You are on page 1of 18
Filol Linguist. Port, Sio Paulo, v. 22, n. Esp, p. 75-92, 2020 Inxs / /esidoi.org/ 10-1606 fies 2176-9419.x22iEepecialp75-92 A Filologia e 0 estudo de Requerimentos do Arquivo Historico Ultramarino Philology and the study of Requirements of the Overseas Historical Archive Eliana Correia Brandio Gongalves* Universidade Federal da Babia, Salvador, BA, Brasil Resumar O astigo apresenta considecagSes sobse a aotubildade da Flologia na lorganizagio de edigSes de Requesimentos histtices do Conselno Ultrmaraa, (qoe registiam uma completa sede histrico-cultutal ¢ linguistica, Neste vies, 2 gio tansformadora da autidade floldgica revexbera lampejos exitcos nas descontinuidades dos diversos tempos do texto - tempo de producio, tempo de secepedo ¢ tempo de andise ~ e no reeonhecimento das vaiadss Tuas poiticss dos nossos semelhuntes, ligaes de memécia © texsitérios de identdade. No Jmbita dessas conceinscies © reflenSes, a leturaflologice € dindmica e plural, Dbascando desvelac no multiverso do texto of seus rastios e a8 suas significagdes politics. Para tanto, sci examinado 0 Requerimento do esecaro Peaaciseo da (Cruz 20 principe regente[D. Jodo] que solicits protecdo sepia contra 2s inusticas praticadss por seu senor Anténio de Cruz Veloso. Palavras-chave: Fiologia.Signiticacées poltieas, Eeiedo de textos hstéicos ‘Requedimento, Arquivo Histéxico Uramasino. Abstract: The article presents considerations about the notability of Philology ia the organization of editions of Historical Requirements of the Overseas Counel, ‘which register a complex historicl-cultwal and linguistic network. In this wey, the transforming acton of philological activity reverberate with critical Dasbes in the discontimusies ofthe ferent times oF the test - time of production, time of seception and time of analysis - and in the recognition of the vasied political struggles of our fellow men, places of memory and tetris of identity Tn the contest of these coacepmisizations and seflections, plalologieal reading i ‘dynamic and plu, seeking to reveal ite aces and political meanings in the smulvesse of the text To this end, the sequtement of the slave Francisco de (Cruz to the prince regent will be examined [D. Joio) who asks for soyal protection against the injustices practiced by his lod Anténio da Cruz Veloso. ‘Keywords: Pislology. Political meanings. Editing of historical texts. Application ‘Overseas Hastoneal Archive * Professors Adjuata da Atea de Filologia Romiaica da Giaduacio e do Programa de Por-Gradvagio em Lingua e Cultura — PPGLinC — do Instinuro de Letsas da Universidade Federal da Bahia; Coordena © Grupo de Estudos Filelégicos ¢ Lexicais (GEFILL — UFBA), Salvador, BA, Brasil, clanabrand7@gmailcom, eISSN 2176-9419 Filol Linguist. Port, Sio Paulo, v. 22, n. Esp, p. 75-92, 2020 16 1 CONSIDERAGOES INICLAIS. A producio de um testo envolve uma complexa sede histérico-cultucal € Linguistica, que inclui sua materialidade, mas também suas condigdes de producio e cixenlacio social. E, se 0 texto é produzido para ser lido, é preciso pensar na histéria dos sujeitos — escreventes, destinatirios e leitores — nas natsativas histéxicas registradas nesse texto e nos contextos de producio sociocultuiais. A proposta do artigo é apresentar considera¢es sobre a notabilidade da Filologia na organizacio de edicdes de Requerimentos histéricos que cegistram rastros da violencia em contextos de escravatura, no periodo oitocentista. Nesse viés, o trabalho filolégico parte do mapeamento das fontes documentais que testemnnham indiretamente os vestigios dessa violéncia, Na composicéo de produtos editoriais, resultantes desse mapeamento, seleio e interpretacio de Requerimentos, o filélogo da destaque 4 relevincia da constituigio de corpora de textos, que historiam variados modos de violéncias e de confiontos e tenses politicas e culturais — reiterando papel da Filologia no estudo de documentos histéticos oitocentistas. Desse modo, a pesquisa filolégica com Requerimentos histéricos que tematizam a violéncia no contexto da escravatura potencializa alguns interrogantes cuiticos: 1. Por que no estudo de documentos histéricos acolhemos a selevancia da atividade filolégica? 2. Qual a importincia do comprometimento ético, politico e histérico do editor, na escolha do que editar? 3. Como reavaliar os sastros das natrativas da violéncia historica em contextos de escravatusa no Brasil? 4. Por que o nosso contemporineo clama pela recuperacio de fontes textuais e pela democratizacio de produtos editotiais resultantes de uma mediagio filolégica criteriosa e consciente? Antes de responder as questdes delineadas, é preciso rememorar que 0 texto, objeto cultural e de estudo do filélogo, ¢ também um espaco de reflexto sobre os rastros da histéria politica e social dos sujeitos e das lingnas, nas mais variadas formas € discursos. Para tanto, sera examinado um documento do Conselho Ultramarino, catalogado pelo Projo Resgate em 2009, constante em um dos fundos do Arquivo Histérico Ultramarino de Lisboa, qe possui o maior niimero de documentos sobre © Brasil colonial e imperial em arquivos estcangeiros. (© Requerimento do escravo Francisco da Crm ao principe regente [D. Joao] solicita protecio régia contra as injusticas praticadas por seu senhor Anténio da Cruz ‘Veloso. O texto histérico em anilise mostra que os discursos politicos das instincias institucionais entram em conflito com as reivindicagdes e os discursos da commnidade negea escravizada ¢/ou liberta. Postanto cada producio manuscrita é compreendida diretamente como a materializagio dos discursos institucionais, mas também indiretamente como os vestigios dos movimentos discursivos de resisténcia dos escravizados e libertos. Goncalves ECB. A Filologia e o extuda de Re Filol Linguist. Port, Sio Paulo, v. 22, n. Esp, p. 75-92, 2020 2.O PAPEL POLITICO-SOCIAL E HISTORICO DA FILOLOGLA. Nesse revisitar dos Requetimentos histéricos do Conselho Ultsamarino, si0 trazidas cenas das natrativas que testemunham o horror das relagdes de poder sobre © corpo negro e escravizado como forca de produgio, os