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Historia Unisinos 19(3)838-347, Setembro/Desembro 2015 2015 Unisinoe~ dois 104013/u.2015.193.06 Presenca na auséncia: cartas na imigracao e cartas de chamada Present in absentia: Immigrant letters and requests for family reunification "po universe Cac de Maria Izilda Santos Matos’ smismacost peep be Oswaldo Mario Serra Truzzi? tnarsi@uficarbe Resumo: Cartas de imigrantes consttiem uma fonte privlegiada paras apreender no apenas as circunstancias ¢desafios envolvendo a experiencia migratria,mas,sobretudo,a mentalidade dos agentes histricosnclaenvalvis.O presente artigo procira em prime lugar ressaltar a relevincia do tema em segui,ciscorre sobre a expansio dos estudos sobre os escritos dos e/imigrantes, para concluiriustrand os anscios ehesitagies envol- vendo a reunificagto failiae, bem como o controle ea autoridade exereidos a dstineia ‘por meio de um tipo particular de correspondénci ~ as cartas de chamnada ~ eserta por lnigrantes portugueses em Sao Paulo no inicio do séeulo XX. Palavras-chave: cartas de chamada, imigragio portuguesa, cultura escrita popular, relagoes de género,relagoes familiares. Abstract: Immigrant letters area major source to earn not only about the circumstances and challenges involved in the migratory experience, but especialy the mentality ofhistorical actors involved init. This article ccc firs to emphasize the importance ofthe tpi, t then discusses the expansion of studies on the migrants'leters,ofnish by illastrating the aspitations and hestations involving failyreanification,as wells the control and authority ‘exerted ata distance through a particular type of eters ~the so-called requests for family ‘reunification ~ written by Portuguese immigrants in Sto Paulo in the eaely 208 century. Keywords: immigrants’ letters, Portuguese immigration, gender and Family relations. Introdugao Cartas nao 56 retratam processos de deslocamentos ¢ afastamentos, mas também sio produtos de ambos. Estas correspondéncias, muitas vezes, tornaram-se documentos usados no processo de imigragio para comprovar vinculos e viabilizar as saidas e/ou entradas nos paises de origem e de destino. Em nosso caso, trabalhamos com um corpo documental inédito definido peas erence an cede es lenead por sve anions Aton ge CCH 30) sense perme epic, saps avi gede que oat Presenca na auséncia: cartas na imigracao e cartas de chamada ditas cartas de chamada entre migrantes portugueses € seus familiares, localizadas em arquivos distritais das cidades do Porto e Braga, em Portugal, e no Museu do migrante de Sio Paulo (depositadas no Arquivo Publico do Estado de Sao Paulo) No caso dos arquivos distritais, as missivas encon- ‘ram-se nos processos para retirada de passaportes, sendo sua apresentagio uma obrigatoriedade, pois, de acordo com a legislagio portuguesa, as mulheres casadas ¢ os filhos menores nao podiam emigrar sem a autorizayao dos maridos e pais. Restringiam-se as saidas para o estrangeiro, jj quea permanéncia dos lagos conjugais.e a manutengao dda familia em Portugal funcionavam como um suporte, ampliando as possibilidades do retorno ¢ facilitando os fluxos das remessas, que se tomaram essenciais para a fa~ milia ca economia do pais. partir do decreto n.7427 de 30/03/1921,0 governo portugues induziu a uma mudanga za pritica corrente de escrever cartas familiares por novas formalidades. As cartas foram substitufdas por um tipo de mpresso consular padrao ¢ objetivo, nao mais trazendo as referéncas ¢ informagoes anteriores, to apetitosas como fonte historia, Jéno caso da pequena parcela das cartas de chama- da locaiizadas nos acervos da Hospedaria dos Imigrantes, estas constituiram © documento comprobatério que 0 imigeante deveria apresentar no porto de Santos, junto & nspetoria de Imigrasto, e que era entio anexado is listas de desembarque, arquivadas na Hospedaria. A partir de 1911, este documento tornou-se obrigatério para maiores de 60 anos e nio aptos para o trabalho, na tentativa de o governo brasileiro procurar assim garantir aexisténcia de ‘um amparo familiar para este contingente mais vilnerivel No primeiro caso, estas missivas em geral eram enderegadas pelo marido (que partiu antes) & sua esposa (04 a outro familias’ Emborao acesso as correspondléncias seja parcial, no sentido de abranger apenas um sentido (do marido para a esposa, € nto vice-versa), é possivel rmuitas vezes infer, mesmo unilateralmente, a natureza do dislogo travado entre ambos. [As missivas nao apenas documentavam os mundos de origem e de destino; por meio delas, buscava-se arguir siléncios, superar distincias, perpetuar afetos, reforgr Tacos ce combater a saudade, reconfigurando relagoes tornadas vvalnerdveis pela longa distancia e tempo de separacio, O presente artigo se ocupa em primeito Ingar da relevincia do tema, em seguida da expansio dos estudos sobre 0s esritos dos e/imigrantes,para conclu tustrando ‘os anseios e hesitagées envolvendo a reunificagio familia, bem como o controle ea autoridade exercidos a distincia por algumas cartas de chamada aqui analisadas. Cartas e migracées: um universo a ser explorado Os esesitos privados, que contemplam os deno- rminados “escritos ordindrios", abarcam uma variedade de textos, inclusive a escritura dos populares (Chartier, 1991), A esta a historiografia tem dado pouca arengio, provavelmente, por visoes preconeebidas de que 08 po- ppulares (devido a baixa alfabetizagao) nao dispunham de ccondigoes para produzir registros expressivos (Molina 1999), Inicialmente, esta fontes apareceram nas investi- ‘gagbes cientificas como alternativas e/ou complementares (Castillo Gomez, 2001); contudo, seu uso se difundin com a abertura possibilitada pela emergéncia das “outras historias” (Matos, 2014), que ampliou os interesses sobre vvariadas experiencias do passado, Estas recentes perspec- tivas geraram a necessidade de novos corpos documentais ‘com a valorizagio dos “escritos ondinarios", que permiti- ram descobertas frtiferas sobre as historias dos populares, incluindo sua cultura escrita, s populares prosiuziram seus proprios registos, fentretanto, eles se encontram pouco preservados em ar- «quivos piilicos, sendo conservados através dos tempos € aguardados secretamente nos sStios e batis, num sentido iis afetivo e visando preservara meméria familiar ou de tum grupo. Estas fontes explicitam experiéneias miltiplas, ‘excepcionais,aventuraspessoais referencias vida eotidiana, privada e questoes de ondem subjetiva das sensbilidades Desde meados da Epoca Moderna, em alguns pat- ses da Europa, os populares exercitaram a escritura frente fas necessidades de enfrentar as exigéncias burocri do Estado Modemo, 0 que coi dos processos de alfabetizagio ¢ excolarizagao. Apesar de reconhecerem-se as relagies entre a aceleragio dos processos de alfihetizaso/escolarizagio e o aumento dos textos populares, indubitavelmente,o maior fator para tal ‘expansio foi a necessidade de comunicagao gerada pelas ‘guerras (especialmente a partir da I Grande Guerra) pelos destocamentos (Blass, 2004) As mohilidades exigam dos e/imigranteso exerci- io de leitura/escritura, um amplo espectro textual passou a fazer parte deste universo,e citculavam um conjunto de manuais e guias, opisculos, folhetos, periicos,revistas, indicagées de viagem e das condigdes nos pases de desti otientagies sobre os trimites burocriticos (passaporte e autorizagées), entre virios outros escritos. Da mesma forma, atribui-se um papel de desta- ‘que aos deslocamentos como elementos de estimulo difusto e& consolidagao da leitura/escritura entre massas de e/imigrantes pouco letrados, que foram desafiados a ermine cteronerfeth 205,25) am ato wears de olen Hist6ria Unisinos 339) 340 Maria Izilda Santos Matos, Oswaldo Mario Serra Truzzi produzirem documentos invocadores neste processo. Os distanciamentos familiares foram o mote central que le- ‘vou os populares a enfrentar a pena, movidos pelo desejo de preservar as ligagdes domésticas e familiares noma necessidade de manter e/ou construir cadeias de tinta e clos de papel, que se tornaram uma pritica, necessidade o dos oitocentos, percurso das cartas centre Portugal e Brasil era de aproximadamente 60 dias, este prazo reduziu-se sensivelmente com a expansio das ferrovias, do sistema de navegagao a vapor ¢ da mala postal. Na segunda metade do século XIX, as missivas posiam chegar ao seu destino em até 20 dias (Rodrigues, 2013, p. 83). Através das missivas, buscava-se superar afastamentos, controlar & distancia, combater silencios, pexpetuar afetos, reforgar lacos de familia, parentesco amizade, fizer-se presente na auséncia, assumir respon sabilidades e driblar a saudade. [As cartas nd s6 retrataram o processo de e/imi- gracio e afastamentos, como também foram produtos deste. O gesto epistolar era considerado privilegiado, livre, secreto, timo, um verdadeirorelato de experiéncias individuais. Entretanto, quando escritas a ogo, as cartas ram fiequentementelidase relidas em piiblicoe também se tornaram experiéncias coletivas, sob a forma de textos 4 principio privados e domésticos que acabaram sendo compartilhados. “Mesmo sendo particularese intimas,as cartas assumiam uma importincia piblica como veiculo de avisos, que reforgavam a ligagio com a comunidade de litando, assim, a transferéncia de outros antes" (Vendrame, 2010, p.70). As ¢ através do qual se podiam arguir siléncios, superar distancias, perpetuar afctos ¢ reforyar lagos de familia, parentesco ¢ amizade. ‘Ao circularem, as missivas permite observar 0s dleslocamentos pelo caleidoseipico ponto de vista de seus rotagonistas, possibilitando compreender as transforma~ pes socials, cultura € identitérias. Além dos vinculos € sociabilidades constituidas no processo (Chartier, 1991), também as priticas da escrita, mesmo derivadas de uma cultura populas,e por vezes