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Capitulo 4 Ciéncia, técnica e tecnologia desde as origens da ciéncia moderna Historia da Ciéncia € a historia “da ciéncia” e, dessa maneira, esta ligada a prdpria ciéncia. Masa Historia da Ciéncia prope narrar a histéria de que ciéncia? Certamente nao a da fisica, da quimica, da biologia e da Matematica, visto que estes campos de conhecimento nao eram, até o século XIX, dreas especializadas, tal como hoje as reconhecemos, embora possamos dizer que todos sao cam- Pos de conhecimento cientfficos na medida em que a fisica, a Quimica, a biologia e a matematica sao ciéncias Convém observar que antes do século XIX nao exis- tiam ainda “cientistas”, embora existisse um corpo de conhe- cimentos relativos & natureza que podemos reconhecer como ‘ciéncia” na medida em que explicava 0 mundo e os fend- MeNos naturais, Na verdade, aquilo que hoje reconhecemos SOMO cigncia, ou seja, a ciéncia moderna, teve sua origem Porvolta dos séculos XVI ¢ XVII e é ligada a essa nova cien- (la, Filosofia natural, magia natural, ou filosofia experimental, Digitalizado com CamScanner outras denominagoes dadas a ciéncia naque le! a Historia da Ciéncia 8 eDoca, entre que nasceu Como observa Alfonso-Goldfarb, muito mais d a da Ciéncia, ela era uma justificativa da aoe que estava se formando e tinha, portanto, © perfil do debat que estava gerando essa formagdo™. De fato, nos s6cules xv e XVII havia muitas discuss6es € grandes debates sobre a caracterizagdo dessa nova ciéncia. Em linhas gerais, num ravam-se aqueles que defendiam que esta ntar os conhecimentos uma Histori extremo, encont ciéncia deveria retomar © c queles da Grécia antigi -ompleme! a. Num outro, pensadores antigos conhecimentos deveriam deveria fundar a ciéncia moderna tureza. Entre classicos, a! que defendiam que esses ser descartados e que se sobre novas bases. partindo da propria nal esses dois extremos, entretanto, havia um matiz de opini- des defendidas por diferentes grupos. fomentando caloro- sos debates em que, muitas vezes, 4 hist6ria justificava suas posigdes € argumentos. Debates estes que continuaram nos géculos XVIII e XIX quando, gradativamente, como obser Alfonso-Goldfarb, vai chegando a seu final (pelo menos ofi- cialmente...) e V40 se tornando também oficiais as ‘reeras jogo’em ciéncia’’. A ciéncia moder para outro, nem a partir de uma Gnica ‘na, portanto, nao surgil proposta. De: : dativament em melo ‘cie origens ela foi se moldando lenta & gra tific a diversos debates em que questdes de naturez@ iment? ® “extracientifica” (ou seja, que No esto necessa ito, * ocionadas ao conhecimento cient ico no sentide n u tal como hoje entendemos) se entrelacaram™ forma am DoD 36 Alfonso-Goldfarb, O que € historia da ciéneia, 1 vide 13ne=t “Ciéncia e historia,” 1 3-40. 87 Alfonso-Goldfarb, que é Histéria da ciéncia, 1 ot sok 78 HusTORIA DA CIENCIA PARA we Digitalizado com CamScanner sobre 0 qual se debruca o historiador da ciéncia anteriormente. ‘Aciencia moderna, portanto, ndo surgiu de um dia para outro, nem a partir de uma tinica Proposta E importante ter em conta que o motor desses debates, entretanto, Nao foi de natureza estritamente epistemoldégica, filosdfica, cientifica, metodolégica ou religiosa, como comu- mente se pensa. Sem davida, a ciéncia moderna é diferente da ciéncia (scientia) que a antecedera, porém essa diferenca deve ser entendida num contexto em que todas essas mes- mas questGes de natureza epistemoldgica, filoséfica, cient{- fica, metodolégica, religiosa, entre muitas outras, estavam em jogo. Alids, os protagonistas da ciéncia moderna nem sabiam ao certo a que tipo de ciéncia se chegaria, embora todos estivessem envolvidos num mesmo “projeto”. Além disso, € importante ressaltar que esse préprio envolvimento de estudiosos ligados ao conhecimento da natureza j4 era decorrente do contexto daquela época. Nos séculos XVI e XVII era viva a sensacao de que o conhecimento herdado dos antigos deveria ser revisto, seja para corrigi-lo, Seja para aprimord-lo, ou mesmo para descarta-lo. As raz6es Para tanto foram muitas e andlises em Histéria da Ciéncia tém revelado que os debates sobre o conhecimento da natu- "eza mobilizaram diferentes setores da sociedade. Os protagonistas da ciéncia moderna nem sabiam 40 certo a que tipo de ciéncia se chegaria, embora 1odos estivessem envolvidos num mesmo “projeto” singe ®® Para que possamos compreender as onder & Totes, enseme, tal como ja discorremos em capitulos an ; ‘ormais Preciso tomar o cuidado de nao sobrepor os aspecto: daciéncia de hoje ao que foi o passado dessa mesma G thei, — ™etencoga dead an rien a cicia moderna 79 Digitalizado com CamScanner ciéncia. Devemos entender que aquilo que hoje ene FeConhece. mos como “ciéncia” @ “cientifico” nio devem ser tomados como ctitérios para entendermos 0 processo da Construgs, do conhecimento cientflico, Isso porque, se assim, fizésce. mos, colocarfamos “o carro na frente dos bois", po; OUtras, palavras, estarfamos partindo do “consequente" para €ncon- trarmos 0 “antecedente”, ou, em termos mais Clentificos. estariamos buscando as “causas” a partir dos “efeitos é importante ter em conta que a historia deve ser feita "as avessas”, ou seja, € a partir de um acontecimento do Passado que devemos entender o presente e nao ao contrario, pois se partissemos do presente para entender 0 seu Passado, sé encontrariamos aquilo mesmo que estévamos procurando, Ou seja, olhando com os olhos de hoje 0 passado, escolhe- -se aquilo que parece se relacionar com o presente. E por isso que ao voltar-se aos séculos XVI e XVIL a histéria da “ciéncia” ndo encontraria ali o passado dessa mesma “ciéncia”, visto que ainda inexistia a ideia de conhe- cimento especializado embora fosse, a partir daquela época, que o conhecimento da natureza daria os primeiros passos 4 especializagao moderna. Assim, quando a Histéria da Ciéncia busca reconstruir a histéria da fisica, por exemplo, ela nao Procura narrar a hist6ria da fisica desde priscas eras até os dias de hoje, como se a fisica sempre tivesse existido, O mesmo. ocorre com a histéria da quimica, da biologia ou da mate- matica. A Histéria da Ciéncia reconhece existir uma fisica. uma quimica, uma biologia ou uma Matematica no passado Porque o historiador da ciéncia parte do que sao essas areas de conhecimento nos dias de hoje. Porém, ao vasculhar © Passado, ele logo nota que a ideia de uma fisica, quimica. biologiae Matematica, que se desenvolveram e se aprimora~ ram desde a Antiguidade até os dias de hoje, é artificial. pos NAO $6 0 termo “fisica’, “quimica’, “biologia” e “matematica . Mas também o que 60 conhecimento da fisica, da quimice. da biologia e da Matematica, nado pode ser confundido co™ ES: 8 ortssow 0 HISTORIA DA CIENCIA Para FORMAGAO DE PR Digitalizado com CamScanner oderno significado que costumamos |hes atribuir’, Por onal, no caso da fisica, o termo physis, que etimologica- “ate dé origem ao termo “fisica’, referia-se ao estudo da natureza em geral. Aristdteles, por exemplo, designava por esse termo O estudo da natureza que envolvia nao sé a inves- tigagdo dos fendmenos que reconhecemos hoje como “fisi- cos’, mas também meteorolégicos, astrolégicos, biolégicos eassim por diante.” Aideia de uma fisica, quimica, biologia e mateméatica, que se desenvolveram © se aprimoraram desde a Antiguidade até os dias de hoe, é equivocada Desse modo, dizemos que ha uma histéria da fisica, assim como da quimica, da biologia e da matematica, no sen- tido de que a histéria ali narrada refere-se a algum conceito Que € de fisica. No entanto, o historiador da ciéncia deve ter © cuidado de analisar e examinar esse conceito segundo a Sua acep¢do na época em que fora elaborado. Assim, contex- \walizando os conceitos e 0 conhecimento em que sao ges- \ados, a Historia da Ciéncia busca compreender e analisar 0 Processo da construcao do conhecimento considerando suas niltiplas facetas, Podemos dizer que, mais do que uma ana- 'Se meramente dos aspectos filos6ficos, religiosos, cientifi- 5, sociais, Politicos, econdmicos etc., a Historia da Ciéncia Nestiga o processo da construgao do conhecimento acerca a a 9 natureza e das técnicas na inter-relagdo desses diferentes *Spectos, Aciéncia moderna nao é um Sprimoramento de uma ciéncia antiga » 'St6ria da Fisica,” 31-46, Rose ‘oss, AMStBteles. 71-135, Cig C8 ecngy as login desde as origens da citnca moderna 81 Digitalizado com CamScanner Ciéncia antiga e moderna A Histéria da Ciéncia comumente considera 08 sécy. los XV, XVIe XVII um “marco histérico”, isto €, um Perfodo de transigao entre duas express6es de ciéncia: antiga e Moderna, Mas no que diferem essas duas expressdes de conhecimentoy Segundo uma Histéria da Ciéncia de vertente historiogrsticg atualizada, essas duas expressdes de conhecimento da natu- reza sao diferentes porque estao ancoradas em Concepcdes diferentes de ciéncia. Contudo, deve-se ressaltar que isso nao significa que a passagem de uma expresso de conhecimento a outra se fez porque a ciéncia antiga era inferior, imprecisa € menos verdadeira em relagéo 4 moderna. Devemos aqui observar que a ciéncia moderna no é um aprimoramento de uma ciéncia antiga, visto que elas nao sé colocam diferentes quest6es, mas também expressam diferentes Preocupacées Teferentes & natureza, as técnicas e ao homem. De um modo geral considera-se que essa Passagem deu-se por causa de uma Revolucdo Cientifica. De fato, podemos constatar que naquela época houve mudangas significativas em varios seg- mentos do conhecimento num movimento que pode ser cha- mado de revolucionario.” Os estudos em Histéria da Ciéncia de vertente tradi- cional comumente referem-se a mudangas na concepgao de natureza e do fazer cientifico, relacionadas 3 adogdo de um novo método cientifico que Possibilitou uma aproximagao maior da natureza para conhecé-la melhor em todos os seus aspectos. Nesse sentido, tais estudos Privilegiaram persona gens como Galileu, Newton, René Descartes (1596-1650) € Francis Bacon (1561-1626), Por exemplo, que muitas vezes $40 considerados, nessa perspectiva historiogréfica, “modernos” © “pais” da ciéncia moderna, Todavia, tal como vimos em 8 ‘Sikes eas ae " )-1750 Bee aetna tt re a a B @f the Scenic Revluion: Cohen, 1. F, The Scentfc Resluton; Cohen. b® : ncia¢ Revolution in Science: Osler, org. Rethinking the Scientific Revolution; Rossi. A cen A filosofia dos modernos: aspectos da Revoluco Cientifica 82 prroressonts HISTORIA DA CIENCIA PARA FORMAGAO DE Digitalizado com CamScanner = itulos anteriores, essa forma de Histéria da Ciéncia deixa ge lado outros personagens © miriade de importantes des- dobramentos do. conhecimento da natureza que comecava a adquirir novos contomos apa reir dos séculos XVI e XVII. Além disso, e854 forma de histéria ainda tem por pressuposto uma céncia do presente e busca pincar no passado aquilo que é familiar a ciéncia nos dias de hoje, na medida em que ancora suas discussdes no “verdadeiro método cientifico”. segundo tais estudos, diferentemente da ciéncia antiga, a ciéncia moderna nao se referia mais a uma natureza animada (viva como um grande animal) e o fazer cientifico deixava de ser contemplativo para tornar-se mais operativo. Ou seja, a partir do século XVII, segundo essa perspectiva, a “nova ciéncia” passava gradativamente a divorciar-se das quest6es