vestigios dos movimentos de confiontos que emergem desses escravizados, como formas de enfientamento € resisténcia da populacio negra contia a desumanizacio e as acées violentas & punitivas por parte de seus senhores e das autoridades locais. © filélogo, portanto, analisa a materialidade histética do texto escrito € interpreta e explora “o que pode estar oculto, incompleto, mascarado ow distorcido em qualquer texto” (Said, 2007, p. 82), com base na lingna, dialogando com a histéria da cultura ¢ refletindo sobre outsas dimensées do texto. Assim, na mediacio promovida pelo trabalho filolégico de editar textos, faz-se necessitio um jogo interlocutésio que atticula a historia das transmissdes textuais, a histéxia social e a histéria da lingua (Pons Rodsiguez, 2006) E nesse contexto que o fillogo assume um papel impar, pois sua atividade inf reivindicar a necessidade de uma anélise teérico-metodolégica interpretativa, dialogica, comparativa e contrastiva dos textos histéticos, mas também a observagio atenta dos usos linguisticos e sociais da escrita, com o fim de ampliar a compreensio. caitica dos contextos de producio e citculacio dos documentos. Nesse caminhe, vio sendo tecidas ontras histérias e outras memérias, reiterando o lugar politico, social, histdtico ¢ lingnistico da Filologia na elaboracao de edicdes fidedignas com critérios cuidadosos (Pachin, 2009; Cambraia, Cunha; Megale, 1999), texto, nessa perspectiva, é entendido como um entre-Ingar, nfo podendo sex “[.] dissociado de cesta configuiacio ideol6gica, na proporgio em que o que é dito depende de quem fala no texto e de sua inscticio social e histézica [.]” Reis, 1992, p. 69). Portanto, cada producio textnal é resultante da cultura, do tempo e do espaco, permitindo uma mediacio multidisciplinar, entre as diversas abordagens filolégicas ¢ as abordagens histéticas, politicas, culturais, paleogriticas, diplométicas e lingnisticas. Nessa linha, operando com procedimentos ctiticos e metodolégicos da Filologia, é evocada a proposta desenvolvida, em 2017, em um artigo, que traz a cena © tetmo ffléiog-bibrido, entendido como aquele que “apresenta e negocia uma praxis, mediada pela ediclo e pela leitura intespretativa, cxitica e histética dos textos, por conta da sua pritica identitiria némade [.]” (Goncalves, 2017, p. 201). Nesse conceito proposto ao termo, ser-sendo fildlogo hibrido hoje é, na ptitica editorial, multiplicar as perguatas sobre o nosso objeto, o texto, indicando-se ‘no contexto de producio, 0 quem, o onde, o quando e o porqué. E phuralizar o conceito de meméria e de hist6ria, é convocar os rastros dos sujeitos nas descontinuidades das marcas dos tempos no texto, é reinterpretar e reavaliar, sem cessar, os procedimentos adotados no decorrer de suas leituras, ¢ dialogar com outros tertitérios disciplinares, desconfiando e destronando as verdades que se insimam no texto e, portanto, é se interrogar e se reinventar o tempo inteiro, enquanto sujeito-pesqnisador, visto que cada texto apresenta seus rastros ¢ suas tramas © conceito filélogo-hibrido ganha energia politica 4 medida que nosso contemporineo clama pela democtatizacio dos produtos editoriais, pois essa acio académico-cientifica e politica interessa 20s pesquisadores do texto on da lingua do Goncalves ECB. A Filologia e o extuda de Re Filol Linguist. Port, Sio Paulo, v. 22, n. Esp, p. 75-92, 2020 78 testo, mas também ao puiblico em geral, pois é preciso conhecer outras nattativas silenciadas para interrogar os rastzos dispersos de violéncia histética contra a nossa populacio negra. Essa reflexto 6 necessiria e urgente em nosso campo de estudos, pois da mesma forma que precisamos assumir um papel de mediagio ¢ curadotia do testo histérico, através do resgate e da edi¢io das memérias de violéncias, a Filologia atual precisa também, por extensto, assumir conceitnalmente um papel politico, sobrevivendo e kesistindo como poténcia critico-analitica, mas também sentindo 0 que 0 mundo atual nos interroga, indo para além da edicéo do texto, pois ser-sendo, sentindo ¢ democratizando os produtos editoriais ¢ que nds somamos as necessidades e expectativas do mundo contemporineo. E, do mesmo modo que a potente voz do campo filolégico se soma a outias vozes de vitios campos disciplinares, a a¢lo transformadora dos fildlogos reverbera lampejos cxiticos nas descontinuidades dos diversos tempos do texto — tempo de produgio, tempo de zecepcio e tempo de andlise — e no reconhecimento das vasiadas Iutas politicas dos nossos semelhantes, lugares de meméria e testitérios de identidade. No émbito dessas conceituacdes ¢ reflexes, a leitura filologica é dinimica e plural, buscando desvelar no multiverso do texto os seus rastros e as stias significagées. Essa reflexio inquietante nos lembra Didi-Huberman (2011, p. 67): “[.] o que mais pedir a um, flésofo [ou podexiamos dizer a um filélogo] seniio inquietar seu tempo, pelo fato de ter ele proprio uma rela¢lo inquieta tanto com sua histéria quanto com seu presente?”. Entio, come ficar indiferente a0 pulsar do humano no texto e como niio se inquietar diante dos lampejos das narativas articuladas ¢ desarticuladas dos sujeitos? 3 ‘TEXTOS E NARRATIVAS SOBRE A VIOLENCIA EM CONTEXTOS DE ESCRAVATURA Nessa busca pelos rastros, é possivel respatar os vestigios de violéncias para reconstmir ¢ reavaliar parte dessas nattativas dispersas desses sujeitos ausentes na documentacio histéxica, através da atividade cxitica e filolégica. E, se as naxrativas constroem diversas historias, leitusas e vatiaveis, “tesgatar o passado é transformé-lo pela simples evocacio, [.]”, pois “todo documento histérico é uma construcio permanente” (Kasnal; Tatsch, 2011, p.12). Postanto, a atividade filologica cxia confiontos politicos e culturais, visto que 0 documento poderi ser estudado “enquanto instrament de poder” (Le Goff, 1996, p. 547) e de conscientizacio politico-cultaral. Para Gumbrecht (2007), 0 texto € ao mesmo tempo objeto material caminho para o desenvolvimento da atividade filolégica. Nesse viés, essa pritica, a0 mesmo tempo subjetiva e politico-cultural, de