marginal, anharam expressio ‘numa forma literria propria —literatura epistola, dotada de estilos, etérica e convencbes especificas. ‘Enquanto um verdadeiro“tesouro documental” da escritura e meméria popular (pelo seu volume e fiequ- éncia) as correspondéncias dos e/imigeantes adquiriram interesse para os estudiosos, possbilitando ao pesquisador penetrar numa drea invisivel, que permite observar novos projetos, sucessos, problemas financeiros, tticas de so- brevivéncia, ascensio social, dificuldades do cotidiano no origem, po Bron dei campo e na cidade, relagdes afetivas, subjetividades e sen sibilidades (sofrimento e angistias, alegriase frustragdes), Todas estas pogas essenciais de experiéncias individuais trazem luzes paras hist6rias da e/imigragio a0 esclarecer aspeetos dificeis ou quase impossiveis de se pereeber em outros corpus documentais (Caffarena, 2012, p.19).. El estudio de las excrituras migrantes nos permite comprenderla-variedad de los uso y las frciones de Irescritoeneste momento bistoice, dependiendo de los Iugaresen tos que se escrbe y de los motives por ls que se hacesy en funcin de todo ela, dels diferencias ma seriales que presentan les distintos documentos. Vokoer 4a mirada hacia los protagonistas de este fendmeno y ‘emplear como fuentes las preducidas por ellos mismes eva al bistriador a contemplar la emigracn desde uma perspectiva nueva y fundamental. comprender, en suma, gue estos documentos no sélo nas bablan de la experiencia de os hombres y mujeres corrientes, sino que som el producto y la consecuencia directa de ella (Blass, 2004, p. 97). Expansdo e estudos sobre os escritos dos e/imigrantes Desde 0s finais do século XIX, podem-se rastrear estudos que se centraram no epistolirio e/imigrante: em 1892, por exemplo, o Comissério de emigragao da Ilia Lagi Bodio se uilizou de missivas (700 cartas) provenien- tes do Brasil para avaliar as condicées dos italianos que se deslocavam para c4 (Bodio, 1894).* Da mesma forma, em 1913, 0 médico e literato Filippo Lussana destacou aspectos da epistolografia da e/imigrasao analisando este material (Lussana, 1913). Considerado um clissico sobre as correspondén- cias de e/imigrantes, William Isaac Thomas ¢ Florian Znaniecki (1918-1920) recompilaram cinco volumes de cartas em uma obra que traz em sua introdugio uma abordagem metodologica do uso de tas fontes, ainda hoje constantemente reférenciada (Thomas ¢ Znaniecki, 1958). Paralelamente, embora com preocupasoes dis- tintas, uma geracio de historiadores norte-americanos formados nas décadas de 1920 e 1930, todos eles filhos de imigrantes,comegaram a questionaro tipo de narrativa vigente na histéria norte-americana, pretendendo incor- ‘porar as histérias de pessoas comunse familias ordinsrias das quais eles proprios descendiam, Tas autores deseobsi- sam nas cartas trocadas uma possibilidade de capturar a experiencia da imigragio por meio das préprias palavras Vol, 19. N° 3 - setembro/dezembro de 2015 Presenca na auséncia: cartas na imigracao e cartas de chamada dos envolvidos, 0 que emprestava um colorido especial a0 trabalho usualmente desenvolvido a partir de outras fontes, Deste modo, colegdes de cartas de imigrantes foram publicadas por historiadores nos Estados Unidos’, Europa, Canada e Anstrilia ao longo do século XX, interessados em estudar processos de integragio social ¢ politica, mudangas na estrutura familias envolvimentos em revolugoes,guerras e,de modo geralyalteragdes na cultura popular (Elliott ea, 2006). Contemporaneamente, destacam-se os estudos desenvolvidos na Universidade de Aleala (Espanha), no SIECE (Seminavio Interdiseiplinar de Estudos sobre a Cultura Escrita), merecendo mengio os trabalhos de ‘Veronica Blass e Laura Martine. e Martin, que priori- zam as cartas de e/imigeantes espanis para a América Latina. Também merece mengio 0 Centro de Estudos da ‘Emigrasio Galega, da Universidade de Santiago de Com- postela, onde se desenvolveram as pesquisas de Xosé M. ‘Nuiez Seixas e de Ratil Soutelo Vazquez (Nuiiez Seixas ¢ Soutelo Vizquer, 2005; Soutelo Vazquez, 2001, 2003). ‘Na Italia, no Archivio Ligure della Scritura Popolare, da Universidade de Genova, destacam-se as pesquisas capitaneadas por Antonio Gibelli e Fabio Caffarena e, para os e-imigrantesitalianos no Brasil, os estudos de Federico Croci (Cibelli, 1989, 2002; Cibelli e Caffarena, 2001; Croci,2008). Pocando a imigeagio que teve por destino o sul do pais, Vendrame (2010) analisou algumas cartas enviadas por imigrantesitalianos que se estabeleceram nas regides coloniais de Caxias do Sul ede Santa Maria a seus fimiliares na Itilia,enquanto Seyfer~ th (2005) comentou as cartas de poloneses compiadas por Kula (1977) e Wachowice (1981), bem como as cartas de alemaes compiladas por Vendrame (2010). Vendrame (2010, p. 70) chama a atengio para a importincia das cartas para a atragio de novos imigrantes, aparentados ‘ou nao, jé que estas constituiram 