcende ao trabalho individual do homem, sobre: ioe ee da ctescenn complexidade que adquire mais e mais no re 0 processo producto porrein® sesoba dependéncia do emprego de forgas Pro ies a remente mais evoluidae Implica, pois, uma divisio de trabalho, Em cra a o socal, portato Ora, trabalhg social significa otravamenco de relagbes entre 6 omens qu sree prsoag produzir Por exemplo, implica a tarefa de se definir 0 que produait como pedir § modo de repartir a riqueza coletivamente produzida. Imp is poi determinadss relacbes sociais. Fisa origem dasegunda forma de interacao: a relacao homem-homem, Sao rodas essa interagbes que esto na base estructural das formagées expacisi quese sucederam no tempo. E aquelas interagoes sao seu contetido e ponto de origem, O discurso geogrdfico clisico, nao sé lablacheano, apenas vit a primeira forma de interagdo, nao percebendo, ou evitando perceber, que a relagéo homem-meio é, antes de tudo, uma relagio social homem-homem. Nao é de estranhar que essa concepcio de geografia que sé considera a relagao homem-meio tenda além disso a dicotomizé-la, Parece-nos pertinente, por essas razSes, propormos tomar a geografia como a ciéncia de andlise das formas espaciais que transformam as relagdes homem-meio ¢ homem-homem numa dada formagio econémico-social. Nesse sentido, ciéncia de lo homem em seu meio nacura isa $e) Belo anilise da formagao espacial. Espaco social e espago-tempo Todo objeto tem dupla dimensao: a espacial ¢ a temporal. Se os gedgrafos, por forca da tradicao de sua disciplina, nao puderam abstrair a rela¢ao homem-meio no conceito de espago, o fizeram, entretanto, no de tempo. Daf o espago geogrifico ter se tornado, no dizer de Foucault, um espago congelado (Foucault, 1979). Durante todo 0 tempo, os gedgrafos trabalharam seu objeto tendo uma nogio dicotmica de tempo e espaco. Estranhamente, sempre viram a relagéo homem-meio como tempo (porque vista numa relacao com o trabalho), mas raramente como espa{o- Ora, a relacto homem-meio nio é s6 movimento temporal, mas movimento dialético de transformagio rec{proca de contetido ¢ forma, equivalentes de tempoe espago, porque de continuidade e descontinuidade. Esse carter dialético & que ft compreenderas eis de movimentos da relagio homem-meio como formagio «spat! 166 Digitalizado com CamScanner A GEOGRAFIA SERVE FARA DESVENDAR E através da dialética do espaco-tempo que podemos acompanhar os processos ¢ os estdgios de desenvolvimento das formagées espaciais enquanto estigios diferentes da relagéo homem-meio no tempo. Sem ela, a nogio de arranjo espacial torna-se estética, meramente uma estrutura formal da formago econémico-social. Espago e acumulagao ‘A formagio espacial é 0 todo estrutural do espaco produzido. E isso decorre do fato de que os homens suprem suas necessidades convertendo a terra, que Marx denominou sua dispensa primitiva, em vida por meio do trabalho social. Por outro lado, a formagao espacial & a prépria formagao econémico-social em sua expresso espacial, contendo a estrutura ¢ as leis de movimento desta. Retomemos essas duas afirmag6es, a fim de, estabelecendo a unidade necessaria entre base econémica (infra-estrutura) ¢ toralidade social, precisarmos a nosio ¢ 0 significado exatos de tudo isso como modo espacial de produsio. O processo de desenvolvimento das sociedades humanas implica um armazenamento continuo de um arsenal de coisas produzidas pelos homens, como instrumentos de trabalho e conhecimentos, de que eles se valem para reproduzir sua existéncia social em caréter continuo ¢ impulsionar 0 progresso sempre para frente. Os objetos do arranjo espacial ¢ 0 préprio arranjo em seu todo séo exemplos de formas dessas coisas produzidas ¢ acumuladas no decurso infinitamente continuo do proceso evolutivo da historia. Para que a produgao seja um proceso continuo, necessdrio se torna que 0 ato de produzir gere simultaneamente os bens de consumo ¢ os que garantam a continuidade. Como exemplo, que parte das sementes cultivadas seja separada para a reprodugao; que a forca de trabalho despendida pelo trabalhador encontre, 20 lado do consumo, descanso ¢ lazer, indispensdveis & sua reprodugao; que as ferramentas de trabalho surgidas no processo de trabalho sejam reincorporadas a produgao. Assim, cada atividade e cada relagéo se repete no processo da histéria continuamente. Quando o proceso de produgao se repete cada ano nas mesmas proporsées, como ocorre com as comunidades agricolas primitivas e 0 pequeno artesanato, diz- se que ha reproducao simples. Quando o processo de produgio se repete sob uma forma mais vasta, diz-se que hd reprodugéo ampliada, Vé-se, pelo exposto, que s6 existe acumulagao quando a reprodugio pela repetigéo é do tipo ampliado. Ocspaco geogréfico tem uma participagio relevante no proceso da reprodugio, seja na reproducao simples, seja na reprodu¢éo ampliada. Os objetos do arranjo da “segunda nacureza”, tais como prédios, caminhos ¢ lugares de trabalho, ou da “primeira natureza’, tais como gua, solos ¢ jazidas minerais, bem como a prépria disposigao do arranjo, so aspectos daquilo de que se valem os homens para uma ptodusio continua ¢ que Marx denominou de condigées de reprodugio. Digitalizado com CamScanner A reprodugio sé se realiza quando ¢ reprodugio toral da sociedade, Por ist g controle dos meios de reprodugio como os objetos do espago sio matétia de disputa por controle dentro da formagio econdmico-social, No modo de produgio capialista tipo de sociedade em que vivemos, 05 objer, espaciais si0 meios de produgio ¢ reprodusio do capital, ou Sejas velculos por mee dos quais a forga de trabalho operiria, produzindo a mercadoria, produ mais.vai ¢ sua incorporagéo ampliada ao capital. Dessa manecira, seu controle significy 4 priprio controle da reprodugio da sociedade capitalista como um todo © seu yoy a garantia de que servirio & reprodugio do capital. Sendo assim, uma formagio espacial capitalista encerra em seu cerne a lug que travam capital e trabalho ao redor do controle dos meios e modos da reproducig, Primeiramente, porque através dos clementos extraldos & “primeira natureza” 6 aug se garante nao é a conversio da dispensa primitiva cm melos de sobrevivencia dos homens, mas a reprodugio, sob a forma de matérias-primas brutas, do capital circulante. Em segundo lugar, porque através da geragao de condigdes espaciais de reprodugio o que se gera nao sto aquelas condigdes de continuidade da vida sem ag quais os homens nao garantem com regularidade a sua sobrevivéncia, mas q reproducio do capital fixo, Em terceiro lugar, porque através do uso do capital circulante ¢ do capital ixo o que se est gerando nao sio as estruturas de reproducio da vida dos homens, mas a prépria sociedade capitalisca. E porque, em belissimo ¢ inspirado texto, afirma Oliveira: forte Nio pode o Estado solucionar 0 chamado problema de transporte urbano? Pela tamanho do excedente que maneja, pode; mas, se esse excedente provém em parte da producio automobilistica, entao nfo pode. Pode o Estado solucionar © chamado problema da poluigao? Com tanto chao neste pats, parece que se poderia descentralizar a indtstria, principal poluidora; mas o chao da patria nio é chio, é capital. (Oliveira,E, 1977: 75) Espaco e reproducio estrutural Elemento organico da reproducao, o espago € uma componente-chave de qualquer estrutura de sociedade. Esclarecamos. Em primeiro lugar, a sociedade humana teria existéncia efémera ¢ restrita a0 momento de conversio da “primeira natureza” em bens pelo trabalho social, se nfo contasse com uma estrutura de producao duradoura e definitiva. Terminado 0 processo de producao desses bens, a ordem espacial oriunda do trabalho social como origem ¢ condi¢ao, a0 mesmo tempo, de realizagio do valor, se extinguiria. E com ela a constituigao da sociedade. E devido a0 fato de que a ordem espacial rem permanéncia que se dé a reproducio ampliada da sociedade na histéria em carter de existéncia permanente. E vice-versa no sentido da sociedade para o espaco. Fica mais uma vez patente o vinculo existencial entre formagio espacial ¢ formagio 168 | Digitalizado com CamScanner A GEOGRAFIA SERVE PARA DESVENDAR econdmico-social: como a reprodugao ¢ produgio em cardter ampliado ¢ permanente, num continuum, a formagéo espacial ganha um carter de garantia da permanéncia da formagio econémico-social. Em segundo lugar, decorre dessa rela¢ao com o processo da produgio-reprodugio social a relagao bésica de correspondéncia entre a formagio espacial ¢ a formacio econémico-social, Produzida simultaneamente e pelo mesmo processo de produgio da formagao econémico-social, a formagao espacial exerce papel dialético fundamental na dinamica da formagao econémico-social como um todo, numa relagio de correspondéncia necessétia, ja que € dela resultado e condigao de reproducao. Mas a relagao de correspondéncia basica, a que estudamos primeiro, é 0 fundamento da correspondéncia necesséria, a segunda, vinculando entre si a formagio espacial ¢ a formagio econémico-social, com a relagao de base orientando a relacao do todo. Dito de outro modo, se a formagio econdmico-social organiza a formacio espacial em se organizando, estrutura a formagao espacial em se estruturando, origina a formagao espacial em se originando, transfere para ela as suas leis de funcionamento eseus movimentos, isso tudo ocorre também no sentido inverso, da formagao espacial para a formagio econémico-social. Acompanhemos mais de perto esse processo de reciprocidade de influéncias entre base e todo que se verifica em decorréncia da telagio de correspondéncia constitutiva entre a formacio espacial e a formacao econémico-social. A ptodugio de bens € feita em razio das necessidades de consumo, realizando- se tanto a produgo quanto 0 consumo segundo as leis historicamente determinadas da sociedade préprias & natureza de cada modo de producéo. Como 0 montante dos bens oriundos do processo de produgao desaparece sob 