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COLEGAO HISTORIA SOCIAL DA ARTE Michael Baxandall PADROES DE INTENCAO A explicacao histérica dos quadros Tradugio Vera Maria Pereira Coordenagao Sergio Miceli /OMPANHIA | _ LETRAS Copyright © 1985 by Michael Baxandall Copyright da introdugio brasileira © 2005 by Heliana Angotti Salgueiro Publicado originalmence na Gra-Bretanha pela Yale University Press Coordenagito da Colegao Histéria Social da Arte Sergio Miceli e Lilia Moritz Schwarcz Indicagéo editorial Sergio Miceli Titulo original Patterns of intention: On the historical explanation of pictures Capa ‘Angelo Venosa sobre Uma dame tomando cha (1735), leo sobre tela de Chardin (Hunterian Art Gallery, Univetsidade de Glasgow) Projeto grafico Ritada Costa Aguiar Preparagdo Leny Cordeiro Indice de assuntos Luciano Marchiori Revisao Carmen S.da Costa Marise Simoes Leal Dabs leis de Caaopo na Pais (6) (Chen rsa do io, Bel acl Mii Paces inane expla hides do guns / Mik Baxanl sedge Vera Mara Paired eco ras Melange Slo. Sto Pal Compari dis Ltas, 206. “Ten nia Pater ofecan On il elation of cues Ane hinicla 2 Pores — aoa Pha —Fapleao Sls Hens Ager Tile frie pose 1 Pane pea A790 [2006] Todos os direitos desta edigio reservados a EDITORA SCHWARCZ.LTDA. Rua Bandeira Paulista 702 6.32 04532-002 — Sio Paulo — SP Telefone: (11) 3707-3500 Fax: (11) 3707-3501 www.companhiadaslereas.com.br Introdugao: Linguagem e explicacao 1. OS OBJETOS DE EXPLICAGAO: OS QUA- DROS CONSIDERADOS DO PONTO DE VISTA DE SUAS DESCRIGOES Nés nao explicamos um quadro: explica- mos observagées sobre um quadro. Dito de outra forma, somente expli- camos um quadro na medida em que o consideramos A luz de uma descri- o ouespecificagao verbal dele. Por exemplo, seeu penso ou digo espeito do Batismo de Cristo, de Piero della Francesca (ilustracao 3),algotéo primé- rio como"o desentho firme desse quadro se deve em parte ao aprendizado recente de Pieto della Francesca em Florenga’, estou fazendo simultanea- mente duas afirmagées. Em primeito lugar, proponho que o"desenho firme’ [firm design”) descreve um aspecto do interesse do Batisme de Cristo. Em segundo lugar, proponho que oaprendizado florentino éacausa desse interesse. A primeira parte da frase dificilmente pode ser evitada. Se eu apenas associasse 0 quadro ao"aprendizado florentino’,o objeto de minha explicagio ficaria confuso, porque a frase poderia ser sada para falar tanto dos anjos com suas vestes de cintura alta como dos valores téteis da obra ou de qualquer outra coisa que se queira. 3 a INTRODUGAO LINGUAGEM B EXPLICAGAO "Toda explicag4o elaborada de um quadro inclui ou implica uma des- crigao complexa desse quadro, Isso significa que a explicagao se torna parte de uma descrigao maior do quadro, ou seja, uma forma de descrever coisas nele que seriam dificeis de descrever de outro modo. Mas, se é ver~ dade que a’descrigio” ¢aexplicagao" se interpenetram, isso néo nos deve fazer esquecer que a descrigao ¢ a mediadora da explicagio. Uma deseri- cao se faz com palavras e conceitos relacionados com o quadro, eessa rela- ¢40 € complexa e as vezes problematica. Limitar-me-ei aqui a indicar — com um dedo trémulo, porque o assunto é complicado e excede minha competéncia — trés ordens de problemas explicativos com que acritica de arte parece defrontar-se. 2, AS DESCRIGOES DOS QUADROS COMO REPRESENTAGOES DO QUE PENSA- MOS TER VISTO NELES E dificil saber qual o objeto exato de uma descrigio. A palavra'descri- ao" pode aludir a varias maneiras de falar de uma coisa. Se falar a respeito da“firmeza do desenho’ jé é uma forma de descrever o quadro — 0 mesmo vale, aids, para a palavra“quadvo” —, esse tipo de desctigio pode parecer avipico, por ser muito analitico e abstrato. O texto abaixo, aparentemente simples, contém uma descrigo muito diferente: Havia uma paisagem de campos e de casas como costumam ser asicasas