metafisicas e religiosas, substituindo-as por outras tantas matematicas e experimentais. Assim, com base nos hovos procedimentos experimentais e matemiaticos, a cién- cia moderna, diferentemente da antiga, passou a formular suas leis matematicamente. Assim, considerando-se esse quadro, concluirfamos que, para os antigos, a natureza era animada e se assemelhava a um grande animal vivo. Para os modernos, a natureza tornara-se inanimada, pura maté- tia sem vida. A ciéncia antiga era contemplativa e valorizava mais a observacao do que a experiéncia propriamente dita. Aciéncia moderna, ao contrario, passara a valorizar 0 experi- Mento e, portanto, tornara-se mais operativa. Para a ciéncia antiga, a matemdatica nao servia para estudar os fendmenos Naturais. Na ciéncia moderna, as leis da natureza passaram a Set formuladas matematicamente. De fato, devemos concordar que a ciéncia antiga e a Moderna diferem no que diz respeito ao método, a concep- 0 de natureza e ao prdprio fazer cientifico.” Porém é neces- Satio também perguntar-se pelas razdes dessas mudancas. . Me iancic fito ie © nascimento da ciéncia modema na Europa; idem, A ciéncia ¢ a filosofia dos ferns, Ging 83 "eae tecnologia desde as origens da ciéncia moderna ~~ Digitalizado com CamScanner Ou seja, por que razdo a concepgio de natureza, de método mudaram? Por que a ciéncia, agora m que adotar um novo método? Por que formular de ciéncia lodemna,teve : n aS leis maticamente? A ciéncia antiga nao mae ? a antiga nao explicava os f ‘4 OS fendmen, Os, de forma adequada? Por que razio a ciéncia contemp|, foi substitufda por outra mais operativa? Essas ¢ man outras questdes tém sido foco de investigacgao em Historia, Ciéncia, pautada em tendéncias historiograficas atuais, ue tem buscado compreender 0 processo de mudanca histori. camente contextualizado, sem impor sobre esse processo os aspectos formais da ciéncia do presente, tal como ja discor- remos anteriormente. Podemos dizer que uma série de fatores foram res- ponsdveis pelo desenvolvimento da ciéncia moderna, Dentre esses fatores encontramos a significativa mudanga em diver- sos segmentos do conhecimento a partir do século XY, prin- cipalmente na literatura e nas “artes”. Isso foi em grande medida resultado de um interesse renovado pelos textos classicos e pela valorizagao das artes manuais. Vale lembrar que a veneracao pelos antigos e a recuperacdo de textos ori- ginais de Aristételes, Ptolomeu, Galeno entre muitos outros, foram caracterfsticas daquele perfodo. A busca por novos tex: tos, bem como por novas tradu¢ées, intensificou-se naquela época. A leitura desses textos € co confronto com as traducdes e comentarios feitos pela escolastica, expressao de conhe- cimento dos finais da Idade Média, conduziram, posterior mente, a um intenso debate —————_. -aytes’ mos 92 Convém observar que devemos tomar 0 cuidado e N30 ote {ars tinh e 10 *belas-artes". Naquela época, °° esse séculos XV, XVI € XVII como “belas-ates: ce ae wees tia @ A experiencia | ‘90 trabalho manual & °F visual culture 9 OY Opie secrecy, authorshiP: um sentido mais lato, ligado pra termo designava as artes mecanicas € artes liberais. Vide: Smith, “Art, science, an Europe”; idem, The body of the artisan; Openness. fos e as mdquinas. al em OF er ont pe PROF 84 justOnia DA CIENCIA PARA FORMAGAS ae Digitalizado com CamScanner Foi num contexto em que antigos e variados conhecimentos comegavam a chegar ao ocidente latino, que passava por grandes mudangas sociais, politicas e econdmicas, que nasceu a ciéncia moderna Mas, ao lado dessas tradugdes e comentarios, outra literatura rica em tratados que apresentavam procedimentos empregados em varias artes também exerceu grande influ- éncia na maneira de se fazer ciéncia. Isso esteve associado avalorizagéo das artes mecdnicas proporcionada pelas pro- fundas modificagGes que sofrera a posi¢do social dos arte- sios. ModificagGes essas que estiveram ligadas 4 ascensdo da burguesia e 4 consolidagao das monarquias nacionais que implicou na passagem da condicao de mero artesao para a de burgués.” Em linhas gerais, foi num contexto em que antigos e variados conhecimentos comecavam a chegar ao ocidente latino, que passava por grandes mudangas sociais, politicas € econémicas, que nasceu a ciéncia moderna. As novidades inttoduzidas pelas artes, o interesse por antigos manuscri- tos em que era possfvel recuperar segredos relativos 4 natu- 'eza @ as artes, a disseminagao do conhecimento por meio da 'mprensa, a expansdo maritima e do comércio, a organizacao das sociedades, sem contar com 0s infindaveis debates de "atureza teolégica, foram alguns dos motores que impulsio- "aram a ciéncia moderna. Assim, mais do que rompimento ‘otal com 0 passado, a ciéncia moderna parece ter se consti- ‘vido numa tensao entre saberes antigos e modernos. Convém observar que a Historia da Ciéncia tem mos- Seige Muitas ideias, assim como muitos estuidiosos ape amos modernos, nao eram, de fato, tao ‘modernos uai . f a © imaginavamos. Isso é compreensivel se levarmos ~ Mado 055 05 flésofos & as miquinas Ging 85 "A €tecnologia desdeas origens da ciéncia moderna Escolistica Por esse termo geralmente se designa a filosofia ministrada has escolas cristas da Idade Média, Chamava-se todo professor “escoldstici que lecionava numa escola. ia ensinada ou possula a nas escolas, Digitalizado com CamScanner em consideragdo que estudiosos da natureza com Descartes, Kepler e Newton, por exemplo, formaram-se numa “escola” cujo modelo ainda estava ancorado numa antiga concepgao de ciéncia, ou seja, aristotélica, Embora esses, estudiosos tenham impulsionado o movimento que culmi- naria na ciéncia moderna, suas