0 ato do consume, o proceso de produgao se repete continuamente, isto é, se reproduz sempre. Coloca-se, aqui, a questo das articulacGes das instdncias que qualificam como formagao econdmico-social uma dada sociedade, ¢ assim delas com a formagio espacial em termos de totalidade na historia. Dependendo da posigao em que os homens se coloquem em face da propriedade dos meios de produgao (meios ¢ forga de trabalho), as relagdes de produgio serio relages sociais entre proprietétios iguais ou nao, surgindo, no segundo caso, uma estrutura social de classes, que comandard 0 processo da formacao econémico-social como um todo. Assim, numa formagao econémico-social desse tipo, toda vez que no processo de produgio se reproduzirem as relagdes econdmicas existentes, com a reprodugao destas estard se reproduzindo a prépria estrutura de classes em geral. Ora, para que tal encadeamento de reprodugao realizado no nivel da infra-estrutura econdmica se faga sem risco de ruptura na continuidade da produgéo, surge a superestrutura com suas relagdes sociais jur(dicas, politicas, ideolégicas € culturais para garantir as relagdes da base. Mas o fendmeno da reprodusao &, como observa Lefebvre, um processo liderado pela forma de relagdo que no momento tenha o primado dos movimentos da histéria, 169] Digitalizado com CamScanner sen eM 6 pensan t lagdes sociais de todos os nivgi ree Had outs (Lefebvre, 1973), Des rant © proceso reprodutivo realizado py; form 0 espago ese arFanjo ate come cy mos pondo em realce é que todg movi beg aan numa dialtica 7 We ny cc se determinam continu: formagio espacial s¢ rea! i bmi fi iedade -,¢ 0 que esta fo dasociedade-, €0.queest ondo em realee équ s de eprodoio aesamento das Felagoes ccondmicas € das reas super M resultante do at a odo movimentos separados entre si ¢ entre a formasig as no todo nao co po reagiosuperestrturl atranjoideoldgico-cultualejmn coe eee assim, a nogao inicial de correspondéncia entre o espago Ens) Fe duo da sociedad, que ancriormente denominamos nga? oe eacs ses eseu equivalence ma tlagfo de corespondnciangraa® con Toducia « Reprodugao espacial e estruturas de relagao Se observarmos uma quadra de ae de saldo, notamos que 0 arano uz a regras desse esporte. Basta aproveitarmos a mesma quadra ¢y es connie espacial do futebol de saléo, do volei, do basquete ou " handebol uns sobre os outros, cada qual com “eis” préprias, para notarmos que arranjo espacial de um diferiré do outro no terreno. Diferiré porque o arranjo espacial, 20 se confundlir com as regras do jogo, segue as regras de cada um dos espone, citados. Se fossem as mesmas as “leis” para todos eles, o arranjo seria um s6, Naruralmente quea transposigfo do exemplo da quadra de esportes parao que core com a formacio espacial implica alguns cuidados, como de resto deve acontecet com a analogias. Naosetratade uma diferencadeescalas, apenas, mas de natureza qulitativament distinta entre a quadra e a formagio espacial, embora possamos falar da quadra como de uma formagéo espacial. Masas regras do esporte sfo regras simples e quase mecinicas,com intuitos de repetigies de jogadas de reduzidas margens de variagdes. As leis de uma formagio econémico-social sio de uma ordem de grande complexidade, porque'se referem a movimentos determinados historicamente. Confundindo-se com estruturas complexss eenquadradas no tempo histérico, e nfo no tempo sideral como o da quadra, a formagio espacial tem uma estrutura complexa e submetida ao tempo histérico. O modo de reprodugao espacial Uma formagao econdmico-social tem uma estrutura total formada pelo atravessamento de trés niveis de relagdes (instincias); uma infra-estrucuta (@ instancia econdmica) ¢ duas superestruturas (a instdncia jurldico-politica ¢ ¢ instincia cultural-ideol6gica) 170) Digitalizado com CamScanner \ GROGRAFIA SERVE PARA DESVENDAR Essas trés instincias permeiam-se, formando uma totalidade social tinica ¢ a0 mesmo tempo diferenciada. Embora no interior dessa totalidade guardem certa autonomia, no se pode falar de trés, exceto em beneficio (ou deformagio2) da anilise cientifica. Projetando-se umas sobre as outras, cada qual contém as demais, de modo que um fendmeno social qualquer é, 20 mesmo tempo, econdmico, juridico- politico e culeural-ideolégico. Tal concepgio de unidade decorre da prépria concepgio de toralidade social, que nio deve ser entendida como uma combinagio de partes ou um todo articulado de partes. Uma total stema, é um todo confundido com as partes, sendo cada parte a forma especifica como se manifesta o movimento multfacetado do todo. Assim, o Estado, por exemplo, nfo & uma parte da formagio econdmico-social, mas manifesta, sintedzando essa “parte”. O raciocinio. oimesmo paraa cultura, a polls, a ideologia ou a economia. E a adverténcia de Lefebvre O espaco é a sintese projetiva desses trés niveis de relagao, sendo todas clas — espago de modo diferenciado ¢ simultaneamente justamente por seus arranjos. Podemos, no