selecionar e editar os fragmentos textuais da histéria requer comentiios filolégico-histéricos e reflexes sobre o fazer € o ensinar as narrativas histdcicas, Postanto, consciente dessa pritica interpretativa, diante de diversos tipos de textos e do inegivel distanciamento cronolégico entre producao escrita ¢ acesso a0 texto, o fildlogo sabe que suas opcdes do que editar e como editar so significativas para a divulgacio dos fragmentos textuais ¢ das narrativas hist6ticas, pois indicam ttilhas e caminhos de mediaco de leituras aos leitores das comunidades, em diversos Goncalves ECB. A Filologia e o extuda de Re Filol Linguist. Port, Sio Paulo, v. 22, n. Esp, p. 75-92, 2020 9 séculos, contiibuindo para o complexo e ambiguo processo de formacio de identidades de seus leitores especializados e do piiblico em geral Os Requerimentos oitocentistas do Conselho Ultramatino sto fontes textuais, mannscritas que fazem parte de um pattiménio cultural comum. Eles expressam, contestos discursivos da organizacio politico-administrativa, eclesidstica, militar e judicial da colénia, viabilizando a interpretacio dos dispositivos de instrumentos legais e diplomiticos que regulavam ou no o cotidiano da Bahia, No cumprimento desse papel politico da Filologia, as nuances interpretativas trazidas para a cena da edicio desses Requerimentos explicitam leituras explicativas e inclusivas de documentos histéricos de teor politico-social da administcacio puiblica brasileica — legitimando a relevincia dos enfientamentos e da resisténcia, em contextos de escxavatuua — assentando-se em consistentes seflexdes sobre a subjetivaclo que petmeia a producio, a circulacio e a xecepgio dos discursos conflituosos, na relagio dialética entre identidade e alteridade. Nesse caminho, as inscricées da violéncia nfo estio exclusivamente vinculadas aos embates corporais, mas também ao cercear das vozes, a interdicio da palavra, do discurso (Orlandi, 2006; Foucault, 2004), tornando-se necessério que os sujeitos construam mecanismos de resisténcia. A propria legalizacio histérica da violincia contra a populacio negra se instaura por meio de priticas discursivas, juridicas € sociais que historicamente privam os sujeitos de seus diteitos ¢ desumanizaram “os corpos dissidentes, descontentes ¢ silenciados pelos contestos de escravatura, vigilincia e violéncia, paradoxalmente nao intimidados nem derrotados, que sesistiram a opresso por parte dos poderes institnidos” (Goncalves, 2018, p. 155). A propésito, vale lembrar que uma das dificuldades de se trabalhar com a questio da violéncia, em contestos de escravatura, se dé justamente pela auséncia da vor direta do povo negro na documentacio histética. No entanto, a auséncia dessa ‘voz na documentacio remanescente também pode ser interpretada como uma forma de violéncia, pois fica encoberta a patticipacio politica, ativa e impar da nossa populacio negra na historiografia brasileira. Mas, 0 siléncio tem muito a dizer, e esas ‘vores continniam ecoando em nés, cada vez mais alto. Essa auséncia de segistios diretos silencia a contiibuigio e a atuaclo da comunidade negra na constmigio econémica, social, cultural e democritica do nosso pais, suas agdes de forca e resisténcia, sendo, portanto, necessitias a edigiio e a interpretacio ctiteriosa dessa documentacao. remanescente. Dessa forma, na construcio dessa trama que nio vivenciamos, o filélogo buscar nfo apenas 0 que esta registrado, mas também os rastros do siléncio, pois 0 siléncio também incomoda, desconcerta e nos faz questionat 0 porqué do siléncio dessas ages. Seguindo essas trilhas, é preciso tencionar as ordens discursivas que pemmelam a escrita, suas finalidades, pluralidades de uso e as matésias da eseaita Nesse viés, é mobilizada aqui outta formulacio tedrica de cariter explicativo, com base no conceito de engxenagem filolégica, que nos leva a pensar como 0 fildlogo- editor considera 0 eixo textual como resultante da cultura, do tempo, do espaco, da historia e da lingua, sendo necessitio averiguar, no contexto arqueolégico da atividade filolégica de editar, a relacao articulada entre textos ¢ os diversos modos de transmissio de movimento de producio, circulagio e xecepgio, sem esquecer de suas materialidades e de suas inscxicoes. Goncalves ECB. A Filologia e o extuda de Re Filol Linguist. Port, Sio Paulo, v. 22, n. Esp, p. 75-92, 2020 80 Essa engrenagem filologica e interpretativa demanda campos de forcas diferentes e mutiveis para funcionar e opera em pares atticulados e paralelos — Filologia e Histézia, Filologia e Lingnistica, Filologia e Paleografia, Filologia & Diplomitica, Filologia ¢ Léxico ¢ Filologia e Discurso etc. — que se crizam diretamente ou transversalmente por um €ixo, © texto, que, por sua vez, permite movimentos constantes, continuos ¢ uniformes, além da transmissio de diversos movimentos de asticulacio e desarticulacio, de aceleragio e desaceleracio, na anélise cxitica da tradicio textual — a depender dos matetiais disponiveis — e no estabelecimento de noxmas editoriais, norteando 0 proceso de leitura filol6gica No cenitio dessa engrenagem filolégica, na elaboracio de edicées, [-] € preciso aviliar questées como tipologia textual, giaero sextel, piocesto de produgio, citculagio © xecep¢io dor texton, nosmae ontograticas wilizadas aa cpoca de producto do testo, ase cron, alma dx nocemidade de recorséncin is obras Iexicogrifices © gramaticnn para clucidagio de cestas tsidades lexicns loclizadas nos textos. Mas, por vrezes, pass clicidar or coutestos linguisticor © discursivor que Sgwenm no tekto histéxico,[.] fldlogo-linguista pode seguir eaminhos criticos gue 0 conduzisio + diferentes edigSes que se destinam a piblicos dfecenciados e que, portanto, desempenham diferentes funcoes. (Gonsalves, 20196, p. 13) Nessa engrenagem, a esctita, registrada em suportes variados, ocupa diversas fangdes que a vinculam aos seus produtores ¢ leitores e fs funcdes sociais e politicas por eles assumidas: Fonte: Eaborado pela soe, Figura 1 — A Engrenagem filolbgien, Assim, 0 texto mobiliza o encontro direto e indireto de diferentes areas, com