i da gente do campo — algumas maiores, outras menores. A volta das casas, erguiam-se altos ciprestes. Nao se podia vé-los por inteiro, porque as casas acrapalhavam a vista, mas suas copas apareciam por cima dos telhados. Eu diria que essas érvores serviam para proporcionar aos camponeses um lugar de repouso, a sombra de suas folhagens € com 0 canto alegre dos passaros empoleirados nos galhos. Quatro homens saiam correndo das casas ¢ um deles chamava um rapaz que estava pot perto — o gesto de sua mao direita, como que dando instcusdes, mostra isso, Um outro estava virado na diregio dos primeiros, como que escutando a voz do chefe. Um quarto homem, que tinha a mao direita escendida e segurava com a esquerda um bastio, surgia 32 ——————— INTRODUGAO LINGUAGEM E EXPLICACAO um pouco frente da porta, gritando alguma coisa para outros homens que trabalhavam ao redor de uma carroga. Pois, justo nesse momento, uma car- roca abarrotada, nao sei dizer se de palha ou outra coisa, acabava de sair de lum campo e estava no meio do caminho. A carga parecia nao estar bem amarrada, mas dois homens tentavam, meio desajeitadamente, manté-la no lugar, um de cada lado do vefculo:o primeiro, quase nu, exceto porum pano que lhe cobria os rins, tentava escorar a carga com uma vara; do segundo homem s6 se viam a cabega e uma parte do peito; mas, a julgar pela expres- sio do rosto, ele devia estar sustentando a carga com as maos, ainda que o resto do corpo estivesse escondido pela carroca. Quanto. veiculo propria- mente dito, nao era daqueles carros de quatro todas de que fala Hometo, poistinha apenas duas rodas,eé porisso quea carga ia sacudindo para todos os lados, ¢ os dois bois vermelhos, robustos e pescogudos davam a impres- sio de precisar mesmo de muita ajuda, Um cinturdo prendia a tinica do vaqueiro na altura do joelho; com a mao direita ele segurava as rédeas, puxando-as para si, ecoma esquerda empunhavaum vara. Mas elendo pre- cisava usé la para incitar os bois. Em vez disso, elevava a voz, dizendo algu- ‘ma coisa para estimular os bois, a espécie de coisa que se diz aos bois para que entendam nossas ordens. © vaqueiro também tinha um cachorro para ficar de sentinela enquanto ele dormia. E ld estava o cachorto, correndo ao lado dos bois. A carroca estava perto de um templo: era o que indicavam as colunas visiveis por entre as érvores. Esse texto — que reproduz a maior parte da descrigio de um quadro exis- tente na Casa do Conselho (bouleutérion) de Antioquia, escrita no século1v pelo grego Libanio — detalha minuciosamente o assunto da representacao como se fosse uma cena real, E uma forma natural e espontanea de descre- ver um guadro figurativo, aparentemente menos analitica e abstrata que a referéncia a0desenho firme”, uma forma que ainda hoje costumamos usar. Parece ter sido feita de propésito para nos permitir visualizar 0 quadro de modo claro e vivid sta etaa funcao do género literdio da ekfrass [écfrase, descricéo}, do qual constitui um exercicio virtuosistico, Mas 0 quea descri- cio de ato representa? 33 INTRODUGAO LINGUAGEM E EXPLICAGAO Ela no nos capacita a reproduzir 0 quadro. Apesar da clareza com que Libanio desenvolve seu relato, nao podemos reconstituit o quadro a partir de sua descrigao. Faltam as seqiténcias crométicas, as relagdes espaciais, as pro- porgdes, muitas vezes a indicacao do que estd a esquerda e 4 direita, e tantos outros elementos. © que se passa quando lemos o texto é que, a partir de nos- sas lembrancas, de nossa experiéncia passada da natureza e dos quadros, ela- boramos mentalmente alguma coisa — é dificil dizer o qué —,e essa alguma coisa que as palavras de Libanio nos estimulam a elaborar cria a impressio de ja termos visto um quadro compativel coma descricao. Se, logo depois, cada uum de nés se pusesse a desenhar as imagens mentais que elaborou — se é de imagens que se trata — a partir da descticao