ideias, entretanto, em parte eram novas e em parte antigas. ‘© Galiley, Foi num proffcuo didlogo com o passado que a ciéncia moderna encontrou seu caminho e procurou renovar suas bases E importante termos em conta que os estudiosos nos séculos XV, XVI e XVII estavam bem familiarizados com a cién- cia de sua época, como nés hoje estamos coma nossa ciéncia do século XXI. Entretanto, esses mesmos estudiosos passa- ram a questionar a ciéncia de seu tempo e a fazer constantes criticas & escoldstica, ou seja, ao modelo de ciéncia vigente. Mas é preciso compreender que esse movimento deu-se na tensdo entre as novas possibilidades de conhecer a natureza (proporcionada por diferentes ideias que esses estudiosos acabavam de ter acesso) e 0 conhecimento estabelecido que. embora fosse criticado, nao fora totalmente descartado de uma hora para outra. Essas novas possibilidades de conhecer a natureza. entretanto, nao eram téo novas quanto imaginamos, pois €ram antigos conhecimentos que estavam de alguma maneira Perdidos ou tinham sido ignorados. Foi um grupo de estu- diosos interessados em diferentes processos e segredos que Possibilitassem manipular os fendmenos fisicos que come Sou a recolher esses conhecimentos nao sé na literatura her dada pela tradicao erudita, mas também nas artes em een Culo saber era transmitido apenas pela tradi¢a0 oral. Assim. N80 S6 as antigas ideias pitagoricas, platénicas. neoP!a10"” cas, herméticas entre tantas outras, tornaram-se dispon"”® toni- s 86 pe mnortssore HISTORIA DA CIENCIA PARA FORMAGAO Digitalizado com CamScanner gos estudiosos da natureza naquela €poca, como também os procedimentos das artes em geral.** A interpretacgao desses antigos conhecimentos e Ideias, juntamente com os conhe- cimentos das artes, deu margens a diferentes debates acerca das novas formas de investigar a natureza. Novas ideias trazidas do oriente, principalmente aquelas desenvolvidas pelos drabes, também contribuiram para 0 surgimento da ciéncia moderna Podemos dizer que foi num proffcuo didlogo com o passado que a ciéncia moderna encontrou seu caminho e procurou renovar suas bases. No entanto, esse movimento nao foi um fendmeno estritamente europeu. Novas ideias trazidas do oriente, principalmente aquelas desenvolvidas pelos drabes, também contribufram para 0 surgimento da ciéncia moderna, Cabe observar que apés a queda do Império Romano, Por volta do século V, 0 ocidente latino teve pouco acesso ao conhecimento grego que ficara nas maos dos drabes. Num Perfodo de quase mil anos, os drabes traduziram, comenta- fam e interpretaram antigos escritos, principalmente gregos, Cintroduziram novidades em diferentes segmentos do conhe- cimento, Lenta e gradativamente, desde a Idade Média, esses Sonhecimentos passaram para 0 ocidente latino em forma de ™anuscritos. Dentre muitos outros estudos desenvolvidos Pelos érabes que influenciaram o ocidente latino encontra- Ms contribuicdes nos campos da matematica, da medicina, 4 astronomia, da alquimia, por exemplo. Mas, além da ciéncia drabe, a exploragdo maritima a do século XVI introduziu novos conhecimentos pro- ‘-'onados pela descoberta de novas culturas nunca antes 8inadas oy vistas pelos europeus. O intenso comércio bebus revel’. El hombre y la naturalem en ef Renasciiento; Raltansl, “Hermetismo “SHO Clentifica,” 41-8, Partir Gti NVC ecnologia desde as orgens da citncia moderna 87 ee Digitalizado com CamScanner maritimo propiciado pela descoberta das Amér para o oriente introduziu “novas” plantas e ani barios e bestiarios, j4 muito comuns entre og ¢. vais. Associado a essas novidades, houve ain de conhecimentos com povos nativos das A, id considerados “antigos” que se encontra oriente. "5 € da rota Mais nos hs. tudes medic. da intercambig Méricas @ Outros, VAM No extrem Novos conhecimentos, assim, bombardeavam os estu- diosos da natureza por todos os lados entre os séculos xy e XVII, dando a impressao de que o mundo era muito maior do que antes se imaginava. Esse intercambio ainda se inten. sificaria em séculos posteriores e contribuiria Para introduzir novas ideias e possibilidades de estudar a natureza, Assim, © confronto de diferentes conhecimentos e espécimes antes nunca vistos (que muitas vezes nao eram comportadas pela ciéncia vigente naquela época) com antigos conhecimentos que passavam a ser disseminados, somados a diferentes possibilidades de interpretar a natureza proporcionada pelas artes mec4nicas, num contexto em que a mobilidade social se intensificara por causa do crescimento das cidades e do comércio, entre muitos outros fatores, parece ter conduzido muitos estudiosos da natureza a rever os pressupostos ¢ as bases da ciéncia aceita até entdo. Mas 0 ediffcio do conheci- mento nao poderia simplesmente ser escorado. Era necessa- tio repensar a ci€ncia, buscando assentd-la em bases sélidas e firmes. O problema nao era s6 encontrar um método capaz de abarcar tudo isso e adquirir novos conhecimentos, mas também Meios para poder manipular e controlar a natureza em todos seus aspectOs ssonts pe prort eS HISTORIA DA CIENCIA PARA FORMAGAO « Digitalizado com CamScanner uma ciéncia operativa Em linhas gerais, os debate: obre os Procedimentos experimentais ¢ matemticos se deram numa época em que nao s6 antigas ideias, mas também outras tantas novas deve- ram, de alguma maneira, fazer parte da grande “enciclopé- gia’ do mundo. O problema nao era s6 encontrar um método capaz de abarcar tudo isso e adquirir novos conhecimentos, mas também meios para poder manipular e controlar a natu- reza em todos seus aspectos. A ideia de operar a natureza era uma Preocupagao manifestada pelos estudiosos da natureza a partir do século