vistas a viabilizar outros caminhos para o estudo das priticas de leitura e esctita. E, Goncalves ECB. A Filalogia e o estude de Requesimentos, Filol Linguist. Port, Sio Paulo, v. 22, n. Esp, p. 75-92, 2020 81 portanto, essa engrenagem filologica demanda esse compromisso ético e politico do fildlogo, visto que o conhecimento do maior miimero de narrativas, presente nos textos editados e divulgados, possibilita o xeconhecimento do papel histérico & cultaral daquele grupo, promovendo principalmente reconfignragées histéricas, outtas formas de confiontos, enfientamentos e negociagdes e reavaliagdes politicas em nosso pais. A propésito, Chartier j& destaca os desatios éticos e politicos daqueles que trabalham com a escrita, asseverando sobre a importincia de se seavaliar “agueles que a miséria do mundo e a brutalidade das leis deisaram sem documentos” (Chartier, 2010, p. 22). Nesse caminho da cenografia da repressio, a violéncia estrutural ¢ institucional em contextos de escravatura se constitui a partir da submissio do corpo negro & cativo que é visto como foxca de producto, pois 0 cxescimento institucional estava vineulado 4 escravizacio da populagio negra. Os rastros dessas narrativas foram registrados nos félios dos textos histéticos e inscritos e tatuados no corpo negto. Nesse contexto de confiontos politico-cultusais e historicos, é destacado o papel da Filologia na leitura critica dos textos histéricos e da composicio de produtos editoriais. 4 REFLEXOES A PARTIR DA EDICAO DE REQUERIMENTO DO CONSELHO ULTRAMARINO, Com a abertura de varios arquivos e com a organizagio de acervos sobre a historiografia baiana, em séries documentais, sto propostas novas linhas de investigacio que, a exemplo da pesquisa desenvolvida por Aras, trouseram a questio da violéncia em contestos da escravatura, destacando os sujeitos escravizados “que se envolveram nos movimentos de contestacio 4 ordem, de disputa do poder e por alteracdes na estrutura do Estado”, mas também o movimento de “‘setores da sociedade reunidos em tomo de pautas gerais e especificas para os distintos setores da populacio” (Aras, 2012, p. 152, 153), Desse modo, & importante avaliar como os documentos produzidos no Ambito da administracao colonial na Bahia demandavam atos e acées de contiole social ¢ politico sobre os sujeitos escravizados e libertos, no inicio do século XIX, mas também embasados em atos legais, mostsam as peticdes de providéncias dos sujeitos libertos as autoridades piiblicas, contra o descumprimento de atos legais e abusos de poder, como pode ser visto em Requerimentos produzidos nesse periodo. E, para isso, 6 preciso compreender 0 Requerimento (post. 1800) como um documento escrito e informativo, com o fim de pedi judicialmente algo a alguma autoridade piiblica. Segundo Bellotto (2002): REQUERIMENTO - documento diplomitie infosmativo, petcioniio, ascendente. Instrumento que sexve pasa solicas algo a uma avtoridade piblica © que, 0 contisio da peticio, esti bascado em atos legs ot em jusispradéneia. Moitas vezes, 0 xequesimento faz mengio a es865 at08, gqne toma coma base juries. Embora a defisicto poses sec a mesma paca os sequerimentos antigos © os aris, o seu discusso é um pouco diferente num ¢ noutxo caso. Nos requetimentos da antiga administsagio colonial temoe: Protocolo iniciak: nome e qualfescia do cequezente. No caso da documentacio colonial, mite vezes 0 zequerimento soatéa 3 palivea Diz antes do nome do interestado. Texto: a nastacio aludindo 408 dizetos e/ou intereses do sgaatisio naqulo que pede. O pedido, a Goncalves ECB. A Filologia e o extuda de Re Filol Linguist. Port, Sio Paulo, v. 22, n. Esp, p. 75-92, 2020 82 guise de dispositive. Protocolo final: ERM (© secebesit meseé) © a fssinaraca do requerente (on no) e data cronoldgica ausente. Nos seqquerimentos amals, a estninaca da texto é protocols inicial tinalacso © nome da autaridade 4 quem esti dsigide o cequerimenta, Texto: nome, quilificagio profissional ¢ fuagio do intezessado. “Reques..", ezsindo” se a exposicio da soliciticfo, fazendo alnsio ao seu embasamento leasl Protocolo final: as palavaas “Nestes termos, Pede defetimento. Datat t6pica e cronologica (Bellotio, 2002, p. 86) No Ambito baiano da seguranca, Brito (2016, p. 25) destaca que “[.] a esisténcia de um conjunto de leis que se ditigiam especificadamente 4 populacio afticana que vivia na Bahia pode nos sevela muitos conflitos, crencas e interesses presentes naquela sociedade”. Portanto, o estudo dos tipos documentais pode sngerir novos dados e pistas de violéncia conta os escravizados e os libertos na Bahia, portanto é preciso pensar mio apenas na pluralidade de fontes, mas nos sujeitos que compdem essas cenas. © Requerimento (post. 1800) do escravizado Francisco da Cruz ao principe regente [D. Joao] registra a solicitacio da protecio régia contra as injusticas praticadas por seu senhor Anténio da Cmz Veloso. Para ter acesso 4s narrativas registradas no texto foi escolhido © modelo de edi¢io semidiplomatica’ utilizada como corpus pelo ptiblico especializado, a exemplo de linguistas e outros especialistas, para fins de anilise e interpretacéo. A edicio semidiplomética é um produto editorial de mediacio intermedifsia, que conserva as caxacteristicas linguisticas do texto — como a ortografia e a pontuacio — além de sua constituicao gramatical e lexical. A edicio semidiplomitica pode ser antecedida da edigio fac~ similar, reproducdo mecinica do documento, ¢ pode vir acompanhada de outro produto editotial de cariter modemizadot, com o fim de dinamizar a leitura do texto para o piiblico nfo especializado, a exemplo da edicfo interpretativa, em textos com 1 A edigio do documento foi elaborada a pastiz de nomnas estabelecidas pelo Geupo de Estudos Filologicos © Lexicaie - GEFILL — UFBA, com base nas aommas pasa tunuscriio de documentos manusczitos para a histéria do portugués do Brasil (Cambraia; Cunha; Megale, 1999, p. 23-26), com algumas adaptagoes que se Hizeram aecessisias, Cutétios de edigio: 11 A uanseiigio. sexi conservadosa. 