de Libanio, veriamos imagens muito diferentes. As diferencas poderiam ser explicadas tanto pela diversida- de de noss descri¢ao nos trouxe a lembranga, quanto por nossas diferengas de capacida- as experiéncias anteriores, principalmente pelos pintores que a de de imaginacio. De fato, a linguagem verbal nao é muito apropriada para a notagao de determinada pintura. A linguagem € uma ferramenta de genera- lizacdes. Além disso, o repertdrio de conceitos que ela oferece para a descri- cao de uma superficie plana, que comporta uma variedade de formas ¢ cores sutilmente diferenciadas ¢ ordenadas, ¢ tosco ¢ vago. E mais, é no minimo desconfortavel lidar com um meio de expresséo que se apreende de modo simultaneo — eum quadro éisso—, com um meio tio linear no tempo quan- toa linguagem. Por exemplo, é dificil evitara tendéncia a modificar 0 artanjo interno do quadro pela simples mengéo de uma coisa antes da outra. Mas, se um quadro se mostra simultaneamente em sua totalidade, o ato de contempla-lo é tao lineat, do ponto de vista temporal, quanto a linguagem. A descrigao de um quadro reproduz ou poderia reproduzit 0 ato de observa- lodiretamente? E evidente que nao, pois hé uma dbvia incompatibilidade for- mal entre o ritmo com que percorremos um quadro com o olhar e 0 ritmo com que organizamos palavras e conceitos. (E til lembrar as etapas do pro- cesso de vistalizagio: quando focalizamos um quadro, obtemos uma primei- ra impressdo geral, rapida mas imprecisa, do todo; e como a visio é mais niti- dae mais precisa no eixo da fovea da retina, o olhar se desloca por toda a superficie do quadro, percorrendo-o numa sucessio de fixagées répidas. Na 34 eee INTRODUGAO LINGUAGEM E EXPLICAGAO verdade, o ritmo do movimento ocular se modifica durante o tempo em que inspecionamos o objeto. Num primeito momento, enquanto nos situamos, 0 movimento ocular se dé «o s6 mais depressa como com um Angulo de visio ais amplo. Logo, 0s movimentos se estabilizam numa velocidade média de cerca de quatro a cinco fixagées por segundo eem saltos espaciais de cerca de quatro a cinco graus — estabelecendo assim o tempo de sobreposigo neces- sario para que a visio efetiva forme um registro visual coctente.) Suponhamos que temos sob nossas vistas a pintura mural de Ancio- quia no momento em que Libanio pronuncia sua écfrase: como se compa- tibilizariam o ato da descrigao e 0 ato de visualizagio da cena? A descricéo seria, sem divida alguma, enfadonha, arrastando-se a uma velocidade de menos de uma silaba por movimento ocular, podendo nos chegat aos ouvi- dos com um atraso de mais de meio minuto em relacao a coisas que nossos olhos jé registraram por alto desde os primeiros segundos, coisas em que jé fixamos o olhar atentamente varias vezes. E dlaro que o processo visual é muito mais que essa simples exploracao com os olhos: usamos nossa mente, ¢ a mente se vale de conceitos. Mesmo assim, continua sendo verdade que o processo em questao na percepgao de um quadro nao € 0 mesmo que esta envolvido na descrigao verbal de Libanio. Nos primeiros segundos em que olhamos um quadro, obtemos uma espécie de impressio de todo o campo. O que se segue é um agucamen- to da percepgao dos detalhes, a observagao de algumas relagoes, de uma certa ordem etc. A seqiiéncia da exploracao éptica progride de acordo com nossos habitos gerais de apreensao das coisas e com as pistas especiais que © quadro nos oferece. Seria tedioso prosseguir decalhando todas as coisas que uma descrigo nao faz, porque aessa altura de minha argumentagio ja deve estar claro que o que estou tentando sugerir pertence ao dominio da representacao. De fato, a écfrase de Libanio contém duas peculiaridades que sugerem muito bem o que procuro dizer. A primeira é que 0 texto esté redigido no tempo passado — uma decisao critica de grande sagacidade que_infelizmente, cait em desuso. A segunda é que Libanio expressa