XVIl_e contribuiu para o desenvolvimento de uma filosofia experimental”. Mas a ideia de operar a natureza ndo era uma novidade naquela época, visto que alguns estudiosos medie- vais, tais como Alberto Magno (1193-1280) e Roger Bacon (1214-1294), j4 se preocupavam com esses conhecimentos, yoltando sua atengao principalmente para tratados alquimi- cos € outros tantos ligados aos segredos.” Porém, a busca por essa literatura se intensificou nos séculos XVI e XVII. Estudiosos da natureza comecaram a res- galar nao s6 antigos “saberes”, mas também a recolher toda sorte de conhecimentos ligados 4 natureza e as artes. Assim, Publicaram-se, no decorrer dos séculos XVI e XVII, todo tipo de literatura, fosse para valorizar as artes como campos de Sonhecimento, fosse para disseminar conhecimentos que Petmitissem operar e controlar os fendmenos naturais. Desse Modo, a recuperagao de textos neoplaténicos, cabalisticos e hetméticos da antiguidade tardia de teor“mistico" ereligioso Wstificaram Novas praticas, tais como a da magia natural no tS Rossi Francis Bacon: da magia & céncia; Shea, The magic of numbers anal motion: “bster, De Paracelso a Newton Sobre a lite ature 13. Sttedos * Tatura magica e de seyredos, vide Eamon, Scence an the Secrets of 266, Alfonso-Goldtarb, “A historia da quimica ea nova ikeraturs¢ 1-16; Beltran, “Receitas, experimentos ¢ segredos,” 65° Giang, 89 Ee ecnologa desde a orgens da cigcia moderna ~ Digitalizado com CamScanner século XVI, estimulando novas maneiras de invest A ti reza baseada na observacao e na experimentacg, Sra om a Ratu. Os estudiosos da natureza voltaram, processos naturais, buscando compreender uma iat que se transformava e se modificava a todo momento, Ane sofia natural aristotélica, embora propusesse compreende, geracdo e a corrup¢ao das coisas, ndo dava conta de mili outros processos que eram nao sé observaveis, mas também manipulaveis na natureza. Desse modo, diferentemente da expressdo de ciéncia escoldstica, a magia natural propunha nao s6 contemplar a natureza, mas também operé-la com base na compreensdo dos processos naturais. SE ENO para og Os varios tratados publicados por Henrich Cornelius Agrippa Von Nettesheim (1486-1535), John Dee (1527-1608) e Giambattista della Porta (1535-1615), por exemplo, tiveram ampla repercussdo naquela época. Esses escritos e tratados cobriam um amplo espectro de assuntos relativos nao sé aos animais, minerais e plantas, como também a outros segredos de varias naturezas, tais como & éptica, a agricultura, a cos- mética, a alquimia, a arte de destilar, aos fogos artificiais, aos ndmeros, entre muitos outros. Essa variedade de assuntos procurava dar conta de uma série de aspectos da natureza e da arte, tendo como principal objetivo 0 mapeamento de todos os fendmenos naturais, artificiais e artificiosos. Mas ° que é interessante observar nesses tratados é a énfase neles dada a experiéncia, entendida aqui num sentido bem ample. que ecoaria nas propostas baconiana de ciéncia nos séculos seguintes. < : ancl ° Mas nao seria apenas a simples experiéncia ou i 3 jugao experimento que viria a fazer a diferenca. A vasta produs 3 estu- ligada as artes e aos segredos, que impulsionou os i ° ; jencia. diosos a defenderem uma visio mais operativa de ¢ _ santios! an 97 Rossi, tempo dei maghi; Eamon, Science and the secrets of nature 230002151 gal mratura della magia; Shurmaker, Natural magic and modern scence VICI scientific mentalities in the Renaissance, prorsot _— Digitalizado com CamScanner 90 HISTORIA DA CIENCIA PARA FORMAGAO PF respondia também aum interesse renovado pelas obras “rematicas e técnicas da antiguidade Classica O ressurgi- ment© das doutrinas platénicas, neoplaténicas e pitagéricas conduziria OS estudiosos da natureza a darem um enfoque mais quantitativo a natured, que aliado as novas concep- coes de experiéncia € experimento, moldariam o fazer cienti- fico a partir do século XVII" Uma ciéncia experimental comecaria, assim, a rou- bar a cena nos séculos seguintes, bem como uma proposta yoltada para uma abordagem mais Matematica da natureza. Entretanto, por tras desse movimento, encontrava-se 0 cres- cente desejo de querer de dominar a natureza em todos os seus aspectos, moldando gradativamente uma postura antiaristotélica Influenciados por novas ideias e pelo ideal de usufruir- -se daquilo que a natureza poderia oferecer para o bem-estar de todos, os protagonistas da ciéncia moderna criticaram o modo de fazer de ci€ncia dos aristotélicos. Critica essa que deve ser contextualizada, observando-se as contingéncias de uma €poca em que outros aspectos nao sé ligados & socie- dade, mas também ao conhecimento estavam em profunda transformacao como nunca antes havia se visto, especial- Mente no ocidente latino. Desnecessario dizer as implicagdes que isso teria Essas mudangas provocariam intensos debates de natureza ":ol6gica, filoséfica e epistemoldgica em varios segmentos da Sociedade e do conhecimento. Isso porque, como obser- ¥™0s antes, o mundo parecia ser muito maior do que se imBinava e © conhecimento, até entao herdado pela tradi- °.ndo parecia ser total, Con| ec ciéncia antiga nado abarcava mais a totalidade do "mento do mundo. Era necessério, portanto, avangar e El fomire-y la maturalza, Saito, © telescopio na magia natural idem, 1a da Fisica," 38-43; Alfonso-Goldfarb, “Repensando as rotas da magia @ cl€ncia moderna (um estuco preliminar).” 