2. As absevianuras, alfsbéticas ou no, sexdo desenvolvidas, mascando-se, em itilico, as Ietsas omitidas na abrevianusa, obedecendo aos’ seguintes eitéxios: a) respeitas, sempre que postivel, a grafia do maauscrito, ainda que manifeste idiossincrasias oxtogeificas do crcziba. 3. Nio seri estabelecida fronteixa de palavias que venham eseritas juntas, nem se introduaita hifen ou apostrofo onde alo houver. 4. A pontuaclo oxiginal sexé sigorosamente manta. 5. A acenmagio original seri igorosamente mantida, 6, Seti sespeitado o emprego de mahiseulas e mintsculas como se apreseatam no osginal. 7. Insexgées do sptor on escrevente na enteelinha ow nas masgens superior, laterais on infecior entcam aa edicio entie os sinsis < >, aa localizacio indicada. 8 Intervengies de terceisos no documento original, devem apacecer em aota de pé de pagina, infoumando-se a localizacio. 9. Intervenedes do editor bio de ser 1atissimas. 10. Lewa ou palavra io legivel justin intervencio do editor na forma do item antesioc, com indicacio entre colchetes: [legivell. LI. A divisio das linhas do documento original sexi presecvada aa edigio. A dance de folio seceberi a marcagio com o respective mimero ua sequéacia de duss batsae vweiticais: || Ir. || Iv. |; 12. Na edicio, as linhas serio numeradas de cinco em cinco a pair da quints, Essa aumerncio seci enconteads A mazgem diceita da mancha, @ eequesda do leitor. 13. = sinais publicos serio indicados em nota de pe de pagina. 14, Trecho nio legivel por detesiorasio secebeia a indicagio [comoidas + quantidade de lukas]. Se for o caro de wecho siscado ou inteiramente anslado por borrio, mancha de tints ot rasta, sera registinda s informagio pestinente centze colclietes © sublinkada: 14 As palaveas transcsitas por conjectura serio marcadas por chaves, 15 As abzevianaras sero apresentadas em notas de rodapé Goncalves ECB. A Filologia e o extuda de Re Filol Linguist. Port, Sio Paulo, v. 22, n. Esp, p. 75-92, 2020 % tuadiglo monotestemunhal, e da edicto critica, em textos com tadiclo politestemunhal. Normalmente, nesse tipo de edi¢io as abreviamnras sfio desdobradas com gnifo — itilico, negrito on sublinhado — por se constitnitem como dificnldades para a leitura de textos do passado. Para Goncalves (2018, p. 160): [-] 0 acess0 aos fiagmentos a meméuin por meio dos textos € realizado por meio de apamto teotco metodologico mobilzado pelo edit pasa Ictura do documento, niteando or conceitor de texto tipo de edit ‘Ao assumit 0 tipo de edicio, o editor também assumixh objetivos cspecicos, em nosso exso, edges de documentos histticos que nko apagecm a8 marca Lnguistcas do tempo no testo. (.] E importante também que o editor estejacomprometido com a adogto de citerios que atentem pars 28 ‘peeiandades do mamasesito” (Roman Blanco, 1987, p. 15), mantendo todos 0s catacteres como sins, lass ¢ mesos, que possuam valor linguisico histxco, Dessa focma, na relagio eate Erica Hologic infeéncia, ¢ necesticin expictagio dos estos de tcigio que unifosmizem as prtias e produgées de grupos de trabalho, fixando © unificando dienizes e comvengoes de anseio e edigio de docsmentor, por pane de peaghissdares que dependem de sopent tclindos pass atest fats de lingua, podendo se acresceatar sepistos © Sots editors, pass stilinr © itor a intespictagio do testo, © tazendo também outros dados que esclaccem os contestos de producto do texto © Reqnerimento é uma cépia digitalizada. Apresenta escrita cussiva, com algumas ligaduras, tragado seguro e leve inclinagio para a direita, com uma esctita que revela um escrevente com caligrafia regular e com habilidade com a arte da escsita. O texto apresenta no protocolo final o registro Fiarcico da Cxuz. O Requerimento nio é datado, porém ha um registro, no verbete-resumo remetendo a instituicio de guarda — Arquivo Histérico Ultamarino — e sinalizando que 0 documento é posterior a 1800, 0 que levanta a hipétese de que é 0 testo foi produzido no século XIX. Goncalves ECB. A Filologia e nido de Requesimentos Filol Linguist. Port, Sio Paulo, v. 22, n. Esp, p. 75-92, 2020 84 ARQUIVO HISTORICO ULTRAMARINO ULTRAMARINO ‘BRASIL eAA Leet. (eo Fonte Bihtotes Naconal ~ Teste de dominio peo Fignta 2 ~ Fae-simile do verbere-zesumo do Requerimento (post. 1800) © documento é apresentado em um folio escrito no recto, pontuado e acentuado, e contendo 22 linhas. Na margem superior esquerda, ha o registro da segninte anotacio, um pouco abaixo da linha 1: Baia; ¢ a linha | registra, no Angulo superior direito, Sebor. O texto apresenta também manchas, rasuras e marcas de catimbos, provavelmente inseridos posterioumente no texto: 0 catimbo da Biblioteca Nacional, no Angulo superior dizeito, entre as linhas 1 ¢ 2; 0 caimbo do Arquivo Histérico Ultramarino, no Angulo superior esquerdo, na altura da linhas 2, que atinge © Angulo superior da letra D do vocibulo Dig, e também ha um tipo de carimbo em forma de brasio, na altura da linha 1, ao lado esquerdo do vocabulo Senhor, no qual se registra acima, CAUZA PUBLICA, e abaixo, 20 REIS. Por fim, 0 manusctito apresenta varias abreviaturas. A histéria de um texto € complexa, pois sua produgio esté fundada no sujeito, na linguagem e no discurso. Em particular, os documentos histéticos viabilizam o conhecimento de outros prismas historiogrificos, pois “cada registro de um texto escrito constitui um fesfemunbo” (Cambraia, 2005, p. 63) dos usos lingnisticos, das imagens dos Ingares e dos sujeitos conhecidos € anénimos que fignram nas narrativas histéricas sobre o Brasil. Nessas curvas de descontinidades temporais, ler ctiticamente os documentos histéricos é nos reportarmos a um. passado que mio estivemos, buscando os rastros, pois esse é 0 lugar que nos restou para buscarmos os restos, os vestigios da meméria fiaturada, que 0 passado € 0 Goncalves ECB. A Filologia e o extuda de Re Filol Linguist. Port, Sio Paulo, v. 22, n. Esp, p. 75-92, 2020 85 tempo perpetuaram, e que sé encontiam visibilidade perfodos depois, na reconfiguracio e reavaliacdo das narrativas. A seguir é apresentada a edigio fac-similar do Requerimento (post. 1800). Bz Aha samaadtats arhde eater, gue ul. yp iam rapes gna. bye Pom pegpoes Seem 2 thor acc gusipats Miran Be Sar oi, tee lagnew by lag !