de modo livre e aberto suas 1 diria que essas Atvores..'s"A carga parecia nao estar bem amar- 35 INTRODUGAO LINGUAGEM EB EXPLICAGAO tada..";"tinha somente duas rodas ¢ por iss0...";"S6 se viam a cabega e uma parce do peito; mas «jugar pela expressio do rosto pares quearera 0 que indicavam as colunas entrevistas..”, Ou seja, tempo passado e interpretagto cerebral:o que uma desctigéo tenders a representar melhor éoquese pensa depois de ter visto um quadro. F verdade que a descricao que Libinio faz do assunto nao édo mesmo enero de descrigio que estamoshabituados a fazer quando explicamos um Gado; sé a mencionei para evitar a acusagao de tomar 0 conceito de des- crigao num sentido excessivamente técnico, e também para realcar um ou dois pontos. As descrigées de que me ocuparei daqui por diante se aprosi- mam bem mais do estilo de frase de’o desenho é firme” ["the design is frm”), também podem ser muito longas. Cito abaixo uma excelente passagem do relato de Kenneth Clark sobre 0 mesmo Batismso de Cristo, de Piero della Francesca, em que Clark elabora uma andlise do que se poderia entender por“um desenho firme’: Imediatamente nos damos conta de uma estrutura geométrica; poucos segundos de andlise nos mostram que essa estruvura se divide horizontalmen- te em tergas partes e verticalmente em quartas partes. As divisdes horizontais passam deforma clara pelas asas da Pombsa, pelalinha das maos dos anjos, pela linha do pano que cobre os quadeis de Cristo e pela mao esquerda dobrada de Joo Batista:as divisbes verticaispassam pelo drapeado em forma de coluna! da veste rosa do anjo, pelalinla cent ral de Cristo e pelas costas de sio Joao. Essas divisoes formam um quadrado central, que, por sua vez, se subdivide em trése quatro faxas. Um tviingulo,cujo vértice estana Pomba ecuja base seapéiano plano horizontal inferior inscreve-senesse quadrado ¢fornece assim © moti vo central da composigao. Este texto mostra de modo mais claro que a descrigao de Libénio que as palavras representam menos 0 quaciro.em sido queaquilo que se pensa dele apés té-lo visto. Hi muito mais a investigar sobre as relagdes entre as palavras ¢ os conceitos eo interesse propriamente visual dos quadros, se quisermos 36 INTRODUGAO LINGUAGEM § EXPLICAGAO demonstrar — como fazem Libanio e Kenneth Clark — que uma descri- ¢a0 fala mais de uma representacao do que pensamos a respeito de um quadro do que de uma representacao do quadro. E dizer que‘explicamos um quadro por intermédio da descri¢4o" pode muito bem ser entendido como uma outra maneira de afirmar que explicamos em primeiro lugar 0 que pensamos a respeito do quadro, e apenas em segundo lugar 0 quadro propriamente dito. 3, [RES GENEROS DE TERMOS DESCRITIVOS “A respeito do quadro” é a forma correta de propor a questao. Uma segunda drea de problemas diz respeito ao fato de que muitas idéias que desejamos explicar nio tém uma relagao direta como quadro.Muitas vezes, os pensamentos nao se referem direramente ao quadro — pelo menos con- siderado como um objeto material (que ndo € como o veremos) —, pois nossas melhores idéias ou nossos melhores comentarios sero um tanto periféticos com relagao ao quadro propriamente dito. Para constatar isso, basta selecionar e examinar algumas palavras das paginas que Kenneth Clark dedica ao Batismo de Cristo; obteremos, enti, 0 seguinte diagrama: TERMOS DE COMPARAGAO ressonincia (das cores) em forma de coluna (drapeado) escala (de proporgses) TERMOS DE EFEITO fatura segura comovedor paleta (sébria) ————> 0 quapro ———> encantador (manchas e grafismos) surpreendente vibrantes 37 IN'TRODUGAO LINGUAGEM E EXPLICAGAO Uma categoria de termos, os da direita, designa os efeitos do quadro no observador: comovedor ¢ outros adjetivos. E, na realidade, éexatamente 0 efeito do quadro que nos interessa: tem de ser assim. Mas termos dessa categoria tendem a ser um pouco faccis es vezes, nossa