136. “* *teenologia desde as orgens da citncia moderna ” a Digitalizado com CamScanner conhecer melhor a natureza, pois a “verdadeira ciéncia” estaria por vir. Inaugurava-se assim a ideia de Progresso q conhecimento cientifico e os estudiosos da natureza, lo tir do século XVII, investiram seus esforgos em diregag a conhecimento total acerca do mundo.” im ainda Aci ne a moderna nasceu de um esforco coletivo Esses estudiosos e outros interessados na “nova cién- cia” encontravam-se nas academias e sociedades que, desde © século XV, eram locais em que aqueles que tinham conhe- cimentos praticos e, outros de formacao erudita, se encon- travam e debatiam a respeito do conhecimento em geral. A ciéncia moderna nasceu, assim, de um esforgo colaborativo ‘em que nao sé professores universitarios, médicos, juristas e tedlogos, mas também o artesao, os praticantes de mate- mticas, © pintor, o escultor, o arquiteto entre muitos outros discutiram e debateram sobre o conhecimento da natureza Nessas reunides apresentavam-se novas experiéncias, expe- timentos, instrumentos, aparatos € outros procedimentos de se fazer ciéncia. Com 0 objetivo de divulgar e disseminar novos conhecimentos, essas sociedades e academias tiveram papel importante na institucionalizacéio da ciéncia moderna. visto que era nesses locais que o conhecimento cientifico passava a ser produzido Aciéncia moderna, assim, seria construfda num esfors? coletivo. Cada estudioso, investigador, experimentador. pra ticantes de matemiticas, tedlogos, filésofos e assim por diante, esforcar-se-iam para chegar a uma ciéncia total que # partir do século XVIII, passaria gradativamente a especializar™ -se, dando origem a diferentes campos e conhecimentos- 99 Rossi, Naufrigios sem espectador. : 92 none et Digitalizado com CamScanner HISTORIA DA CIENCIA PARA FORMAGAO DEM O que entendemos hoje por tecnologia nao corresponde bem ao que os antigos, os medievais e os estudiosos da natureza nos séculos XVI e XVII entendiam por esse termo Aciéncia, a técnica ea tecnologia Na medida em que caminhamos em diregdo ao século XIX, a ciéncia moderna passou por um processo de especia- lizagdo. Nesse processo, 0 conhecimento técnico também se desenvolveu estabelecendo telagdes com aciéncia em alguns momentos. Convém observar que o que entendemos hoje por tec- nologia nao corresponde bem ao que os antigos, os medievais €0s estudiosos da natureza nos séculos XVi e XVIl entendiam Por esse termo. A palavra “tecnologia” é antiga, porém o seu Significado estava restrito & arte (ars) da ret6rica. Tecnologia. em linhas gerais, era entendida como “estudo da arte do dis- Curso” até o século XVIII. Uma vez que 0 termo “techné”, de onde deriva “tecnologia”, se referia As artes em geral, prin- Cipalmente as artes mecAnicas (as vezes também traduzidas Por mechané ou mechanike), tecnologia designava a arte do dis- CuIso, visto sera retorica uma das muitas technai (artes) Epocas diferentes entenderam a techné de formas diferentes ___ Durante muito tempo a techné foi ignorada. Isso ndo Slgnifica, entretanto, que ela néo fosse importante, visto oe tipo de conhecimento estava presente nas cons- Ses, na agricultura e nas artes em geral. Foi somente a Pattr do século XV que esse tipo de conhecimento passou a inism, Machinery, and Renaissance Literature, 29-50; Van den Hoven nt and medieval thought. Woe, Hama Work in ancien nt "én "Ve tecnologia desde as orgens da ciéncia moderna 93 Digitalizado com CamScanner a ser valorizado. Até entdo, por se tratar de um conheg que requeria mais da pericia e da destreza (isto 6. ee @ncia) de quem era portador desse saber do i expert conhecimento, ele foi durante muito tempo Gloadsa gem de algumas das grandes classificagdes do cbithedmente desde a antiguidade. Mas isso também nao era regra wee que épocas diferentes entenderam a techné de formas dlc. tes. Por exemplo, o conhecimento do agricultor para alguns gregos na antiguidade era um saber que pertencia ao ambito da lechné, mas para outros, era uma praxis, Ou seja, uma das 4reas de conhecimento da episteme, segundo a classificagao do conhecimento aristotélico. Outro exemplo € a medicina, que na classificagao aristotélica € alocada como téchne que, no entanto, nos séculos XVI e XVII foi considerada ciéncia (episteme). Sem entrarmos em detalhes a respeito da natureza da techné, podemos dizer tratarse de uma expresso de conhe- cimento diferente daquela da ciéncia. Diferentemente da filosofia natural que buscava generalizar & mesmo classificar os fenémenos naturais num processo de verticalizagao do conhecimento, a techné era um tipo de saber que se desen- volvia horizontalmente na medida em que novos problemas préticos precisavam ser resolvidos. A techné, assim, era um ‘0 entre o saber & conhecimento que Se desenvolvia na tensa‘ o fazer. Era um tipo de “conhecimento aplicado” que gerava novos conhecimentos (também aplicdveis) por mel? da manipulagao fisica. Convém observar, entretanto, que nd0 de fundir techné com ciéncia aplicada. Muitas vez6 como “técnica”, esse tipo de conheciment' objetivo aplicar, necessariamente, © conheciment fia natural a servigo do homem. Embora 4 ciéncia tivesse se tornando cada vez mais operativa 81469 7 ii, resse dos filésofos naturais pelo conhecimento 9° te ea magia natural do século XVI fosse consider la 3 sonts ronmachone*O" = ON 94 HISTORIA DA CIENCIA PAI ae Digitalizado com CamScanner ratica da filosofia natural, as artes (lechnai) desenvolveram- ise paralelamente a ciéncia moderna até 0 século XVII. A partir daf, a propria concep¢do de artes (ars) mudaria, inau- gurando outros segmentos de conhecimento, tal como as ipelas-artes”. A techné era um conhecimento que se desenvolvia na tensdo entre o saber e oO fazer Assim, embora essas duas expressdes de conhecimen- tos fossem diferentes, em alguns momentos se encontraram ese entrelagaram. As lechnai continuaram a manter estreita relagao com a