- gh th Bone tet tr | lomotler 9 Tain art rndirande oor: Crt dn he Aad Mis name 9 er, LEAR sos. hw Ayes Fonte: Bibiteca Nacional Tent de amin pio, Figura 3 —Fac-simile do Requesimento (post. 1800) - £ le Goncalves ECB. A Filologia ¢ o estuda de Requerimentos. Filol Linguist. Port, Sio Paulo, v. 22, n. Esp, p. 75-92, 2020 86 Excesto da Edigéo Semidiplomatica do texto [ts] 2 Seahoe.> Baia : ‘Dias Francisco da Cruz! Eseeavo de Antonio da Caz Veloza cidade daBahia que elle sfep)e[seSarow? aVarsa Alege Real 5 as injustgas que praticava o Seo senho[u!] naquella ida, que sendo parte mais forte fez com qye sere colhe sea sentfencall] do suplcone que inilepivel”] obtida asco favor, ‘como quis de nove preude: [!Jsuplicante a fim de averiguar(] ‘com jf otinha feito, foi obsigado © suplinate avic 10 guatf] 0 seu Reqfulerimento nf] flegivel] presenga de Vores Alleys Real indo aenforemas a0 General dasi fi] sua Cidade 0 suplizante seresguarde que ja vejo aaenformagio. Recorse o- amildemente a Vorss Alege Rea! que pello amor de Deos atenda 0 Requecimomo dfo] Suplizon', afim de selivear dos en 15 comoxlos que tem e esta padecendo nesta Corte donde ‘nao! fem nem que comer. dea Vous Ait Real sejaservide por sua Alta demencia mandar des- pachar 0 supizent como pede no se0 2 primeiso Requerimemto [np] EperaReabyMerce Francico daCruz Em contraponto as priticas de violéncia, silenciamento e privagio dos direitos dos libertos, que persistem na manutengio e legalizagio da exploracio € dominagio humana, emergem priticas discursivas de enfientamento que visam 4 defesa de existir. Assim, nesse estado de crise ¢ de exclusio, sio travadas Intas coletivas, em espacos de resisténcia, em diversos contextos ¢ territétios. Convocando os rastros do tempo, essas natrativas reiteram um fato ja conhecido e divulgado, mas que continua 2 nos sensibilizar: a violéncia é um sintoma 2 HA tim tipo de easimbo em forma de bessio, aa alnisa da linha 1, a0 lado esquesdo do voestnlo Seahos, 20 qual se cegista acima, CAUZA PUBLICA, e absixo, 20 REIS. 3 Na ala da linha 1, 20 lado esquerdo do vocibulo Seahor, ba a presenga de um carimbo, no Angulo ential © superior do filio, que registra acima, CAUZA PUBLICA, e, abaixo, 20 REIS. Entre as linhas | © 2, no Angulo dizcto, earimbo zedoudo da Biblioteca Nacional 40 vocibulo Baia € lancado no fagulo esquerdo, um pouco abaixo da laa 1 5 Bresenga de mazeas de earimbo da Biblioveca Nacional, no ingulo superior diteco, entre as Hinhas 1 e 2. ©.Na altura da linha 2, presenga de casimbo do Arquivo Histézico Ultramatino, que atinge o angulo supetior da letsa D do vocitoulo Dig, 7 Bosrlo acima de letra Cno vocibulo Chez * Letuas anuladas por bossa de mancha de tia, Presenca de borsio, que atinge as letras vm dow inviabilizando wma leimiea segica do vocdbnal. 1 Borsio na letea r, n0 wocdb sembor 1 Bosrdo em ena, no vocibbullo seven. 12 Leteas aavladas por bortio de manchs de tint. 1 Boerio aa letea Abulo sepresentou, na linha 3, devido A tinta, 1M Bortio acima da let o n0 vocdbulo de 15 Abreviamasa Sup! 16 Sem ponte. Goncalves ECB. A Filologia e nido de Requesimentos Filol Linguist. Port, Sio Paulo, v. 22, n. Esp, p. 75-92, 2020 87 que nos golpeia. No contexto dos sujeitos escravizados e lbertos, a violéncia foi utilizada como uma ago, um mecanismo com o fim de empregar intimidacio e forca contra grupos oprimidos, por meio de atos desnmanos, que provocam softimento, medo, dor, opressio ¢ cerceamento do direito dos libertos, em uma tentativa de fraturar 08 oss0s e calar suas vozes, Ademais, 08 vestigios de memérias narradas nesses Requetimentos histéricos nos assombram, ao se reiterar as agdes estruturais de violéncia étnico-racial ¢ de género, que delinearam a acio da Coroa Portuguesa, contra aqueles que fizeram parte do processo de construcio ¢ expansio do Brasil: os negros, os indios e as mulheres, Os textos histéricos da administragio piblica, produzidos no século XIX, materializam essa atmosfera de violencia decotrente das tensdes politicas que produziram vitios atos de revogacio dos direitos dos sujeitos. Mobilizando os mecanismos de leitura, através da anilise do Requerimento (post. 1800), em um ptimeiro momento, o que chama a atencao do leitor sio os discursos de édio e ioléncia, produzidos ¢ legitimados pelos poderes das autoridades senhoriais e locais na Bahia, ¢ os abusos softidos pelos libertos, por meio de um léxico de punicio, através da unidade lexical prender (£. Ix, 1. 7) e em construgées como ininsticas que praticava 0 Seo senbor, (. Ax, 1. 4); que sendo parte mais forte naguella cidade fez com que se ‘reclba\ se a sentenca do suplicante que tinka obtido a seo favor (E. Ar, . 5-6), quis de nove prender o suplicante (E. 11, 1 7), impulsionando um universo sécio-politico, que demanda medidas legais especificas, que mio sio cumpridas nem pelos senhoses nem pelo governo da Provincia ‘Mas, na contramio desse movimento de acorrentar e comercializar © corpo negro ea energia humana, desumanizar e subjugar os sujeitos escravizados e libertos e instituir ataques fisicos simbélicos, usando da violencia e de estratégias de contiole repressive nessa xegiio, sto presenciados vatios atos de enfientamento, mostrando que nem mesmo a violéncia social ¢ institucional inibiram as miltiplas formas de resisténcia individual e coletiva da populacio negra contra as condicées aterrorizantes dos contextos de escravatura. (Alencastio, 2000; Tavares, 2008; Dantas, 2011) Dessa forma, mergulhando nas entrelinhas da leitura dos Requerimentos histéricos, © leitor inquietado, por meio da pritica editorial, a ir em busca das tramas histéticas e participar da subjetividade discursiva que revela, de forma silenciosa, mas palpitante, a composiclo do corpo de luta e de resisténcia sécio- politica dos sujeitos escravizados e libertos, em busca de solugdes para os seus contextos de resisténcia e sobrevivéncia. Assim, diversos subtemas relacionados violéncia sio eixos de anilise que nutrem essa pesquisa com Requerimentos do século XIX, em suas variadas etapas, como pode ser visualizado