entanto, visualizé-las como estrucuras individuais, a fim de analisarmos © peso de regulacao de cada qual no processo da reproducio da formagao econdmico- social através dos arranjos do seu espaco. éum s Expaco e instancia econémica (0 arranjo espacial econémico) A articulagao do espago como instancia econdmica se expressa visualmente na forma do arranjo espacial econémico. Tal arranjo é, em esséncia, o resultado de como se exprimem no 4mago da instincia econémica as forcas produtivas e as relagdes de produgao. As forgas produtivas articulam a forca, os objetos ¢ os meios de trabalho. Os meios © 05 objetos de trabalho constituem os meios de producio, as forgas produtivas distin- guindo-se em forca de trabalho e meios de produsio, vistas sob esse novo prisma. Somente quando a forca de trabalho pée os meios de producéo em movimento é que as forcas produtivas se unificam e ganham vida como um todo, efetivamente atuando como forcas. O espago atua assim como forga produtiva sob dupla forma: como objeto de trabalho (0 arranjo natural do arsenal primitivo) e como meio de trabalho (o arranjo social produzido pela acumulagio). No primeiro caso, como “primeira natureza”. No segundo, como “segunda natureza” ou espago produzido. Enquanto objeto de trabalho, a insergéo do espago se faz. por intermédio dos seus componentes de ordem natural, seja sob a forma de matérias-primas, seja semi-elaboradas. Enquanto meio de trabalho, essa insergdo se faz por intermédio dos seus componentes histéricos, isto é dos objetos espaciais nele gerados, organizados ¢ acumulados pelo incessante processo da reproducao ampliada. Vimos que ¢ isso que o faz surgir nas formagdes econémico-sociais como condigéo de reprodugao das relagdes da sociedade. As relagées de producao articulam o conjunto das forgas produtivas. As forgas produtivas agem combinadas com as relagées de produgio, havendo ai uma I71] Digitalizado com CamScanner PENSAR H SHR EM GHOGRAPIA contradigao, As relagées de produgio regulam ¢ controlam 0 movimento de conjunto das forsas produtivas, coordenando-as como meios de reprodugao « liberando ou bloqueando a continuidade do seu desenvolvimento. De forma que se contraditam o grau de desenvolvimento das forgas produtivas ¢ 0 cardter de controle das relagées de produgao. Nas condigées do modo de produgio capitalisca, que até aqui temos considerado, as forgas produtivas se encontram em um alto grau de desenvolvimento, 0 que implica dizer uma relagio do homem com o meio fisico caracterizada pela forte presenga técnica do homem. Como tudo isso significa uma ampla divisao social territorial de trabalho, é aqui que entram as relagées de produgao. As relagées de produgao expressam-se a partir da relagao de propriedade: a forca de trabalho, ¢ somente ela, pertence ao proletariado, o qual tem que levé-la ao mercado para vendé- lac em troca adquirir meios de subsisténcia; os meios de produsao (objeto ¢ meios de trabalho) pertencem & burguesia, que nada podendo fazer sem a orca que os transforme em forgas produtivas, compra a forca de trabalho do proletdtio, para, fundindo a totalidade das forgas produtivas em suas mos, lev4-las a produzir mais- valia. Assim, “o chao é capital” ¢ a formacao espacial tem sua estrutura ¢ movimentos coordenados pelo entrechoque da relagao de propriedade, capitalista no caso. As relagdes de propriedade se metamorfoseiam dentro do movimento de producéo capitalista, assim se diferenciando ¢ se multiplicando em outras formas como a relagao de trabalho (divisio social e técnica), a relagio de trocas, a relagao de reparti¢ao da riqueza socialmente produzida, a relagéo de consumo, todas elas complexificando ouniverso das relagdes de produgao. E sao essas relagbes de producao que configuradas como espaco, a exemplo da divisio territorial do trabalho ou da escala dos mercados, fazem do espaco uma instancia de regulagdo das relagées societérias por exceléncia. De modo que sao as relagées de produgao que dao ao arranjo do espaco toda a complexidade estrutural ¢ de formas que conhecemos. Podemos, entéo, imaginar um arranjo espacial econdmico numa formacao econémico-social capitalista, imaginando 0 mapa desse arranjo: aqui uma drea industrial, acolé uma drea mineira, localizada mais além, ¢ entre esses espacos, uma 4rea urbana, no derredor, arrumadas em citculos concéntricos cidade, areas agricolas, encerradas por dreas de pastagem, tudo interligado por uma rede de comunicagées € transportes que parte do centro urbano e por este € integrada como uma sé unidade de espaco. Podemos imaginar esse arranjo como uma porgao, por sua vez, de um espaco de escala mais ampla, no qual intimeras outras porgGes de arranjo igualmente simples ou mais complexo se articulam numa sucesso de hierarquias, definidas em termos de desiguais niveis de equipamentos tercidrios, numa relagio de dominancias em que cada cidade maior engloba outra, até atingir-se um espago total que ¢ 0 espago hierérquico de uma