percepcio do feito se adapta melhor a vias indiretas. Uma destas €a da comparacio, gute muias vezes procede por metaforas, como na categoria do alto: ares sondncia da cor e outras semelhantes. (Um tipo especialmente desenvolvi- do de comparagéo, que costumamios usar para pinturas figurativas, émen- cionar as cores e formas que esto na superficie do quadro como se fos em as coisas que elas representam: € 0 que Libanio faz.) Uma terceira catego- ria de termos, os da esquerda, descreve 0 efeito do quadro sobre o obser- vador, ao falar das nossas inferéncias sobre a ago ou o processo que pode- ria tet levado o quadroaser como é fatura segura, paleta sobria, manchas e grafismosvibrantes. A consciéncia de que quadro temum efeito sobrenés porque é um produto da aco humana parece estar profundamente fixa em nossa maneira de pensar e de falar — dai as setas do diagrama. Quan- do tentamos explicat um quadro de um ponto de vista histérico, & esse 0 tipo de reflexdo que fazemos. Nio se pode evitat 0 uso dessa espécie de conceitos indiretos ou peri- féricos. Se nos limitdssemos a usar termos relacionados direta ou principal- mente ao objeto concteto, ficariamos restritos a certos conceitos como gran- de, plano, pigmentos sobre um painel, vermelbo, amarelo, azul (embora estes ‘ltimos sejam bastante complicados), ou, talvez, imagem. Eceriamos dificul- dades para afirmar o que nos atrai num quadro. Costumamos pensar ou falar do objeto“A distancia’ dele, mais ou menos como um astrénomo olha uma estrelaa distancia’, porque a acuidade ou agudeza da percepgao aumenta i medida que nos afastamos do centro. E 0s trés principais modos indiretos de nossa lingnagem — falar diretamente do efeito que o objeto provoca em nds, estabelecer comparagdes com coisas que produzem um efeito semelhante, fazer inferéncias sobre o processo que teria levado um objeto anos causar esse efeito — parecem corresponder a trés maneiras de pensar sobre um quadro. Pois um quadro representa para nésalgo mais que tum objeto material: implicitamente consideramos que ele contém nao s6 2 38 a INTRODUGAO LINGUAGEM E EXPLICAGAO histdria do processo de trabalho do pintor, mas também a experiéncia real de sua recepeaio por parte dos espectadores. E verdade que as coisas se complicam e se tornam menos definidas assim que esses conceitos comecam a fazer parte de um esquema mais amplo de discurso ou de pensamento — no presente caso, por cerca de duas ou trés paginas de livro. Na hierarquia da sincaxe, uma maneira de pensar se subordina a outta. Surgem ambigitidades ou confusées entre as formas de pensamento, sobretudo entre a comparacio e a inferéncia, de modo que os conceitos podem tomar sentidos diferentes. E o que se verifica com a passa- gem de Kenneth Clark acima citada, Mas pensamento e sentimento preser- vam uma atmosfera incerta em sta trama complexa. Quando falei do’dese- nho firme” do Batismo de Cristo, estava implicita uma inferéncia causal. Minha descrigio do quadro continha uma especulacio sobre a natureza do proceso de ctiagio da obra que a levou a suscitar em mim a espécie de impressio que causou.A frase’desenho firme” pertence ao lado esquerdo do diagrama, porque eu estava derivando uma das causas do quadro,‘afirmeza do desenho”, de outra causa mais distance, o’aprendizado florentino”. Mas pode-se objerar que dizer que um conceito como o dedesenho” [design] j4 contém uma inferéncia causal supée resolvidos varios problemas relacionados com a agio real das palavras. Nao estariamos confundindo 0 sentido da palavra, toda a gama de significados que ela pode ter com sua referéncia, ou aquilo que ela denota, em um caso determinado? A palavra “design” tem em inglés uma gama muito rica de sentidos: projeto mental; estratégia; propésito ou designio, finalidade; adaptacao dos meios aos fins; desenho ou esboco de um quadro etc. delineamento, padrao; plano de tra- balho