0 meio por exceléncia de “relacionamento entre os que ficaram € os que par- tiram [possibilitando] entender as escolhas, os habitos, as crengas ¢ as relagbes de parentesco das familias dos imigrantes que se fixaram em niicleos coloniais”. O ‘mesmo ponto é enfatizado por Seyferth (2005, p. 47), a0 mencionar que cartas e narrativas “chamam a aten- ¢¢lo para a manutengio de lagos familiares com os que ficaram ne sociedade de origem ¢ o empenho em trazer (os parentes mais préximos para o Brasil” proprio Emilio Franzina havia jé publicado em 1979 uma coleyao de cartas de camponeses vénetos que cemigraram 4 América Latina, enquanto Franco Ramella Samuel Baily analisaram as correspondéncias trocadas centre membros da familia Sola entre o Piemonte e Buenos Aires (Franzina, 1979; Baily e Ramella, 1988) ‘Jaéem Portugal, merecem mengio as investigages de Henrique Rodrigues, coneentrando-se nas cartas dos cemigeados de Viana do Castelo (Rodrigues, 2013). A tentativa de ilustrar a vida de e/imigrantes de origem franc6fona suscitou a organizagio da colegio Envoyer et recevoir. Lettres et correspondances dans les diasporas franco phones, publicada em 2006 (Frenette ef a 2006). Frente a tal diversidade, a despeito da sua po- tencialidade, o reconhecimento historiogeifico no Brasil das cartas de migrantes é ainda restrito, especialmente se for comparado com as pesquisas reaizadas na Italia, Gra-Bretanha, Franga, Espanha e em paises receptores, como EUA e Argentina Sentidos dos diélogos: reunificacdo familiar, autoridade e controle, ditos e nao ditos Apesar de sua ancestralidade, a escrita epistolar se alargou, com a ampliagio das comunicagées e inten= sificagio das mobilidades, como ja se mencionou. Faci- litados pelo desenvolvimento dos transportes em trens ‘enavios, os deslocamentos se tornaram “fendmenos” de massa, ¢ esta experiéncia historica migratbria amplion as distancias entre pessoas, gerando a necessidade de ‘comunicagio e esforgos de aproximagio. A escrita de cartas foi difundida, como j4 dito, incorporando os populates, num desafio para uma massa pouco letrada que, com grande esforgo, procurava manter os vinculos, disseminando-se novas experiéncias da pritica epistolar, “democratizando-se"a escritura, [As pautidas ampliavam a sensagio de separasao, , antes mesmo que 2 visio do porto de sada se dissipasse no hhorizonte,a esritura se iniciava na busca de manter vincuos, ‘quem ficava esperava ansiosamente pelas cartas e quetava- se da falta de respostas evidenciando o desejo do dilogo. El momento de la separacitn, el alejamiento fisco de «asa ta sensacin de lejanta cuando se ba legado ya al pats de acegida, desencadena el impubso decisive para coger pluma y papel y enfrentarse a la escritura. A menudo os indercambias epistlares com ls parientes empiezan yaa Bordo de los barcos que se dirigen hacia elNuevo Mundo,0en el momento dela arta, fisica _y mental, de quien abandona el contexto familiar y social (Caffarena, 2012, p. 20). ‘nn etry ese are taza Mot, arn nee ees de cars Se imgres gue tin sera dbus egies deserts a Hist6ria Unisinos 341 342 Maria Izilda Santos Matos, Oswaldo Mario Serra Truzzi No seu conjunto,as missvas registravam diferentes experiéncias revelando relagées pessonis, familiares (de- sagregasao, distanciamento e reencontro farilize),envol- vendo solidariedade nas dificuldades, suportes (rivaldades, afetividades e amizades),expondo interesses, perspectivas « possibilidades, mas explicitam como principal mote os csforsos para o reagrupamento familie. Nos primeiros meses se respondia com rapid ¢ se escreviam textos longos, cheios de detalhes,expli- cagbes e natrando as primeizas impressbes; a temética era a partida, o deseritivo da viagem, a chegada e as primeiras impressoes, além do trabalho, dos negécios e das novasrelagdes, também a procura de noticias sobre 0s acontecimentos na familia e na aldeia. Com o passar do tempo, a regularidade e a extensao decresciam A medida que um cotidiano mais rotineiro se impunha, estando porém as cartas normalmente presentes em ocasides celebrativas ou de mudancas importantes. Mesmo assim, a escritura se tornava mais eventual, com redugto do texto informagies. ‘Apesar de geralmente se ter apenas um exemplar de cada correspondéncia, observa-se que orto do envio variava muitos através dos textos denota-se em alguns «casos uma troca regula e constante, também as demoras nas respostas, queias pel falta de noticias, siléncios de meses ou mesmo de um ano, pedis para escrever mais 1 mitido, Sistematizando a datagio, observa-se que os ‘meses de maior incidéncia eram abril, dezembro e outu- bro; os dois primeiros devido aos momentos celebrativos da Piscoa ¢ do Natal. Ja a toca intensificada no més de ‘outubro devia-se ao ciclo da produgio agricola na Europa, denotando interesses em aconmpanhar as ldes da lavoura ¢, sobretudo, os resultados das colheitas em geral ¢ das vindimas especialmente (Rodrigues, 2013, p. 79). (© tempo algumas vezes provocava até mesmo estranhamentos ¢ espantes de natureza fisica, como cxemplifica a comrespondéncia de julho de 1914 de An~ tonio Teixeira Cardozo a Maria José, de 47 anos, natural do Porto: “Os retratos que me mandas-te acheios muito bons e vejo que as pequenas estio gordas. crescidas, quasi nem parecem as mesmas” (Arquivo Distital do Porto, Requisicao de Passaportes [ADP-RP], processo 1138) ‘Apesar de todos os esforcos de apraximacao, gra- dativamente, estabeleciam-se distancias eulturais, devido 4s experiéncias transformadoras como eruzar 6 ocean, 3 chogada num terrtério desconhecido 20 enfrentamento de desafios e privags Cabe enfitizar 0 processo de recepsio das cartas as tensBes nele envolvidas, desde as duividas quanto a cartas enviadas e nao recebidas até o tema dos diferentes significados apreendidos por quem as le, permeados por relagdes de poder entre autor ¢ receptor. E possivel Vol, 19. N° 3 - setembro/dezembro de 2015 observar como relagoes de género foram constituidas, re- afirmadas ou subvertidas por meio do processo de escrita ¢ leitura das correspondléncias Cartas trocadas entre migrantes ¢ suas familias expressavam diferentes visBes sobre o lar ¢ a8 priticas cotidianas, processos de mudangas, negociagio de iden- tidades, adaptagio as sociedades de destino (tomem-se cartas que anunciam a disposigio para se casas, ou de se naturalizar) ou dificuldade de integracio do imigrante, como se constituem os “outros” equais suas atitudes frente estes Elliott ea, 2006, p.9). Era relativamente comum os homens emigrarem _Primeiro atenuanclo os impactos da mudanga e,numa aga0 preventiva frente aos possiveis infortinios, eservarem 4 chamada do restante da fama para um momento mais favorivel, quando jéestivessem estabelecidos e pudessem contar com melhores condigdes financeiras. Apesar das cartas, majoritariamente, serem escritas por homens nestes documentos se fazem mengoes constantes as mulheres, sobretudo na condigao de destinatarias. Se as cartasser- vem efetivamente de guia para se recuperar a presenga feminina no processo de e/imigrasao, por outro lado, nas entrelinhas do texto observam-se ecos das vozesfemininas silenciadas, as resisténcias nas partidas, as cobrangas de noticias ou de remessas. © homem, através das missivas, buscava fazer presente na auséncia, manter 0 controle a distancia, pedia noticias, conselhos ¢ orientagdes aos familiares, particular- rmente as esposas (se devia ou nio ir para cidade, trocar de emprego, ampliar 0 negcio, ec.) Sao comuns igualmente as cartas enviadas com o objetivo de arranjar casamento, uma ver que, por viriasrazies, desecqilibrios de género ou mesmo animosidades étnieas ¢ cis no destino postiam levarhomens j emigrados a procurarem futuras esposasem seus paises de origem, expressando muitas vezes 0 desejo de preservar a cultura original ou de honrar compromissos anteriormente assumidos. Fenmenos como casamento a distancia ou 0 casamento nas docas, imediatamente aps ddesembarque, 56 puderam se va tecdos por meio de correspondéncias (Sinke, 2006). [As cartas se convertem numa representacao da autoridade ausente que, apesar da distancia, reprodur. as relagdes e hierarquias familiares, interferindo direta ou indiretamente na vida cotidiana, nos negicios, nos proble- mas com as terras ¢ a criagao, assumindo um discurso de recomendagao de como tratar,o que, para quem, quando por quanto vender, e~ sobretudo tratando-se de cartas de chamada — como, quando e por que vie. or vezes,o tom era mandatério, de quem apenas informa e decide, sem admit contestagSes: “Joana, dou- -tepparte que escrevi para teu conhado Silvestre a dar-the ordem, para quando éle segrogar asta terra coma familia, Presenca na auséncia: cartas na imigracao e cartas de chamada te trazer eos nosss filhos na sua companhia’” [Manuel dos Santos a Joana Rosa, 24 anos, natural de Guimaries,e 3 filhas, em 20/06/1914 (ADP-RP, proc. 1110)]. Isto vale tanto para assuntos cruciais,como a data da viagem—"logo «que recevas esta carta vaite preparando que eu quero ver ce tu jl vens comer as rabanadas na minha companhia” [Antonio Ribeiro « Joaquina Maria da Conceigio, em 20/02/1914 (ADP-RP, proc. 651)] — quanto pars temas ‘mais corriqueitos: “Nao tragas panclas nem mais nada s6 trazoqueeu te disse, mais nada’ [Joaquim Teixeira a Rosa Moreira, em 28/10/1913 (ADP-RP, proc. 211)} Ao mesmo tempo,aflitos etalver-mesmo inseguros, pelo tempo de auséncia ¢ pela distincia, ¢ relativamente comnium os homens se despedirem buscando reafirmar sea papel masculino nas relagdes de geénero do casal: ~ “Sow tet homem" escreveu Manoel Gomes Pereira a Carolina, em 14/11/1913, ou “deste teu homem que em breve deseja tert”, finalizava a carta recebida por Matilde de Jesus, '55 anos, natural de Lamego (ADP-RP, procs. 