ciéncia moderna porque a ciéncia, a partir do século XVII, comecava a se tornar cada vez mais instrumental Aelaboragao de experimentos cada vez mais sofisticados exi- £1 nao s6 destreza do experimentador, mas também conhe- cimentos para organizar e montar diferentes equipamentos. Oconhecimento dito “tedrico’, dessa maneira, requeria cada vez mais 0 conhecimento “pratico” daquele que conhecia e sabia manipular os materiais. Essa relacdo entre ciéncia e teciné se estreitaria nos séculos XVI e XVII de tal modo que, ‘om 0 passar do tempo, elas se tornariam praticamente indiscerniveis. Era nos laboratérios, um antigo lugar em que St epresentava em escala menor (microcosmos) 0 todo, isto &0 mactocosmos, que a techné se manifestaria a ponto de se Sonfundir com o préprio saber da ciéncia. No século XVIII, ao lado das technai, surgiram as belas-artes, uma nova categoria de conhecimento que acabou por estabelecer Uma dicotomia entre aquele trabalho das artes (lechné) ea dos artistas (belas-artes) Xvi, NaS: Pa medida em que vamos em direcio ao século Notamos que a relacdo entre essas duas expresses de ‘ecnologia dese as origens da ciéneia moderna 95 Classificagéo do conhecimento segundo Aristételes Aristételes estudow a dlassificacdo do conhecimento e a agrupou tendo por base a finalidade a que se propunha cada tipo de conhecimento (ou seja, © pensamento, a agio ea produgio). Assim, as ciéncias (episteme) foram orgenizadas em Tedricas (Matematicas, Fisica e Filosofia Primeira); Praticas (Etica, Economia e Politica); Produtivas (Postica, Retorica e Dialétical. Esses trés tipos de conhecimento tinham por finalidade. respectivamente, contemplar a verdade, determinar as reeras de conduta; indicar meios a usar na produgio, Conhecidas como episteme, elas foram contrastadas com a teciné. Diferentemente da epistome, que seguia uma norma de necessidade, a lecliné estava associada 3 experiéncia e 8 meméria, portanto, a contingéncia Digitalizado com CamScanner conhecimento foi se enfraquecendo. Uma das TaZBes digg repousa nas novas categorias de conhecimento que emerg. ram a partir de entdo. Ao lado das technai, surgiram ag belag. -artes, uma nova categoria de conhecimento que acaboy a estabelecer uma dicotomia entre aquele trabalho das artes (techné) e a dos artistas (belas-artes), Nesse processo, a techné esvaziou-se de significado e perdeu gradativamente soy papel no processo de obtencdo de novos conhecimentos da natureza, ficando restrita a vaga ideia de “técnica” a partir da segunda metade do século XVIII." aprimoramento da techné Cabe observar que a acumulagao e a transmisso das technai, ou seja, dos conhecimentos artesanais, foram essenciais para o processo da industrializacdo europeia. Os diferentes saberes (technai) dos artesdos contribufram para o desenvolvimento das manufaturas nao sé suprindo as indUstrias de méquinas, mas também de processos para produzir artefatos cuja procura era cada vez mais crescente numa sociedade capitalista e industrial aos finais do século XVIII. Entretanto, o progresso industrial ndo dependia mais das technai do artesdo, tal como era antes. Muito pelo con- trdrio, a techné, entendida cada vez mais como conhecimento meramente “técnico", apresentava-se como obstéculo que limitava 0 desenvolvimento nao sé industrial, mas também social. Para remediar essa limitacdo e superar os obstécu- los ao progresso da industria, a relacdo entre “ciéncia pura” & “ciéncia aplicada” passou a substituir gradualmente a antiga Parceria entre arte (techiné) e ciéncia ao longo do século XIX. Deve-se aqui ressaltar, entretanto, que a “ciéncia apli- cada" nao era um aprimoramento da tecfiné, Reduzida a me" Idela de “técnica”, a techiné passou a coexistir com uma Nov? 101 Schateberg, fom Arts to Applied Science” 96 - cones HISTORIA DA CIENCIA pana FORMAGAO DE PROF Digitalizado com CamScanner jgade de conhecimento que agora se subordinava A ae ura”. A "ciéncia aplicada”, desse modo, procurava Pronhecimentos cientificos a servico da indtistria e em. Embora tivesse desdobramentos relativamente tes do saber cientifico, a ciéncia aplicada era vada 2 grande ciéncia. A medida que a ciéncia avancava, een novas descobertas, a ciéncia aplicada também se eeewvolvia aplicando esses novos conhecimentos cientificos adquiridos em todos os setores da indistria e da sociedade. go hom' independen No século XIX surgiu 0 “cientista” que ndo era mais filésofo natural, mas especialista de campos de conhecimento cada vez mais complexos e especificos Podemos dizer quea nova ciéncia agora passavaa domi- nar o cendrio, influenciando diversos segmentos do conheci- mento e causando a sensagdo de que o edificio da ciéncia moderna nao demoraria a ficar pronto. Assim, 4 medida que oséculo XIX avangava, éreas de conhecimento como a qui- mica, a fisica, a mateméatica e a biologia comegaram a ocupar |ugates proprios e especificos na ciéncia moderna. Também Surgia aio “cientista”, que nao era mais filésofo natural, mas Pica de campos de conhecimento cada vez mais com- i wie Tampouco era o antigo virtuoso, mas lonal que vivia de fazer ciéncia. céng@® 80 demoraria muito para que o edificio da Seada 9 °S28S€ a tuir por todos os lados. Nas primeiras Beng ca ule XX a teoria da relatividade, as teorias da Sina g , « fbStica e outros desdobramentos em que a Slerentes 7 @Pologia estavam envolvidas desenvolveram ‘is antenne? de se fazer ciéncia, Comegava ai. tal como * citncig maumente, o grande debate sobre os fundamentos "cos, isco em que participaram mateméticos. qui © toda sorte de filésofos da ciéncia, tais como "ica, “ 97 Nologia nN Bia desde as origens da ciéncia moderna Digitalizado com CamScanner