artistico ou literdrio; idéia geral; construgao ou composigao, enredo, capacidade de elaborar tudo isso, invengao. Quando uso 0 conceito de“desenho’ [design], normalmente nao o faco em todos esses sentidos de uma vez. Se digo, sem maiores especificagées, “gosto mesmo do desenho desse quadro” ["I do like the design of his picture"), deixo de lado, por um instante, os significados associados ao processo de produgao da pintura e chamo a atengio para uma caracteristica mais inerin- secaa manchas ow tra¢os deixados sobre o painel. E isso quer dizer que me 39 INTRODUGAO LINGUAGEM B EXPLICAGAO refiro a uma’configuracio ou padrio" [pattern] particular das formas que percebo mais do que a maneita como podem er sido'desenhadas’ “projera- das’ ou"planejada autorizado a esperar que os leitores entendam a palavra, para os fins de ';e nesse caso, quando eu falar em‘desenho", me sentirei minha andlise critica, nesse sentido mais limitado. Ao chegar a esse ponto, os leitores, eu e a palavra teremos, por assim dizer, abandonado o lado es- querdo de meu diagrama, E claro que uma palavra como’desenho” tem um uso corrente e freqiiente tanto & esquerda quanto ao centro, mas, seescolhe- mos a posicéo central do termo, trabalhamos bastante & esquerda, pelo menosna medida em que tessaltamos seus diferentes significados. Do pon- to de vista seméntico, quando a significagéo de uma palavra softe contami- ago por outros usos correntes, falamos 3s vezes de um sentido'tefletido”; nallinguagem normal, isso nao tem muita forca. Para designar o que se passa quando palavras e conceitos se combinam com imagens — o que nao é de forma alguma um uso normal da linguagem —, talvez se pudesse falar em sentido"rejeitado”. Uma das razées para a importancia desse conceito nos leva a uma terceira area de problemas. 4.0 CARATER OSTENSIVO DA DESCRIGAO CRITICA No sentido absoluto, desenho"e“firmeza’ sio conceitos muito gerais Eupoderiaperfeitamente usaramesma frase’o desenho é firme’ para refe- rir-me tanto ao Batismo de Cristo, de Piero della Francesca (ilustrasio 3), quanto ao Retrato de Kabnueiler, de Picasso (ilustracao 1).Os conceitos s40 gerais o bastante para conter uma caracteristica existente em dois objecos muito diferentes. Supondo-se que uma pessoa nao tenha amenor idéia da aparéncia desses quadros, a frase nao contribuiria em nada para ajudé-las a visualizar mentalmente as obras. Afinal, ‘desenho” nao é uma entidade geométrica como um “cubo” nem uma entidade quimica precisa como “4gua’,e o sentido de“firmeza” que estou usando nao é um atributo facil- mente quantificével. Sé que, numa descricéo ligada A critica de arte, os conceitos nao sao usados em sentido absoluto, m: aplicados em fungao de um objeto preciso, de um caso especifico. Ademais, 0s conceitos $40 40 INTRODUCGAO LINGUAGEM B BXPLICAGAO empregados de modo demonstrative, nao informativo. De fato, as pala- vras e 0s conceitos com que desejamos lidar para descrever um quadro podem nao cortesponder ao que normalmente se entende por descricao. Na critica de arte ou na histéria da arte, o que determina o sentido das palavras é se 0 objeto esta presente ou é acessivel, seja na realidade, sejana forma de uma reprodugao ou de uma lembranga, ou, ainda mais remota- mente, na forma de uma vaga imagem mental derivada da familiaridade com outros objetos da mesma classe. ‘As coisas nem sempre foram como sao hoje: nos tiltimos quinhentos anos da histéria da critica de arte, houve uma aceleracdo da substituicéo de um discurso destinado a trabalhar com objetos ausentes ou indisponiveis por um discurso que, no minimo, pressupoe a presenga de um objeto na forma de uma reproducao, No século xv1, Vasari nao contava sendo com um conhecimento meramente genético da maioria dos quadros que anali- sava; suas célebres ¢ estranhas descrigdes foram feitas de propé ito para evocar anatureza de obras que oleitor desconhecia