245 ¢ 346). Ou ainda, em tom de adverténcia: “Tu bem sabes «que a esposa deve estar com seu marido",escreveu Alfredo Fomeiraa Laurada Soledade, de 27 anos,natural do Con- selho de Arouea, em 27/10/1913 (ADP-RP, proe. 320). Nas missivas, alguns maridos escreviam afetiva- ‘mente, demonstrando amor e carinho, como Antonio cde Almeida para sua esposa Teresa da Costa de Oliveira, em 1910: LJ eu para mim tenbo uma fé em deus gue breve mente nos tamas abragar uni outro gue sb agin se segarei u meu ispivito assim gue apanhar meu amor au meu lado gue tam ouca alegria tenho tdo em me ver tam lange de quem eu mais istimo nesta vida que senbo passado um progatorio neste mundo com a tua ‘ausemiia nto immanginas como eu ando sempre com os meus bolbos rasados dagua por causa du meu amor de corag..arecebe mil abrazo i mil Beijos deste few esposo mito wmilde adeus ate deus nos deicharabragar (in Sarmenta, 1999, p. 291). Ou ainda: [J exreveme na volta do correo ¢ receve um sat- dso abraro deste teu marido amiga que estou morta qe venbas [Antonio Ribeiro a Joaguina Maria de Comcesda, em 1913, ¢filbos de 4 ¢ 1 ano, residentes no Porto, (ADP-RP proc. 651)]. Outeos, menos amorosos € mais pragmiticos, declaravam que as mulheres faziam falta no cotidiano, ‘tinham muitos gastos com as despesas de comida e la- vanderia e que precisavam muito delas para tocar a vida. [Nao posso mais com tantas saudades que tento das crianyas, € tu mesma me tens feito muita falta, pois tive uma constipario que me custow a ver Fiore della emguannto que set estiveses agua jd me no aconte- ceria asio [Antonio Teixeira Cardozo a Maria Jose, 47 anos, natural do Porte, em 13/07/1914, (ADP-RP, proc. 1138). Anna cu prciso que venba para minka companbia por- que nao poi ficar sem ti que a minha vida ede previsar de uma mulber ea sim cenba para mink companbia qe eu fasso mato dinbeire [Pinto Cardozo de Souza «sua exposa Anna da Silva, 29 anos, natural de Gata, filha, em marco de 1914, (ADP-RP prox. 167)] Determinados maridos esperavam pactentemente, ‘outros apresentavam ultimatos. Diziam que nto iriam cescrever mais, que aquela seria a iltima tentativa e inti- rmidavam com o abandono, caso suas esposas nioviessem, ‘como na carta escrita por José Fernandes da Silva para sua esposa, em 1918: a] tu Bem saves que em munca goste que me cuantra- riage ede pois de eu te mandar dir que nto me com santraridges td fixéte de cuanta queeu que nao érao eu orem poise bao que tu me combesas dies para tu vires ena tua obrigagto éra bir... ADP-RP proc. 482). HL muitos outros exemplos: Albina istow ademirado da tua demora depois dete ter ‘mandado bir tantas bexese madadodinbeiropras bia _gense ras desperas nto sei oquete falta agora Edeser~ toa bontade, mas agora nd estou para esperar sempre «por isso andas jé que esta recbas [Albino Ribeiro a Albina de Jesus, 38 anes, natural de Figueira Verde, 6 fills, em 0/01/1914, (ADP-RE prot. 852]. Ou ainda de um pai para seu filho, pelo visto bastante hesitante em cruzaro Atkintico: Ji depois que me mandastediser gue tinhas ficado Tore na inspegaa te eserevi tréscartas a mandar te ‘vir para a minha compantia e para iso jd também te smandei dinheire, Agora mais uma vez teexcrebo dsendo-te que sem falta de tempo venbas no sei que repugnincia tenbas em vir ‘indo para ao pé de nos para terras de abundancia se porem no wieres& porque mao queres saber de teu (pai, por isso eu com Bem pesar te digo que ndo quero saber deri [Antonio de Freitas a seu filho Manoel de Freitas, de 20 anos, rsidente na Vila do Conde, em 10/1/1913, (ADP-RE, pre. 50)]. Hist6ria Unisinos 343 344 Maria Izilda Santos Matos, Oswaldo Mario Serra Truzzi Ji Manuel de Sousa Monteiro, em sua carta de 1913, frente & insisténcia da esposa, escrevia que nao a chamaria:“[..] E por que tenho uma mulatinha comigo muito bonita até tu mesmo se avisesficabas em cantada com Fila.”(Carta n.181, de 14/11/1921. Pundo Hospe- daria dos Imigrantes de Si0 Paulo, APESP), ‘As saidas dos maridos afetaram o cotidiano fe- ‘minino, ampliando o trabalho e a responsabilidade das ‘mulheres que, além das atividades domésticas e cuidados dos filhos, passaram a arcar com a manutensio das pro- pricdades, as lides no campo, os comércios ¢ negécios da familia. Assim, além de suas fungdes tradicionais, elas assumiam os nexecios da familia, gerindo 0s bens do casi, € administravam o uso das remessas, bem com as lides ‘nos comércios € no campo (lavravam, cavavam, colhiam, preparavam os produtos e cuidavam das eriagoes e seus subprodutos),além de outras atividades indispenséveis para a sobrevivéncia, como apanhar lenha para sie para vender (padarias e olarias) e xealizar trabalhos de fiaga0 e tecelagem (linho e a), entre outras Na correspondéncia,entrevé-se que elas acusavam. ‘0s maridos de se mostrarem indiferentes aos problemas € se manifestavam enciumadas frente a boatos e male- dicéncias. Os contlitos familiares se ampliavam com a distancia, perceptiveis através das queixas de esposas que se sentiam desprezadas, desamparadas, s6s