Bernard Lewis
O ORIENTE MEDIO
Do advento do cristianismo
aos dias de hoje
Traducao:
Ruy JUNGMANN
Mull
1001066104
WM
Jorge Zahar Editor
Rio de JaneiroCAPITULO 8
O Estado
De acordo cdm a tradicao muculmana, o profeta Maomé enviou, de sua casa na
Arabia, cartas a reis e principes infiéis, informando-os de seu apostolado € convo-
cando-os a adotar o isla. Numerosos soberanos, governadores ¢ bispos sao citados
como as tendo recebido, os mais importante entre eles mencionados como “Cé-
sar” e “Chosroes”, isto é, os imperadores de Bizancio e da Pérsia, que entre si
partilhavam o Oriente Médio.
“César” era, claro, o imperador de Constantinopla, o sucessor dos imperadores
romanos e, desde o tempo de Constantino, 0 titular do império cristao. Anatureza
da dignidade imperial, como vista sob a nova fé, foi exposta por Agapito, didcono)
da Igreja da Santa Sabedoria — em grego, Hagia Sophia, conhecida geralmente
no Ocidente pelo seu nome italiano, Santa Sofia. Em uma prédica ao imperador
Justiniano, mais ou menos no ano 530 d.C., disse ele:
‘Tendo uma dignidade que se coloca acima de todas as demais honrarias, majestade,
v6s prestais honras, acima de todas, a Deus, que vos deu tal dignidade; na medida em
que Ele vos concedeu o cetro do poder terreno, a semelhanga do reino do céu, Ele
vos deu poder com a finalidade de instruirdes os homens para que se mantenham
figis 4 causa da justica, e o dever de punir os uivos dos que deblateram contra a causa;
estando vos sob 0 reinado da lei da justica € sendo rei legitimo dos que de vés si0
stiditos.
Na Roma paga, o imperador era rei, sacerdote, ¢ mesmo, em certo sentido,
Deus. Apés a conversio ao cristianismo, o soberano no mais reivindicou divinda-
de ¢ 0 imperadores cristdos passaram a reconhecer uma fronteira— embora nao
uma separacio — entre as fungées imperiais e sacerdotais, entre imperium e
sacerdotium. A distincao entre politica ¢ religiao ou, em linguagem moderna, entre
Estado e Igreja est implicita até mesmo nos Evangelhos, onde o fundador do
cristianismo € citado como prescrevendo aos seus seguidores “dai a César o que é
de César, ¢ a Deus 0 que é de Deus” (Mateus, 22:21). Aparentemente, coube a0
imperador Justiniano tragar uma clara distingao entre os dois. No prefiicio a sua
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sexta novella, dirigida ao Patriarca de Constantinopla, e que tratava da ordenagao
de bispos e outros membros do clero, declarou:
As maiores béncaos da humanidade sao as dadivas de Deus, que nos foram concedidas
por mercé — o sacerdécio e a autoridade imperial. O sacerdécio cuida das coisas
divinas; a autoridade imperial € exercida, e nisto mostra diligéncia, sobre coisas huma-
‘nas; ambas procedem da mesma e tinica fonte ¢ ambas adornam a vida do homem.
Os mais antigos governantes bizantinos ainda usavam titulos romanos, como
imperador, César, ou Augusto. Mais tarde, eram comumente designados por duas
palavras gregas, “basileus” (“monarca”) e “autokrator”. A fim de enfatizar a natureza
de sua soberania, os imperadores baixavam decretos “em nome do Senhor Jesus
Gristo”, “en onomati tou Despotou Iesou Khristou". Em BizAncio, ao imperador cabia
a responsabilidade final nao s6 pelo Estado quanto pela Igreja, e constitufa seu
dever aprovar e impor a “opiniao certa” — 0 termo grego, retirado das obras de
Platao; € “orthe doxa” — da forma definida pelas autoridades eclesidsticas.
Nos primeiros séculos, os imperadores de Constantinopla consideravam sua
Missdo como universal. Como governantes do tinico dominio imperial, e titulares
da Yinica verdadeira religiéo revelada por Deus, cabia-lhes levar a paz imperial € a
f€ crista a todo o mundo. O cerimonial bizantino dava ao imperador o titulo de
kosmokrator, governador do mundo, e mesmo de khronokrator, governador do tem-
Po: Entre as insignias e emblemas da soberania imperial universal, nenhuma era
mais poderosa do que a moeda de ouro, a solidus ou denarius, que, durante muitos
séculos, fora cunhada apenas em nome do César romano ou do autokrator bizan-
tino, ¢ que era conhecida e aceita em todo o mundo.
as eens €caos do séc. deixaram os imperadores bizantinos a testa de um
ida, As eformea sc eem’ maquina administrativa e militar debilitada e empobre-
cae !as de Constantino, continuadas e completadas por seus sucessores,
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