por completo. No sécu- Jo xvii essa situacao havia criado uma ambivaléncia paralisante. Lessing, prudentemente, teabalhou com um objeto, o grupo escultdrico de Lao- coonte, que a maioria dos seus leitores conhecia, como ele proprio, apenas através de gravuras ou de réplicas. No caso de Diderot, que escreve para alguém que nao esté em Paris, nunca fica muito clato se o leitor haviaesta- doounio no Salio que ele analisa, eessa éuma das raz6es da dificuldade de interpretar stas ctiticas. Em 1800, 0 grande Fiorillo acrescentou notas de rodapé para especificar 0s autores das melhores gravuras das obras que dis- cutia, e concentrou-se no estudo do que se podia ver. No século x1x, os livros comecaram a ser fartamente ilustrados com gravuras ¢, as vezes, reprodugées forograficas, e sabe-se que foi com Wlfflin que a critica de arte passoua orientar-se para a projecdo de pares de diapositivos em preto- e-branco. Atualmente, partimos do pressuposto de que o objeto esta pre- sente ou éacessivel de alguma forma, isso tem varias conseqiiéncias para alinguagem que usamos. Suponhamos que, numa situagao corriqueira, eu diga uma frase do tipo cachorro é grande’; para entender 0 que quero dizer eo efeito desse ar I.E INTRODUGAO LINGUAGEM E EXPLICAGAO comentirio, é preciso saber antes se o cachorto estd presente ou se meus interlocatoreso conhecem. Seno o conhecem, apalavra’grande’— queno contexto dos cies tem uma gama limitada de significados — nao pode ser mais que uma informagio sobre o cachorto; as pessoas ficam sabendo que esse cachorto é de porte grande, néo é nem pequeno nem médio, Mas, se 0 cao estiver presente — se estiver diante de nés, enquanto estou falando sobre ele —,a palavra'grande” indica o queme parece ser um aspecto digno de nota no animal: digo que ele me parece interessante porque & grande. A palavea'cachorro’ designa um objeto e'grande’ caracteriza o que me chama aatengao nele, Se-eu disser agora a respeito de um quadro que tenho diante dos olhos, oudeuma reproduciio, ou de uma obra da qual me lembro, que seu’desenhoé firme’, meu comentario tera um sentido muito especifico — nio se trata de dar uma informagao, mas de apontar para um aspecto que me despertainte- resse quando olho paracle. Trata-se de uma demonstrasio:quando uso apala- vra'desenho’ estou chamando a atengio para um aspecto do quadro, e quan- do uso a palavra “firme” proponho uma maneira de caracteriza-lo. Estou sugerindo, portanto, que se examine se hd adequacao entreo conceit de'dese- ho firme’ eo interesse visual do quadro. Meu interlocutor pode ou nao seguit minha s igestao, ese a seguir pode ou nao concordar com meu julgamento. Cabe chamar a atengio para dois aspectos. A frase“ desenho é firme” nao é muito elogiiente como indica¢ao verbal sobre a qualidade do Batismo de Cristo, mas, se me reporto ao quadro em si, meu comentério adquire um sentido bem mais preciso. Como meu comentério sobre o quadro de Piero no é de ordem informativa, mas demonstrativa, feito na presenca da obra, seu significado é ostensivo; em outras palavras, tudo depende da referéncia reciproca que cue men interlocutor possamos fazer entre apalavra eo obje- to. E esta a textura da‘descrigao” verbal em que se apoiard toda explicacao que poderemos tentar fazer. O que vale dizer que o objeto de explicagio é assustadoramente fragil e fugidio. Mas € também flexivel e vivo de um modo muito auspicioso, que nos incitaa percorrer o espaco oferecido pelas palavras com um ela quase fisico. “Oo Suponhamos que eu diga a seguinte frase a respeito do Batismo de Crist 42 INTRODUGAO LINGUAGEM E EXPLICAGAO um raciocinio circular obvi desenho é firme porque desenho é firme”. mente destituido de sentido, mas as pessoas tém a estranha mania de bus- cat sentido em tudo 0 que ouvern. De fato, basta deixé-las por alguns minu- tos com essa frase e com o quadro para que uma ou outra comece a descobrir