com os filhos, muitas vezes passando necessidades. Por vezes algum infortinio maior servia de argumento & reuni- ficagio familiar, como se denota pela carta enviada por José Gomes da Silva & sua espost Maria da Conceigio, procurando convencé-la da viagem: 0 que mais me custou foi morrer minba filba sem ewa ver, 6a maior pena gue eu tenho, o mesmo pode acontecer ou ati ou a mim, por iso vem para o meu Jado porque sempre seremos mais felizes vivendo juntos do que etarmos separades sem sabermoso dia ‘em que eu podereivoltar para junto de ti (ADP-RP, pro. 364), Jaoutras esposas nto desejam se uniraos maridos —a partida do cénjuge, apesar dos miltiplos afrzeres, representava certo alivio, uma vez. que elas se sentiam mais senhoras de si, habituavam-se a lidar com dinhei- 10 € com os negécios, assumindo papel de gestora dos assuntos familiares ¢ encontrando-se livres da gravider nao desejaa Havia mulheres que manifestavam receios da via- gem, da volta & subservigneia doméstiea e das miltiplas incertezas de um pais desconhecido. Tas dividas eram por vezes alimentadas, deliberadamente ou ndo, pelas cartas que recebiam dos maridos: Vol, 19. N° 3 - setembro/dezembro de 2015 [Jou aa esti bom mas paracomersempreseha de arvanjar [José Gomes da Sibea a sua esposa Maria da Concegi, de 25 anns, casa, natural de Castel de Paiva esua fila, (ADP-RE pro. 364]. Ou: [1] ters de t sujeitar as concecuencias a que ex me sujeite agui as cexesé bom outrasé ruim [Eduardo da Sitoa Pinto sua esposa Angelina Rosa costureira de 29 annos, natural de Concelho de Mesto Fri, eseufi- Bho de 9 anas, em 12/04/1914, (ADP-RB prec 527)}. s proprios maridos, embora em geral desejosos ‘por rever suas familias, também temiam pela viagem da esposa e dos filhos desacompanhados de alguém de con- fianca para protegé-los. ‘Toma muito cuidade com as pequenas principalmente em Letxéese durante a viagem que nda acomteca nada (6 ou 15 dias antes de embarcarrem [Antonio Teixeira Gardraa a Maria José, 47 anes, natural do Porta, em 13/07/1914 (ADP-RP, proc. 1138) [--Jewesquegasde tr ninbum medode-vir gue tuvem mais a Pregosa tu te governas com ella mas andas de duas vindas nem para uma dar uma halta (2) a tra fica com as riansas [Antonio Ribeiro a Joaguina Maria de Concetéo, em 1913, ¢ filbos de e 1 ano (ADP-RP. pro. 651)}. Se cava biere da a i alguma familia tu escreve para 11 bres junto a gui se me consta 0 teu cunhado que quere bir também para o Brazil se ele biere tu vens junto com elle se ndo bier ninguém ai entdo cou te ‘uscar [Maria Velmira Rodrigues Barbosa, 24 anos, rataral de Viseca,¢filbo de ums ano, em 25/02/1913 (ADP-RP. pro. L44)]. Loe ebiga-te sempre pro pé das mulberesserias tanto de dia quanto de noite procura a ficar numa cama sempre a pé de mulheres serias que a mer [..] ser seria éem toda a part. Nao tenhas medo de embarcar (que a aguitoé uma brincadeira, tu Joaquim Tera (ADP-RP proc, 211) Por vezes,as esposascriavam desculpas para nao ir (doenga dela, dos fithos ou dos pais), buscando eseapaté- Flas para retardara viagem. Algumas gastavam 0 dinheiro enviado e nio partiam:; outeas, depois de muitas ameagas e reclamos dos maridos, embarcavam frente ao reeeio de serem abandonadas. Presenca na auséncia: cartas na imigracao e cartas de chamada [..] bem sei que custas largar a tua famitia, mas lembra-te que ens para o teu maria... Com isto nto te encomodo mais... Espero que venhas logo que indo sea precizo que teexcreva outra Cartra. N.B. Se do vieres, Cesta a ultima carte que te ecrevo ¢ ndo favo caso nenrur de ti [Antonio de Castro a Maria da Conceigdo Pinto da Sitva, natural de Gaia, em 2V/12/1913 (ADP-RP. proc. 157)]. Ou: Ta toma centido no que te digo. Tu bai teras quem te diga que ndo venbas meas tu so te govermas comigo eu 1ndo posse bai porgue nao tenbo agora dinbeiro para eeu ir buscar [Antonio Ribeiro a Joaguina Maria de Comccgdo, em 1913, filhos de 4 ¢ 1 ano (ADP-RP, ‘pro. 51). Ou ainda: Como a 15 meses te mandeivireante hoje tenbo estado [ra] manda tenbo [uc] orem é esta ultima carta que ete eseeviatalfim eu te digo, quera também a mais para a minka companbia e que tragas na tua os trés filbos, Adelaide, Lourianna ¢ Frectozo até comentei isto [recebida por Matilde de Jesus, 5S anos, natural de Lamego (ADP-RP proc. 346)}. Outros nao chegavam a ameayar, mas eclamavam: [-Jiserova com eisperanssa da vossa vinda gue jé no é sem tempo [Joaquim Rodrigues em carta esrita de Mante Azul (SP) asuaexposa Rosa Tavares da Sikva, eS annos, natural de Gaia, em 22/04/1914 (ADP- -RP proc. 511). Allgumasesposas, por sua vez, ansiavam pelo reen- contro, nsistiam, pressionavam pela chamada,ameasavam partir para o Brasil e mesmo sem antorizagao buscavam brechas ¢ alternativas. Alguns maridos respondiam com ‘mensagens apaziguadoras, outros impunham condigdes (nao trazer a mac, nao vir com os irmé énio) c diversos acabavam cedendo as solicitagdes © ‘mandavam-nas chamar Frn]careebiatua