na figura a seguir: Goncalves ECB. A Filologia e o extuda de Re Filol. Lingvist, Post, Sio Paulo, v.22, n, Esp, p. 75-92, 2020 88 Fone: Elaborado pea sutra com bse nas pees deeenvalides no GEFILL-UFBAY. Figuea 4 - Os textos histdcicos ¢ as divecsas formas de violeacia Na opinio de historiadores como Tavares (2008) ¢ Reis (1996), 0 contexto de escravizacio da populacio negra foi um dos mais violentos, visto que 0 corpo negro toma-se uma mercadoria, uma moeda de troca comercial que alimentava a ctiagio de leis, cargos © Grgios institucionais, promovendo o lucto a custo da desumanizacio e silenciamento dos escxavizados. Portanto, a Filologia, através da divulgacio de edigées de Requetimentos histésicos, ao operar no tempo, entre a distincia e a proximidade, seasticula e interpreta fontes textuais que se vineulam a sujeitos constitaidos pela histésia. Nesse prisma, paca desconstnir ¢ reconstmuic outras histérias e outras significacdes que circundam as descontinnidades dos textos histéricos, no tempo, é produtivo o didlogo com Agamben (2009, p. 71), pois “[.] 0 contemporineo coloca em acio uma relacio especial entre os tempos”, é ele que “fiaturon as vértebras de sen tempo (ou quem perceben a filha on o ponto de quebra)”, visto que “ele faz dessa fratura o lugar de um compromisso e de um encontro entre os tempos e as geracdes”. Desse modo, mtrir 0 mapeamento e a interpretagio dessas narrativas é também uma forma politica de comprometer-se e de dat voz aos silenciados pela historia e pela documentacio. O excerto a seguir mostra que além de Requerimentos 1 CE Instagram: hrps://seww nstagram/ge.f Goncalves ECB. A Filalogia e o estude de Requesimentos, Filol Linguist. Port, Sio Paulo, v. 22, n. Esp, p. 75-92, 2020 89 outtos textos histéricos do Conselho Uluamarino testemunbam a violéncia em contextos de escravatura, Nesse contexto, em Carta do século XIX" do governador das Armas da Bahia, Inicio Luis Madeira de Melo, a0 rei [D. Joao VI] sio expostos 05 tiltimos acontecimentos no Brasil, ¢ especialmente na Bahia, alertando para 0 risco de se perder esta importante parte da Monarquia Portuguesa. A Carta (1822) narra que, diante das atrocidades cometidas pelas autoridades locais, os negros dio pistas, com acées fisicas, discursivas e simbélicas (Bourdieu, 1989), de quererem se levantar e resistir, criando um clima de ameaca, desconforto e desassossego nas provincias, baianas. Nesse caminho, invertem-se os papeis e 0s opressoxes passam a experimentar da inquietacio promovida pelos levantes da populacio negra. Postanto, 0 se analisar a Carta (1822), temos consciéncia de que as autoridades locais temiam que 0s movimentos contestatérios afetassem e trousessem riscos aos seus modos de vida, fato que fiagiliza a estrutura social escravista. Como pode ser lido: [2s1I 70 © Povo desta Cidade continua a estar desa- cocezada, © 0 mesmo acoatece io Reconcsvo, pasa © ‘qie oF mafvados coacossem indiepando de todas 4¢ sortes 0 Povo com a Tropa, eaaturtes da Europa, © que 12] 75 o que me obsigow a publica: a Psoclamasad que xe- sctto a Vossa Magestade. Or Negios tem da do em diexentes pastes signaes de quererem levantar sc, €no dis 19 de Margo baa muidad dels apedse- jos, em lnm Iigar mi publico desta Cidade, sama 80 procissad que exafeia pellos Eusopeos, issipando 0+ ‘mesmos Ikmads, ea Guarda 0 sjuncamento ‘Alem disto tem-se cometido outios insultos con tsa Eusopeos®. Assim, a anilise de Cartas produzidas no Ambito da América Portuguesa também se constitni como um elemento importante no estudo dos movimentos de violéncia e resisténcia, principalmente por causa da sua diversidade de espécie de relagdes. Os documentos da administragio piblica, Requerimentos e Cartas, narravam tanto demandas politicas quanto religiosas das autoridades piiblicas & eclesidsticas, bem como questées privadas (Sanchis, 2000; Bellotto, 2002). Para Monte (2013, p. 218), no caso da Capitania de Sio Paulo, as Cartas narravam o pt6ptio monitoramento ¢ vigilincia da populacto das vilas, mas também serviam como instrumento politico para “os moradores que desejavam denunciar um crime on apresentar sua defesa [..]”. A Carta (1822) em anilise revela 0 cxescimento do controle social, por meio da vigilancia, mas sinaliza também paca o crescimento das noticias de levantes de escravizados em busca da sua liberdade e de seus direitos. 18 Selecio parcial de dados obridos ¢ adaprados com base na pesquisa de Iniciaglo Cientifica desenvolvida por Tamites Sales de Quadros ~ Bolsista CNPq, sob a minha orientagio, durante © ppesiodo de 2017-2018 e 2018-2019, com a catalogacio € a taanscricio de Cartas dos séculos XVIII ¢ XIX 1 Casta, 02.04.1822, £25, L. 70 - 74; £ 2v, L. 73 - 83. Fundo: Projeto Resgate Barlo do Rio Branco ~ ‘Biblioteca Nacional Digital, (AFIU_ACT._C1_005, Cx. 268, D. 18883 — 4 9, Goncalves ECB. A Filologia e o extuda de Re Filol Linguist. Port, Sio Paulo, v. 22, n. Esp, p. 75-92, 2020 90 4 CONSIDERAGOES FINAIS A violencia estratural ¢ a institucional afligiram historicamente a populacio negra, permitindo a reproducio do sistema escravista, mas, por outro lado, nfo é possivel deixar de recontar os intimeros vestigios e rastros das memérias dos movimentos de resisténcia, pois a Inta dos escravizados e dos libertos é a luta pelos direitos humanos. Em particular, a populacio negra ontem e hoje tem vivido grandes desafios, entre os quais resistir ¢ se reinventar, mesmo diante de outros modos de exclusio € outras formas de trabalho escravo. Diante desse cenitio atual, a leitura filolégico- linguistica e discursiva dos textos do Arquivo Histérico Ultramarino sinalizam outros caminhos da meméria para ler a histéria, ler © nosso tempo. Nesse 1evés, a populacio negra vive hoje um tempo de desafios, de sobrevivéncia, de superacio do racismo e de supetagio da intolerincia. Entio, é preciso refletir sobre os legados da violéncia e do medo herdados do nosso passado colonial e imperial. Essas lembrancas do passado nos fazem perceber que, se por um lado, 0 peso dessa heranga nos conduz a cenas de exclusio € violincia, na contemporaneidade, por outro lado, se 