Schlick, Carnap. Bachelard, Popper, entre muitos out disso, a propria ciéncla moderna passaria a ser wiles Além em virtude dos intmeros desastres ambientais ¢ stionada provocados nao sé pela indtistria, mas também iia grandes guerras no inicio do século XX. S duas Mas, & medida que avangava 0 século XX, novas formas de conhecimento passaram a roubar a cena em que a ciéncig moderna era a protagonista principal. A partir da década de 1930, a relagdo entre “ciéncia pura” e “ciéncia aplicada” seria novamente substitufda pela relacdo ciéncia e tecnologia. Diferentemente do que ocorreu com a techné, que passou a designar apenas conhecimento meramente técnico, a “ciéncia aplicada”, que muitas vezes era desenvolvida em laboratérios patrocinados por grandes industrias, passou a ser desenvol- vida por especialistas cada vez mais sofisticados. Esses espe- cialistas, entretanto, nao eram cientistas que se dedicavam 3 investigacdo nas “ciéncias puras”. Eles eram engenheiros que tinham formagao cientifica e se dedicavam nao sé a “aplicar” mentos cientificos, mas também desenvolver novos conhecimentos essencialmente tecnoldgicos. Desse modo, cientistas e engenheiros passaram a debater sobre o papel da ciéncia de base (isto 6, a ciéncia pura) na inovagao técnica De um lado, encontravam-se aqueles que defendiam a ideia de que a ciéncia de base era necessaria e suficiente para 0 desenvolvimento técnico e, de outro, aqueles que buscavam total independéncia da ciéncia pura. Entre esses dois extre- mos havia um espectro de opinides diferentes que envolviam nao sé cientistas, engenheiros € 4 inddstria, mas também responsdveis por politica cientifica & outros pesquisadores: : pc — cea 10? tais como socidlogos, filésofos & historiadores. conhecit in about To? Kline "Sronce and Technology.” 225-252; Aexande, TNO March of 2 Science in Technology"; Bud, “Applied Science : pinase a Meaning’; Collins & Pinch, © golemt: 0 que wwe? deveria saber seb aw tole asta 0 que vc evra saber sobre eco Fleck f sum fat cent. 5 co pe rxortssone — Digitalizado com CamScanner 98 HISTORIA DA CIENCIA PARA FORM Essas diferentes opinioes inauguraram novas Propos- tas que procuraram disc, as, relagdes entre ciéncia, tecno- Jogiae sociedade. Conhecidas hoje como estudos sociais da cigncla, 88a perspectiva de investigacdo busca compreender aciéncia ea tecnologia como atividades socialmente cod: cadas e posicionadas. Uma vertente bastante presente nos dias de hoje 6 aquela que tem origem nos estudos a respeito da “caixa-preta” propostos por Bruno Latour. Nessa perspec- tiva, a ciéncia ea tecnologia sao consideradas “caixas-pretas”. Elas ocultam as controvérsias, as disputas, as decisées, as concorréncias entre muitos outros fatores que fazem parte do préprio fazer cientifico e tecnolégico, dando a elas um card- ter neutro e frio. Em outros termos, a ciéncia e a tecnologia ocultam as redes de relagdes que fazem delas uma atividade humana, socialmente orientada.'” Embora essa perspectiva de andlise tenha revelado muitos aspectos da “natureza da ciéncia e da tecnologia”, eles Pouco contribuem para pensar 0 passado, visto dar conta das quest6es relacionadas a ciéncia, tecnologia e sociedade do século XXI. Entretanto, se analisarmos as relagdes entre cién- cia, técnica, tecnologia e sociedade. de forma historicamente contextualizada, veremos que tais relacdes sdo muito mais ticas e menos evidentes do que revelam os estudos centra- Cos apenas em questdes modernas. Assim, um didlogo entre 4S propostas recentes dos estudos sociais da ciéncia com a Historia da Ciéncia pode contribuir para um melhor discer- nimento do que é o conhecimento cientifico e tecnoldgico e Sua relacéo com a sociedade. Atualmente, ciéncia e tecnologia encontram-se ‘20 imbricadas que muitas vezes parecem indiscerniveis. Todavia, uma andlise epistemoldgica logo revela que essas dluas formas de conhecimento sao diferentes, tal como clén- ‘ia e lechné. Nao podemos dizer que a tecnologia é um apri- Oramento da techné, assim como nao podemos afirmar que I 93 Latour, Cincia em ado. Giocia, " técnica ¢ tecnologia desde as origens da ciéncia moderna 99 Digitalizado com CamScanner a ciéncia moderna é um aprimoramento da antiga. isso por. que, tal como jd discorremos, © passado da ciéncia nag se confunde com essa mesma ciéncia no seu passado, ssores a Nr 100 HISTORIA DA CIENCIA Pata FORMAGAO DE PRO" Digitalizado com CamScanner mt Digitalizado com CamScanner Copyright © 2014 Editora Livratia da Fistea 1 digo Diregio editorlal José Roberto Martino Revisiio (Os autores Projeto griifico Fabricio Ribeiro Dlogramagéo ¢ copa Fabricio Ribelro| Eiigho revisada segundo 0 Novo Acotdo Ortogritico da Lingua Portuguesa ‘pads Internacionals de Catalogagio na Publicago (CIP) {Cimara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Delian, Maria Helena Rox 1 citoeia para formago de protessoves / Maria Helena Roxo Beltran, Fumikazu Sait. thule. — 0 Paulo, Fdlitora Livrata da Fisica, 2014, ~ (Série temas em hhistéria da lena). isto {als dos Santos Pinto Te ioe SUN 97885-7861-271-9 | Cidncia -Histéria 2 Ciénela- istoriogratia 3. Professores~ Formagio I Sate, Furikazu. 11 Tindale, Lais dss Ssantos Pinto, Ml, THulo IV. Série baost45, ep0-509 {dices pata catslogo sisternitico: 1 Ciencia: Mistérla 500 “Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderd ser reproduend ‘se}am quals forem 0s melos empreyados sem a permissiio da EXdKora ‘hos initatores aplicam-se as sangdes previslas nos artigos 102, 108, 106 & dda Lel N°9610, de [9de foveroit ie 1998 ‘ Euitora Livia da Fisica ‘www livrarladatisica com br vor Digitalizado com CamScanner

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