carta e nella vi o quanta me man- dirvasdiser ja gue tanta vontade Tens de vires para a ‘mina mina companbia destineifaxer-te a vontade [Antonio de Castro a sua esposa Maria da Conce into da Sikva de 28 ano de idade, natural de Gaia, em 2/12/1913 (ADP-RP. pro. 157)] Na data iscrevo [..] ¢ nossos querides filbos por minka mae debas estar admerada por 0 meu silencio. ‘agora tenia a dizer-te que esta na mao do Jose Fer- rrandes uma letra da quantia necessiria para tu @ (Filbos embarcares para esta terra pois deve saber gue ‘para mandar dinbeira para abi esta 0 cambio muito alto por iso como digo vem e noses filbos para que ‘assim: termina tudo [Alfredo Ferreira a Laura da Soledade, de 27 anos, natural de Conselbo de Arouca, ¢ sua filba de 3 anos, em 27/10/1913 (ADP-RP proc. 320)). Sorinhas ou com os filhos, elas enfrentavam o deslocamento transatlanticn tendo a frente um pats des- ‘conhecido, em busca do sonho de voltar a reconstiuir a familia. [Nao sei se ficarias contente por eu te mandar bir? ‘Mas tem paciéncia porgue eu guerotetér na minba companbia! Eu esrevite para tu vires bamus agora a ver 0 que sme mandas dizer! Se nao vieres nao mandes roupa porgue eu ndo d seito!.. Nem iscrevo mais. Nao te mandiba vir we tu munca me pediges. Mas agora quer gueiras quer ndo dos dois caminbos tens um a seguir! [Mancel Gomes Pereiraa Carolina Augusta de Bastos,19 anos, natural de Macicra de Coimbra, e seu filbo com dois anos (ADP-RP proc. 245)}. Uma vez decidida a vinda,é muito comum que os rmaridos orientassem suas esposas de modo muito preciso sobre 0 que deveriam trazer,como estipulavam as cartas de 28/10/1913 e de 30/11/1913, recebidas por Rosa Maria «e Maria Pinto, respectivament Otha to vai comprar uma caicha egual ado Damiao sum pouco mais ow menos [uJ € depois metes a tua roupa dentro toda ¢ roupa de cama também, e depois 6 metes por enzemplo garfs ecolberes,e3 ow pratos dos piquenos eo |..] pequenina da csturae todas esas ‘srapalhadinbas gue toquezerestrzeres,e manda fazer unschinelosa tadaa pra ecomprasunsde liga, emete [J roupa fraca duma saca para te trazeres, dentro dda vapor que e muito presizo (ADP-RP. proc. 211). Resebi as tuascartas 0 qual respondo a ella, uma de 8 de mocembro em que me dizes tres matado a porca, em fizestes, manda-me os lombos, dizes se & bom traxela, cd & muita carne, ¢ para a trazeres,agui os Aircitos sto cares, e 0s comedores so muitos, masés ‘ras algumas enozes também (ADP-RP. proc. 657). Hist6ria Unisinos 345 346 Maria Izilda Santos Matos, Oswaldo Mario Serra Truzzi E claro que nas missivas encontram-se também ‘casos nos quais os maridos nao manifestavam qualquer desejo de reencontro, referiam-se de modo indefinido & reunificagio familiar. Eles viajaram s6s ou com amigos, usuffuiam de liberdade (impossivel na sociedade de onde vinham) e nao desejavam mais voltar situagio anterior. ‘Alguns homens deixavam de mandar noticias, nunca retornaram e constituiram novas familias no Brasil. As ‘mulheres se deixaram ficar envoltas numa espera sem fim, tornavam-se “vitivas de maridos vivos", despertando sentimentos de saudades. Para finalizar, mesmo reconhecendo que as cartas de chamada procuram atender as exigéncias das legislagdes governamentais, elas devem também ser compreendidas no quadro das aspiragies das partes cenvolvidas, com possibiidade de se observar o problema dos siléncios, das omiss6es, das meias palavras ¢ das in- verdades,de deixar de fora o doloroso,0 inconvenicnte, 0 cembaragoso. E evidente entao que nem tudo que aparece nas cartas possa ser considerado “expressio da verdade”, assim como nem tudo que poderia ter sido dito aparece nas cartas. Desta forma, elas compreendem uma docu- ‘mentaglo estratégica para analisar também 0 no dito € 0 interdito, como se buscou aqui explorar em selagio aos anseios de reunificagio familias, is caréncias que a distincia eo tempo de separagao impuseram as rlagies, também aos temores envolvendo a viagem ea vida em um novo pais. Nestes casos em que “verdades narrati~ vas" se sobrepéem a “verdades fatuais”, o empenho e © compromisso em manter 0 contato ¢ a relagao gganham relevo, muitas vezes a expensas da clareza edo relato fie] das experiéncias vividas. Referéncias BAILY,SL-; RAMELLA, E1988, On omy Too rl A ation Famiys Corrapondene aces tbe Adan, 1901-1922, New Brunswick, Rutgers Univesity Pres, 251 p BLASS, 2004 Poestes de papel: apntes sobre s escritra de a ign. Horizons Ania, 1(22).99-119 ODIO, L. 1894. Sulla emigrvione italiana e sl patron deg cane Are Del prio Congreso geri tions ote in Gono da 1925 rembre 1882, Geno, Tiporaia Del Regio Isat onda, Hyp 109-148, (CAFFARENA, F, 2012, Inocucisn. Jn: F. CAFPARENA; LM. [MARTIN (on), Bria migrant na mirada cep. Genova, Fanco Ange p. 9-22 CASTILLO GOMEZ, A.2001. rita dine sutras uns mirada ‘pola Oinreran, Senda, 18 p (CHARTIER,R.1991,Avant-propas. fi R.CHARTIER. 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