metrépole. Surge assim a instancia econémica enfeixando earticulando a totalidade social a partir de uma densa, hierérquica e ramificada rede de relagdes que cobre todas as porgdes ¢ atinge todos os objetos do arranjo. |72| Digitalizado com CamScanner GROGRAPIA SERVE PARA DESVENDA® Um arranjo assim poderia estar confundindo-se a uma formagio econémico- social altamente desenvolvida ¢ composta por: a) uma densa divisio territorial do trabalho, representada pelas diferentes fases do circuito do capital dentro do espectro econémico (capital industrial, capital agrério, capital tercidrio, capital bancério), isto é, por sta divisio em setores ¢ respectivas ramificagdes; ¢ b) diferentes niveis de articulagdo ¢ integragio internas das forgas produtivas, significando os diferentes niveis da taxa de composicio orginica de capital. ‘Ademais, como 0 espaco capitalista ¢ um espago de relagdes contraditérias, porque comandado pela lei do desenvolvimento desigual ¢ combinado, o arranjo espacial econémico compreenders intimeras desigualdades. As porgées que atuarem como locus da acumulagio, em particular a metrépole central, sao aquelas na qual a riqueza iré se concentrar; as porgdes que atuarem como lacus de produgio e perda de excedentes sio as que mais irio empobrecer. Locus de riqueza e locus de pobreza, cada uma das porgdes do arranjo reproduz, ao seu feitio, aquela lei bésica do movimento, Basta olharmos o arranjo espacial de uma cidade para vermos na sua 1 divisio social nos bairros e areas de residéncia em que residem classes diferentes. Sendo a estrutura da formacio espacial a propria estrutura da formacao econémico-social, mais importante é0 que revela o visual da paisagem: a desigualdade espacial & a propria desigualdade da sociedade que nela se representa. Expago e instancias superestruturais (os arranjos espaciais superestruturais) Todo esse racioc! inscincias superestruturais. Masaqui como um reforco do cardter regulatério do espaco. A forte integragao que ha entre as instancias juridico-politica e ideolégico- cultural, sobretudo em face da onipresenca crescente do Estado nas sociedades modernas, desaconselha separé-las. O que dé razo a Foucault, quando este observa que “se quisermos perceber os mecanismos de poder na sua complexidade e nos seus decalhes, no poderemos nos ater unicamente & andlise dos aparelhos de Estado” (Foucault, 1979: 160). Todavia, talvez se possa falar de um arranjo espacial juridico- politico ¢ de um arranjo espacial ideolégico-cultural em tetmos de paisagem, se tomarmos nodes como as propostas por Althusser de aparelhos repressivos e aparelhos ideol6gicos de Estado (Althusser, 1974). De qualquer modo, os objetos de arranjo de cada um desses aparelhos sao visiveis, individualizaveis e identificaveis na paisagem. Surgidas, sobretudo, para o fim de regulagio da inscincia econdmica, regulagio que jé comesa dentro da infra-estrutura econémica com as relagSes de produgio, as instncias superestruturais mobilizam cada vez mais o espago como via de controle de eventuais conflitos trazidos aos processos econdmicos pelas préprias contradigées cstruturais do sistema. ‘Temos exemplo disso na histéria brasileira, em que integram completamente, Quando a crise do modelo econdmico foi explicada como tendo sido gerada pela crise do petréleo, interveio o Estado com ovplanejamento do io aplicado & insténcia infra-estrucural se aplica também as s duas instincias se 173] Digitalizado com CamScanner PENSAR BE SER EM GEOGRAFIA cspago como medida de solugio: romando em conta arranjo espacial de consumo de combustivel existente, os postos de gasolina permaneceriam abertos nos fins desemana, guardada umaadequada distincia entreclesedelescom oscentros urbanos. Essearranjo regulou o acesso ao combustivel e manteve seu consumo dentro dos limites. O aarranjo espacial juridico-polttico Dizia-se na formagio econémico-social persa antiga, dos tempos de Dario 1, uma formagio econémico-social tribucéria, que “os sétrapas sao os olhos ¢ os ouvidos do rei”. Nada mais revelador do carster jurfdico-politico de um arranjo espacial, um arranjo moldado sobretudo pelo Estado. corre que os propésitos desse arranjo revelam bem aarticulagao que existe numa formagiio econémico-social entre essa instincia e a instancia econémica. A conquista de tum territério extenso formado pela anexagio militar de territérios de outros povos tinha por finalidade a cobranga de tibutos. A par de garanti a cobranga regular dos tributos, arranjo em satrapias visava garantir o exercicio da dominagéo eo controleda integridade do império. A férmula encontrada foi a criacéo de uma malha politico-administrativa dividida em satrapias da qual nao escapasse qualquer parte do espaco sob dominio persa. Com base nessa malha, os aparelhos de Estado jurfdico-politicos eideolégicos puderam ser estrategicamente distribuidos: os satrapas (governadores), os organismos de triburacio, os contingentes militares de ocupacio, as estradas ¢ 0 correio a cavalo. Exemplos como esse se multiplicam na histéria. O que hoje de novo haveria seria a multiplicagao de aparelhos juridico-politicos voltados para as necessidades de controle especificas do modo de producio capitalista, um modo de producdo mercantil por exceléncia. Jé vimos como Lacoste refere-se & intervencio do que denomina de Estados maiores militares ¢ financeiros, orientada cada vez menos pelo espontanefsmo e com objetivos os mais variados: regulacio das relagées entre classes ¢ segmentos de classes sociais; dominio de instituigées ¢ nagées; conquista militar, politica, cultural ou econdmica de tertitérios; alocacio de capitais interessados em répida circulagio; provimento de maior “racionalidade econémica” aos investimentos. Fendmenos que ocorrem no interior de espagos mais vastos que jamais sonhou Dario 1. O arranjo espacial ideoldgico-cultural Objeto secular de uso ideoldgico, por meio do qual a maioria das pessoas forma sua visio de mundo, se nio sua visio global, o espago geogréfico tem seu arranjo fortemente confundido com essa instancia, Oarranjo espacial ideolégico contém as instituigGes pelas quais os valores circulam, se reproduzem ¢ sio assimilados dentro da sociedade, como a familia, a escola, os centros culturais, a Igreja, 0s asilos, os cdrceres. E no interior desses espagos sociais que os valores setornam concretos, Espacos especfficos, cada qual é uma sintese do todo, presctevendo, segundo a ideologia dominante, as nogdes de mundo ¢ hierarquia, Tais nogGes seguem \74] Digitalizado com CamScanner Ad GEOGRAFIA SERVE PARA DESVENDAR uma escala de espago que vai do mais especifico ao mais geral, como: o espaco familiar, seguido do espaco do Estado-nagao e encimado pelo espago césmico; ou, num outro circuito: 0 espago empresarial, 0 espago estatal ¢ o espaco mundial, E interessante a mancira como o arranjo espacial idcolégico-cultural se organiza em fungio da nogio de patria, que, numa hierarquia de discurso ideolégico, vai do bairrismo ao nacionalismo. Mas a fasio do espago com a ideologia & mais dinamica sob os interesses do capital. Anderson observa que ha crescente interesse do Estado ¢ das instituigées pelo controle da qualidade do meio ambiente, saientando o cardteridcolégico daquilo que veio a chamar-se crise ambiental. Se nos lembrarmos do que ficou dito anteriormente, que os homens relacionam-se com 0 meio fisico através de suas relagées sociais, veremos que Anderson tem toda razio (Anderson, 1977). A crise ambiental entra em cadeia com a crise urbana e com a crise demogréfica, esta provocada por uma explosio demografica. Em todas essas crises, 0 arranjo do espaco étomado como um piv6, jé que est em causa 0 “acelerado consumo ¢ esgotamento dos recursos naturais em face do progresso ¢ das necessidades humanas crescentes com 0 aumento acelerado da populacdo mundial”, como diz George (1973a: 115). Citando Goodman, lembra ainda Anderson que na arquitetura hé ideologias estéticas, com ele concordando Castells quando afirma que nao hé espago mais ideologicamente construfdo que 0 espago urbano (Castells, 1983). Sabemos que explorando paisagens por elas mesmas elaboradas, as grandes empresas imobilidrias promovem a fusio do espago com a produgio de ideologias, seja sob a forma da estética arquitetdnica dos “Barramares” ou sob a forma ecoldgica da terra do “sol, sal ¢ montanhas verdes”, como é apresentada ao turista a cidade do Rio de Janeiro. A formagio espacial como teoria e método AA formasao espacial é um conceito de totalidade que pode ajudar os gedgrafos em sua tarefa de analisar as formas de organizacao das sociedades nos diferentes tempos da hist6ria. Repensar a geografia a partir da formagao espacial como categoria de desctigéo € anilise da formacéo econémico-social é uma perspectiva que nos parece capaz de abrir caminhos. Nota Marx que devemos buscar aprender a esséncia nas aparéncias. Entendemos com isso que se deve apreender as leis internas (a esséncia) que governam as formas, as estruturas, Se as formas sao as aparéncias, parece-nos que se encaix 4 nogao de arranjo espacial que vimos usando neste trabalho. Entendemos por arranjo espacial uma estrucura de objetos espaciais, uma localizacao-distribuigao organizada de objetos espaciais, uma toralidade de objetos cstruturada em forma espacial. Daf seu papel a um sé tempo descritivo e analitico. 