0 povo negro sobrevive & porque resistin de forma heroica A optessio histética do colonialismo, da escravidio e do 1acismo e 4s politicas do esquecimento instauradas em nosso pais, por meio de Intas, gestos e acdes de resisténcias que ainda se perpetnam em nossa histéria, Portanto, pastillar as leituras de Requerimentos histéricos por meio de produtos editotiais 6 propor novas interpretagdes sobre a historia de escravidio, Iuta e discriminacao vivida no passado-presente por nds. Desse modo, os estudos filolégicos sio imprescindiveis na leitua dos diversos documentos histéricos, com os quais 0 fildlogo se depara na sua reflexto caitica sobre as priticas ¢ usos sociais da lingua no escrito. Em diversos momentos da composico dos documentos ha técnicas € acdes editoriais que intecferem na sua producio, transmissio ¢ circulacio, fazendo-nos ponderar que as narrativas, presentes nas fontes histiricas, decosrem de acdes coletivas passiveis de leituras ctiticas e interpretativas. E, diante das novas reconfiguracdes do atual cendtio politico e social, temos de cumptir 0 papel social e politico da Filologia de democratizar produtos editoriais, que divulguem nazativas silenciadas e sustentem o discurso de resisténcia dos grupos minotizados, privados dos seus territétios, da sua lingua, dos seus direitos, da sua historia pelas aces violentas que institucionalizam historicamente a violéncia. REFERENCIAS: Acioli VEC, A csccite no Brasil coldnia: umm guia para leitwa de documentos manuscritos, Recife EDUFPE/ FUNDAYJ/ Massangsua; 1994, Agamben G. O que € 0 contemporinco? ¢ outros custios. Honesko VN, tradutor, Chapeed: Argos: 2008. Alencastro LF. O tato dos viventes: formacio do Brasil no Atlintico Sul. Sio Paulo: Companhia das Letras; 2000. Goncalves ECB. A Filologia e o extuda de Re Filol Linguist. Port, Sio Paulo, v. 22, n. Esp, p. 75-92, 2020 1 ‘Aas LMBde, Esciavos nos movimentos federalists. Bahia, 1832 ~ 1833. Politeia: Histoxia ¢ Sociedade; 2012: 2(1):151-172. feiado 1 mar. 2018). Disponivel em: bbnpi/ /wrew.snh201 | anpuh oxp/cesorsces/anais/14/ 1299165598 ARQUIVO _Acideiaefederalistasna Babiaoitocentista(TinaAsae) pdf Bellotto HI, Como fazes anilise diplomtics ¢ anélise ipolégiea de documenta de ssqnive. Sia Paulo: Auguivo do Estado e Impzensa Oficial do Estado; 2002. (Séxie Como Fazer, Vol. 8} Boncdiew P. O poder simbélica, Tomaz F, tachtar. Rio de Jancico, Rio de Janeiso: Edltaca Bectcand Brasil; 1989, Brito LC. Temores da Afiien: seguran legislagio e popslagio afsicana 1a Bahia oitocentista Salvador: EDUFBA, 2016. Cambraia CN, Cunha AG, Megale H. Notmas pars a transerigio de documentos manusexitos pasa 4 histéxia do portagués do Beas Ta: A carta de Pero Vaz de Caminha. Sio Paulo: Humanitas; 1999. p. 23.26. (Série Série Diachionica, Vol. 1) Chasties R. Escutar 08 moras com o¢ alli. Eemidos Avancados, 2010; 24(69):7-30, Chasties R. Os desafios da esesita. Moretto FML, tradutor. Sio Paulo: EDUNESP; 2002. Dantas MD. Revoltas, motins, revolucdes: homens livzes pobres e bertos no Buasil do século XIX. Sio Paulo: Alameda; 2011, Didi Huberman, G. Sobrevivéncis dos vage-lumes. Nova VC; Arbex M, tzndutor. Belo Hosizonte: Editora UFMG, 2011, Fachin PRM. Ceitctios de Icitura de manuscritos: em busca de edigdes fidedignas. Filologia © Linguistica Postuguess. 2009 10-11:237-262, Foucault M. A oxdem do discusso. Sampaio LFA, tradutor. 11 ed. Sio Paulo: Loyols; 2004. Gongalves ECB. Constructo discursiva do ethos da auroxidade institucional: poder, vigilincia e revoltas escravas ba Bahia. Letras de Hoje: estudos ¢ debates em linguistca,Hteratara e lingua pornagaesa, 2019x; $4(3): 350-358. Disponivel em: http: //¢s.doi.org/10.15448/1984~ 7726 2019.3.30947 Goncalves ECB. Didlogos entze Critica Filologica e Linguistica Histérica: construindo tuillas pasa o esmido linghistico de textos histésicos. In: ATAIDE, Cleber et al. (Ozgs) Estudos lingnisticos ¢ Lnecitios [reeucea eletséniec}:caminhos e tendéncias, 1* ed, Sto Paslo: Pé de Palawen; 20198, vl p. 11-20, Goncalves ECB. Leitusa extico-flolégica de Resolugio de 1822: seveltas, vgliacia, violencia ¢ ‘punigio ua Bahia do séeulo XIX. Filologiae Linguistica Postaguesa. 2018; 29 2): 153-174, Dispouivel em: hepsi /doiorg/ 10.1166 /issn.2176-9419:°2052p 133-174 Gonsalves ECB. Léxico ¢ histova:luas ¢ contestos de violéncia em documentos da Capitania da Bahia. ABRALIN, 2017; 162):191-218. Disponivel em: hatp/ /ds.doiosp/ 10.5380 /zabl.v1 6252006. Karnal L, Tatsch FG, Documenta ¢ histécia: a meméria evanescente. In: Pinsky, CB, Luca TR de, organizadores. O historiador e suas fontes. 1.” ed, Sio Paulo: Contesto; 2011, Gumbrecht HU. Los poderes de la Filologia: dinimicas de una prictica acacémica del texto Mazauechelli A, taadutor. México: Universidad Iberoamericana: 2007. Le Goff]. Histéria e meméria. Leitao B, Ferreira, 1,4” ed, Campinas: Sao Paulo: EDUNICAMP: 1996. Monte VM do, Costespondéncias Patlistanas: a8 formas de tsatamento em cartas de cicenlacio priblien Goncalves ECB. A Filologia e nido de Requesimentos. Filol Linguist. Port, Sio Paulo, v. 22, n. Esp, p. 75-92, 2020 2 {tese]. Sio Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras ¢ Ciéncias Humanas, Universidade de (Orlandi EP. Discurso ¢ leita. 72 ed. Sto Paulo: Cortez; 2006. Pons Redeigues I. Tatrodueiéa: la historia de a lengua yl hstia de ns taasmisiones textual Ts Pons Rodkiguez [, editor. Histoua de la leugus yenitica textual, Madsid/ Frankfurt: Tberonmesicasa/ Verwert; 2006. 9-17 Reis JJ. Recducavo sebelde: sevolias de esezaves nos engenlios bahianos. Aftoasia; Salvador, 1992515: 100 - 126. Reis J. Quilombos ¢ revoltas escravas no Brasil. Revista USP; Sio Paulo, dezembo/ feveseito de 1995- 1996; 28:14:39, Said EW. O cegsesso i Filologia. Humanismo e critica demoesitica. Eichenbexg R. Sao Paulo: (Companhia das Letras; 2007, Sanchis AM. La Cats, fuente de conocimiento histésico, Revista de Histéria Moderna, Valencia: Universitat de Valencia, 2000, 1815-26. ‘Tavares LHD. Histéria da Bahia. S40 Paulo: UNESP; Salvador: EDUFBA; 2008, Goncalves ECB. A Filologia e nido de Requesimentos

You might also like