uum significado na frase, partindo do principio de que se alguém disse uma coisa é porque queria di zer alguma coisa. Baseadas nessa hipétese, alguns iro procurar esse significado no espago entre as palavrase seguindo a pista estrarural representada pela palavra"porque”. Outros talvez achem uma solugao no raciocinio que, exagetando um pouco, poderiamos resumir na seguinte frase:‘A configuracio [pattern] é firme porque a concepgao [plan- ning/ drawing] & firme”. No espectro de sentidos que comporta a palavra “desenho’ [design], as pessoas encontram referéncias bastante diferenciadas, para criar oposigoes de sentido ¢, jogando com a palavea“porque’, derivam tum enunciado menos sugestivo de causa de um enunciado mais sugestivo de causa — isto é pensando no nosso diagrama, movem-se da esquerda pa- 120 centro. Ao mesmo tempo, elas devem ter imaginado nuancas diferentes para as duas ocorréncias da palavra’firme”. O sentido ostensivo de nossos termos acaba nos ctiando um objeto de explicagio muito esttanho. A explicagao de um quadro depende do relevo que escolhemos dar em sua descrigio verbal. Essa descric4o representa, antes de tudo, o que pensamos sobre esse quadro. As palavras que a constituem sao instrumentos de generalizacao, que muitas vezes 40 nao s6 indiretos — permiteminferir causas,caracterizar efeitos, fazer diversas comparacoes —,comoa sumemo significado que efetivamente vamos usar apenas par- tit de um jogo reciproco como quadro em si, que éum objeto singular. E por tras de tudo isso est4 o desejo de assinalar nosso interesse no quadro. RESUMO Quando queremos explicar um quadro, no sentidode revelar suas cau- sas historicas, o que de fato explicamos nao é tanto o quadro em si quanto uma representagao que temos dele mediada por uma deserigao parcialmen- teinterpretativa, Essa descricao ¢ pouco ordenada e vivida. 43 INTRODUGAO LINGUAGEM E EXPLICAGAO Em primeiro lugar, uma deserigao, por ser um ato de linguagem,é feita de palavras e conceitos, Por isso, a descrigaio é menos uma representagio do quadro, ou mesmo uma representagio do que se vé no quadro, do que uma representacio do que pensamos ter visto nele, Em outras palavras, a descri- ‘a0 é uma relac4o entre o quadro e os conceitos, Em segundo lugar, muitos termos cruciais numa desctigéo sio um pouco indiretos, porque em vez de se referirem, antes de tudo, a0 quadro como um objeto fisico, referem-se ao efeito que ele produz em nés, ou a outras coisas que poderiam ter um efeito compardvel sobre nés, ou ainda is supostas causas de um objeto que produzisse em nds 0 mesmo efeito que o quadto, Este tltimo ponto é particularmente relevante para nossa pesqui- sa,Por um Jado, 0 fato de esse processo estar tio arraigado em nossa lingua- gem sugere que ¢ impossivel evitar a explicagao causal, e que, por isso mesmo, é importante dedicar-Ihe uma reflexio, Por outro lado, deve-se estar atento ao fato de queadescri¢ao que,em poucas palavras, faré parte da explicagdo, jé contém presuntivamente elementos explicativos, como.o con- ceito de“desenho” [design]. Em terceiro lugar, a descri¢ao contém um sentido independente muito getal,e para especificar esse sentido é preciso que o quadto esteja presente, A descrigao é um ato de demonstracio — através do qual indicamos um aspecto que atrai nosso interesse — e funciona de modo ostensivo: 0 senti- do se forma por um jogo de referéncia recfproca, um permanente vai-e-vem entrea propria descri¢ao e 0 objeto particular a que ela se reporta. Esses fatos da linguagem em geral rambém sio pertinentes dcritica de arte, que se utiliza da linguagem de modo heroicamente conspicuo e tem, assim me parece, implicagses radicais para a compreensio de como as pes- soas explicam os quadros — ou melhor, do que de fato fazemos quando nos deixamos levar pelo instinto de tentar explicar os quadros.

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