175| Digitalizado com CamScanner PENSAR £ SER EM GBHOGRAFIA © pape da anise espacial estaria em apreender aslcis que regem a formasio egy, ceu todo e suas partes, a partir da descrigio ¢ andlise do arranjo espacial . Pacial, 1 €Vicenvers, Harnecker propée que . te) para se chegat a definir umm objeto & necsstio ser capar de deel unde ou a forma de organizagio dos elementos que srvem nur an momento para descrevéla, Pode-se descrever uma sociedade; podem exeiplo, dizer que em toda soiedade exstem indistis, campos euler cori, excl, exército, pola, leis, correntes idcodgias, cc: po organizagio destes elementos em diferences estruuras(econdmica, juin? police e ideolgia) ea definigo do papel que cada uma dessa enn desempenha na sociedade, nos permite passar da descr 20 conhecimer’ de ums realidad socal, estabeleceras leis de seu desenvolviment , orn” 4 possibilidade de dirigi-lo conscientemente. (Harnecker, 1978; 13) °°" Lembra por sua vez. Lefebvre: A anilise que distingue os fatos, as formas, os aspectos ¢ os momen desenvolvimento, deve também preparar a sintese determinando as gage internas que existem entre esses elementos. (Lefebvre, 1969b: 199) t0s de um E € ainda Lefebvre que, observando que a investigacéo somente ultrapassa 9 nivel do empirico quando norteada por uma teoria calcada na nogao do todo, diz: Esta nogio do todo desempenha papel primordial, tanto metodologicamente como teoricamente. Ji sabemos porque. A realidade que temos de compreender, na natureza tanto como na vida social, apresenta-se como um todo. (Sé depois da andlise das partes, diz,] s6 entéo vem a exposigao do todo, do conjunto, (Lefebvre, 1969b) Sao reflexdes sobre 0 método, vilidas para 0 método geogréfic valorizagao descritivo-analitica da nocao do arranjo espacial. que propomos é a construgio de uma teoria do espaco que se fundamente em ués categorias de totalidade, que sao trés facetas de uma mesma realidade, todas orientadas no sentido do arranjo espacial: a formagio econdmico-social, 0 modo de Producao ¢a formacao espacial. O conceito de formagio espacial passa pelos conceites de formagao econdmico-social e este pelo modo de produgio, e mais ainda pela forma como se articulam esses. ltimos, e vice-versa. A formagao econémico-social ¢ 0 modo de produgio definem-se como uma totalidade social, a formagao econdmico-social é uma totalidade concreta, a0 passo que 0 modo de produgao é uma totalidade social abstrata. A formagio econémico- social é um conceito complexo ¢ impuro, ao passo que o modo de produgio é um “conceito puro, ideal, que permite pensar uma totalidade”, observa Hamecker (1978: 16). Tanto um quanto outro sio conceitos que se constroem sobre relagses de produgio historicamente determinadas. Assim, diz, o modo de produgio fundese em relagbes de producio homogéneas, a formagio econémico-social funda-se (ot , a partir da 1761 Digitalizado com CamScanner A GEOGRAFIA SERVE PARA DESVENDAR no) em tipos de relagées de produgio heterogéneas, articuladas sob o dominio do tipo mais avangado. Desse modo, o certo seria dizer-se “formagao econdmico-socal com dominante [..]” (Althusser, 1974). Nao se pode separar os dois conceitos, Por iso, afigura-se set-nos vilido 0 conceito que Amin prope de formagao econdmico- social como “um complexo organizado de modos de produigio” concreta, organizada, caracterizada por um modo de articulacio & volta deste de um conjunto com esto submetidos” (Amin, 1976: 12). A forma espacial, por sua vez, » isto é, “uma estructura produgéo dominante e pela plexo de modos de produgio que a cle pode ser entendida como uma “tépica marxista’, para comarmos, talvez apressadamente em termos tericos e epstemoligicos, nio de todo sem validade metodolégica, em um texto que se propée socializar reflexdes do auto, a expressio cunhada por Althusser. Qual sea“... um dispositivo especial queassinala em determinadas realidades seus lugares no espaco”, ou “..J um sistema articulado de posig6es (lugares) comandadas pela determinacao do econémico em tikima instncia? (Althusser, 1974; 26). A formacéo espacial é entéo, a propria formagio econdmico-social espacializada. A estrutura que regula e assegura por meio de uma dada ordem de arranjo a propria formago econdmico-social na histéria, Parece-nos, abreviando um tema controverso ¢ trazendo-o para o terreno da reflexo que estamos desenvolvendo, que a articulacao dos trés conceitos, vistos como as categorias mais gerais de andlise das interagGes humanas a partir do arranjo do espago, aqui proposta, envolve a observancia de alguns pares dialéticos fundamentais, tais como: Concreto-abstrai andlise de uma formagéo econdmico-social envolve 0 confiecimento do mecanismo geral de funcionamento dos modos de produgdo que acompéem. Assim, por exemplo, a andlise de uma formagio econémico-social com dominance capitalista implica o conhecimento dos mecanismos gerais desse modo de producéo e de cada um dos dominados. Sé assim se pode captar as articulagées ¢ a complexidade do todo. Expago-tempo) O que dé concretude & formagéo econdmico-social ¢ 0 espago. Contuds, vimos que 0 espago sem a dimensio tempo é um “espaco congelado” (Foucault, 1979). Do mesmo modo, pensar um modo de produgao apenas pelo prisma do tempo, a-espacialmente, é produzir uma histéria de generalidades, que esconde as diferencas das formagGes econdmico-sociais. A nio-espacializagio da historia produz erros, como aquele observado por Amin de que, nao se vendo que o modo de producio feudal foi um fenédmeno restrito espacialmente a uma porgio do continente curopeu, foi-lhe dada uma universalidade planetétia que nao teve. Dai as discussbes hoje de modo de produgio asitico (tributério). Continuidade-descontinuidade)O modo de produgio é uma descontinuidade no €spago que nos permite uma outra periodizagéo do tempo. Quer nos parecer que a formagao econdmico-social ¢ uma integragio de tempos histéricos desiguais, ¢stratificados no interior de uma mesma temporalidade e articulados sob 0 modo de \7\ Digitalizado com CamScanner PENSAR f SER BM GHOGRAFIA produgio mais desenvolvido. Data formago espacial exprimir-se como uma unidade articulada desieas de espagos diferenciados, formando uma “territorializagao” de mods de produsio distintos, diferenciagéo espacial esta que se torna “desenvolvimento, dcsigual e combinado” se 0 modo de produgio dominante for 0 capitalista. ~~ Duas propostas nos parecem pertinentes& passagem do nivel deabrangéncia mais geral das categorias da formagio espacial, formagio ccondmico-social c modo de producio para o conhecimento do real pela via da intermediagéo do arranjo espacial. Harecker prope que, sendo as rlagées de produgio o “nticleo estruturador” que explica o tipo caracteristico de articulagio das distintas instancias (estruturas regionais) e determina qual delas terd o papel dominante, (das totalidades sociais} devemos comegar diagnosticando que tipo de relagées de produgio existem, como se combinam, qual é a relagio de produgio dominante, como exerce sua infludncia sobre as relagbes subordinadas, A partir dat, explicar o conjunto, sem negara autonomia relativa das estruturas regionaise sem deixar de vera estrutura econmica como determinante em dima instincia, (Harnecker, 1978: 15) Amin propée que, jé que uma totalidade social se organiza em fungio da produgio e expropriagio de excedentes, a andlise da totalidade deve organizar-se em torno da forma pela qual é gerado o excedente caracteristico dessa formagio, das transferéncias ¢ da distribuigao interna desse excedente centre as diferentes classes ou grupos que deles se apropriam. Como uma formacao econémico-social é um complexo organizado de virios modos de producio, o excedente gerado nessa formacio nao ¢ homogéneo. Existe uma adigao de excedentes com origens diferentes. Uma questio essencial é a de saber em determinada formagio concreta qual modo de produgio & predominante, «. portanto, qual é a forma predominante de excedente. Uma segunda questo ¢ saber em que proporcio a sociedade vive do excedente gerado por ela propria ¢ do excedente transferido com origem em outra sociedade, ou, dito em outra forma, qual a importancia relativa que nela ocupa o comércio a longa distancia. (Amin, 1976: 13) Convém lembrarmos que Amin debruca-se sobre 0 que denomina “formages is periféricas”, como é 0 caso da formagio econdmico-social brasileira, uma formagio com dominante capitalista (ou com diferentes estéigios de desenvolvimento do capitalismo). Parece clara a combinagio das duas propostas, de Harnecker ¢ Amit compreensio do processo de produgio ¢ expropriagio dos excedentes, & preciso conhecer as relagées de produgio existentes na formagio. E vice-versa. arranjo espacial é a categoria da passagem. Ele é a ponte de unio entre a formagao espacial, o modo de produgio ¢ a formagio econdmico-social. E pela qual a descrigio da formagio espacial abre para a leitura do modo de produgio ¢ desta para aandlise da formagio econdmico-social. O ponto do comego ¢ 0 objeto espacial. A sua visualizagio na paisagem, A verificagio da natureza do seu contetido remete X soci ara a 178] Digitalizado com CamScanner A GEOGRAFIA SERVE PARA DESVENDAR estrutura imediata de que faz parte, a exemplo da fabrica para a estrutura ccondmica, ¢ para o feixe de relagdes que vive dentro dessa instincia estructural. Com cle a dimensio cartogrifica da formagio econdmico-social ja aparece desde 0 comeso. A localizagio do objeto na paisagem dé o mapa espacial da formagio econdmico- social. E assim se tem do principio ao fim a feigéo geogréfica do estudo do modo de producao ¢ da estruturagao que este confere & formacao econémico-social que € necessétia a0 trabalho do gedgrafo. De modo que lendo a formasio econémico- social através da formagéo espacial, desde 0 inicio a formacio econémico-social se expressa como formagio espacial, acontecendo a transfiguragao reciproca que se deseja: a de se ver uma vendo a outra. Resta lembrar que 0 proceso de tcorizacéo sé ganha concretude ¢ vigor se realizado no interior da praxis. Nota “Trabalho escrito a partir de intervengio em mesa-redonda sobre as tendéncias da ciéncia geogrfica realizada no: Congresso Interuniversitirio de Geografia, da Unio Paulista de Estudantes de Geografia (Upege), Presidente Prudente, em outubro de 1978. Foi originalmente publicado nas revistas Tertéro Livre, nl, feveriro de 1979, da Upege, ¢ em Encontros com a Civilzagao Braslcna, n. 16, em novembro de 1979. 179] Digitalizado com CamScanner

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